CARLO

Para fazer um sorvete de ananás: junte duas chávenas de açúcar a duas chávenas de soro de leite, ou mais, se o ananás for muito ácido. Acrescente uma colher de hortelã fresca picada e o sumo de uma lima, e mexa enquanto congela. O princípio não é diferente do que para qualquer outro fruto.

O Livro dos Gelos


No dia seguinte, quando fui a Whitehall buscar as taças vazias, encontrei Louise no seu apartamento. Parecia um pouco à deriva no grande espaço, perdida, como alguém com um vestido de baile demasiado grande.

Não tinha a mínima vontade de falar com ela, mas curvei-me numa vénia.

– Não seja assim – disse ela em tom cortante.

– Assim como?

– Carlo…

Esperei.

– Fico-lhe muito grata pela sua ajuda de ontem à noite – disse ela. – Se não fossem os seus gelos, teria sido uma situação complicada. Mais complicada ainda, melhor dizendo.

– A Louise e a rainha? Compreendo que possa ter sido um pouco embaraçoso.

Ela encolheu os ombros.

– É para isso que existe a etiqueta, não é? Para tornar suportáveis as situações embaraçosas. Além do mais, suspeito que ela já teve de passar por bem pior, neste país terrível. – Fica em silêncio por um instante. – Estou a ser sincera, signor. Sei que somos parceiros relutantes nesta missão, mas fico grata por Luís ter enviado alguém com quem sei que posso contar.

– Farei o meu dever. Nem mais, nem menos. E depois voltaremos a França e a nossa associação chegará ao fim.

Ela pareceu surpreendida.

Voltará a França, é o que quer dizer.

– Tenciona ficar por cá?

Louise lançou-me um olhar cortante, como que espantada com a pergunta.

– Possivelmente. Veremos.

– O seu entusiasmo pela missão é ainda maior do que eu imaginara, então – respondi em tom seco.

– Tenho uma oportunidade. Seria tola se não a aproveitasse.

– É verdade. – Curvei-me de novo. – Parceiros relutantes, então.

Quando fechei a porta do apartamento dela atrás de mim, vi um papel a esvoaçar sobre a madeira. Alguém o prendera à porta com uma faca de fruta. Continha dois versos:

Aqui dentro foi colocada uma cama

Para uma cabra de França e um ungido de Deus.

Voltei para trás e entreguei-lho.

– Enviaram-lhe um billet-doux.

Ela leu-o e ficou pálida.

– Bárbaros. Como são capazes?

– Provavelmente foi um homem chamado Rochester. O rei, segundo creio, é tolerante para com esse tipo de comportamento.

– Odeiam-nos. Quer dizer, odeiam-me a mim. E só me odiarão mais ainda quando… – Ela abanou a cabeça. – Não importa. Não significa nada. Se fui capaz de lidar com a corte de França, certamente que sou capaz de lidar com esta.

– E isto – disse eu, apontando para o bilhete –, é exactamente o tipo de diversão que estamos aqui para encorajar, não é? Saberemos que fomos bem-sucedidos quando lorde Rochester for tão célebre em Inglaterra como Molière ou Racine são em França.

Finalmente, o meu ananás chegara e, durante algum tempo, consegui não pensar em Louise de Keroualle.

Apesar de ter falado com tanta naturalidade de ananases em frente de lorde Arlington, a verdade era que nunca antes conseguira usar um ananás para fazer um gelo. Mesmo na corte de Luís XIV eles eram demasiado preciosos para isso. Assim, estava curioso e um pouco entusiasmado por conseguir deitar mão a um desses frutos exóticos.

O ananás chegou na sua própria carruagem, puxada por quatro cavalos, vindo directamente da plantação de lorde Devon. A arca foi transportada para dentro do Red Lion por dois dos seus lacaios, com um terceiro de guarda, de pistola em punho, para o caso de haver alguma tentativa de assalto. Entretanto, uma multidão de curiosos reunira-se no pátio para a ver fazer o trajecto entre a carruagem e a cozinha.

– É melhor pôr alguém de guarda – disse Titus, nervoso. – Não quero ser responsável se isso for roubado.

Na minha copa, eu já mandara Hannah esfregar muito bem o parapeito de pedra que corria ao longo de uma das paredes. A arca foi pousada no chão e as fechaduras abertas. Algumas pessoas tinham conseguido segui-la até ao interior da estalagem e estavam agora de pescoço esticado, ansiosas para ver o conteúdo.

Lá dentro, sobre uma almofada de cetim vermelho, estava um fruto estranho: metade coroa, metade porco-espinho. A casca era escamosa e pintalgada, como a casca de uma tartaruga, e no cimo crescia um extravagante toucado de plumagem espinhosa. O aroma – que tinha um pouco da fragrância perfumada dos morangos, e um pouco da frescura ácida das limas – escapou-se da arca onde estivera preso e encheu o ar à minha volta. Como um só, os curiosos soltaram um «Aaaaah!».

