CARLO

Gelado de chocolate: este não é um gelo fácil de fazer, mas o resultado compensa o esforço. Misture meia chávena de chocolate em pó e meia chávena de açúcar. Junte leite frio suficiente para formar uma pasta, depois duas chávenas de leite quente. Ferva em lume muito brando, mexendo sempre, durante oito minutos. Depois tire do lume e misture cento e setenta gramas de chocolate em tablete, partido em bocadinhos muito pequenos. Numa tigela à parte, bata seis gemas de ovo com meia chávena de açúcar até formar um creme esbranquiçado. Junte a mistura de chocolate, mexendo vigorosamente. Aqueça, mas sem deixar ferver; junte meia chávena de xarope de açúcar; arrefeça num banho de água fria e, finalmente, acrescente duas chávenas de natas espessas antes de congelar.

O Livro dos Gelos


O rei pedira um gelo, o primeiro em muitos meses. Fiz um gelo de chocolate e passas e levei-o aos seus aposentos.

– Ele está no laboratório – disse-me o lacaio. – Pode entrar.

Encontrei o laboratório cheio de um fumo malcheiroso e o rei a tossir.

– Ah, signor Demirco – disse, em tom animado. – Nunca misture enxofre e magnésia.

– Com certeza, senhor.

Junto da janela, estava um grande prisma de vidro. Fora colocado de forma a captar a luz do sol, espalhando-a num arco-íris de cores. Não pude deixar de perguntar a mim próprio como seria alcançado aquele efeito, pois o vidro parecia ser simples e não tinha nada lá dentro.

Quando me viu a olhar, o rei acenou.

– Pode pegar-lhe.

Assim fiz, e espreitei para dentro do prisma, mas as cores desapareceram instantaneamente. Só quando o voltei a colocar ao sol é que o arco-íris reapareceu.

– Foi um dos meus virtuosi que o fez – disse ele. – Mostra de que é feita a luz.

– Mas com certeza que a luz vem de Deus?

– É o que nos ensinam. Mas este homem atreveu-se a olhar para dentro da luz de Deus e descobriu que, como qualquer outra substância, tem a sua composição e as suas quantidades. E assim, mais uma ilusão infantil é desfeita pelo cepticismo frio da ciência. – Ficou um momento em silêncio. – Como estão a correr os preparativos para o baile da duquesa de Portsmouth? Ela tem tudo aquilo de que precisa?

– Sim, obrigado, senhor.

– Gosto muito da duquesa, signor.

– Claro – respondi, sem saber bem o que dizer.

– Significa isto que não quero que ela tenha falta de nada que seja necessário para sua diversão. – Virou-se de novo para a bancada. – Ou para o seu conforto.

Acenei, incapaz de falar, pois compreendi sobre o que estávamos realmente a falar.

– Não tenho podido estar tanto com Sua Graça, ultimamente, como desejaria. A pressão dos negócios…

Olhou para o gelado de chocolate em cima da mesa. Um dos seus cães saltou para o banco, inclinou a cabeça para o lado e enfiou a língua na taça. Poucas lambidelas depois, o gelado desaparecera.

– Não sou, por natureza, um homem ciumento – disse ele, baixinho. – Certifique-se de que também não o é, signor, e não teremos problemas. – Tocou no prisma de vidro, rodando-o e fazendo o arco-íris girar pela sala. – Às vezes, não é bom analisar demasiado a natureza das coisas. Às vezes, pode haver demasiada luz.

Percorri as ruas de Londres imerso em pensamentos. Caminhei durante várias horas, até estar escuro.

Depois virei na direcção de Whitehall.

Fui aos aposentos de Louise. No entanto, apesar de ser já muito tarde, o meu caminho foi bloqueado por dois lacaios que não me eram familiares.

– Não pode entrar – disse um deles.

– Diga-lhe que é…

– Ninguém pode entrar. Nem mesmo nós.

Recuei.

– Sou o confeiteiro dela. – Percebi como era débil esta desculpa. Nesse momento, a porta abriu-se e o embaixador francês saiu. Lançou-me um olhar matreiro e afastou-se.

Esperei. Poucos minutos depois, saiu Thomas Osborne – ou lorde Danby, como devíamos chamar-lhe desde que fora nomeado lorde Tesoureiro. Também ele me lançou um olhar rápido antes de se afastar.

Presumindo que a reunião, fosse lá qual fosse, terminara, avancei mais uma vez na direcção da porta – apenas para descobrir que o caminho continuava barrado.

– Sua Majestade não deseja ser incomodado.

– Sua Majestade! – Olhei para a porta, tentando imaginar o que se estava a passar do outro lado. – Esperarei até ele sair.

O lacaio encolheu os ombros, como se quisesse dizer que lhe era indiferente.

