5. QUINTA-FEIRA 26 DE DEZEMBRO


Pela primeira vez desde que Henrik Vanger iniciara seu monólogo, o velho conseguiu surpreender Mikael, que pediu mesmo que ele repetisse, para estar certo de ter ouvido bem. Nenhuma das informações que colhera na internet sugeria que um assassinato tivesse ocorrido na família Vanger.

— Foi em 22 de setembro de 1966. Harriet tinha dezesseis anos e acabava de se classificar em primeiro lugar no colégio. Era um sábado e foi o pior dia da minha vida. Reconstituí o desenrolar dos acontecimentos tantas vezes que penso ser capaz de descrever minuto a minuto o que se passou naquele dia, exceto o mais importante.

Fez um gesto com a mão, como se varresse o ar.

— Grande parte da família estava reunida aqui nesta casa. Era um daqueles terríveis jantares anuais de família, quando sócios do grupo Vanger se reuniam para discutir negócios. Meu avô criara essa tradição na sua época, e o resultado, na maioria das vezes, eram reuniões mais ou menos detestáveis. A tradição chegou ao fim nos anos 1980, quando Martin decidiu, pura e simplesmente, que todas as discussões relativas à empresa ocorreriam nas reuniões e nas assembléias regulares. Foi a melhor decisão que tomou na vida. Faz vinte anos que a família não se reúne para esse tipo de encontro.

— Você disse que Harriet foi assassinada...

— Espere. Deixe-me contar o que aconteceu. Era um sábado, portanto. Era também a Festa das Crianças, com um desfile organizado pelo clube de atletismo de Hedestad. Harriet foi à cidade, durante o dia, para assistir ao desfile com alguns colegas do colégio. Voltou um pouco depois das duas da tarde; o jantar estava previsto para as cinco e ela era esperada, como todos os outros jovens da família.

Henrik Vanger levantou-se e foi até a janela. Fez um sinal para que Mikael o acompanhasse e apontou com um dedo:

— As duas e quinze, alguns minutos depois de Harriet ter chegado em casa, um acidente terrível aconteceu ali na ponte. Um certo Gustav Aronsson, irmão de um proprietário rural de Östergarden, uma fazenda aqui da ilha, entrou de carro na ponte e colidiu de frente com um caminhão-tanque que se dirigia à ilha para fornecer óleo doméstico. Nunca se chegou a estabelecer realmente como o acidente ocorreu, pois há boa visibilidade nos dois sentidos, mas ambos vinham muito depressa, e o que podia ter sido um acidente menor se transformou em uma catástrofe. O motorista do caminhão tentou evitar a colisão girando instintivamente o volante. O caminhão-tanque bateu na grade lateral e virou, ficando atravessado na ponte com a traseira em grande parte para fora da beirada... Uma barra de metal furou o tanque, e óleo inflamável começou a vazar. Enquanto isso, Gustav Aronsson, prensado no carro e sofrendo terrivelmente, berrava sem parar. O motorista do caminhão-tanque também se feriu, mas conseguiu sair da cabine.

O velho fez uma pausa e voltou a se sentar.

— Na verdade, o acidente não teve relação alguma com Harriet. Mas, de certo modo, desempenhou seu papel. Pois foi um caos completo quando as pessoas correram para ajudar. Havia ameaça de incêndio, e o alerta foi dado. A polícia, uma ambulância, as primeiras pessoas aproximando-se depressa para socorrer, os bombeiros, jornalistas e curiosos acorreram na maior desordem ao local. Evidentemente, todos se amontoavam do lado do continente, enquanto na ilha fazíamos o possível para tirar Aronsson dos destroços, o que acabou sendo uma tarefa terrivelmente difícil. Ele estava prensado e seriamente ferido. Tentamos retirá-lo das ferragens com a força das mãos, mas não adiantou. Era preciso usar uma serra. O problema é que não podíamos fazer nada que produzisse fagulhas, estávamos no meio de um mar de óleo ao lado de um caminhão-tanque virado. Se ele explodisse, seria o nosso fim. Demorou algum tempo até chegarem reforços do continente; o caminhão atravessado obstruía a ponte, e passar por cima do tanque era o mesmo que escalar uma bomba.

