LOUISE
Ele quer mandar pintar o meu retrato.
– Agora que a sua figura elegante regressou – diz, em tom casual. – E antes que engravide outra vez.
– A minha figura ainda não regressou. Pareço um elefante.
– Minha querida buchinha – murmura ele. – Gosto de si assim.
Pela referência à minha figura, percebo que não é apenas o meu rosto que ele deseja ver pintado.
– Quer que me pintem sem roupa?
– Porque não? – Olha para mim de lado. – Estava a pensar em Sir Peter Lely. Um cavalheiro muito discreto e um excelente pintor. Além disso, praticamente ninguém o veria.
Para prazer exclusivo do rei. Mas o prazer do rei, tenho vindo a perceber, encontra-se em parte naquilo que é apenas seu, e em parte em imaginar como os outros o verão.
– Em França, é considerado muito indecente uma mulher ser pintada sem roupa.
– Eu sei o extraordinário favor que estaria a conceder-me, Louise. Faria tudo por tudo para encontrar uma maneira extraordinária de a recompensar.
Um título?
– Imagine a vergonha, se a minha família soubesse.
Os meus protestos estão a excitá-lo. Tem algo novo para perseguir, uma nova virgindade para tirar.
– Para actrizes ou meninas das laranjas não é nada, claro – acrescento. – Mas um rei pediria tal coisa a uma rainha? Não me parece.
– A menos que a amasse muito – murmura ele.
Ambos sabemos como esta dança terminará. Não posso dar-me ao luxo de resistir por demasiado tempo. Pelo menos, enquanto ele tiver Nell Gwynne.
Por fim, concordamos numa camisa de seda, desabotoada. Não tapa nada, mas significa que não estou, tecnicamente, nua. Reclino-me num divã, exposta ao olhar de Lely enquanto ele move o pincel sobre uma tela que não consigo ver.
Se baixo os olhos, nem que seja por um momento, ele murmura:
– Olhe para mim.
É que o meu olhar tem de encontrar o dos homens que virem o quadro. É tão estranho pensar que, quando olho para Peter, para o seu ar impessoal de concentração, estou a olhar directamente para os olhos de todos os homens que olharão para mim. Podem ser dezenas, centenas, os que estarão perante este quadro, alguns até depois de eu morrer.
E cada um deles olhará para mim e pensará como eu sou desavergonhada por fazer isto para gratificação privada do rei.
Sem se aperceberem de que são eles, e não eu, que o fazem.
Carlos vem conversar. Estava com receio de que eu estivesse entediada, diz. Aproxima-se do pintor para olhar para o quadro. Peter afasta-se, tão paciente quanto o rei é impaciente. De vez em quando, envolve o seu cliente em algum detalhe de desenho ou técnica. Aqui. A isto chama-se empaste. Prefere aqui o verde ou o verde-azulado?
Há qualquer coisa neste processo que excita Carlos: os dois homens, completamente vestidos, a olharem para o meu corpo nu e a discutirem-no. Quase como se eu fosse um osso que Carlos larga da boca para deixar outro cão cheirar.
Lembro-me das palavras de Colbert. Um deboche sem entraves.
Lely sugere frutas, do lado esquerdo, para equilibrar a composição.
– Laranjas não – recuso, em tom firme.
Ele ergue um pouco as sobrancelhas.
– As laranjas fazem-me lembrar as meninas das laranjas.
Ele sorri ao ouvir isto. Foi ele, claro, que pintou Nell.
– Já sei – diz Carlos. – Gelado! Vamos pôr gelos na pintura.
– Derreteriam antes de o Peter os conseguir pintar – digo.
– Podiam ir sendo substituídos – diz o artista. Tamborila na tela com a ponta do pincel, de ar pensativo, para mostrar ao rei onde os colocaria. – Aqui, ao lado, podiam ir sendo substituídos sem perturbar a mise en scène. Na verdade, seria interessante. As pessoas questionariam como foi feito. Um momento capturado. A ilusão de instantaneidade, no meio do tempo congelado. – É o discurso mais longo que já o ouvi fazer em cinco dias de pintura.
Outra mulher qualquer, reflicto friamente, talvez ficasse ofendida por ele estar muito mais excitado com o desafio técnico de pintar um gelado do que com o seu corpo nu.
– Boa ideia – sussurra Carlos. – Uma travessa de gelos. Tenciona pintá-los meio derretidos?
