6 - DOMINGO 23 DE JANEIRO – SÁBADO 29 DE JANEIRO


Lisbeth Salander pegou o elevador do estacionamento no subsolo até o quarto andar, o último dos três andares do edifício comercial de Slussen ocupado pela Milton Security. A cópia de uma chave mestra que ela tivera o cuidado de conseguir anos atrás ainda funcionava. Consultou maquinalmente o relógio de pulso ao sair no corredor mergulhado no escuro. Três horas e dez minutos da madrugada de domingo. O guarda-noturno estava no centro de vigilância do segundo andar e ela sabia que muito provavelmente estaria sozinha no quarto andar.

Como sempre, ficou pasma ao verificar que uma empresa especializada em segurança deixava brechas tão óbvias no seu próprio sistema.

Poucas coisas haviam mudado no corredor do quarto andar naquele ano. Foi primeiro até sua própria sala, um cubículo atrás de uma divisória de vidro no corredor, onde Dragan Armanskij a instalara. A porta não estava trancada. Uma mesa, uma cadeira de escritório, um cesto de papel e uma estante vazia, o velho PC Toshiba de 1997 com um disco rígido mixuruca; Lisbeth não levou nem trinta segundos para constatar que naquele seu ano de ausência absolutamente nada tinha mudado em “sua” sala, afora alguém ter deixado uma caixa com uma papelada antiga no chão, bem do lado da porta.

Nada indicava que Dargan tivesse posto outra pessoa ali. Viu nisso um bom sinal, embora sabendo que não significava nada. Os quatro metros quadrados daquela salinha não podiam mesmo ser de grande utilidade.

Lisbeth fechou a porta e andou silenciosamente por todo o corredor conferindo se algum notívago não estaria trabalhando em algum canto. Estava sozinha. Parou em frente à máquina de café e pegou um copinho de capuccino antes de seguir até a sala de Dragan Armanskij e abrir a porta com sua chave pirateada.

A sala de Armanskij estava, como sempre, irritantemente arrumada. Deu uma volta, e uma olhada na estante antes de se sentar à mesa e ligar o computador.

Tirou um CD do bolso interno do casaco de camurça novinho e o inseriu no leitor para abrir um programa chamado Asphyxia 1.3, que ela mesma criara e cuja única função era atualizar a Internet Explorer no disco rígido de Armanskij. O processo durou cerca de cinco minutos.

Feito isso, tirou o CD do leitor e reiniciou o computador com a nova versão do Internet Explorer. O programa parecia ser a antiga versão e se comportou de modo exatamente igual, só estava um átimo mais pesado e um microssegundo mais lento. Todas as configurações eram idênticas ao original, inclusive a data de instalação. Do novo arquivo, nem vestígio.

Entrou no endereço de um servidor FTP na Holanda e obteve um menu. Clicou no ícone copy, digitou Armanskij/MiltSec e clicou em Entrar. O computador imediatamente começou a copiar o disco rígido de Dragan Armanskij no servidor holandês. Um relógio avisou que o processo levaria trinta e quatro minutos.

Durante a transferência, pegou a cópia da chave da mesa de Armanskij, que ele guardava num vaso decorativo sobre a estante. Passou a meia hora seguinte atualizando-se nos dossiês da gaveta superior direita, onde Armanskij costumava guardar os casos em andamento e urgentes. Quando o computador avisou que a transferência estava concluída, recolocou os dossiês exatamente na ordem em que os tinha encontrado.

Em seguida desligou o computador, apagou a luminária de mesa e pegou o copinho de capuccino vazio. Eram 4h12 quando entrou no elevador. Saiu da Milton Security do mesmo jeito que tinha entrado.

Voltou a pé para a Fiskaregatan, sentou-se diante de seu Powerbook, conectou-se ao servidor holandês e abriu uma cópia do Asphyxia 1.3. Uma vez aberto o programa, apareceu uma janela com uma seleção de discos rígidos. Havia cerca de quarenta opções, e ela rolou a barra do menu. Passou pelo disco rígido de NilsEBjurman, que ela abria mais ou menos a cada dois meses. Parou um instante em MikBlom/laptop e MikBlom/office. Não clicava nesses ícones havia mais de um ano e cogitou vagamente mandá-los para a lixeira. Por princípio, porém, resolveu mantê-los - já que um dia ela havia clonado esses computadores, seria bobagem apagar a informação para, quem sabe, um dia ter de refazer todo o processo. Isso também valia para um ícone intitulado Wennerström, que não abria havia muito tempo. O dono tinha morrido. O ícone Armanskíj/MiltSec era o último a ter sido criado e se achava bem no final da lista.

