5. DOMINGO 10 DE ABRIL
Mikael Blomkvist passara a noite de sábado para domingo na cama com Erika Berger. Não fizeram amor, ficaram apenas conversando. Grande parte da conversa girou em torno dos detalhes do caso Zalachenko. A confiança entre eles era tal que Mikael não se importava nem um pouco com o fato de Erika ir trabalhar num jornal concorrente. E Erika não tinha nenhuma intenção de roubar a matéria dele. Aquele furo era da Millennium, e ela só sentia certa frustração por não participar daquele número. Teria gostado de encerrar com ele seus anos na Millennium.
Conversaram também sobre o futuro e o que a nova situação iria acarretar. Erika estava decidida a manter suas ações na Millennium e permanecer no conselho administrativo. Em compensação, ambos entendiam que ela obviamente não poderia estar à par do trabalho da redação.
— Me dê alguns anos no SMP e... quem sabe? Talvez eu ainda volte para a Millennium quando a minha aposentadoria estiver chegando.
E conversaram sobre sua própria relação complicada. Não tinham a menor vontade de modificar seus hábitos, mas parecia claro que não iam poder se ver com a mesma freqüência. Ia ser como era nos anos 1980, antes de surgir a Millennium, quando ainda trabalhavam em lugares diferentes.
— A solução vai ser a gente marcar um ponto de encontro — concluiu Erika com um sorrisinho.
No domingo de manhã, despediram-se às pressas antes de Erika voltar para junto do marido, Lars Beckman.
— Não sei o que dizer — disse Erika. — Mas estou vendo todos os sinais de que você está totalmente absorvido por uma matéria, e o resto fica em segundo plano. Sabia que você se comporta como um psicopata quando está trabalhando?
Mikael sorriu e lhe deu um beijo.
Depois que Erika saiu, ele passou a manhã ligando para o Hospital Sahlgrenska para tentar obter alguma informação sobre o estado de Lisbeth Salander. Como todos se negavam a fornecê-la, acabou ligando para o inspetor Marcus Ackerman, que ficou com pena dele e contou que, considerando as circunstâncias, o estado de Lisbeth era satisfatório e que os médicos estavam relativamente otimistas. Mikael perguntou se podia visitá-la. Ackerman respondeu que Lisbeth Salander estava detida por decisão do procurador-geral da nação e que não estava autorizada a receber visitas, mas que, por enquanto, a questão ainda era teórica. Devido a seu estado, não pudera sequer ser interrogada. Mikael conseguiu que Ackerman prometesse avisá-lo caso o estado de Lisbeth piorasse.
Mikael verificou as chamadas recebidas em seu celular e encontrou quarenta e duas ligações e mensagens de texto de vários jornalistas tentando contatá-lo com urgência. A notícia de que, além de estar intimamente envolvido nos acontecimentos, fora ele quem encontrara Lisbeth Salander e acionara o sos-Brigada vinha sendo objeto de intensas especulações na mídia nas últimas vinte e quatro horas.
Mikael apagou todas as mensagens dos jornalistas. Depois ligou para a sua irmã, Annika Giannini, e combinou almoçarem juntos naquele dia.
Em seguida ligou para Dragan Armanskij, presidente da empresa de segurança Milton Security. Conseguiu encontrá-lo, no celular, na sua residência em Lidingõ.
— Cara, você tem o dom de produzir belas manchetes — disse Armanskij secamente.
— Desculpe não ter ligado durante a semana. Recebi o recado de que você estava tentando falar comigo, mas não tive tempo...
— Fizemos nossa própria investigação aqui na Milton. E o Holger Palmgren me disse que você tinha umas informações. Mas parece que você está centenas de quilômetros à nossa frente.
Mikael hesitou um instante, não sabendo direito como colocar a situação.
— Posso confiar em você? — perguntou.
A pergunta pareceu surpreender Armanskij.
— Em que sentido?
— Você está do lado da Salander, ou não? Posso ter certeza de que você quer o bem dela?
— Ela é minha amiga. Como você sabe, isso não significa, necessariamente, que sou amigo dela.
— Eu sei. Mas o que estou perguntando é se você está disposto a ficar do lado dela no ringue e enfrentar os brutamontes que estão contra ela. E essa luta vai ter muitos assaltos.
Armanskij refletiu.
— Eu estou do seu lado — disse ele.
— Posso te dar umas informações e discutir uns pontos com você sem medo de que isso vaze para a polícia ou para qualquer outra pessoa?
— Só está fora de questão eu me envolver em alguma atividade criminosa — disse Armanskij.
— Minha pergunta não foi essa.
— Você pode confiar totalmente em mim desde que não me conte que está envolvido em alguma atividade criminosa ou algo do gênero.
— Para mim está bem assim. Precisamos nos encontrar.
— Estou indo para a cidade hoje. Podemos jantar juntos.
— Não, para mim não vai dar. Mas a gente podia se encontrar amanhã à noite. Precisamos conversar com calma, eu, você e talvez mais umas pessoas.
— Pode ser lá na Milton. Às seis da tarde está bem?
— Perfeito. Outra coisa... daqui a duas horas vou encontrar minha irmã, Annika Giannini. Ela está considerando a possibilidade de representar a Lisbeth, mas evidentemente não pode trabalhar de graça. Posso pagar parte dos honorários do meu bolso. A Milton Security poderia contribuir?
— A Lisbeth vai precisar de um advogado super competente. Com todo o respeito, não acho sua irmã a melhor escolha. Já conversei com o jurista responsável da Milton e ele vai procurar o advogado certo para isso. Pensei, por exemplo, em Peter Althin ou alguém assim.
— Errado. A Lisbeth precisa de um advogado bem diferente. Você vai entender depois que a gente conversar. Mas você poderia injetar algum dinheiro na defesa dela, se necessário?
— Eu já estava prevendo que a Milton contrataria um advogado para ela...
— Isso significa sim ou não? Eu sei o que aconteceu com a Lisbeth. Sei mais ou menos o que existe por trás disso tudo. Eu sei o porquê. E tenho um plano de ataque.
Armanskij riu.
— Está bem. Vou ouvir sua proposta. Se eu não gostar, caio fora.
