LOUISE
Depois do baile, sou afastada da corte. Ninguém me diz nada. Parecem estar à espera de algo, de algum sinal ou ordem. Ou talvez estejam simplesmente a tentar decidir qual a melhor forma de responder à reacção do rei quando me viu com o vestido da irmã. Pressinto que há conversações a decorrer por trás de portas fechadas; temas que são rápida e habilmente abandonados quando eu entro na sala. Passo noites miseráveis a pensar se, afinal de contas, irão mesmo mandar-me de volta para casa.
Ao fim de três dias assim, batem à porta da sala de refeições, enquanto eu e os Arlington jantamos. As portas são abertas por dois criados de libré que, por sua vez, se afastam para os lados para deixar passar um mordomo, que avança e anuncia:
– Sua Majestade pediu que fosse enviada a mademoiselle de Keroualle esta prova da sua estima.
– Ah – disse Arlington jovialmente, virando-se na cadeira. – O que é que eu lhe disse? – Absolutamente nada, tive vontade de responder. Arlington manda entrar o homem.
O mordomo pousa na mesa uma pequena caixa pintada com cerca de trinta centímetros de largura. Num dos lados tem um brasão pintado – algo absurdo e sem significado, o tipo de coisa inventada por aqueles que não compreendem verdadeiramente os códigos subtis das famílias antigas.
Apesar disso, reconheço-o, mas não me lembro de onde.
O mordomo abre-a e tira um prato de vidro fino. Contém um monte de algo que parece neve, tingido de um roxo profundo.
Gelo.
Lady Arlington parece confusa.
– O que é? – pergunta ao mordomo.
– Madame, creio que se trata de alguma espécie de sobremesa gelada – responde o mordomo em tom desdenhoso.
É evidente pelas expressões dos meus anfitriões, que, mesmo que eu quisesse, não há qualquer esperança de ficar com este presente só para mim. Depois de dividido, resta apenas o suficiente para duas colheradas a cada um.
Lorde Arlington inspecciona a sua parte com ar céptico, antes de o engolir como um rapaz a tomar um remédio. Lady Arlington toca no seu com a ponta da língua, delicadamente. Eu enfio a colher na boca. Cristais de gelo adocicado, já prestes a derreter, deslizam sobre a minha língua enquanto se dissolvem.
O sabor a ameixas – subtil, maduro, os últimos frutos do Verão – enche-me a boca, misturado com crème fraîche; seguido, momentos depois, pelos agradáveis grãos estaladiços de açúcar mascavado.
Sei, nesse momento, que Carlo Demirco chegou a Londres.
Invade-me uma sensação de alívio. Apesar de não nos termos separado nas melhores circunstâncias, será útil ter um aliado nesta corte. Só espero que ele esteja a sair-se melhor na sua missão do que eu na minha.
Na manhã seguinte, acordo cedo. O dia já nasceu e, sobre o parque que separa a casa dos Arlington de Whitehall, há uma neblina fina e translúcida. As árvores, com os contornos indistintos sob camadas de musselina, estão a adquirir uma tonalidade dourada, cor de pêras. Abro a janela – o ar fresco é cortante e sente-se um leve aroma a fumo de lenha.
O Outono está a chegar.
Terei de passar o Inverno em Londres, claro. Talvez o próximo Inverno também. Pergunto-me se os Invernos aqui serão tão frios como em Brest. Mais frios ainda, provavelmente.
Através da neblina no Parque de St. James vejo uma silhueta alta a caminhar. Ele deve ter frio – veste apenas um casaco preto curto, desabotoado, por baixo do qual ondula uma camisa branca. Vários spaniels seguem-no como uma capa canina a arrastar pelo chão, enquanto ele caminha sobre o solo húmido com grandes passadas.
O rei.
Está completamente sozinho. Observo-o por um momento, depois percebo que ele se dirige à traseira da casa dos Arlington. Está a vir para cá.
Lady Arlington entra no meu quarto sem bater.
– O rei vem a caminho. – Inspecciona o cenário com um olhar: eu de camisa de noite, a olhar pela janela aberta como uma menina de escola. – Não há tempo a perder. – Atrás dela, uma criada entra a correr, com os braços cheios de escovas, água e ferros de enrolar. – Despache-se o mais depressa que conseguir e venha ter comigo à sala do pequeno-almoço.
– Com certeza.
Lady Arlington acena e eu dirijo-me ao centro do quarto para que a criada possa começar o seu trabalho. A rapariga faz uma reverência e eu levanto os braços para que ela possa despir-me a camisa de noite.
Lady Arlington não se mexe. Por um momento limita-se a olhar para mim, com expressão ilegível.
Depois acena outra vez à rapariga, como se eu tivesse passado na inspecção.
– Cinco minutos, Susan – diz-lhe. Enquanto sai para o corredor, oiço-a dar mais ordens em voz firme e calma.
*
– Pretendo falar a sós com mademoiselle de Keroualle.
Lady Arlington levanta-se imediatamente, faz uma reverência e sai sem uma palavra. Não faz qualquer comentário sobre a falta de decoro. A mera sugestão seria impugnar os motivos de um rei.
Apenas os criados, de pé de ambos os lados do aparador, ficam imóveis.
Estamos sentados frente a frente na grande mesa, agora vazia dos seus candelabros e copos. Carlos aponta para o meu prato.
– Café? Chocolate?
– Obrigada. Prefiro chá.
– Claro. Pelo que sei, toda a gente em Paris bebe chá, agora. Até a Minette. – Faz uma careta. – Quero dizer… a minha falecida irmã. Eu chamava-lhe Minette. Era a sua alcunha em criança.
– Eu sei. Ela lia-me as vossas cartas. Essas cartas eram aquilo que aguardava com mais ansiedade em todo o mundo.
Ele respira fundo.
– Conte-me como é que ela morreu.
Conto-lhe tudo o que sei e, enquanto falo, as lágrimas começam a deslizar-lhe pelas faces. Pouco depois, está a soluçar abertamente, a limpar as lágrimas com as mãos com gestos impacientes. Hesito, pensando que talvez esteja a perturbá-lo demasiado, mas ele indica-me que continue com um gesto.
Nunca tinha visto um homem chorar tão abertamente em frente de uma mulher. A dada altura, ele pega num guardanapo e limpa a cara com ele.
– E… diga-me… ela foi assassinada? – pergunta, depois de eu terminar. – Aquele bruto, ou um dos favoritos dele, mandou-a matar para poder dedicar-se aos seus vícios sem impedimento?
Agora é a minha vez de parecer insegura. Só posso dar uma resposta, mas estou a tentar perceber qual a melhor forma de o convencer dela.
– Na verdade, ele já podia dedicar-se a esses vícios sem impedimento. E, embora eu não seja uma grande admiradora do marido de Madame, não vejo como poderia ter sido um homicídio.
– Mas ela estava tão bem, em Dover… Nunca a tinha visto tão bela, ou tão bem.
Abano a cabeça.
– Sentia dores terríveis. Simplesmente estava decidida a não deixar que Vossa Majestade o visse.
– Como somos bons em dissimulação, nós os Stuart – diz ele, quase para si próprio. – Como nos mostramos pouco àqueles que mais nos amam.
– Ela amava-vos mais do que a qualquer outra pessoa viva.
– E eu a ela. – Fica um momento em silêncio, depois tira algo de dentro da camisa. – Trouxe as cartas que ela me escreveu. Importa-se de… – Não consegue terminar a frase, mas eu compreendo o que ele quer.
– En français?
– Oui. S’il vous plaît.
Abro a primeira carta e começo a ler.
– Mon cher frère, votre Majesté…