Ela poderia ter clonado o disco rígido dele antes, mas nunca se dera ao trabalho porque, trabalhando na Milton Security, tinha todas as condições de pôr a mão em informações que Armanskij queria ocultar das pessoas que o cercavam. A invasão de seu computador não tinha nenhuma má intenção. Ela só queria saber no que a empresa vinha trabalhando e qual era sua situação geral. Clicou e abriu-se instantaneamente uma nova pasta intitulada [ARMANSKIJDD]. Confirmou que conseguia abrir o disco rígido e constatou que todos os arquivos estavam no lugar.

Ficou no computador, lendo os relatórios, balanços financeiros e e-mails de Armanskij, até as sete da manhã. Por fim, balançou a cabeça, preocupada, e desligou o computador. Foi ao banheiro escovar os dentes e depois seguiu para o quarto, onde se despiu, deixando a roupa amontoada no chão. Deitou-se e dormiu até meio-dia e meia.

Na última sexta-feira de janeiro, teve lugar a assembléia geral anual da Millennium. Participavam o contador da empresa, um auditor fiscal, os quatro sócios - Erika Berger (detentora de trinta por cento das ações), Mikael Blomkvist (vinte por cento), Christer Malm (vinte por cento) e Harriet Vanger (trinta por cento). Fora igualmente convocada para a reunião a assistente de redação Malu Eriksson, representante dos funcionários na qualidade de presidente da unidade sindical da revista, composta por ela própria, Lottie Karim, Henry Cortez, Monika Nilsson e Sonny Magnusson, responsável pela publicidade. Era a primeira vez que Malu participava de uma assembléia geral da diretoria da empresa.

A reunião teve início às quatro da tarde em ponto e terminou pouco mais de uma hora depois. Grande parte dela foi dedicada ao balanço financeiro e ao detalhamento do saldo. A assembléia pôde constatar facilmente que a Millennium estava com uma base financeira estável se comparada ao período de crise que atingira a empresa dois anos antes. O saldo apresentava um excedente de 2,1 milhões de coroas, dos quais um milhão provinha das vendas do livro de Mikael Blomkvist sobre o caso Wennerström.

Por sugestão de Erika Berger, ficou decidido que um milhão seria aplicado visando estancar futuras crises, duzentas e cinquenta mil coroas seriam investidas numa reforma da área de redação, na compra de novos computadores e outros equipamentos técnicos, e trezentas mil seriam aproveitadas para um aumento geral dos salários e a proposta de período integral a Henry Cortez. Para o restante, a proposta era repassar cinquenta mil coroas a cada sócio e um bônus salarial de cem mil coroas a ser equanimemente dividido entre os quatro colaboradores fixos, quer trabalhassem meio período, quer período integral. O responsável pela publicidade, Sonny Magnusson, não receberia bônus, já que por contrato lhe cabia uma percentagem sobre os anúncios que conseguia, o que às vezes o tornava o assalariado mais bem pago de todos. A proposta foi aceita por unanimidade.

Uma proposta de Mikael Blomkvist suscitou um breve debate sobre a possibilidade de reduzir o orçamento para freelancers e investir futuramente em mais um funcionário de meio período. Mikael pensava em Dag Svensson, que assim poderia usar a Millennium como base de uma atividade freelancer e, quem sabe mais tarde, passar para período integral. A proposta contou com a oposição de Erika Berger, que achava que seria difícil a revista não recorrer a frilas. Erika teve o apoio de Harriet Vanger, enquanto Christer Malm se absteve. Ficou então decidido não se mexer no orçamento dos frilas. Todos, porém, tinham muita vontade de trabalhar com Dag Svensson pelo menos em período parcial.

Depois de uma rápida discussão sobre o futuro direcionamento e os projetos em andamento, Erika Berger foi reeleita presidente do conselho administrativo para o exercício seguinte. Com isso, a assembléia foi encerrada. Malu Eriksson não pronunciara uma só palavra durante esse seu primeiro conselho administrativo; um breve cálculo de cabeça lhe permitira constatar que os funcionários iriam receber um bônus de vinte e cinco mil coroas, ou seja, mais de um mês de salário. Não viu nenhum motivo para protestar contra essa decisão.

Terminada a assembléia geral, Erika Berger convocou os sócios para uma reunião extraordinária. Erika, Mikael, Christer e Harriet permaneceram na sala, enquanto os demais se retiraram. Assim que fecharam a porta, Erika começou a reunião.

—Temos um único item em pauta. Harriet, segundo o acordo firmado com Henrik Vanger, sua participação seria por um período de dois anos. Chegamos ao fim do contrato. Portanto precisamos saber o que vai ser da sua participação - ou, mais precisamente, a de Henrik.

Harriet meneou a cabeça.