— Você por acaso pensou na minha proposta de representar a Lisbeth Salander? — perguntou Mikael depois de dar um beijo na irmã e de o café e os sanduíches terem sido servidos.
— Pensei. E me vejo obrigada a recusar. Você sabe que não atuo na área criminal. Mesmo que ela seja inocentada dos assassinatos pelos quais foi procurada, vai haver uma lista imensa de acusações. Ela vai precisar de alguém de mais gabarito, com uma experiência que eu não tenho.
— Está enganada. Você é advogada e sua competência é mais que reconhecida nas questões dos direitos da mulher. Sei que é exatamente a advogada de que ela precisa.
— Mikael... acho que você não está sacando muito bem o que isso significa. Trata-se de um caso criminal complexo, não de um simples caso de maus-tratos ou assédio sexual. Se eu aceitar defendê-la, a gente corre o risco de provocar uma catástrofe.
Mikael sorriu.
— Acho que você não entendeu aonde eu quero chegar. Se a Lisbeth fosse ser julgada pelos assassinatos do Dag e da Mia, eu contrataria um advogado do estilo do Silbersky ou outro peso-pesado qualquer da criminalística.
Mas esse processo vai tratar de coisas muito diferentes. E você é a melhor advogada que posso imaginar para esse caso. Annika Giannini suspirou.
— Bem, então seria melhor você me explicar.
Conversaram durante quase duas horas. Quando Mikael terminou, Annika Giannini estava convencida. Então Mikael pegou o celular e ligou para Marcus Ackerman em Gõteborg.
— Olá. É o Blomkvist de novo.
— Ainda não tenho nenhuma notícia da Salander — disse Ackerman, irritado.
— Bem, na atual situação notícia nenhuma já é uma boa notícia. Em compensação, eu tenho uma novidade.
— Ah, é?
— E. Ela tem uma advogada, o nome dela é Annika Giannini. Está aqui na minha frente, vou passar para ela.
Mikael passou o celular para a irmã.
— Bom dia. Aqui fala Annika Giannini, e me pediram que representasse a Lisbeth Salander. Portanto preciso entrar em contato com a minha cliente para que ela me aceite como defensora. E preciso do número de telefone do procurador.
— Entendo — disse Ackerman. — Achei que já tinha sido indicado um advogado para ela.
— Hã, hã. E alguém perguntou para a Lisbeth Salander o que ela acha? Ackerman hesitou.
— Na verdade, ainda não tivemos condições de nos comunicar com ela. Esperamos falar com ela amanhã, se seu estado permitir.
— Melhor assim. Então, estou declarando aqui e agora que, a menos que a senhorita Salander seja contra, podem me considerar a advogada dela. Não podem interrogá-la sem que eu esteja presente. Só podem ir falar com ela e perguntar se ela me aceita como advogada ou não. Entendido?
— Sim — disse Ackerman, soltando um suspiro. Ele não sabia direito como estava a situação em termos jurídicos. Pensou um pouco e continuou: — Antes de mais nada, a gente queria perguntar para a Salander se ela tem idéia de onde possa estar o Ronald Niedermann, o assassino do policial. Tudo bem se eu perguntar isso mesmo sem a sua presença?
Annika Giannini hesitou.
— Está bem... Podem perguntar, se for para ajudar a polícia a localizar o Niedermann. Mas não mencionem nada relacionado com eventuais processos ou acusações contra ela. Estamos combinados?
— Acho que sim.
Marcus Ackerman deixou imediatamente a sua sala, subiu a escada e foi bater à porta de Agneta Jervas, que dirigia o inquérito preliminar. Relatou a conversa que acabava de ter com Annika Giannini.
— Eu não sabia que a Salander tinha um advogado.
— Nem eu. Mas a Giannini foi contratada pelo Mikael Blomkvist. Não é certo que a Salander esteja sabendo.
— Mas a Giannini não trabalha na área criminal. Ela lida com direitos da mulher. Assisti a uma palestra dela uma vez, ela é muito competente, mas nem um pouco adequada para este caso.
— Isso quem tem que decidir é a Salander.
— Sendo assim, posso ter de contestar essa escolha diante do tribunal. É importante para a Salander contar com um defensor de fato, e não com uma estrela das primeiras páginas dos jornais. Humm. Além disso, a Salander é tida como uma maior incapacitada. Não sei direito o que se aplica nesse caso.
— O que a gente faz?
Agneta Jervas refletiu um instante.
— Que confusão! Não sei bem, afinal de contas, quem vai cuidar desse caso. Talvez seja repassado para o Ekstrõm em Estocolmo. Mas ela precisa de um advogado. Está bem... pergunte a ela se aceita a Giannini.
Quando chegou em casa, por volta das cinco da tarde, Mikael abriu o iBook e retomou o texto que tinha começado a redigir no hotel. Trabalhou sete horas seguidas, até conseguir identificar os principais furos da história. Ainda tinha um bocado de pesquisa pela frente. Um dos aspectos que os documentos existentes não ajudavam a esclarecer era que elementos da Sapo, afora Gunnar Bjõrck, tinham se juntado para internar Lisbeth Salander no hospício. Ele tampouco conseguia definir a natureza da relação entre Bjõrck e o psiquiatra Peter Teleborian.
Um pouco depois da meia-noite, desligou o computador e foi se deitar. Pela primeira vez em várias semanas, sentiu que poderia relaxar e dormir tranqüilamente. Já tinha uma matéria. Por mais pontos de interrogação que ainda existissem, já contava com material suficiente para desencadear uma avalanche de manchetes.
Sentiu um desejo súbito de ligar para Erika Berger e colocá-la a par da situação. Então lembrou que ela não trabalhava mais na Millennium. Com isso, dormir já se tornou mais difícil.
Na estação central de Estocolmo, o homem de pasta marrom desceu devagar do trem das sete e meia da noite proveniente de Gõteborg e permaneceu um momento parado na multidão até se situar. Iniciara sua viagem em Laholm, pouco depois das oito da noite, rumo a Gõteborg, onde fizera uma parada para almoçar com um velho conhecido antes de seguir para Estocolmo. Fazia dois anos que não vinha a Estocolmo, e na verdade não planejara voltar algum dia. Embora tivesse morado ali durante a maior parte da sua vida profissional, sempre se sentira um estranho no ninho na capital, sentimento que só fora aumentando a cada visita feita desde que se aposentara.