Mikael teve a impressão de que o velho fazia um relato minuciosamente ensaiado e calculado com a intenção de captar seu interesse. E foi obrigado a admitir que Henrik Vanger era um excelente contador de histórias. Sabia cativar o ouvinte. No entanto, ele continuava sem ter a menor idéia de que rumo a história tomaria.

— O importante nesse acidente é que a ponte permaneceu fechada durante as vinte e quatro horas seguintes. Só no fim da tarde de domingo é que conseguiram bombear o óleo que restava no tanque, remover o caminhão e reabrir a ponte para circulação. Durante essas vinte e quatro horas, a ilha esteve separada do mundo. O único meio de se chegar ao continente era através de uma canoa dos bombeiros, mobilizada para transportar as pessoas do porto de recreio na ilha até o velho porto atrás da igreja. Durante várias horas, o barco só foi utilizado pelos socorristas. Só bem tarde no sábado, à noite, é que começaram a transportar os moradores. Entende o que isso significa?

Mikael assentiu com a cabeça.

— Suponho que alguma coisa aconteceu a Harriet na ilha e que o número de suspeitos se limita às pessoas que estavam aqui. Uma espécie de versão insular do mistério do quarto fechado?

Henrik Vanger deu um sorriso irônico.

— Mikael, você não sabe o quanto tem razão. Eu também li Dorothy Sayers. Eis os fatos comprovados: Harriet chegou aqui por volta das duas e dez. Se contarmos também as crianças e os casais não casados, ao todo haviam chegado cerca de quarenta pessoas durante o dia. Contando empregados e moradores fixos, havia sessenta e quatro pessoas aqui ou nos arredores da casa. Alguns, os que pretendiam passar a noite, ocupavam-se em se instalar nas casas vizinhas ou nos quartos de hóspedes. Harriet havia morado antes numa casa do outro lado da estrada, mas, como já contei, nem seu pai Gottfried nem sua mãe Isabella eram muito estáveis, e percebi o quanto Harriet andava atormentada. Não conseguia se concentrar nos estudos e, em 1964, quando completou catorze anos, fiz que viesse se instalar aqui em casa. Isabella certamente achou cômodo poder desembaraçar-se dos cuidados que a filha representava. Harriet tinha um quarto no andar de cima, e passamos dois anos juntos. Assim, foi para cá que ela veio naquele dia. Sabemos que trocou algumas palavras com Harald Vanger no pátio, ele é um dos meus irmãos. Depois, subiu a escada e veio até aqui, a este cômodo, me dar um alô. Disse que queria me contar alguma coisa. Outros membros da família estavam comigo nesse momento e não tive tempo para escutá-la. Mas ela parecia tão preocupada que prometi ir ao seu quarto sem demora. Ela concordou com a cabeça e saiu por aquela porta. Foi a última vez que a vi. Um minuto mais tarde, houve o choque na ponte e o caos que se seguiu alterou todos os outros planos do dia.

— Como ela morreu?

— Espere. A coisa é mais complicada e devo contar a história em ordem cronológica. Quando ocorreu a colisão, as pessoas deixaram tudo o que estavam fazendo e se precipitaram ao local do acidente. Eu era... digamos que assumi a direção das operações, não pensei em outra coisa nas horas seguintes. Sabemos que Harriet também foi até a ponte depois da colisão, várias pessoas a viram, mas o risco de explosão me fez ordenar que todos que não estavam ajudando a retirar Aronsson dos destroços se afastassem. Éramos somente cinco pessoas no local do acidente: eu e meu irmão Harald; Magnus Nilsson, espécie de empregado faz-tudo em minha casa; um operário da serraria chamado Sixten Nordlander, que morava numa cabana junto ao porto de recreio; e um jovem chamado Jerker Aronsson. Este tinha dezesseis anos e eu devia tê-lo mandado embora, mas era o sobrinho do Aronsson prensado dentro do carro e chegara de bicicleta um minuto ou dois após o acidente; ele estava indo para a cidade. Por volta das vinte para as três, Harriet estava na cozinha, aqui em casa. Bebeu um copo de leite e trocou algumas palavras com Astrid, a cozinheira. Juntas, elas ficaram olhando pela janela o que se passava na ponte. As cinco para as três, Harriet atravessou o pátio. Foi vista, entre outros, pela mãe, Isabella, mas elas não se falaram. Um minuto depois, ela cruzou com Otto Falk, o pastor de Hedeby. Nessa época, o presbitério ficava onde hoje Martin Vanger tem a sua casa, do lado de cá da ponte. O pastor, resfriado, fazia uma sesta quando a colisão ocorreu; não vira o acidente, acabavam de informá-lo e ele se dirigia apressado à ponte. Harriet o deteve no caminho, queria falar com ele, mas o pastor a interrompeu com um gesto de mão e prosseguiu em seu caminho. Otto Falk é a última pessoa que a viu viva.