—Todo mundo aqui sabe que a participação de Henrik resultou de um impulso diante de uma situação bem específica - disse ela. —Essa situação não existe mais. Gostaria de saber a opinião de vocês a respeito.

Christer Malm se mexeu na cadeira. Era o único na sala que não sabia exatamente que situação específica era aquela. Sabia que Mikael e Erika lhe escondiam uma história, mas Erika explicara que se tratava de um assunto altamente pessoal, que dizia respeito a Mikael e sobre o qual ele não queria falar de jeito nenhum. Christer não era bobo e entendeu que o silêncio de Mikael estava ligado aos acontecimentos de Hedestad e a Harriet Vanger. Enendia também que não precisava saber mais que isso para tomar uma decisão de princípios, e respeitava Mikael o suficiente para não criar caso por isso.

—Conversamos, os três, sobre a questão e chegamos a um consenso - disse Erika. Fez uma pausa e fitou Harriet dentro dos olhos. —Antes de expor nosso ponto de vista, gostaríamos de saber qual a sua posição.

O olhar de Harriet Vanger passou de Erika para Mikael, depois para Christer. Seus olhos se demoraram em Mikael, mas não conseguiu ler nada no rosto deles.

—Se quiserem comprar a minha parte de volta, isso lhes custaria três milhões de coroas mais os juros, quantia que a família Vanger investiu na Millennium. Vocês têm condições de pagar? - perguntou Harriet suavemente.

—Sim, temos condições - disse Mikael com um sorriso.

—Henrik Vanger pagara cinco milhões de coroas pelo trabalho que Mikael realizara para ele. Detalhe irônico: um dos objetivos da missão tinha sido encontrar Harriet Vanger.

—Nesse caso, a decisão está na mão de vocês - disse Harriet. —O contrato determina que a partir de hoje vocês podem abrir mão da participação dos Vanger. De minha parte, nunca teria formulado um contrato tão vago como este do Henrik.

—Poderíamos comprar a sua parte se fôssemos obrigados a isso - disse Erika. —A questão, portanto, é saber o que você pretende. Você dirige um grupo empresarial, dois grupos, para ser mais precisa. O nosso orçamento anual equivale ao que vocês negociam no intervalo do cafezinho. Que interesse você poderia ter em desperdiçar seu tempo em algo tão modesto como a Millennium? Reunimos o conselho administrativo a cada três meses, e desde que substituiu o Henrik você tem conscienciosamente se dado ao trabalho de estar presente a todas as reuniões.

Harriet Vanger encarou a presidente do conselho administrativo com um olhar doce. Guardou silêncio por um longo momento. Então disse, voltando-se para Mikael:

—Desde o dia em que nasci sempre fui proprietária de uma coisa ou de outra. E passo os meus dias dirigindo um grupo onde há mais intrigas que num romance popular. Quando comecei a participar deste conselho, era para cumprir um dever ao qual não podia me furtar. Mas vou dizer uma coisa: nesse último ano e meio, descobri que este é o conselho administrativo do qual eu mais gosto de participar.

Mikael meneou a cabeça com ar compenetrado. Harriet olhou para Christer.

—Estar na Millennium é como brincar de conselho administrativo. Os problemas aqui são mínimos, compreensíveis e visíveis. A empresa tem, evidentemente, a obrigação de gerar lucro e ganhar dinheiro, é uma condição sine qua non. Mas o objetivo da atividade se situa num outro nível: vocês querem fazer as coisas avançar.

Tomou um gole de água e fitou Erika.

—O que isso significa exatamente ainda é um pouco vago para mim. Vocês não são um partido político, não são uma organização sindical. Não têm contas a prestar a ninguém a não ser vocês mesmos. Mas apontam para falhas na sociedade e não hesitam em perturbar as personalidades que não lhes agradam. Vocês, muitas vezes, querem mudar as coisas. Mesmo que finjam ser uns cínicos e uns niilistas, é a moral de vocês, e mais nada, que aponta o rumo da revista, e tive a oportunidade de constatar que a moral de vocês é muito especial. Não sei que nome dar a isso, mas a Millennium tem alma E o único conselho administrativo de que me orgulho de participar.

Calou-se e ficou em silêncio por tanto tempo que Erika, de repente, começou a rir.

—Isso é muito bacana. Mas você ainda não respondeu à pergunta.

—Eu me sinto bem na companhia de vocês, me faz um bem incrível participar disto aqui. É a coisa mais maluca e esquisita que já vivenciei. Se quiserem que eu fique, para mim será um prazer.

—Bem - disse Christer. —Nós discutimos todos os aspectos e estamos todos de acordo. Vamos romper o contrato hoje e comprar sua parte de volta.

Os olhos de Harriet se arregalaram ligeiramente.

