CARLO

Para fazer um gelo de morango: escolha trinta morangos suculentos com bastante aroma, parta-os e pique-os e passe-os por um coador; adicione uma chávena de açúcar e meio litro de leite de vaca gordo; misture bem e mexa enquanto congela. Não precisa de mais nada, mas pode aromatizá-lo com um pouco de hortelã ou pimenta branca, a gosto.

O Livro dos Gelos


O gelo não ficava sólido e o rei estava à espera.

Apesar do frio na copa subterrânea, eu estava a transpirar. Segurei o balde de madeira entre os joelhos e despejei de novo a mistura de açúcar, natas e morangos esmagados para a sabotiere, o recipiente interior feito de estanho, e comecei a trabalhar novamente com a pá.

Ao meu lado, Audiger estava a ficar aflito.

– Talvez tenhas de mexer mais devagar. Mas despacha-te, despacha-te!

Não me dei ao trabalho de lhe dizer que era difícil fazer ambas as coisas ao mesmo tempo.

– O gelo não está suficientemente frio. Preciso de mais salitre.

– Com certeza que gelo é gelo. Só tem uma temperatura, a temperatura de congelamento. Isso foi determinado por muitas autoridades. Galeno diz…

– Está ali – interrompi. – Duas medidas.

Audiger aproximou-se das arcas onde guardávamos os nossos mantimentos, encheu uma concha de cristais amarelados e trouxe-ma.

– Aqui tens.

Parei de mexer para ele os adicionar à mistura. Cuidadosamente, Audiger despejou o salitre na parte exterior do balde. Enquanto o fazia, um lacaio com a libré real enfiou a cabeça na porta da copa.

– As sobremesas para o rei – pediu.

Audiger virou-se para ele.

– Dois minutos! – exclamou. – Só mais dois minutos! Sua Majestade sugeriu que hoje gostaria de comer um gelo de morango e é um gelo de morango que vai comer. – Por hábito, manteve-se entre o lacaio e os nossos aparelhos, bloqueando a visão do homem.

Entre as pernas, senti o balde – finalmente! – começar a arrefecer enquanto o salitre fazia o seu trabalho. A pá começou a encontrar mais resistência e a mover-se mais devagar. Abrandei também o meu ritmo. Era trabalho duro, esta era a parte mais difícil, no entanto, era tal o meu alívio que senti a dor nos meus ombros diminuir.

Se fores demasiado impaciente, a própria pá pode aquecer a mistura, ouvi a voz de Ahmad dizer na minha cabeça. Presta atenção à tua mão, não aos teus olhos. Quando te parecer que estás a mexer areia, é porque está quase pronto.

– Está pronto – disse. Hoje, não havia tempo para delicadezas. Quando o rei exprimia um desejo súbito por um sabor em particular, até do gelo se esperava que cumprisse as suas ordens.

– Finalmente. – Audiger ajeitou a cabeleira e sacudiu o pó da cave das suas roupas de corte. Enfiou um par de luvas brancas e olhou em volta. – Onde está a bandeja?

Fiz um gesto com a cabeça.

– Na prateleira.

A bandeja era também feita de gelo, feita com um molde e polida até parecer cristal. Já estava coberta de mais gelo moído, à espera.

Inspeccionei pela última vez o conteúdo do meu balde. A mistura estava agora densa e granulosa como mel em bruto. Coágulos e veias de morango esmagado espalhavam-se pelas natas. Enfiei o dedo para provar.

– O que estás a fazer? – gritou Audiger. – Já é pouco para os convidados do rei!

Não respondi. Provava todos os gelos que fazia, mas Audiger não precisava de saber disso. Saboreei, depois acenei.

– Está bom.

Peguei numa colher que fora afiada de um dos lados e coloquei uma colherada de gelo rosa pálido na travessa. Depois acrescentei outra, e outra. Pouco depois o prato parecia um mar gelado, as curvas e rolos de aparas de gelo ajudando a disfarçar o facto de ser, na realidade, muito pouco.

– Vai – disse.