— Como ela morreu? — repetiu Mikael.

— Não sei — respondeu Henrik Vanger com um olhar atormentado. — Só conseguimos retirar Aronsson do carro por volta das cinco da tarde (aliás, mesmo gravemente ferido, ele sobreviveu) e as seis a ameaça de incêndio já não existia. A ilha continuava isolada, mas as coisas começavam a se acalmar. Só nos demos conta da ausência de Harriet no momento em que nos sentamos à mesa para um jantar tardio, às oito da noite. Enviei uma de suas primas para chamá-la no quarto, mas ela voltou dizendo que não a encontrara. Isso não me deixou muito inquieto; achei que ela resolvera dar uma volta ou que não fora informada de que o jantar estava servido. E durante a noite estive ocupado com diversas disputas familiares. Só na manhã seguinte, porque Isabella a procurava, é que percebemos que ninguém sabia onde ela estava e que ninguém a vira desde a véspera.

Ele abriu amplamente os braços.

— Desde esse dia, Harriet Vanger continua desaparecida, sem que haja o menor sinal dela.

— Desaparecida? — ecoou Mikael.

— Em todos esses anos não conseguimos descobrir nada, nem um fragmento microscópico dela.

— Mas, se ela desapareceu, então não se pode afirmar que tenha sido assassinada.

— Entendo sua alegação. Meus pensamentos seguiram o mesmo caminho. Quando alguém desaparece sem deixar sinal, quatro coisas podem ter acontecido. A pessoa resolveu desaparecer por livre e espontânea vontade e está escondida. Pode ter sofrido um acidente fatal. Pode ter se suicidado. E, por fim, pode ter sido vítima de um crime. Pesei todas as possibilidades.

— E por que acha que alguém a matou?

— Porque é a única conclusão plausível. Henrik Vanger levantou um dedo e continuou:

— No início achei que ela tivesse fugido. Mas os dias se passaram e todos nós percebemos que não era esse o caso. Quero dizer: uma jovem de dezesseis anos que vivia num ambiente relativamente protegido, mesmo sendo esperta, como poderia se virar, se esconder e permanecer escondida sem ser descoberta? Onde conseguiria dinheiro? E, mesmo se arranjasse trabalho em algum lugar, precisaria de um documento de identidade e de um endereço.

Levantou dois dedos.

— Meu segundo raciocínio, evidentemente, é que ela tenha sofrido um acidente. Faça-me um favor, abra a gaveta de cima da escrivaninha. Vai encontrar um mapa ali.

Mikael fez o que ele pedia, depois abriu o mapa sobre a mesa baixa. Hedebyön, a ilha, era uma massa de terra irregular de cerca de três quilômetros de comprimento e um e meio em sua parte mais larga. Um bom trecho da ilha era constituído de floresta. As moradias se concentravam ao redor da ponte e do porto de recreio; na outra extremidade da ilha havia uma fazenda, Östergarden, de onde o infeliz Aronsson iniciara seu trajeto de carro.

— Lembre que ela não deixou a ilha — sublinhou Henrik Vanger. — Aqui em Hedebyön pode-se morrer num acidente como em qualquer lugar do mundo. A pessoa pode ser atingida por um raio, embora naquele dia não tivesse desabado nenhuma tempestade. Pode ser pisoteada por um cavalo, cair num poço ou numa furna. Certamente há inúmeras maneiras de se sofrer um acidente aqui. Refleti sobre tudo isso.

Ele ergueu um terceiro dedo.

— Resta um problema, e equivale também à terceira possibilidade: que, contra todas as expectativas, ela tenha se suicidado. Mas então o corpo teria sido encontrado em alguma parte desta área tão limitada.

Henrik Vanger espalmou a mão no meio do mapa.