Atravessou devagar o saguão central da estação, comprou os jornais vespertinos e duas bananas na banca de jornal, e contemplou pensativamente duas muçulmanas de lenço que passavam por ele a toda pressa. Não tinha nada contra mulheres de lenço. Se as pessoas queriam se fantasiar, problema delas. Mas o incomodava elas fazerem questão de se fantasiar em plena Estocolmo.
Percorreu a pé os trezentos metros até o Hotel Frey, ao lado do antigo Correio Central na Vasagatan. Sempre se hospedava ali em suas raras visitas a Estocolmo. Era um hotel central e limpo. E além do mais barato, o que era uma necessidade, pois ele próprio estava pagando a viagem. Reservara um quarto na véspera e apresentou-se com o nome de Evert Gullberg.
Assim que chegou a seu quarto, foi ao banheiro. Estava numa idade em que precisava se aliviar o tempo todo. Fazia vários anos que não passava uma noite inteira sem acordar para urinar.
Depois tirou o chapéu, um chapéu de feltro inglês verde-escuro com abas finas, e desfez o nó da gravata. Media um metro e oitenta e quatro e pesava sessenta e oito quilos, sendo, portanto, de constituição magra, raquítica até. Usava um paletó de pied-de-poule e uma calça cinza-escura. Abriu a pasta marrom e tirou duas camisas, uma gravata extra e a roupa íntima, que guardou na cômoda. Depois pendurou o casaco e o paletó nos cabides do armário atrás da porta.
Era muito cedo para deitar-se. Era muito tarde para se animar a fazer um passeio noturno, que de qualquer modo ele não iria apreciar. Sentou-se na indefectível cadeira de hotel e olhou em volta. Ligou a tevê, mas baixou o volume para ficar livre de todo barulho. Pensou em ligar para a recepção e pedir um café, porém lembrou que já era muito tarde. Em vez disso, abriu o minibar e serviu-se de uma garrafinha de Johnny Walker com algumas gotas de água. Abriu os jornais vespertinos e leu atentamente tudo o que se escrevera naquele dia sobre a caçada a Ronald Niedermann e o caso Lisbeth Salander. Depois de algum tempo, pegou um bloco encadernado em couro e fez algumas anotações.
O ex-chefe de gabinete da Sapo, Evert Gullberg, tinha setenta e oito anos e estava oficialmente aposentado havia catorze. Acontece que velhos espiões nunca morrem, apenas deslizam em meio às sombras.
Pouco depois do fim da guerra, Gullberg tinha dezenove anos e queria seguir carreira na Marinha. Prestou o serviço militar como aspirante a oficial da Marinha, sendo em seguida aceito para fazer a formação de oficial. Mas em vez de um posto tradicional, no mar, como esperava, foi designado para o serviço de informações da Marinha. Podia entender a necessidade de se vigiarem as transmissões inimigas na esperança de descobrir o que se tramava do lado de lá do Báltico, mas achava o trabalho tedioso e desinteressante. No entanto, na escola de intérpretes do Exército teve oportunidade de aprender russo e polonês. Seus conhecimentos lingüísticos foram um dos motivos que o levaram a ser recrutado em 1950 pela Polícia de Segurança. Era a época em que Georg Thulin, homem de uma honestidade inquestionável, dirigia a 3ª. Brigada Policial do Estado. Quando assumiu o cargo, o orçamento global da polícia secreta somava dois milhões e setecentas mil coroas e o efetivo era de exatamente noventa e seis pessoas.
Quando Evert Gullberg se aposentou oficialmente, o orçamento da Sapo ultrapassava os trezentos e cinqüenta milhões de coroas e ele não saberia dizer ao certo quantos funcionários havia na Casa.
Gullberg tinha passado a vida no serviço secreto nacional, ou pelo menos a serviço do bom povo social-democrata. Uma ironia do destino, já que em todas as eleições ele optara fielmente pelos moderados, com exceção de 1991, quando votara contra eles de forma consciente, por considerar Carl Bildt uma catástrofe da real politik. Naquele ano, conformara-se em dar seu voto a Ingvar Carlsson. Aqueles anos do melhor governo que a Suécia já tivera, quatro anos sob a direção dos moderados, confirmaram igualmente todos os seus temores. O governo moderado constituíra-se na época do desmoronamento da União Soviética, e, na sua opinião, não havia regime mais mal preparado para enfrentar e tirar proveito das novas possibilidades políticas na arte da espionagem que haviam surgido no Leste. O governo de Bildt, pelo contrário, evocara razões econômicas para reduzir o escritório soviético e, no lugar, investir na Bósnia e na Sérvia — como se a Sérvia pudesse algum dia se tornar uma ameaça para a Suécia! O resultado fora a impossibilidade de plantar, em Moscou, informantes a longo prazo, e no dia em que o clima voltasse a ficar tenso — o que, na opinião de Gullberg, era inevitável — surgiriam mais uma vez exigências políticas extravagantes em relação à Sapo e ao serviço militar de informações, como se fosse possível formar agentes num passe de mágica.
Gullberg iniciara sua carreira no escritório russo da 3ª. Brigada da polícia do Estado e depois de dois anos numa repartição pudera dar seus primeiros e hesitantes passos no terreno como adido militar com patente de capitão, na embaixada sueca em Moscou, entre 1952 e 1953. Curiosamente ele seguia os mesmos passos de outro espião famoso. Alguns anos antes, seu cargo havia sido ocupado por um oficial até bem conhecido, o coronel Stig Wennerstróm.
De volta à Suécia, Gullberg trabalhara na contra-espionagem e, dez anos depois, era um dos agentes mais jovens da Sapo que, em 1963, na equipe dirigida pelo diretor de intervenções Otto Danielsson, prendera Wennerstróm e o conduzira à prisão perpétua no presídio de Lângholmen.
Quando a polícia secreta foi reestruturada sob o comando de Per Gunnar Vinge, em 1964, tornando-se um departamento de segurança da Direção Geral da Polícia Nacional — DGPN/Sapo, o número de funcionários começou a aumentar. Nessa época, fazia catorze anos que Gullberg trabalhava na Sapo, onde se tornara um dos veteranos de confiança.