—Vocês querem se livrar de mim?

—Quando assinamos o contrato, estávamos com o pescoço na forca, só esperando que puxassem a corda. Não tínhamos escolha. Desde então, ficamos só esperando o dia de poder comprar de volta a parte de Henrik Vanger.

Erika abriu uma pasta e pôs sobre a mesa uns documentos que ela empurrou na direção de Harriet Vanger com um cheque no valor exato indicado por Harriet. Esta percorreu o contrato com os olhos. Sem uma palavra, pegou uma caneta e assinou.

—Pronto - disse Erika. —Simples como o quê. Eu queria agradecer ao Henrik Vanger por esse tempo que passamos juntos e sua contribuição para a Millennium. Obrigada, desde já, por transmitir isso a ele.

—Vou transmitir - respondeu Harriet Vanger em tom neutro.

Ela não demonstrava o que sentia, mas estava ao mesmo tempo magoada e profundamente decepcionada por eles a terem deixado dizer que gostaria de permanecer no conselho para em seguida a expulsarem com tamanha leviandade. Parecia tão desnecessário, não dava para entender.

—Por outro lado, gostaria de chamar sua atenção para um outro contrato, bem diferente - disse Erika Berger.

Pegou outro maço de papéis e o empurrou sobre a mesa.

—Queríamos saber se você gostaria de se tornar pessoalmente sócia da Millennium. O custo é exatamente a quantia que você acaba de receber. A diferença é que este contrato não estipula prazo nem tem cláusulas de exclusão. Você entraria na empresa como sócia efetiva, com responsabilidades e deveres iguais aos nossos.

Harriet ergueu as sobrancelhas.

—Por que proceder assim?

—Porque cedo ou tarde teríamos que passar por isso - disse Christer Malm. —Poderíamos ir renovando o outro contrato ano após ano, de uma assembléia para outra, ou até a gente brigar para valer no conselho e expulsar você. Era imprescindível uma revisão.

Harriet se apoiou num cotovelo e perscrutou-o com o olhar. Seus olhos passaram em seguida para Mikael e Erika.

—Acontece que assinamos o contrato com o Henrik por pura necessidade econômica - disse Erika. —Já este novo contrato nós estamos propondo porque é nosso desejo. E, contrariamente ao que estipulava o anterior, não vai ser muito fácil tirar você no futuro.

—Isso faz uma diferença enorme para a gente - disse Mikael em voz baixa.

Essa foi sua única contribuição na discussão.

—A gente simplesmente acha que você traz para a Millennium algo mais do que as garantias econômicas ligadas ao nome Vanger - disse Erika Berger. —Você é uma pessoa sensata e ponderada e encontra soluções construtivas. Até agora esteve retraída, como um observador de passagem. Mas você traz a esta diretoria uma estabilidade e uma firmeza que nunca tivemos antes. Você entende de negócios. Você um dia me perguntou se podia confiar em mim, e eu me fazia mais ou menos a mesma pergunta a seu respeito. Hoje nós duas sabemos onde estamos pisando. Gosto muitíssimo de você - todos nós gostamos. Não queremos você aqui por uma obrigação formulada e registrada em papel num momento de desespero. Queremos você como nossa parceira e sócia efetiva.

Harriet pegou o contrato e o leu escrupulosamente linha por linha durante cinco minutos. Por fim, levantou a cabeça.

—E vocês três concordam com isso? - perguntou.

Os três aquiesceram. Harriet pegou a caneta e assinou. Empurrou o cheque para o outro lado da mesa. Mikael rasgou-o.

Os sócios da Millennium jantaram no Samirs Gryta em Tavastgatan. Um bom vinho e cuscuz de cordeiro constituíram o menu de uma reunião tranquila para festejar a nova sociedade. A conversa estava descontraída e Harriet, visivelmente mexida. Pairava no ar um leve toque de primeiro encontro, quando as duas partes sabem que algo vai acontecer, mas ainda não sabem exatamente o quê.

Às sete e meia da noite, Harriet Vanger deixou o restaurante, dizendo que precisava ir para o hotel dormir. Erika Berger tinha que ir para casa ao encontro do marido e acompanhou Harriet por um trecho do caminho. Despediram-se em Slussen. Mikael e Christer ainda se demoraram um pouco, até que chegou a vez de Christer se levantar e ir para casa.

Harriet Vanger pegou um táxi para o hotel Sheraton e subiu até seu quarto no sexto andar. Despiu-se, tomou banho, enxugou-se e enfiou o roupão oferecido pelo hotel. Depois se sentou diante da janela para apreciar a vista sobre Riddarholmen. Abriu um maço de Dunhill e acendeu um cigarro. Fumando três ou quatro cigarros por dia, ela se via praticamente como uma não-fumante, o que lhe permitia desfrutar umas tragadas travessas sem se sentir culpada.