— Nos dias seguintes ao desaparecimento, organizamos uma batida, primeiro num sentido, depois no outro. Os homens vasculharam o menor fosso, a menor porção de mato, tudo que se assemelhasse a uma furna ou a um monte de terra. Examinamos cada construção, cada chaminé, cada poço, cada granja, cada celeiro.

O velho moveu a cabeça e olhou para fora. Começava a escurecer. Sua voz ficou mais baixa e mais intimista.

— No outono continuei procurando-a, depois que as buscas tinham se encerrado e todos já haviam desistido. Quando eu não estava ocupado com meu trabalho, percorria a ilha em todas as direções. O inverno chegou sem que tivéssemos encontrado o menor sinal dela. Na primavera eu prossegui, mesmo sabendo que meus esforços eram irracionais. O verão chegou, contratei três peritos em floresta, que reiniciaram as buscas com cães. Eles rastrearam sistematicamente cada metro quadrado da ilha. Eu começava a considerar que alguém podia ter feito mal a ela. Assim, eles buscavam uma espécie de cova onde a tivessem enterrado. Procuraram por três meses. Não encontramos o menor sinal de Harriet. É como se ela tivesse evaporado.

— Há outras possibilidades — lembrou Mikael.

— Diga.

— Ela pode ter se afogado, acidental ou voluntariamente. Estamos numa ilha e a água pode ocultar muitas coisas.

— E verdade. Mas não é muito provável. Veja: se Harriet sofreu um acidente e se afogou, isso logicamente deve ter acontecido muito perto do povoado. Lembre que a confusão na ponte era o maior drama que Hedebyön vivia desde muitas décadas, e seria estranho uma jovem de dezesseis anos escolher bem esse momento para ir passear do outro lado da ilha. Mais importante ainda — prosseguiu — é que não há muitas correntes por aqui, e nessa época do ano os ventos costumam soprar do norte e do nordeste. Qualquer coisa que caísse na água teria sido lançada à praia do lado da terra firme, onde há construções praticamente ao longo de toda a costa. Claro que pensamos nisso e investigamos todos os locais onde ela poderia ter caído na água. Também contratei jovens de um clube de mergulho de Hedestad. Passaram o verão esquadrinhando o fundo do canal e das praias próximas... Nenhum sinal. Estou convencido de que ela não está no mar, senão a teríamos encontrado.

— E se ela sofreu um acidente em outra parte? A ponte estava fechada, é verdade, mas a distância entre a ilha e o continente não é grande. Ela pode ter atravessado a nado ou de barco.

— Era final de setembro, a água estava muito fria. Se Harriet decidisse tomar banho no meio da confusão geral, teria sido vista e chamaria a atenção. Havia gente na ponte e, do lado da terra firme, duzentas ou trezentas pessoas observavam a cena.

— E um barco?

— Naquele dia havia exatamente treze barcos em Hedebyön. A maioria já havia deixado o mar. No porto de recreio, apenas dois estavam na água. Havia sete barcos, cinco dos quais já trazidos para a praia. Abaixo do presbitério, havia um bote recolhido em terra e um na água. Todos esses barcos foram verificados e se achavam exatamente em seus respectivos lugares. Se ela tivesse feito a travessia a remo, teria sido obrigada a deixar a embarcação do outro lado.

Henrik Vanger levantou um quarto dedo.

— Só resta uma possibilidade verossímil, a de que Harriet desapareceu contra a sua vontade. Alguém lhe fez mal e deu sumiço no corpo.


Lisbeth Salander passou a manhã de Natal lendo o controvertido livro de Mikael Blomkvist sobre jornalismo econômico. O livro tinha duzentas e dez páginas e chamava-se Os templários, com o subtítulo O jornalismo econômico em questão. A capa, de design muito moderno, assinada por Christer Malm, representava a Bolsa de Estocolmo. Christer trabalhara no Photoshop e o observador levava algum tempo para perceber que o prédio flutuava livremente no ar. Não havia fundo. Difícil imaginar uma capa mais explícita e eficaz para dar o tom do que viria a seguir.

Salander constatou que Blomkvist tinha um estilo excelente. O livro era escrito de maneira direta e envolvente, e mesmo pessoas que não conheciam os meandros do jornalismo econômico podiam ler e tirar proveito. O tom era mordaz e sarcástico, mas sobretudo convincente.