Gullberg evitava usar o termo abreviado Sapo, preferindo dizer Polícia de Segurança. Com alguns colegas, ele falava Empresa ou Casa, ou simplesmente Departamento — mas nunca Sapo. Por um motivo simples. A missão mais importante da Casa fora, durantes anos, o controle de pessoas, ou seja, investigar e fichar cidadãos suecos suspeitos de ter opiniões comunistas e de traição à pátria. Na Casa, as expressões "comunista" e "traidor da pátria" eram usadas como sinônimos. A palavra "Sapo", que acabou afinal sendo adotada por todos, fora inicialmente criada pelo Clarté, um jornal comunista traidor da pátria, como um termo pejorativo para designar os caçadores de comunistas da polícia. E Gullberg tinha muita dificuldade em entender por que seu antigo chefe, P. G. Vinge, escolhera Fui chefe da Sapo de 1962 a 1970 como título de suas memórias.
A reestruturação de 1964 viria a ser decisiva para a carreira futura de Gullberg.
A transformação da polícia secreta em DGPN/Sapo significou que esta se transformou no que as notas do Ministério da Justiça qualificavam de organização policial moderna. Isso implicava novos recrutamentos, seguidos de intermináveis problemas de adaptação, o que, numa organização em expansão, levou o Inimigo a ter possibilidades muitíssimo mais fáceis de infiltração de agentes no Departamento. O que, por sua vez, acarretou a necessidade de reforçar o controle de segurança interna — a polícia secreta não podia mais ser um clube distinto constituído por antigos oficiais, onde todos se conheciam e o mérito mais comum de um novo recruta era ter um pai oficial.
Em 1963, Gullberg fora transferido da contraespionagem para o controle de pessoas, fortalecido pelo desmascaramento de Stig Wennerstrõm. Por essa época é que foram assentadas as bases do cadastro de opiniões, que, no final dos anos 1960, reunia fichas de mais de trezentos mil cidadãos suecos com opiniões políticas pouco convenientes. Mas o controle dos cidadãos suecos era uma coisa; aqui, tratava-se de descobrir um meio de exercer o controle de segurança no seio da própria DGPN/Sapo.
Wennerstrõm desencadeara uma avalanche de complicações para a polícia secreta do Estado. Se um coronel do Estado-Maior da Defesa havia conseguido trabalhar para os russos — sendo, ainda por cima, conselheiro do governo para assuntos relacionados a armas nucleares e política de segurança —, haveria como garantir que os russos não tinham também um agente infiltrado no seio da polícia secreta? A quem caberia assegurar que os diretores e outros responsáveis da Casa na verdade não trabalhavam para os russos? Em suma, quem deveria espionar os espiões?
Em agosto de 1964, Gullberg foi convocado, certa tarde, para uma reunião com o diretor-adjunto da Sapo, o chefe de gabinete Hans Wilhelm Francke. Além dele, participavam da reunião mais duas pessoas da alta esfera da Casa, o secretário-geral e o responsável pelo orçamento. No final daquele dia, a vida de Gullberg tinha adquirido um novo sentido. Ele fora escolhido. Atribuíram-lhe a responsabilidade de uma brigada recentemente criada com o nome provisório de Seção Especial, cuja sigla era SE. A primeira providência de Gullberg foi renomeá-la Seção de Análise. Funcionou durante alguns minutos, até o responsável pelo orçamento observar que SA não era muito melhor que SE. O nome definitivo da organização acabou sendo Seção de Análise Especial, SAE, chamada no dia a dia de Seção, diferentemente de Departamento ou Casa, que se aplicavam ao conjunto da Sapo.
Essa seção fora idéia de Francke. Ele a denominava a última linha de defesa — um grupo ultrassecreto que ocupava posições estratégicas dentro da Casa, embora fosse invisível, não aparecesse nos avisos internos nem nas previsões orçamentárias e não pudesse, desse modo, sofrer infiltrações. Sua missão: cuidar da segurança da nação. Francke tinha poder para tornar isso possível. Precisava contar com o responsável pelo orçamento e com o secretário-geral para criar essa estrutura oculta, mas todos eles eram soldados da velha escola e amigos, após dezenas de escaramuças com o Inimigo.
No primeiro ano, a organização era constituída apenas por Gullberg e três colaboradores escolhidos a dedo. No§.dez anos seguintes, a Seção foi crescendo até contar com onze pessoas; duas eram secretários administrativos da velha escola e as outras, caçadores de espiões profissionais. Numa hierarquia simplificada ao máximo, Gullberg era o chefe e os demais, colaboradores que se reuniam quase diariamente com o chefe. A eficiência era mais valorizada que o prestígio e a burocracia.
Formalmente, Gullberg era subordinado a uma extensa lista de pessoas na hierarquia abaixo do secretário-geral da Sapo, ao qual ele tinha de apresentar relatórios mensais, mas na prática ocupava uma posição única e detinha um poder extraordinário. Ele, e apenas ele, podia resolver investigar de perto as mais altas esferas da Sapo. Podia, se assim lhe aprouvesse, virar do avesso a vida do próprio Per Gunnar Vinge (o que ele de fato fez). Podia iniciar suas próprias investigações ou instalar escutas telefônicas sem ser obrigado a dar explicações ou recorrer às altas instâncias. Seu modelo era o lendário espião americano James Jesus Angleton, que ocupava uma posição similar na CIA e a que ele, por sinal, conhecera pessoalmente.
Na prática, a Seção foi se tornando uma micro-organização dentro do Departamento, acima e à margem do restante da Polícia de Segurança. Isso também trouxe conseqüências geográficas. A Seção contava com algumas salas em Kungsholmen, mas, por razões de segurança, foi inteiramente transferida para um apartamento particular de onze cômodos em Ostermalm. O apartamento foi discretamente transformado em salas fortes, que nunca ficavam sem tripulação, já que a fiel secretária, Eleanor Badenbrink, passou a habitar de modo permanente dois cômodos situados junto à porta de entrada. Badenbrink era um recurso inestimável em quem Gullberg tinha toda confiança.