*

Sentei-me num banco junto de uma janela próxima e esperei. O dia estava a nascer quando a porta se abriu finalmente e uma figura familiar saiu.

Não me mexi, mas a luz da janela devia estar a iluminar-me o rosto, porque ele se aproximou. Lá em baixo, no Parque de St. James, um pequeno grupo de veados movia-se silenciosamente entre a neblina matinal.

– Mais um belo dia, signor – disse ele, olhando para fora. De­pois afastou-se, os passos largos a ecoarem pelo corredor, os lacaios a marcharem nos seus calcanhares.

Os aposentos dela tinham crescido tanto que demorava uma eternidade só para chegar ao seu quarto. Todas as superfícies estavam cobertas de quadros e tapeçarias; todos os cantos continham um armário francês trabalhado ou uma jarra preciosa. As velas ardiam em grandes candelabros de vidro por cima da minha cabeça, candelabros que estremeciam e tilintavam suavemente quando eu passava por baixo deles.

Ela estava também de pé junto de uma janela, envolta apenas numa camisa de lã comprida, com o cabelo caído sobre um ombro, a olhar para a neblina que se confundia com a superfície do lago.

Quando entrei, virou-se. Não parecia particularmente surpreendida por eu ali estar.

– Vim avisá-la – disse. – Dizer-lhe que o rei sabe sobre nós. Parece que cheguei tarde de mais.

Ela assentiu.

– O que se passa? – perguntei.

– A noite passada, nestes aposentos, ele assinou um novo tratado com França.

– Um tratado secreto, presumo?

– Sim. Substitui o Tratado de Dover. Em troca de uma nova pensão de Luís, Carlos suspenderá o parlamento e comprometerá Inglaterra em mais uma guerra com os Holandeses.

– Outra! Mas o sangue derramado na última ainda mal secou!

– Vai receber quatro milhões de coroas de ouro. O suficiente para pagar por todas as amantes que alguma vez pudesse desejar. O suficiente para reconstruir o Castelo de Windsor. O suficiente para viver como um rei.

Como um rei?

Ela encolheu os ombros.

– Daqui em diante, França tomará todas as decisões que tenham a ver com a política externa de Inglaterra. Aquilo que Carlos faz em casa, claro, não tem qualquer importância.

– E a sua conversão? A conversão do país? Todas as esperanças que Madame tinha para a alma dele?

– Madame era pragmática nestes assuntos. No meu tratado, Carlos promete apenas nunca abandonar a rainha. O seu herdeiro será, assim, o seu irmão Jaime, que já é católico. A Inglaterra tornar-se-á católica depois de Carlos morrer.

– Mas as suas esperanças de vir a ser rainha…

– Eram também impraticáveis – interrompeu ela. – Já devia ter aceitado isso há mais tempo. Já tenho trabalho suficiente sendo apenas aquilo que sou.

– E o que é? – inquiri, embora inutilmente, pois os lençóis revoltados já me tinham respondido.

– Ele voltou para mim – disse ela, simplesmente. – Sou novamente a amante do rei.

– E… é assim? – perguntei, desesperado. – Ele entra e reivindica-a e eu sou posto de lado?

Ela lançou-me então um olhar de súbita pena – não por eu me sentir assim, mas por eu não ter compreendido.

E, com uma claridade repentina, compreendi.

– Isto não é coincidência, pois não? – perguntei, lentamente.

Ela não respondeu.

– O rei tinha-se fartado de si. Precisava de uma forma de reacender o interesse dele. Um jogo. – Ocorreu-me outro pensamento. – Há orifícios de vigilância? – Olhei para os painéis pintados por cima da cama, os espelhos artificiosamente colocados nos cantos do quarto. – Disse-lhe quando podia vir assistir? Quando eu estaria aqui? Onde se colocar, para melhor revigorar a vara do velho Rowley?

– Não lhe disse nada – respondeu ela, em tom fatigado. – Nis­so, pelo menos, está enganado.

– Mas permitiu que outros o fizessem.

– Não tenho culpa que o palácio esteja cheio de espiões. Carlo, devia estar satisfeito com este desfecho. Longe de se mostrar ciumento, o rei deixou bem claro que tem a bênção dele. Nem todos os homens seriam tão compreensivos. É um sinal do quanto eu sou agora importante para ele.

– Será a mulher mais detestada de Inglaterra, se houver outra guerra.

– Não estou aqui para ser popular. Além do mais, os meus filhos receberão títulos. O pequeno Carlos será educado como protestante. Será um dia barão Settrington, conde de March e duque de Richmond. – Revirou os títulos ingleses na língua, saboreando cada palavra. – Uma boa recompensa por um pouco de troça, não lhe parece?

– Diga-me uma coisa – pedi. – Quando nos deitámos juntos… naquela cama… – Nem conseguia olhar para ela. – Alguma coisa foi real, ou foi apenas para excitar o rei?