O primeiro capítulo era uma espécie de declaração de guerra em que Blomkvist falava sem papas na língua. Os analistas econômicos suecos haviam se tornado, nos últimos anos, um grupo de lacaios incompetentes, que se julgavam importantes e não possuíam o menor pensamento crítico. Mikael chegava a essa conclusão depois de mostrar que os jornalistas econômicos se contentavam o tempo todo, e sem a menor objeção, em reproduzir as afirmações transmitidas por dirigentes de empresas e especuladores da Bolsa — mesmo quando essas afirmações eram claramente falaciosas e errôneas. Esses jornalistas, portanto, ou eram ingênuos e crédulos que deviam ser demitidos de seus cargos, ou, pior, gente que traía deliberadamente sua missão jornalística por não proceder a exames críticos e por não fornecer ao público uma informação correta. Blomkvist escrevia que muitas vezes se envergonhava de ser qualificado como jornalista econômico, pois se arriscava a ser confundido com pessoas que ele não considerava nem mesmo jornalistas.

Blomkvist comparava as contribuições dos analistas econômicos com o trabalho dos jornalistas especializados em assuntos criminais ou dos correspondentes no exterior. Traçava um panorama dos protestos que se levantariam se um jornalista jurídico de um grande jornal passasse a publicar, sem o menor senso crítico, afirmações do promotor, dando-as automaticamente como verídicas, por exemplo, no processo de um assassinato, sem buscar as informações da defesa e sem entrevistar a família da vítima, para formar uma idéia do que seria plausível ou não. Dizia que as mesmas regras deviam se aplicar aos jornalistas econômicos.

O restante do livro trazia uma série de provas que reforçavam o discurso da introdução. Um longo capítulo examinava declarações sobre uma empresa "pontocom" em seis importantes jornais, bem como nas revistas Finanstidningen, Dagens Industri e no programa de tevê A-ekonomi. Primeiro ele reproduzia essas citações e depois acrescentava o que os repórteres tinham dito e escrito, antes de comparar com a situação real. Descrevendo o desenvolvimento da empresa, várias vezes ele mencionava perguntas simples que um jornalista sério teria feito, mas que o grupo de especialistas da economia não fizera, numa clara omissão.

Outro capítulo abordava a privatização da Telia — era a parte mais cômica e irônica do livro, na qual articulistas econômicos declaradamente citados eram reduzidos a pó, entre os quais um certo William Borg, contra quem Mikael parecia sentir uma particular hostilidade. Outro capítulo, mais no final do livro, comparava o nível de competência entre jornalistas econômicos suecos e estrangeiros. Blomkvist descrevia a maneira como jornalistas sérios do Financial Times, The Economist e de alguns periódicos econômicos alemães haviam noticiado os mesmos assuntos em seus países. A comparação não era muito favorável aos jornalistas suecos. O último capítulo esboçava uma proposta para corrigir essa lamentável situação. A conclusão do livro remetia de volta à introdução:


Se um repórter, no Parlamento, realizasse sua tarefa do mesmo modo, sustentando sem a menor crítica cada moção proposta, ainda que totalmente insensata, ou se um jornalista político carecesse de uma forma semelhante de julgamento, esse jornalista seria despedido ou pelo menos transferido a um serviço no qual ele ou ela não pudesse causar prejuízos. No jornalismo econômico, porém, não é a missão jornalística natural que prevalece, ou seja, oferecer aos leitores análises críticas e um relato objetivo dos resultados. Não, aqui se celebra o vigarista mais bem-sucedido. E é assim que o futuro da Suécia está sendo moldado, minando-se a última confiança ainda depositada nos jornalistas como categoria profissional.


Não havia rodeios. O tom era áspero e Salander não teve dificuldade em entender o debate enfurecido que se seguiu tanto no Journalisten, o órgão da categoria, em alguns jornais de economia como também nos artigos de fundo das revistas especializadas. Mesmo que apenas um número pequeno de jornalistas econômicos tivesse sido mencionado no livro, Lisbeth Salander supunha que a corporação era bastante pequena para que todos soubessem exatamente quem era visado quando se citavam as diferentes publicações. Blomkvist arranjara sérios inimigos, o que se refletia também nas dezenas de comentários que se alegravam de maneira maldosa com a sentença do caso Wennerström.