Ao montar essa unidade, Gullberg e seus colaboradores evitaram qualquer tipo de visibilidade — eram financiados por um "fundo especial", porém não constavam em lugar nenhum da burocracia formal da Polícia de Segurança, ligada à direção-geral da Polícia Nacional ou ao Ministério da Justiça. O próprio diretor da DGPN/Sapo desconhecia a existência desses homens, os mais secretos entre os secretos, que tinham por missão gerir os casos mais secretos entre os mais secretos.
Por volta dos quarenta anos, portanto, Gullberg estava numa posição de não ter de prestar contas a ninguém e poder iniciar investigações sobre o que bem entendesse.
Desde o início, compreendeu que a Seção de Análise Especial corria o risco de se tornar um grupo politicamente nevrálgico. Sua missão era, no mínimo, um bocado vaga, e as instruções escritas, extremamente escassas. Em setembro de 1964, o primeiro-ministro Tage Erlander assinou uma diretriz estipulando a atribuição de uma verba para a Seção de Análise Especial, cuja missão era gerir investigações particularmente espinhosas e importantes para a segurança da nação. Foi um desses doze casos particularmente espinhosos que o diretor-adjunto da DGPN/Sapo, Hans Wilhelm Fracke, expôs numa reunião. O caso foi de imediato considerado secreto e arquivado no cadastro especial e igualmente secreto da DGPN/Sapo.
A medida do primeiro-ministro, porém, exigia que a Seção fosse uma instituição juridicamente reconhecida. Seu primeiro orçamento anual somava cinqüenta e duas mil coroas. Um orçamento minúsculo, o que o próprio Gullberg considerava um golpe de mestre. Dava a entender que a criação da Seção não passava de um fato em meio a tantos outros.
Num sentido mais amplo, a diretriz assinada pelo primeiro-ministro significava que ele reconhecia a necessidade de haver um grupo encarregado do "controle interno dos funcionários". Alguns poderiam igualmente interpretar essa assinatura como um aval do primeiro-ministro para a criação de um grupo que poderia também se encarregar do controle de "pessoas especialmente espinhosas" fora da Sapo, por exemplo o próprio primeiro-ministro. Esta última possibilidade é que criava dificuldades políticas potencialmente graves.
Evert Gullberg constatou que seu copo de Johnny Walker estava vazio. Não era particularmente afeito ao álcool, mas tinha sido um longo dia, uma longa viagem, e ele julgava ter chegado a um ponto da vida em que pouco importava se ele tomasse um ou dois uísques. Não precisava hesitar em encher o copo se lhe desse vontade. Serviu-se uma garrafinha de Glenfiddich.
O caso mais delicado fora, evidentemente, o de Olof Palme.
Gullberg recordava nos mínimos detalhes o dia das eleições de 1976. Pela primeira vez na história moderna, a Suécia tinha um governo de direita. Infelizmente, quem se tornou primeiro-ministro foi Thorbjõm Fálldin, e não Gosta Bohman, um homem da velha escola muitíssimo mais adequado. Mas o importante é que Palme fora derrotado e Evert Gullberg podia respirar aliviado.
A pertinência de Palme como primeiro-ministro fora objeto de mais de uma conversa nos corredores mais secretos da DGPN/Sãpo. Em 1969, Per Gunnar Vinge fora demitido depois de expressar sua opinião, partilhada por várias pessoas do Departamento, de que Palme talvez fosse um agente de informações a serviço da KGB russa. A convicção de Vinge não suscitou controvérsias no ambiente que reinava na Casa. Infelizmente, ele discutira o assunto de forma aberta com o governador Ragnar Lassinantti em uma visita à província de Norrbotten. Lassinantti levantara duas vezes as sobrancelhas e depois informara o gabinete ministerial, o que resultou na convocação de Vinge para uma entrevista particular.
Para a imensa indignação de Evert Gullberg, a questão dos eventuais contatos russos de Palme nunca obteve confirmação. Apesar das constantes tentativas no sentido de estabelecer a verdade e reunir provas definitivas — o revólver ainda fumegante —, a Seção jamais encontrou a menor evidência. Aos olhos de Gullberg, isso de modo algum demonstrava a inocência de Palme, e sim, pelo contrário, que ele talvez fosse um espião particularmente esperto e inteligente, pouco dado a repetir os erros cometidos por outros espiões russos. Palme continuava zombando deles ano após ano. Em 1982, o caso Palme voltara à tona quando ele se tomou primeiro-ministro. Depois, repercutiram os tiros de Sveavãgen, e a questão se tornou para sempre mera teoria.
O ano de 1976 fora problemático para a Seção. Dentro da DGPN/Sapo — entre as raras pessoas que sabiam da existência da Seção — começaram a surgir algumas críticas. Nos dez anos anteriores, um total de sessenta e cinco funcionários da Sapo tinham sido afastados da organização em virtude de uma suposta falta de confiabilidade política. Na maioria dos casos, contudo, os documentos eram de tal natureza que nada podia ser provado e, conseqüentemente, alguns chefes dos altos escalões começaram a achar que os funcionários da Seção eram uns paranóicos que enxergavam conspirações em tudo.
Gullberg ainda fervia por dentro quando se lembrava de um dos casos enfrentados pela Seção. Tratava-se de um homem recrutado pela DGPN/Sapo em 1968 e que Gullberg achava especialmente inadequado. Chamava-se Stig Bergling, um inspetor criminal e tenente do Exército sueco que mais tarde viria a se revelar coronel do GRO, o serviço russo de informações militares. Em quatro oportunidades, durante os anos seguintes, Gullberg tentou fazer com que Bergling fosse demitido, mas todas as suas tentativas foram ignoradas. Os ventos só mudaram em 1977, quando Bergling ficou sob suspeita mesmo fora da Seção. Tarde demais. Bergling foi o maior escândalo da história da Polícia de Segurança sueca.
A crítica em relação à Seção crescera durante a primeira metade dos anos 1970 e, em meados da década, Gullberg ouvira diversos comentários sobre uma redução de verbas e inclusive a insinuação de que aquela atividade toda não tinha a menor utilidade.