– Um bocadinho de canela? – sugeriu Audiger, ansioso. – Folha de ouro? Noz-moscada?

– Talvez um bocadinho de pimenta branca.

– Pimenta? Nos morangos? Estás maluco?

– Só uma pitada. Confia em mim.

Audiger suspirou.

– Pimenta, então. E açafrão. Sua Majestade Cristã não estará à espera de menos. – Antes que eu pudesse detê-lo, atirou uma mão cheia de fios de açafrão para o prato.

– Gostará ainda mais se souber ao que devia saber – murmurei. Sob o pretexto de o adornar com algumas folhas de hortelã congeladas, consegui sacudir a maior parte do precioso açafrão com as costas da mão. – Vai – repeti, estendendo-lhe o prato.

Audiger subiu os degraus da copa com a bandeja cerimoniosamente estendida à sua frente, as costas direitas como uma vara, como se já estivesse na presença do rei. Segui-o. Lá fora, o sol e o calor da tarde eram como uma pancada, depois da humidade fria da copa. Vi aparecer sobre o gelo de morango uma leve camada de orvalho prateado por causa do ar quente e lembrei-me do sabor – aquela breve amostra na ponta do dedo: açúcar, leite e morangos, concentrados pelo mecanismo do gelo numa pequena flor de sabor.

Sim, pensei. É bom. Um prato digno de um rei.

Era isto que Audiger nunca compreenderia: os gelos não eram simplesmente uma novidade, uma forma de demonstrar o domínio engenhoso do homem sobre a ordem natural das coisas. Eram uma forma completamente nova de combinar sabores e aromas, os quais eram apenas tão bons como as receitas que criássemos para eles.

O lacaio que nos tinha ido chamar estendeu as mãos para a bandeja. Audiger ignorou-o. Por um momento, os olhares de ambos cruzaram-se, depois o lacaio virou-se simplesmente e caminhou à frente de Audiger. Um segundo lacaio seguiu-nos, e outro atrás dele, enquanto um quarto e um quinto abriam sombrinhas elaboradas para proteger o gelo do sol. No comando deste pelotão ia um maître d’hôtel de rosto sulcado e cabeleira, que segurava um comprido bastão de prata como sinal da sua antiguidade. Bateu uma ordem com ele e, juntos, começaram a atravessar os jardins de rosas com passo rápido.

Com o esforço para manterem o passo certo, a procissão de lacaios, apesar de irem todos quase a correr, ia pouco mais depressa do que eu, que caminhava atrás deles. De qualquer maneira, sabia para onde iam. Na orla do jardim de rosas, onde as sebes abriam e davam para um lago ornamental, trinta ou quarenta cortesãos e as suas damas passeavam-se com as suas melhores roupas. Havia mesas postas à sombra de um grande cedro. Por trás destas, em filas de quatro, aguardava um pequeno exército de criados, a suar debaixo das cabeleiras curtas. De um dos lados, um grupo de músicos toca­va. No meio, onde a multidão de cortesãos era mais densa, distingui a cabeleira escura e luxuriante do próprio rei.

Os criados seguiram os caminhos em ziguezague até aos jardins formais. Eu limitei-me a cortar caminho pelo relvado e juntei-me de novo a eles à beira do lago. A procissão abrandou para um passo mais digno ao penetrar nos círculos exteriores da festa e alguns cortesãos viraram-se com curiosidade para inspeccionar a travessa à medida que passava. Muitos, sabia eu, ainda não tinham tido oportunidade de provar pessoalmente esta paixão do monarca. Tendo em conta a reduzida quantidade da iguaria e o tamanho do grupo, a maioria ainda não teria essa possibilidade hoje. Luís já devia ter escolhido aqueles que seriam honrados com uma pequena amostra.

Quando nos aproximámos, o rei virou-se.

– Ah! O meu gelo de morango! – exclamou.

Audiger parou e caiu sobre um joelho – não muito graciosamente, por causa da bandeja que tinha nas mãos. Luís fez-lhe sinal para avançar.