Às nove, bateram à sua porta. Ela abriu e deixou Mikael Blomkvist entrar.

—Safado - disse ela.

Mikael sorriu e deu-lhe um beijo.

—Por um segundo, achei mesmo que vocês estivessem me dispensando.

—A gente nunca teria te dispensado dessa maneira. Entendeu por que queríamos refazer o contrato?

—Sim. Parece bastante honesto.

Mikael abriu o roupão, pôs uma mão em seu seio e apertou suavemente.

—Safado - ela repetiu.

Da rua, ela avistara a janela iluminada, e agora ouvia música lá dentro. Lisbeth Salander parou em frente à porta onde estava escrito Wu. Deduziu que Miriam Wu ainda morava em sua quitinete na Tomtebogatan, próximo à Praça Sankt Eriksplan. Era noite de sexta-feira e Lisbeth, de certa forma, torcia para que Mimmi tivesse saído para alguma balada e que o apartamento estivesse escuro e silencioso. Restava saber se Mimmi ainda a queria e se estaria sozinha e disponível. Tocou a campainha.

Mimmi abriu a porta e ergueu as sobrancelhas, surpresa. Então se encostou no batente da porta, mão no quadril.

—Salander! Pensei que você tivesse morrido ou qualquer coisa assim.

—Qualquer coisa assim - disse Lisbeth.

—O que você quer?

—Existem muitas respostas para essa pergunta.

Miriam Wu deixou os olhos vagarem pela escada antes de tornar a pousá-los em Lisbeth.

—Fale uma delas, só para eu ver.

—Bem, conferir se você ainda está solteira e se gostaria de companhia hoje à noite.

Mimmi ficou boquiaberta alguns segundos, antes de repentinamente cair na gargalhada.

—Só conheço uma pessoa capaz de aparecer na minha casa depois de um ano e meio de silêncio para me perguntar se estou a fim de trepar.

—Quer que eu vá embora?

Mimmi parou de rir. Permaneceu calada por alguns segundos.

—Lisbeth... meu Deus, você está falando sério! Lisbeth aguardou.

Por fim, Mimmi suspirou e abriu toda a porta.

—Entre. Posso pelo menos te oferecer um café.

Lisbeth a seguiu e sentou num dos dois banquinhos que Mimmi tinha posto de um lado e outro de uma mesa de jantar, na entrada, bem atrás da porta. O apartamento de vinte e quatro metros quadrados compunha-se de uma sala exígua e de uma entrada onde mal e mal dava para colocar alguns móveis. A cozinha encontrara um lugar num cantinho da entrada, onde Mimmi instalara água corrente puxando um cano do banheiro.

Enquanto Mimmi preparava o café, Lisbeth a olhou disfarçadamente. Miram Wu era filha de uma chinesa de Hong Kong e um sueco de Boden. Usava o sobrenome da mãe. Lisbeth sabia que os pais dela continuavam casados e moravam em Paris. Mimmi estava matriculada no curso de sociologia da Universidade de Estocolmo. Tinha uma irmã mais velha que estudava antropologia nos Estados Unidos. Os genes de sua mãe se manifestavam sob a forma de cabelos negros lisos, que ela usava bem curtos, e vagas feições asiá­ticas. Do pai herdara olhos azuis que lhe davam um aspecto singular. A boca era larga, e ela tinha covinhas que não vinham nem da mãe nem do pai.

Tinha trinta e um anos. Gostava de ostentar roupas de vinil e frequentar boates que apresentavam shows, dos quais ela própria às vezes participava. Lisbeth não punha os pés numa boate desde os dezesseis anos.

Além de fazer sociologia, Mimmi trabalhava um dia por semana como vendedora na Domino Fashion, numa rua transversa da Sveavágen. A clientela da Domino tinha uma necessidade vital de roupas provocativas, do tipo uniforme de enfermeira de látex ou conjunto de bruxa em couro preto, e a loja respondia pelo design e fabricação dessas peças. Mimmi era coproprietária da butique com umas amigas, o que representava alguns milhares de coroas por mês para reforçar o crédito estudantil. Lisbeth Salander descobrira Mimmi alguns anos antes, quando ela se apresentava num show durante a Gay Pride; mais tarde naquela noite cruzara com ela numa barraca de cerveja. Mimmi usava um vestido esquisito de plástico verde-limão, que mais mostrava do que escondia. Lisbeth teve dificuldade em encontrar alguma nuança erótica naquela vestimenta, mas estava bêbada o bastante para, de repente, sentir vontade de dar em cima de uma mulher fantasiada de limão. Para a imensa surpresa de Lisbeth, o limão concedera-lhe um olhar e a beijara sem nenhum constrangimento, dizendo: Quero você! Tinham ido para a casa de Lisbeth e feito amor a noite inteira.