– E agora têm de sair todos – ordenei, em tom firme. – Tenho trabalho a fazer.

Quando não estava mais ninguém na copa a não ser eu, Hannah e Elias, tirei o ananás da arca, com as pontas dos dedos para não me picar nos espinhos curvos que cresciam em cada escama. Pousei-o no parapeito e peguei num cutelo. Com alguma trepidação – deve ser assim que um cirurgião se sente, pensei, no momento antes de cortar um paciente – decepei o topo, revelando o interior claro e perfumado. Cuidadosamente, pousei a coroa ao lado. Depois parti o ananás em dois no sentido do comprimento e peguei numa faca mais pequena para retirar a casca grossa e o centro mais duro. Fi-lo sobre uma tigela: mesmo assim, algumas gotas do precioso sumo de ananás deslizaram-me pelos dedos e perderam-se.

– Esse fruto – observou Hannah subitamente –, deve ter custado mais do que eu vou ganhar em toda a minha vida.

– E depois?

– Nada pode valer tanto dinheiro.

Encolhi os ombros.

– Vale aquilo que os homens estão dispostos a pagar.

– Mas nem sequer é assim tão bom.

– Como sabe? – perguntei rapidamente, perguntando-me se ela teria tirado algum pedaço para provar, quando eu não estava a olhar.

– Pelo cheiro. É quase tão azedo como um limão. Não sente?

Era verdade – as minhas narinas também estavam a arder com a acidez do fruto. Experimentalmente, levantei a mão e lambi o dedo, onde o sumo do ananás escorrera. Era realmente muito ácido: quase amargo. Seria preciso muito açúcar para o tornar comestível.

– Não posso deixar de pensar – prosseguiu ela –, que estes ananases são como ouro, ou pedras preciosas… o seu valor advém principalmente do facto de serem raros.

– É bastante mais do que isso. – Hesitei. – O ananás é conhecido por ser um afrodisíaco… por alimentar as paixões do amor.

Para minha surpresa, ela soltou uma gargalhada sonora.

– Qual é a piada?

– Simplesmente acho estranho que nunca sejam ervas ou frutos comuns a ter essa fama. Se uma simples amora silvestre ou uma maçã inglesa tivessem o azar de ter um aspecto tão estranho e de serem tão difíceis de encontrar, talvez também elas custassem fortunas e fossem consideradas fonte de potência.

– Ninguém seria idiota o suficiente para pagar uma fortuna por uma amora silvestre – disse eu. O ananás estava agora em oito pedaços na tigela, juntamente com o seu sumo. Dividi-o em duas partes e passei-lhe uma. – Corte-o o mais finamente que conseguir.

Ela acenou e começou a cortar o ananás em cubos pouco maiores do que migalhas de pão. Uma coisa posso dizer em relação a Hannah: a sua faca estava sempre afiada e ela manobrava-a com destreza e rapidez.

– As pessoas… melhor dizendo, os homens… dão mais valor àquilo que não podem ter. – Lançou-me um olhar de soslaio. – Su­ponho que, para si, ainda bem que assim é.

– O que quer dizer?

– Apenas que os seus gelos são caros precisamente pelo mesmo motivo.

– Os meus gelos são muito procurados pela sua excelência – disse. – Chega de tagarelice, mulher. Temos de cortar e peneirar o fruto muito bem.

– Consigo falar e trabalhar ao mesmo tempo.

Suspirei.

– Talvez, mas eu não. Este fruto é, como disse e muito bem, mais precioso do que ouro, e gostaria de dedicar à sua preparação a atenção que merece.

*

Depois de acabarmos de peneirar o ananás e de eu ter um monte de polpa fina e sumo, pensei no que fazer a seguir.

Estava a planear fazer um simples sorbetto, mas a acidez do fruto persuadira-me de que seria melhor tentar uma iguaria mais rica. Assim, mandei Hannah buscar soro de leite, o líquido espesso e cremoso que sobra da confecção da manteiga. Entretanto, preparei os outros ingredientes: folhas de hortelã esmagadas e um pouco de sumo de lima, para agir como base de sabor para o sorvete.

Quando Hannah voltou, juntei quantidades iguais de soro de leite e açúcar e acrescentei a mistura ao ananás e aos outros ingredientes. Depois despejei tudo na sabotiere – nesta altura, já mandara Hannah sair da copa – e fui mexendo de meia em meia hora, primeiro com um batedor de ovos, e depois, à medida que a mistura se tornava mais pesada e parecida com neve, com um garfo, para separar os cristais.

Tão simples e tão rápido. Provei, apenas um pedacinho: no total, não conseguira mais de três chávenas. Tinha um sabor doce e delicado, como sol pálido, a acidez equilibrada agora pelo açúcar e pela riqueza do soro de leite. Era muito bom – contudo, se era melhor ou pior do que uma amora ou uma maçã, não sabia.

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