Ela fechou o livro e observou a fotografia do autor na quarta capa. Mikael Blomkvist aparecia numa foto pequena. Uma mecha castanho-clara pendia displicentemente sobre a testa, como se uma rajada de vento tivesse passado bem na hora em que o fotógrafo acionou o botão da máquina, ou como se (o que era mais provável) o ilustrador Christer Malm tivesse feito algum retoque. Ele olhava para a objetiva com um sorriso irônico e um olhar que certamente pretendia ser charmoso e travesso. Um cara bastante atraente. Tirado de circulação por três meses de prisão.

— Muito bem, Super-Blomkvist — disse ela em voz alta. — Você só quis se divertir um pouco, não foi?


* * *

Por volta do meio-dia, Lisbeth Salander ligou seu notebook e abriu o programa Eudora para passar um e-mail. Digitou uma única e eloquente linha:


[Vc tem tempo?]


Assinou Wasp e enviou a mensagem para Praga_xyz_666@hotmail.com. Por precaução, passou pelo programa de encriptação PGP.

Depois vestiu um jeans preto, botas de inverno, malha de gola alta, jaqueta escura, luvas, um gorro e um cachecol da mesma cor amarelo-pálido. Tirou os anéis das sobrancelhas e do nariz, passou nos lábios um batom cor-de-rosa e examinou-se no espelho do banheiro. Estava parecida com qualquer pessoa que fosse passear num domingo e achou que sua indumentária era uma camuflagem de combate adequada para uma incursão às linhas inimigas. Tomou o metrô de Zinkensdamm na Östermalmstorg e depois foi a pé para a Strandvägen. Caminhou pelo canteiro central enquanto ia lendo o número dos prédios. Um pouco antes de chegar à ponte de Djurgarden, deteve-se e contemplou a porta que procurava. Atravessou a rua e esperou a alguns metros da entrada.

Observou que a maioria das pessoas que havia saído para passear nesse dia frio de Natal andava no meio da rua; somente uns poucos utilizavam a calçada diante dos prédios.

Foi preciso esperar cerca de meia hora até que uma mulher já de uma certa idade se aproximasse, com uma bengala, vindo da Djurgarden. A mulher parou e lançou um olhar desconfiado a Salander, que sorriu amavelmente e cumprimentou-a com um breve movimento de cabeça. A senhora com a bengala devolveu o cumprimento e pareceu tentar se lembrar de onde conhecia a jovem. Salander deu-lhe as costas e se afastou da porta com alguns passos, como se estivesse andando para lá e para cá à espera de alguém. Quando se virou de novo, a senhora já estava diante da porta, digitando o código de acesso com muita aplicação. Salander não teve dificuldade em vê-la digitar 1260.

Esperou mais cinco minutos antes de se aproximar da porta. Quando acionou o código, a fechadura emitiu um estalo. Ela abriu a porta e olhou para dentro. No hall havia uma câmera de segurança, ela deu uma espiada e depois a ignorou; o modelo, vendido pela Milton Security, só era ativado em caso de arrombamento. No fundo, à esquerda, passando um elevador antigo, havia outra porta com um código de segurança; ela testou 1260 e constatou que a combinação da porta de entrada era a mesma da porta de acesso ao subsolo e ao depósito de lixo. Que negligência! Levou exatamente três minutos para examinar o subsolo, onde localizou uma lavanderia destrancada e um local de triagem do lixo. Depois utilizou um conjunto de chaves falsas que havia pegado "emprestadas" do serralheiro da Milton para abrir uma porta trancada que dava para o que parecia ser a sala de reuniões do condomínio. Bem ao fundo havia um local para jogos e passatempos. Por fim encontrou o que procurava — o quadro de luz do prédio. Examinou os relógios, os fusíveis e as junções, tirou do bolso uma máquina fotográfica digital, uma Canon do tamanho de um maço de cigarros. Tirou três fotos do que a interessava.

Ao sair, passou os olhos pela lista de nomes junto ao elevador e leu o do último andar: Wennerström.

Depois deixou o prédio e andou com passos rápidos até o Museu Nacional. Entrou na cafeteria para se aquecer e tomar um café. Meia hora depois, retornou ao Söder e subiu ao seu apartamento.

Ela recebera uma resposta de Praga_xyz_666@hotmail.com. Descriptografou-a em PGP, e a resposta lacônica formava simplesmente o número 20.


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