– Quando começam a derreter, senhor. O gelo a ficar macio. Como uma fruta a amadurecer na taça, captada no preciso instante antes de apodrecer. Antecipar a inevitável corrupção da carne. – Olha para mim e percebo que não é apenas o desafio técnico que lhe interessa. Há também aqui algum tipo de simbolismo.
Assim, mandam trazer gelos. Depressa. Diga-lhe que é para o rei. No estúdio de Lely. Carlo entra com a arca de gelo. Não posso mexer-me, não posso avisá-lo. Estou fixa e imóvel no meu divã, como Daphne pregada ao chão enquanto se transforma em arbusto.
– Ah, Demirco. Ponha-os ali.
Ele estacou abruptamente e está a olhar para mim.
– Vá lá, homem. Até parece que nunca viu uma mulher nua.
Ele recupera rapidamente.
– Nenhuma tão bela como esta, senhor.
– Sim. – Carlos acaricia o bigode, satisfeito. – É encantadora, não é?
Olha para Peter, depois para mim. Peter parou, com o pincel suspenso sobre a tela, surpreendido. Ambos fixam os olhos em mim.
Um rubor – profundo e escarlate, como uma folha de vinha no Outono – invadiu a minha pele branca, desde as pernas expostas até à ponta das orelhas.
Nell, na corte.
– Oh, madame Carwell. Ouvi dizer que foi pintada recentemente apenas com uma camisa de seda.
– É verdade, Nell. O retrato de Sir Peter está muito bonito.
– Talvez fiquemos penduradas lado a lado na galeria do rei. Para que os cavalheiros seus amigos possam comparar-nos. Como meretriz, claro, eu consideraria uma grande honra, ser comparada com uma dama tão fina como a senhora.
Não respondo.
– Diga-me, já viu Carlos Terceiro esta manhã? – pergunta.
Sinto que é uma armadilha, mas mesmo assim caio nela.
– Porque lhe chama Carlos Terceiro? É Carlos Segundo.
Ela começa a contar pelos dedos.
– O meu primeiro Carlos era Carlos Hart, o segundo Carlos Sackville, portanto Carlos Stuart é o meu Carlos Terceiro. Presumo, então, que a senhora só teve dois Carlos até agora?
Quando ela começa com estas coisas, não há nada a fazer senão manter a calma. É como uma criança que se recusa a ir para a cama, cuja única maneira de falar com os adultos é chocar. Amavelmente, digo:
– Antes de conhecer o rei, Nell, eu nunca tinha tido outro homem.
– Oh, enfim – diz ela, sacudindo a cabeça. – Ainda há tempo. Ele não se importa, sabe. A Barbara Villiers teve quatro de uma vez, e o rei só disse que o que serve para um homem, também serve para outro.
Um insulto simples e óbvio, como tantos que ela faz. No entanto, deixa-me a pensar.
As jóias da coroa estão em exposição na Torre de Londres, onde qualquer homem as pode ver por um dinheiro. Quase foram roubadas alguns anos antes, mas Carlos não as guarda em lugar seguro, escondidas. Porque não?
Uma actriz. Uma mulher que representa muitos papéis. Um rei que é forçado a fazer o mesmo.
Uma meretriz. Uma mulher que teve muitos amantes e poucos deles por amor. Um rei que escolhe fazer o mesmo.
Colocar-me contra Nell Gwynne – poderá ser, de alguma forma, deliberado? Fará tudo parte da mesma característica?
Estou a aperceber-me de que existe em Carlos um cinismo muito profundo – quase uma escuridão. Ao seu cepticismo natural, juntaram-se os efeitos das suas experiências no exílio: vaguear de corte em corte, bem recebido para o caso de poder vir a revelar-se útil, tolerado apenas até as considerações politicas em constante mutação tornarem os seus anfitriões receosos de o receber.
Nell e eu temos isto em comum, compreendo sobressaltada, tanto uma com a outra, como com o próprio Carlos: sabemos o que é estar na miséria, sem qualquer poder e com frio.
Será por isso que ele mantém homens como lorde Rochester por perto – encontrará no seu sarcasmo amargo e trocista um eco do que se encontra na sua própria mente?
E quando diz que eu e ele somos iguais – será mesmo isso que quer dizer? Só será verdadeiramente feliz depois de eu lhe dar a satisfação de provar que ele está certo?
Será que precisa que lhe mostre que sou capaz de me rebaixar tanto como ele?