– Oh, foi real. Tem de acreditar. Senti mais prazer do que algu­ma vez sentira.

– E? – pressionei. – Certamente que isso significa alguma coisa para si?

Ela encolheu os ombros.

– Prazer é prazer – disse, apenas. – Não significa nada. Não muda nada. É agradável, sim, mas comparado com as coisas importantes… planear e alcançar e fazer toda a Europa marchar ao som de um só tambor… em comparação com mudar o mundo, não é nada.

– Então não me ama.

– Não como me ama a mim, não. E sabe uma coisa? Ainda bem. Odiaria ter o meu discernimento afectado por uma paixão dessas. É como o ténis… quando jogamos por amor, jogamos por nada. Portanto o amor, no fim, não significa nada.

Pousou a mão no meu ombro.

– É melhor assim. Verá, Carlo. Venha para a cama. Devíamos celebrar.

Deixei-a nesse momento.

Virei-me e saí dos aposentos dela, vendo que as salas exteriores já estavam a encher-se de peticionários ansiosos por obter a melhor posição na sua ruelle. Saí daquele palácio decrépito e enorme, passando por libertinos ainda bêbados da noite anterior e por grandes damas que se apressavam a regressar a casa, com os seus vestidos de baile. Passei por cortesãs que saíam em bicos de pés dos aposentos de ministros e por lacaios ensonados que retiravam os cotos das velas dos candelabros de prata. À medida que a grande colmeia de cinismo e deboche acordava para mais um dia, deixei-a sem olhar para trás uma única vez.

Atravessei o Parque de St. James. Um dos veados levantou a cabeça para olhar para mim: um macho, com a cabeça coberta de chifres, a guardar as suas fêmeas.

As cozinhas no Red Lion estavam silenciosas, agora que Hannah partira. Não havia o cheiro a tartes a pairar na sala de jantar, nem o aroma de ervas frescas a macerar no fogão.

Ela deixara o seu local de trabalho muito arrumado. Os bens perecíveis tinham sido dados a vizinhas ou amigas, as panelas e instrumentos vendidos no mercado por dinheiro vivo.

Sobre a mesa estava um livro. Peguei-lhe, pensando porque o teria deixado ficar para trás.

Culpeper. O Herbário Completo. Abri a capa. Na primeira página, em branco, ela escrevera:

Signor,

Este livro está livremente acessível no lugar para onde vou. Portanto pode ficar com ele; eu comprarei outro. Mas, por favor, mantenha-o em segurança e não deixe que eles o queimem.

Da sua amiga, Hannah Crowe

Folheei-o.

Meloas… Pepinos… Bardana…

As urtigas são tão bem conhecidas que não precisam de descrição; podem ser encontradas, pelo tacto, até na noite mais escura.

Camomila… Hortelã… Agrião…

Mereceria um livro de plantas realmente ser queimado?

Estaria Carlos certo, quando me falara sobre o prisma? Haverá realmente conhecimento perigoso, ou secreto?

Peguei na minha carroça e dirigi-me a Barn Elms. Os construtores, com luvas para se protegerem do frio, estavam a trabalhar, içando para os seus lugares os grandes blocos de gelo esculpido e moldado que formariam a fachada do pavilhão. Ao seu lado, o lago de patinagem já estava terminado, coberto com palha para se manter fresco.

Vagueei pelo local, inspeccionando os trabalhos. Mesmo agora, os raios de sol estavam a humedecer a superfície dos blocos de gelo. Quando estivesse concluído, o palácio de gelo duraria uns dias, duas semanas no máximo.

Seria um triunfo – claro que sim. Tudo o que ela fazia era um triunfo. As pessoas falariam desta extravagância durante anos. Quanto aos sabores dos meus gelados, o que se diria sobre eles? Nada – pois como poderia alguém falar sobre algo que tão poucos tinham experimentado e que ninguém conseguia imaginar?

Desapareceriam, como flocos de neve no Verão. Como o bone­co de neve de Miguel Ângelo, levado pela chuva.

Dois aprendizes estavam a brincar entre uma pilha de sobras de lascas de gelo. Enquanto atiravam um ao outro punhados de gelo, as lascas espalhavam-se e captavam o sol sobre as suas cabeças, um arco-íris cintilante e colorido. As crianças gritaram e deram vivas, antes de o capataz os pôr na ordem com um grunhido.

Carreguei a carroça com gelo e ferramentas. Para leste, estendia-se a estrada de regresso a Londres – a nova Estrada do Rei, ainda inacabada, mas que beneficiaria certamente em breve de algumas dessas livres francesas. Para oeste, estendia-se a grande estrada que levava à costa mais distante de Inglaterra: os portos de Plymouth, Bristol e Torquay.

Segui para oeste, na direcção do sol poente.

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