Eu sou assim — disse Lisbeth. — Caí fora para me afastar de tudo e de todos. Deveria ter me despedido de você.

Pensei que tinha acontecido alguma coisa com você. Mas é verdade que a gente não vinha tendo muito contato nos últimos meses antes de você sumir.

Eu estava superocupada.

Você é mesmo uma garota misteriosa. Nunca fala de você, não sei onde você trabalha, e eu não sabia para quem ligar quando parou de atender o celular.

—No momento estou sem nenhum trabalho específico e, dá licença, você era exatamente igual a mim. Queria trepar comigo, mas não estava particularmente interessada em mim, e prefere viver sozinha. Não é verdade? Mimmi olhou para Lisbeth.

—É verdade - disse por fim.

—E comigo era igual. Eu queria trepar, mas não queria ser um casal com você. Eu nunca prometi nada.

—Você mudou - disse Mimmi.

—Nem tanto.

—Parece mais velha. Mais madura. Está vestida diferente. E recheou o sutiã com alguma coisa.

Lisbeth se remexeu na cadeira, mas não respondeu. Mimmi acabava de tocar no ponto sensível, e ela não conseguia definir como ia explicar o assunto para as pessoas que a conheciam. Mimmi a tinha visto nua e necessariamente iria notar uma mudança. Por fim, baixou os olhos e murmurou:

—Eu mandei colocar uns seios.

—O que você está dizendo?

Lisbeth ergueu os olhos e falou mais alto, sem perceber o tom desafiador que estava adotando.

—Estive numa clínica, na Itália, para fazer uns implantes. Foi por isso que eu sumi. Depois, eu simplesmente continuei viajando. Agora estou de volta.

—Está brincando?

Lisbeth fitou Mimmi com um olhar inexpressivo.

—Ah, que boba que eu sou. Você nunca brinca mademoiselle Spock.

—Eu sou assim e não pretendo me desculpar. Estou sendo honesta com você. Se quiser que eu vá embora, é só dizer. Quer que eu vá embora?

—Espera aí, você realmente fez implante de seios?

Lisbeth meneou a cabeça. Mimmi Wu caiu na gargalhada. Lisbeth murchou.

—Seja como for, você nem pense em ir embora sem eu ver. Por favor, minha linda. Please.

—Mimmi, eu sou assim. Você também. Você dá em cima de tudo o que em seios, e até de alguém como eu, que não tinha seio nenhum. Por isso é que eu gostava tanto de trepar com você. Você não botava o nariz nas minhas histórias e se eu estivesse ocupada procurava outra. E você não dá a mínima para o que as pessoas acham de você.

Mimmi meneou a cabeça. Entendera que era lésbica já na época do colégio e, depois de alguns tateios difíceis, fora finalmente iniciada nos mistérios do erotismo aos dezessete anos, quando, por acaso, acompanhara uma amiga a uma festa organizada pela Associação pela Igualdade Sexual de Göteborg. A partir dali, nunca sequer cogitara viver de outra maneira. Uma única vez, estava então com vinte e três anos, tentara fazer amor com um homem. Cumprira o ato e fizera tudo aquilo que se esperava dela. Não sentira prazer algum. Em compensação, as mulheres, de todo tipo e formato, despertavam nela um desejo infinito. Ela pertencia também à minoria dentro da minoria das que não experimentavam nem casamento, nem fidelidade, nem noites aconchegantes em casa.

—Voltei para a Suécia faz umas poucas semanas. Só queria saber se preciso sair caçando por aí ou se você ainda está topando.

Mimmi se levantou e se acercou de Lisbeth. Inclinou-se e beijou-a suavemente na boca.

Eu pretendia trabalhar hoje à noite. Abriu o primeiro botão da camisa de Lisbeth.

—Puxa vida...

Beijou-a de novo e abriu outro botão.

—Eu tenho que ver isso. Mais um beijo.

—Que bom que você voltou.

Harriet Vanger adormeceu por volta das duas da manhã, enquanto Mikael Blomkvist ficou acordado escutando sua respiração. Acabou se levantando e roubando um cigarro na bolsa dela. Sentou-se, nu, numa cadeira ao lado da cama e ficou olhando para ela.

Mikael não planejara tornar-se amante ocasional de Harriet. Pelo contrário, depois do período passado em Hedestad, sua vontade era manter distância da família Vanger. Reencontrara-se com Harriet na primavera, nas reuniões do conselho administrativo, e mantivera uma distância polida; cada um conhecia os segredinhos do outro e os guardava para si, mas, a não ser pelas obrigações de Harriet na diretoria da Millennium, nada mais os ligava em termos de trabalho.