De forma geral, a crítica significava que o futuro da Seção estava comprometido. Naquele ano, a prioridade da DGPN/Sapo eram as ameaças terroristas, uma triste história do ponto de vista da espionagem que envolvia principalmente jovens perdidos que atuavam para elementos árabes ou pró--palestinos. A grande questão dentro da Sapo era se a atividade de controle das pessoas deveria receber verbas específicas para investigar cidadãos estrangeiros residentes na Suécia, ou se esse era um assunto exclusivo da Brigada dos Estrangeiros.
A partir dessa discussão burocrática um tanto obscura, surgira na Seção a necessidade de poder contar com um colaborador de confiança, encarregado de reforçar o controle dos colaboradores na Brigada dos Estrangeiros — e, sim, de espioná-los.
A escolha recaiu sobre um jovem funcionário que trabalhava na DGPN/ Sapo desde 1970 e cujo passado e credibilidade política permitiam supor que ele poderia ter um lugar entre os colaboradores da Seção. Na vida privada, era membro de uma organização chamada Aliança Democrática, mas que a mídia social-democrata qualificava de extrema-direita. Na Seção, isso não representava um defeito grave. Três outros colaboradores eram membros dessa organização, e a Seção tinha muito a ver com sua criação, além de contribuir um pouco com ela financeiramente. Pelo viés da Aliança Democrática é que o novo colaborador da Seção fora notado e recrutado. Seu nome era Gunnar Bjõrck.
No dia das eleições de 1976, quando Alexander Zalachenko se refugiara na Suécia e entrara na delegacia de Norrmalm pedindo asilo político, para Evert Gullberg foi de fato uma sorte ele ter sido recebido justamente pelo jovem Gunnar Bjõrck — encarregado de instruir os processos na Brigada dos Estrangeiros, um agente já envolvido com os segredos mais secretos.
Bjõrck tinha uma mente ágil. Percebeu de imediato a importância de Zalachenko e interrompeu o interrogatório. Colocou o desertor num quarto do Hotel Continental. Em seguida, Gunnar Bjõrck chamou Evert Gullberg para dar o alerta, e não seu chefe formal na Brigada dos Estrangeiros. O telefonema chegou numa hora em que as zonas eleitorais já estavam fechadas e todos os prognósticos indicavam a derrota de Palme. Gullberg acabava de chegar em casa e assistia à cobertura das eleições na tevê. Num primeiro momento, desconfiou da informação que aquele rapaz excitadíssimo lhe transmitia. Mas pouco depois dirigiu-se ao Hotel Continental para assumir o caso Zalachenko.
Naquele dia, a vida de Evert Gullberg mudara radicalmente. A palavra "secreto" adquiriu um novo significado e um novo peso. Ele percebeu a necessidade de montar uma estrutura em volta do dissidente.
Optou de saída por incluir Gunnar Bjõrck no grupo Zalachenko. Sábia e justa decisão, uma vez que Bjõrck já sabia da existência do dissidente. Era melhor tê-lo no grupo do que permitir que ele representasse lá fora um risco para a segurança. Assim, Bjõrck foi transferido do seu cargo oficial na Brigada dos Estrangeiros para uma sala no apartamento de Ostermalm.
Na agitação que se seguiu, Gullberg resolveu informar uma única pessoa dentro da DGPN/Sapo, o secretário-geral que já tinha acesso às atividades da Seção. O secretário-geral segurou a informação durante vários dias e depois acabou explicando a Gullberg que quem estava mudando de lado era um peixe tão grande que precisavam informar não só o diretor da DGPN/Sapo como também o governo.
O diretor da DGPN/Sapo, que acabara de assumir o cargo, tinha na época conhecimento da existência da SAE, mas só uma vaga idéia de suas reais atividades. Fora colocado no cargo apenas para dar uma limpa após o caso IB, e já estava a caminho de um cargo importante na hierarquia policial. Durante algumas entrevistas confidenciais, o diretor da DGPN/Sapo descobrira que a Seção era um grupo secreto criado pelo governo, que operava ao largo das reais atividades da Sapo e sobre o qual não se devia fazer nenhum tipo de pergunta. Como, na época, o diretor era um homem que tomava o maior cuidado em não fazer perguntas capazes de provocar respostas desagradáveis, contentara-se em menear a cabeça e aceitar que existia algo chamado SAE que nada tinha a ver com ele.
Gullberg não estava lá muito entusiasmado com a idéia de ter de falar sobre Zalachenko com o diretor, mas curvou-se à realidade. Enfatizou a necessidade premente de segredo absoluto, no que foi apoiado por seu interlocutor, e decretou medidas segundo as quais nem o próprio diretor da DGPN/Sapo poderia discutir o assunto em sua sala sem adotar procedimentos especiais de segurança. Ficou decidido que Zalachenko seria administrado pela Seção de Análise Especial.
Estava fora de cogitação informar o primeiro-ministro que deixava o cargo. Tendo em vista a agitação em torno da mudança de governo, o novo primeiro-ministro estava ocupado demais com a nomeação de seu ministério e negociando com os outros partidos de direita. Só um mês depois da formação do novo governo é que o diretor da DGPN/Sapo, acompanhado de Gullberg, foi até Rosenbad, na sede do governo, para informar Fálldin, o novo primeiro--ministro. Gullberg opusera-se até o fim a que o governo fosse informado, mas o diretor da DGPN/Sapo insistira — era constitucionalmente indefensável não informar o primeiro-ministro. Durante a reunião, Gullberg usara toda a sua eloqüência para convencer o primeiro-ministro da importância de não divulgar a existência de Zalachenko para além de sua sala — nem o ministro das Relações Exteriores, nem o ministro da Defesa, nem qualquer outro membro do governo poderia ficar sabendo.
Saber que um agente russo de peso buscara asilo político na Suécia mexera com Fálldin. O primeiro-ministro começou a evocar seu dever constitucional de discutir o assunto com, pelo menos, os presidentes dos dois outros partidos do governo de coalizão. Gullberg estava preparado para essa reação e jogara sua cartada mais consistente. Explicara em voz baixa que, se isso acontecesse, ele se veria obrigado a apresentar de imediato sua demissão. A ameaça surtiu efeito, pois isso significaria o primeiro-ministro ter de arcar pessoalmente com as conseqüências caso o fato viesse à tona e os russos enviassem um comando assassino para eliminar Zalachenko. E se a pessoa que respondia pela segurança de Zalachenko se sentira forçada a se demitir, uma revelação desse porte seria uma catástrofe tanto em termos políticos como de repercussão na imprensa para o primeiro-ministro.