– Verá se não tenho razão, senhor duque. É uma confecção admirável. – As palavras eram dirigidas ao homem ao seu lado. Estava vestido de forma algo semelhante aos criados, mas eu sabia que era na realidade um inglês, um visitante importante, que viera negociar um tratado entre os dois países. Luís achava divertido vestir os criados com as modas usadas nas cortes estrangeiras. Era uma maneira de lembrar aos visitantes que a sua corte era mais rica e magnificente do que a deles.

Do outro lado do visitante estava Madame, como era simplesmente tratada: Henrietta d’Angleterre, a irmã do rei inglês. Era casada com o irmão de Luís mas – dizia-se – era também uma das favoritas do próprio rei.

– Sim, George, talvez lhe dê forças suficientes para aceitar juntar-se a nós num jogo de paille maille – estava ela a dizer. – Sei que conhece as regras: ouvi dizer que o meu irmão introduziu o jogo no vosso país e que a corte joga todos os dias.

– É verdade – disse o lorde inglês com um sorriso descontraído. – Tal como tantas modas francesas, é a loucura do momento em Londres. Sua Majestade estabeleceu um campo de jogos atrás de Whitehall, ao qual as pessoas já chamam Pall Mall. – Inspeccionou o prato de gelo de morango, com ar ligeiramente desconfiado. – Ele também construiu uma casa de gelo no Parque de St. James… mais uma ideia que levou do seu exílio aqui, creio, embora os seus cozinheiros ainda não se tenham lembrado de pôr gelo nas sobremesas.

– Isto é muito mais do que uma sobremesa gelada – disse Luís. – Prove e verá o que quero dizer. – O rei estendeu a mão. Por um momento vi o pânico nos olhos de Audiger quando se apercebeu de que, não só não trouxera taças nem colheres, como, com ambas as mãos a segurarem a bandeja, não conseguia servir o rei. Eu, porém, adiantara-me a ele. Ao passar pelas mesas ao fundo tirara meia dúzia de taças de porcelana azul e branca e tratei de encher uma com gelo de morango e de a apresentar ao rei com uma vénia.

– Aqui o Demirco é de Florença – disse o rei, aceitando a taça. – É um de apenas um punhado de homens em toda a Europa que sabe preparar esta confecção. O que nos traz desta vez, signor?

– Um sorvete de morangos, senhor, conforme requisitado, com um pouco de nata e pimenta branca.

Vi o maxilar de Audiger contrair-se. Uma vez que era ele que estava a segurar na bandeja enquanto eu servia, já para não mencionar que era eu que estava a discutir as receitas com o rei, parecia aos olhos do mundo que era Audiger o ex-aprendiz e eu o mestre.

– Majestade? – Era o novo médico do rei, um homem chamado Félix, que se aproximou.

– O que é, Félix?

O médico tossiu.

– O dia está particularmente quente, senhor, e as damas… mesmo aquelas que não têm já de si uma disposição mais delicada aqueceram bastante com o jogo de paille maille. Dadas as circunstâncias, não o aconselho.

– O gelo? – O rei parecia surpreendido.

Félix acenou com firmeza.

– As autoridades médicas estão de acordo nesta questão particular. O consumo de gelo num dia tão quente pode desencadear várias maleitas. Até mesmo convulsões. O cavalheiro inglês, talvez, mas as senhoras e Vossa Majestade…

– Quer dizer que não faz mal matar o nosso distinto convidado, o duque de Buckingham, desde que nós escapemos? – exclamou o rei. – Meu Deus, Félix, ainda faremos de si um diplomata. – Os que o rodeavam riram-se, mas reparei que ninguém tocou no gelo. Um silêncio embaraçado abateu-se sobre a corte ali reunida.

Era um impasse. As aparas de gelo já estavam a derreter sob o sol. Eu sabia que era inútil discutir com este médico idiota: só serviria para embaraçar o rei em frente do seu convidado. Senti algo quente na boca e percebi que mordera a bochecha com o esforço de manter o sorriso no rosto.

Nesse momento uma voz – uma voz fresca e feminina – disse atrás do rei:

– Talvez eu possa prová-lo antes de Vossa Majestade.