No ano anterior, depois de meses sem aparecer em sua cabana de Sandham, Mikael passara um tempo lá no feriado de Pentecostes, só para ficar em paz, sentar em frente ao mar e ler um romance policial. Na sexta-feira à tarde, poucas horas depois de sua chegada, quando foi a pé até o quiosque para comprar cigarros, topou inopinadamente com Harriet Vanger. Ela sentira vontade de se afastar de Hedestad e fizera uma reserva de fim de semana no hotel de Sandham, lugar que não via desde a infância. Tinha dezesseis anos quando fugira da Suécia, e cinquenta e três quando voltara depois que Mikael encontrara sua pista.

A surpresa de se encontrarem assim por acaso tinha sido mútua. Depois de algumas frases banais, ela se calou, constrangida. Mikael conhecia a história dela. E ela sabia que ele cedera em seus princípios para encobrir os terríveis segredos da família Vanger. Entre outras coisas, para poupá-la.

Mikael a convidara para conhecer sua cabana. Tinham ficado um bom tempo no pontão, batendo papo. Era a primeira vez que conversavam seriamente depois que ela voltara para a Suécia. Mikael tinha que fazer a pergunta.

—O que vocês fizeram com tudo aquilo que estava no porão de Martin Vanger?

—Você quer mesmo saber? Ele meneou a cabeça.

—Eu mesma fiz a faxina. Queimei tudo o que era possível queimar. Mandei derrubar a casa. Não teria conseguido morar lá, nem vender ou deixar outra pessoa morar ali. Para mim, ela estava totalmente associada ao mal. Pretendo mandar construir outra casa, menor, naquele terreno.

—E ninguém reclamou quando você mandou derrubar? Afinal, era uma magnífica mansão moderna.

Ela sorriu.

—Dirch Frode espalhou o boato de que havia tamanho problema de umidade na casa que ficaria mais caro mandar consertar.

Dirch Frode era o advogado e faz-tudo da família Vanger.

—Como vai o Frode?

—Está para fazer setenta anos. Eu o mantenho ocupado.

Jantaram juntos e Mikael de repente se deu conta de que Harriet estava lhe contando os detalhes mais íntimos e pessoais de sua vida. Ele a interrompeu e perguntou por quê. Ela refletiu um instante e respondeu que talvez ele fosse a única pessoa no mundo de quem não tinha motivo para esconder o que quer que fosse. Além do quê, achava difícil guardar segredos de um menino do qual fora baby-sitter quarenta anos antes.

Ela experimentara o sexo com três homens em sua vida. Primeiro seu pai, depois seu irmão. Matara o pai e fugira para longe do irmão. De um jeito ou de outro, sobrevivera, encontrara um homem e construíra uma vida nova.

—Ele era carinhoso e muito amoroso. A gente não... quero dizer, a gente não tinha uma vida íntima exuberante, mas ele era honesto e me dava segurança. Fui feliz com ele. Vivemos juntos vinte anos, até ele ficar doente.

—Por que nunca se casou de novo? Ela deu de ombros.

—Eu era mãe de dois filhos na Austrália, e proprietária de uma grande empresa agrícola. Imagino que eu nunca tive de fato disponibilidade para escapar em fins de semana românticos. Sexo nunca me fez falta.

Ficaram um momento calados.

—Está tarde. Preciso voltar para o hotel. Mikael concordou com a cabeça.

—Você está a fim de me seduzir?

—Sim - ele respondeu.

Mikael se levantou, pegou-a pela mão, eles entraram na cabana e subiram até o mezanino. Ela o deteve.

—Não sei bem como me comportar - disse. —Não é todo dia que faço essas coisas.

Passaram o fim de semana juntos e, desde então, viam-se uma noite a cada três meses, quando se reunia o conselho administrativo da Millennium. Não era uma relação muito prática nem duradoura. Harriet Vanger trabalhava vinte e quatro horas por dia e viajava a maior parte do tempo. Ela passava um mês na Suécia e outro na Austrália. Contudo, começara a apreciar aqueles encontros irregulares e esporádicos com Mikael.

Duas horas depois, Mimmi preparava o café enquanto Lisbeth permanecia deitada, nua e suada, em cima da colcha. Fumou um cigarro, contemplando as costas de Mimmi pela porta entreaberta. Invejava o corpo dela, com seus músculos impressionantes. Mimmi se exercitava três noites por semana, uma delas treinando luta tailandesa ou alguma coisa parecida com caratê, que deixara seu corpo naquele insolente condicionamento físico.