Fálldin, ainda novato e hesitante em seu papel de chefe do governo, capitulou. Deu seu aval para uma diretriz, imediatamente inscrita no registro secreto, estipulando que a Seção responderia pela segurança e pelos interrogatórios de Zalachenko, e que a informação sobre sua existência não deveria sair do gabinete do primeiro-ministro. Ao assinar essa diretriz, Fãlldin demonstrava claramente que havia sido informado, mas também que não estava autorizado a falar sobre o assunto. Em suma, o que ele tinha a fazer era esquecer Zalachenko.
Fãlldin, contudo, insistira para que outra pessoa de seu gabinete fosse informada, um secretário de Estado cuidadosamente escolhido que atuasse como contato nos assuntos relacionados com o dissidente. Gullberg concordou. Não lhe seria difícil manipular um secretário de Estado.
O diretor da DGPN/Sapo estava satisfeito. O caso Zalachenko ficava, assim, coberto do ponto de vista constitucional, o que significava que ele também estava garantido. Gullberg também estava satisfeito. Conseguira criar uma quarentena que lhe permitia controlar o fluxo de informações. Ele era o único que controlava Zalachenko.
Voltando ao seu escritório em Ostermalm, Gullberg sentou-se à sua mesa e estabeleceu uma lista manuscrita das pessoas que sabiam da existência de Zalachenko. Afora ele próprio, nela constavam Gunnar Bjôrck; Hans von Rottinger, chefe de operações da Seção; Fredrik Clinton, diretor-adjunto; Eleanor Badenbrink, secretária da Seção; e outros dois colaboradores encarregados de reunir e analisar o conteúdo das informações que Zalachenko pudesse fornecer. Ao todo sete pessoas, que, nos anos seguintes, iriam constituir uma seção à parte dentro da Seção. Ele a batizou mentalmente de Grupo Interno.
Fora da Seção, sabiam do segredo o diretor da DGPN/Sapo, o diretor--adjunto e o secretário-geral. Doze pessoas ao todo. Nunca antes um segredo daquela importância fora conhecido por um círculo tão exclusivo.
Mas Gullberg logo se preocupou. Mais uma pessoa sabia do segredo. Bjõrck viera acompanhado de um jurista, Nils Bjurman. Estava fora de questão transformar Bjurman em colaborador da Seção. Além de Bjurman não ser um legítimo policial da Sapo — não passava de um estagiário —, não tinha os conhecimentos e a competência necessários. Gullberg pesou diferentes possibilidades e então optou por ir discretamente afastando Bjurman do caso. Ameaçou-o com prisão perpétua por alta traição caso deixasse escapar uma sílaba sequer a respeito de Zalachenko, corrompeu-o com promessas de missões futuras e com adulações que aumentaram o sentimento de importância de Bjurman. Cuidou para que obtivesse um cargo num renomado escritório de advocacia, assim como um volume de encargos que o mantivesse ocupado. O único problema era Bjurman ser tão medíocre e não saber explorar suas aptidões. Ao fim de dez anos, deixara o escritório de advocacia e abrira seu próprio escritório, com um funcionário, em Odenplan.
Ao longo dos anos, Gullberg manteve Bjurman sob uma discreta, mas constante vigilância. Só relaxou nesses cuidados no final dos anos 1980, quando, com o desmoronamento da União Soviética, Zalachenko deixou de ser um assunto prioritário.
Para a SAE, Zalachenko de início representou a promessa de uma pista para o enigma Palme, um caso que estava constantemente entre as preocupações de Gullberg. De modo que Palme fora um dos primeiros temas ventilados por Gullberg durante o extenso interrogatório.
Essa expectativa, porém, foi rapidamente pulverizada, já que Zalachenko nunca atuara na Suécia e não conhecia de fato o país. Em compensação, tinha ouvido falar num tal de "Corredor Vermelho", um político do alto escalão sueco, ou quem sabe escandinavo, que trabalhava para a KGB.
Gullberg montou uma lista de nomes que ele relacionava com Palme. Nela constavam Carl Lidbom, Pierre Schori, Sten Andersson, Marita Ulvskog e mais algumas pessoas. Ao longo de sua vida, Gullberg jamais deixou de voltar a essa lista, e jamais encontrou uma resposta.
Gullberg, de repente, estava brincando no pátio dos meninos mais velhos. Passaram a cumprimentá-lo com respeito no exclusivo clube dos guerreiros, em que todos se conhecem e os contatos se dão por intermédio de amigos pessoais e de confiança — e não pelos canais oficiais e intervenções burocráticas. Conheceu James Jesus Angleton e teve a oportunidade de tomar uísque num discreto clube londrino com o chefe do MI-6. Tinha se tornado um dos mais velhos.
A desvantagem de seu ofício é que nunca poderia revelar seus êxitos, nem mesmo em suas memórias póstumas. E vivia sempre com o receio de que o Inimigo reparasse em suas viagens e o pusesse sob vigilância — de que sem querer conduzisse os russos até Zalachenko.
Sob esse ponto de vista, Zalachenko era seu pior inimigo.
No primeiro ano, Zalachenko vivera num apartamento neutro de propriedade da Seção. Ele não constava em nenhum registro ou documento oficial, e o grupo Zalachenko acreditava ter muito tempo pela frente antes de ser obrigado a planejar seu futuro. Só na primavera de 1978 ele recebeu um passaporte com o nome de Karl Axel Bodin, junto com uma história minuciosamente montada — um verdadeiro passado falso passível de ser conferido nos cadastros suecos.
Mas era tarde demais. Zalachenko já tinha se metido com a desgraçada daquela puta da Agneta Sofia Salander, nascida Sjõlander, e se apresentara com seu nome verdadeiro. Para Gullberg, faltava algum parafuso na cabeça do seu protegido. Desconfiava que o dissidente russo queria ser desmascarado. Dava a impressão de querer se mostrar à luz dos refletores. Se não, como se explicava ele às vezes ser tão obtuso?