Fora uma mulher que falara – uma rapariga, na verdade, pois era ainda mais jovem do que Madame; teria talvez dezoito ou dezanove anos e trazia um vestido que parecia um dos trajes postos de lado por Madame, o que a fazia parecer ainda mais nova. Havia também algo infantil nas suas feições: era bonita, mas com os lábios grandes e as sardas que lhe salpicavam as bochechas, era a beleza severa e ainda imatura da adolescência. Os caracóis negros que lhe tombavam sobre os ombros, au naturel, pareciam mais a cabeleira de um homem do que os penteados elaborados que as outras damas usavam, e a sua pele era invulgarmente pálida, tão branca como gelo de leite. No entanto, eram os seus olhos que mais chamavam a atenção: eram verdes, e um deles era ligeiramente mais lento, como se tivesse de pensar por uma fracção de segundo antes de seguir o outro.

Virou-se para o médico.

– É essa a base do Novo Método, não é? Hipótese, investigação e só depois dedução?

O médico acenou, com alguma relutância.

– Nesse caso – disse ela –, eu serei a sua investigação e, se morrer, pode fazer as suas deduções de acordo com isso.

– Bravo, la belle Bretone! – exclamou o rei. – Mas… e se tiver um ataque, minha querida? Os seus pais nunca me perdoariam.

– É uma honra correr esse risco pelo rei, senhor. – Havia uma nota sardónica na sua voz, como se quisesse dizer, Mas isto não passa de um disparate e ambos o sabemos. – Além do mais – acrescentou, tirando rapidamente a taça das mãos de Madame –, é tão poucochinho. Assim certifico-me de que, apesar da minha posição inferior, consigo provar esta maravilha da qual ouvi falar tanto. – Levou a colher aos lábios.

Este era um momento que eu apreciava sempre – o momento em que alguém provava pela primeira vez um dos meus gelos. Era melhor se não fizessem ideia do que iam comer, claro, para que fosse uma surpresa total, mas descobri que, até mesmo quando as pessoas pensavam que sabiam o que esperar, nunca conseguiam imaginar antecipadamente qual seria a sensação. Às vezes, uma pessoa menos sensata provava e largava a tigela; as senhoras, em particular, soltavam um gritinho de alarme e levavam a mão à boca, como se tivessem medo de soluçar ou de cuspir. Depois, após um instante, o choque transformava-se em espanto e o espanto em prazer, quando a primeira colherada derretia nas suas bocas e o sabor doce e intenso – se eu tivesse feito devidamente o meu trabalho – as levava a comer de imediato outra colherada, e outra, até a acumulação de tanto frio adormecer o palato e pontadas de dor gelada trespassarem a cabeça; então soltavam exclamações de outro género, sorvendo o ar quente para afastar o gelo que lhes apertava agora a garganta. Mas também isso durava apenas alguns segundos; depois vinha a contenda final entre cautela e avidez, enquanto o desejo de comer mais se debatia com a vontade de evitar outro arrepio, até a tigela estar vazia e todos os cristais doces de gelo lambidos da colher com que fora servido.

A rapariga não gritou nem cuspiu. Porém, abriu muito os olhos e fez, por um instante, uma expressão sobressaltada antes de se recompor.

– Então? – quis saber o rei.

Ela tinha um pouco de gelado esbranquiçado no lábio superior e lambeu-o com a língua. Dirigiu-se ao rei mas os seus olhos – mes­mo o que não era lento – permaneceram fixos em mim uma fracção mais do que deviam e, apenas por um instante, vi algo neles – uma centelha de qualquer coisa, instantaneamente reprimida – que reconheci.

Já vira essa expressão no rosto de uma mulher duas vezes: uma vez no de Emilia e outra no de Olympe.

– Eu diria – observou ela –, que é tão fresco e doce como o beijo de um amante num dia quente de Verão… excepto claro, pelo facto de uma rapariga como eu não fazer ideia de como será tal coisa.