Ela era simplesmente gostosa. Não era bonita como uma modelo, mas era atraente. Mimmi adorava provocar e excitar. Quando se fazia de louca numa festa, vestida com seus trajes singulares, conseguia fascinar qualquer pessoa. Podia seduzir quem quisesse. Lisbeth não entendia por que Mimmi se interessava por uma bobinha anoréxica como ela.

Mas ficava contente que fosse assim. Trepar com Mimmi era tão libertador que Lisbeth se soltava, gozava, dava e tomava.

Mimmi voltou com duas canecas e as colocou sobre um banquinho. Subiu na cama e se inclinou para beijar um dos seios de Lisbeth.

—Bem, dão para o gasto - disse.

Lisbeth não falou nada. Olhou para os seios de Mimmi, diante de seus olhos. Mimmi também tinha seios um tanto pequenos, mas pareciam totalmente naturais no corpo dela.

—Sinceramente, Lisbeth, você está mais do que atraente.

—Não brinque comigo. Os seios não mudam nada, mas pelo menos agora eu tenho seios.

—Você tem uma fixação com corpo.

—Logo quem falando, você se exercita feito uma maluca.

—Eu me exercito feito uma maluca porque gosto de me exercitar. É que nem tomar uma dose, quase tão forte como sexo. Você devia experimentar.

—Eu faço boxe - disse ela.

—Sei. Você só ia de dois em dois meses, e isso porque sentia um prazer maligno em encher de porrada aqueles babacas que ficavam se pavoneando. Isso não é treinar para se sentir bem.

Lisbeth deu de ombros. Mimmi se escarranchou em cima dela.

—Lisbeth, você é tão egocêntrica e fixada no próprio corpo que até me irrita. Tente entender: se eu gostava de ter você na minha cama, não era pelo seu físico, mas pelo seu comportamento. Para mim, você é tremendamente sexy. E você sabe como é que eu funciono.

—Você também. Por isso estou voltando para você.

—Então não é amor? - perguntou Mimmi com uma voz fingidamente magoada.

Lisbeth balançou a cabeça.

—Você está com alguém?

Mimmi hesitou um instante antes de menear a cabeça.

—Pode ser. De certa forma. Pode-se dizer que sim. É meio complicado.

—Não estou te perguntando mais nada.

—Eu sei. Eu é que quero falar. Digamos que estou com uma mulher que trabalha na faculdade, um pouco mais velha que eu. Está casada há vinte anos e a gente, de certa forma, se encontra escondido do marido dela. Sabe como é, casarão no subúrbio, essa coisa toda. Uma sapata enrustida.

Lisbeth assentiu com a cabeça.

—O marido dela viaja um bocado, de modo que a gente se encontra de tempos em tempos. Já dura desde o outono e está meio que começando a cair na rotina. Mas ela é realmente bonita. Fora isso, continuo me encontrando com o pessoal de sempre, claro.

—A minha pergunta, na verdade, era: posso voltar aqui para te ver? Mimmi fez que sim com a cabeça.

—Sim, quero muito que você me dê notícias.

—Mesmo que eu suma de novo por seis meses?

—Mantenha contato. Faço questão de saber se você ainda está viva. E, acredite se quiser, lembro do dia do seu aniversário.

—Sem cobranças? Mimmi suspirou e sorriu.

—Sabe, você é uma mulher com quem eu poderia viver. Você ia me deixar na minha quando me dá vontade de ficar na minha.

Lisbeth não disse nada.

—Além do quê, na verdade, você não é lésbica. Não de fato. Bissexual, talvez. Acho que, acima de tudo, você é difícil de definir sexualmente. Ou seja: você gosta de sexo, não importa com quem seja. Tenho a impressão de que você, antes de mais nada, é um fator de caos permanente.

—Eu não sei o que eu sou — disse Lisbeth. — Mas voltei para Estocolmo e não sou muito boa em relacionamentos. Resumindo, não conheço absolutamente ninguém aqui. Você é a primeira pessoa com quem eu estou falando desde que cheguei.

Mimmi encarou-a com um jeito sério.

Você está mesmo querendo conhecer pessoas? Você, a mulher mais anônima e inacessível que eu conheço? Ficaram um momento caladas.

Mas esses seios novos estão realmente ótimos.

Pôs um dedo sob um mamilo e puxou a pele.

— Ficam muito bem em você. Não são nem muito grandes nem muito pequenos.

Lisbeth suspirou de alívio ao ver que as críticas iam pelo caminho certo.

— E, quando a gente toca, parecem de verdade.

Ela apertou com tanta força que Lisbeth abriu a boca, sem fôlego. Elas se olharam. Então Mimmi se inclinou e a beijou gulosamente. Lisbeth apertou Mimmi junto a si. O café esfriou antes que elas o tomassem.

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