Algumas pessoas riram-se do atrevimento da sua resposta. O rei bateu palmas.

– Félix, aí tem a sua resposta… está a ser excessivamente cauteloso, como de costume. E la belle Bretone apoderou-se da sua dose de gelo de morango, portanto ficou sem ele.

– Também não queria, senhor – disse o médico com azedume. – Fraco médico seria se não seguisse pelo menos os meus próprios conselhos.

As damas e cavalheiros da corte estavam agora a juntar-se em volta de Audiger e de mim, a sua avidez ainda maior por saberem que não chegaria para todos. Poucos momentos depois o gelo de morango desaparecera. Risos e exclamações de espanto encheram o ar. As mulheres estavam imóveis, estupefactas, com a boca cheia daquela primeira colherada surpreendente; os homens riam-se das suas damas e depois faziam eles próprios caretas não menos perplexas. Alguns estavam a tentar fingir que isto não era nada de muito especial ou novo para eles – levavam as colheradas de gelo à boca com ar indiferente e um sorrisinho cínico nos lábios; mas estes, claro, eram precisamente aqueles cujas gargantas gelavam mais rapidamente e que eram portanto acometidos pelas pontadas na cabeça. Vi um cortesão muito fino encolher-se como se tivesse levado um tiro na barriga, de olhos esbugalhados. O sorriso sofisticado na cara de outro transformou-se num riso de alegria infantil, enquanto um terceiro estava mesmo a cantar de espanto.

– Então? O que vos parece? – estava o rei a perguntar-lhes ansiosamente, e todos se acotovelavam na sua pressa de lhe dizer que era a coisa mais admirável que alguma vez tinham provado, que certamente nenhuma outra corte era tão abençoada com maravilhas como a corte de França. Ele acenou, satisfeito; depois, apontando para Audiger e para mim, gritou: – O Grande Demirco! Audiger! Mestres confeiteiros de França! – A corte aplaudiu com as mãos enluvadas; nós os dois agradecemos os elogios com vénias graciosas à esquerda e à direita.

Eram assim os piqueniques na corte de Luís XIV.

– E milord Buckingham? – disse o rei, virando-se para o inglês. – O que lhe parece?

– Muito refrescante – respondeu o visitante, pousando a colher na taça vazia. – Estou certo de que o meu rei ficaria muito grato de saber como é feito.

– Infelizmente, isso é impossível. Demirco e os seus colegas são muito cuidadosos na protecção dos segredos da sua arte. E há certas coisas que nem um monarca pode ordenar.

– Estou certo de que Vossa Majestade pode ordenar tudo o que desejar – respondeu o inglês secamente.

– Estamos a falar ainda do gelo de morango… ou do porto de Dieppe? – Risos. Tive a sensação de que até as partes desta conversa que eu julgava compreender faziam na realidade parte de outra conversa inteiramente diferente, como um jogo de paille maille em que os arcos mais importantes eram os que se erguiam dois metros e meio acima do solo.

– Além disso, vocês, Ingleses, têm um gosto algo peculiar em termos de sobremesas. Parece-me que apreciam demasiadamente panquecas – estava o rei a dizer, causando mais risos. Isto, pelo menos, eu conseguia perceber: as panquecas eram um prato holandês e era contra os Holandeses que os Franceses estavam agora a maquinar, a segunda maior potência da Europa avançando contra a maior, decididos a roubar as terras que os Holandeses tinham roubado ao mar. Ou algo do género. Eu ouvia as conversas políticas que rodopiavam pelo labirinto de cozinhas e copas sob o palácio de Versalhes, mas prestava-lhes pouca atenção.

– O que me diz, então, Demirco? – Para minha surpresa, o rei estava a olhar directamente para mim. – Fazemos ao rei Carlos de Inglaterra um gelo, algo tão delicioso que o afastará das panquecas para sempre? Um prato, talvez, que o recorde de França e dos muitos anos que esteve exilado aqui, a gozar a nossa hospitalidade, para que não se esqueça dos velhos amigos no entusiasmo de se banquetear de novo com tartes e sopas inglesas? – Disse «tartes e sopas» com um sotaque engraçado e, mais uma vez, os cortesãos riram e bateram palmas.

– Com certeza, senhor – respondi, sem ter a certeza se Luís estava a brincar ou não. – Se for esse o desejo de Vossa Majestade. Mas não derreteria muito antes de ele poder prová-lo?

– Talvez – disse o rei, encolhendo os ombros, e perguntei a mim próprio se teria dito alguma coisa errada.

De súbito, Audiger encontrou a sua voz.

– Senhor, seria uma honra fazer um gelo digno de Vossa Majestade apresentar ao rei inglês.

Olhei para ele, perplexo. O que queria dizer? Com certeza não pensava que conseguiria criar um gelo melhor do que os meus? Mas era evidente que sim, pelo olhar frio que me lançou. Parecia que seria a sua vingança contra mim por ter monopolizado a atenção do rei.

– Ah! Signor Demirco, parece-me que foi desafiado! – exclamou Luís, encantado. – Aceita o desafio?

Curvei-me.

– Claro que sim.

– Óptimo! E teremos também o Procópio e… oh, como se chama o outro confeiteiro? Signor Morelli. Cada um de vós fará o vosso melhor trabalho e, milord Buckingham, talvez nos dê a honra de ser juiz do nosso pequeno concurso antes de partir?

– Com todo o gosto. Mas qual será o prémio?

Luís pensou por um momento.

– Estes artífices estão sempre a pressionar-me para criarem a sua própria corporação. Digamos que aquele que criar o melhor gelo ficará com a presidência da mesma.

Pelo canto do olho, vi Audiger ficar tenso. Se não estivéssemos na presença real, eu teria certamente suspirado. Nada de bom podia resultar disto.

– Então é assim que me pagas – sussurrou Audiger enquanto regressávamos ao palácio.

– O que queres dizer?

– A tua condescendência para comigo em frente do rei. Quanto à rapariga bretã… a ordinária, deve ter planeado tudo aquilo.

– A de cabelo escuro? Mas com certeza que nos fez um favor, não? Se não fosse ela, ninguém teria comido o gelo.

– Ela estava a seguir as ordens de Madame, podes estar certo disso.

– Porquê? Quem é ela?

Audiger agitou a mão com ar impaciente.

– Uma das damas de companhia de Madame. Tirando isso, não tem grande importância. Contudo, se eu não estivesse ali para salvar a honra do rei e aceitar o desafio…

– O quê?!

– Se eu não estivesse ali – repetiu Audiger –, o rei teria ficado embaraçado em frente do seu convidado inglês. Estou certo de que, só por isso, ele me declarará o vencedor.

– O que lhe vais fazer?

Audiger fez uma expressão desdenhosa.

– Ainda não sei e não te direi quando souber. Algo magnificente. Talvez algo que simbolize o brilho do sol.

Claro, pensei, com um suspiro: o sol. Era a resposta de todos os cortesãos. Pessoalmente, se eu fosse o rei, já estaria farto de caixas de rapé com imagens gravadas do sol, espelhos decorados com sóis, jóias em forma de sol, pinturas embelezadas com o sol, mobílias com sóis… Mas Luís não parecia importar-se. Talvez exista algum valor em ter um símbolo simples associado a um nome, tal como em Florença as três bolas dos Médicis estavam em todos os palácios e igrejas.

– Talvez possas servir-lhe um gelo que já tenha derretido – sugeri. – Sabes, para simbolizar o brilho estonteante e quente do sol de Sua Majestade.

– Um dia – retorquiu Audiger com ar grave –, essa tua língua vai arranjar-te problemas. E desconfio que esse dia chegará mais depressa do que julgas.

Veio a revelar-se que, nesse aspecto, ele estava bem enganado. Não foi a minha língua que me arranjou problemas nesse dia, mas sim os meus olhos, quando pousaram numa certa dama de companhia de cabelo escuro e olhos verdes. Mas não voltei a falar dela a Audiger. Não adiantaria de nada alertá-lo para o meu interesse.

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