Eram as putas, eram os períodos de consumo exagerado de álcool, eram as brigas e altercações com os seguranças nos bares. Zalachenko foi detido três vezes pela polícia sueca por embriaguez, e duas por confusão em bares. E todas as vezes a Seção tinha de intervir discretamente para tirá-lo da encrenca, dar sumiço nos documentos e tratar de alterar os registros. Gullberg designou Gunnar Bjõrck para o papel de ama-seca. Seu trabalho consistia em servir de babá para o dissidente quase vinte e quatro horas por dia. Meio complicado, mas também era difícil não agir daquele modo.
Tudo poderia ter sido tranqüilo. No início dos anos 1980, Zalachenko tinha se acalmado e começava a se adaptar. A não ser pelo fato de não querer largar aquela puta da Salander — e, para piorar, ele agora era pai de duas meninas, Camilla e Lisbeth Salander.
Lisbeth Salander.
Gullberg pronunciou o nome com uma sensação de mal-estar.
Quando as meninas tinham nove, dez anos, Gullberg já sentia como que uma câimbra no estômago quando o assunto era Lisbeth Salander. Não precisava ser psiquiatra para perceber que ela não era normal. Gunnar Bjõrck relatara que ela era rebelde, violenta e agressiva com Zalachenko, e ainda por cima parecia não ter nenhum medo dele. Falava muito pouco, mas expressava de mil maneiras seu desagrado com aquele estado de coisas. Ela era um problema em potencial, porém nem em seus maiores delírios da imaginação
Gullberg conseguiria prever as proporções monumentais que aquilo tudo iria assumir. O que ele mais temia era que a situação da família Salander provocasse uma investigação social que acabasse pondo Zalachenko em foco. Gullberg pedia-lhe constantemente que rompesse com a família e sumisse da vida delas. Zalachenko prometia, mas nunca cumpria a promessa. Ele tinha outras putas. Muitas putas. No entanto, ao fim de alguns meses, sempre voltava para junto de Agneta Sofia Salander.
O idiota do Zalachenko. Um espião que permitia que seu pinto conduzisse sua vida sentimental não podia, evidentemente, ser um bom espião. Era como se Zalachenko estivesse, ou julgasse estar, acima das regras. Se pelo menos ele pudesse trepar com a mulher sem espancá-la sempre que a via, até daria para agüentar, mas o fato é que ele a maltratava sistematicamente. Parecia até que se comportava assim para desafiar os vigilantes do grupo Zalachenko, que ele demolia a mulher só para se divertir e atormentar o grupo.
Gullberg não tinha a menor dúvida de que Zalachenko era um escroto perverso, mas não tinha escolha. Os dissidentes do GRO realmente não nasciam em árvores. Ele só dispunha de um, o qual tinha consciência da própria importância.
Gullberg suspirou. O grupo Zalachenko assumira a função de comando de limpeza. Não dava para negar. Zalachenko sabia que podia tomar suas liberdades que depois os homens ajeitariam gentilmente os problemas. E quando se tratava de Agneta Sofia Salander, ele aproveitava a situação para ultrapassar todos os limites.
Entretanto, sinais de alerta não tinham faltado. Lisbeth Salander acabava de completar doze anos quando apunhalara Zalachenko. Claro, foram ferimentos superficiais, mas mesmo assim exigiram uma passagem no Hospital Sankt Gõran e a necessidade, para o grupo Zalachenko, de realizar uma limpeza considerável. Naquela vez, Gullberg tivera uma Conversa Muito Séria com Zalachenko. Explicou-lhe que ele não podia, em hipótese alguma, retomar o contato com a família Salander, e Zalachenko prometeu. Cumpriu a promessa por mais de seis meses, até que voltou a procurar Agneta Sofia Salander e lhe deu tamanha surra que ela acabou seus dias numa clínica. Mas o que Gullberg nunca teria imaginado é que Lisbeth Salander era uma psicopata ávida de sangue que sabia fabricar um coquetel Molotov. Aquele dia fora um caos absoluto. Seria de se esperar uma série de investigações, e toda a operação Zalachenko — quem sabe até toda a Seção — estava por um tênue fio. Se Lisbeth Salander falasse, Zalachenko poderia ser desmascarado. Se Zalachenko fosse desmascarado, não só uma série de operações em andamento na Europa nos últimos quinze anos corria o risco de naufragar, como a própria Seção arriscava-se a se tornar objeto de um inquérito oficial. O que precisava ser evitado a todo custo.
Gullberg estava preocupado. Um inquérito oficial faria o caso IB parecer uma inofensiva série de televisão. Se abrissem os arquivos da Seção, descobririam um bom número de situações não totalmente constitucionais, para não falar na vigilância sobre Palme e sobre outros sociais-democratas conhecidos, que se estendera por muitos anos. Isso acarretaria investigações sobre Gullberg e vários outros funcionários da Seção. Pior: jornalistas exaltados, sem pensar duas vezes, lançariam a teoria de que a Seção estava por trás do assassinato de Palme, o que por sua vez conduziria a mais um labirinto de revelações e acusações. O pior era que a direção da Sapo tinha mudado tanto que hoje nem seu chefe principal sabia da existência da Seção. Todos os contatos com a DGPN/Sapo naquele ano iam parar na mesa do novo secretário-geral que, fazia já dez anos, era membro da Seção.
Os colaboradores do grupo Zalachenko viviam um clima de pânico e aflição. Foi Gunnar Bjõrck quem encontrou a solução na forma de um psiquiatra chamado Peter Teleborian.
Teleborian estivera ligado ao departamento de contra-espionagem da DGPN/Sapo em outro caso bem distinto, fazendo as vezes de consultor quando a contra-espionagem tivera de avaliar a personalidade de um espião industrial em potencial. Em certo ponto delicado da investigação, foi preciso determinar de que maneira o homem reagiria se exposto a uma situação de estresse. Teleborian era um jovem psiquiatra promissor que não empregava um jargão obscuro, oferecendo conselhos concretos e sólidos. Tais conselhos tinham permitido que a Sapo evitasse um suicídio, e o espião em questão fora convertido em agente duplo, fornecedor de desinformação à seus partidários.
Após a agressão de Salander contra Zalachenko, Bjõrck vinculara discretamente Teleborian à Seção, como consultor. E naquele momento, mais do que nunca, estavam precisando dele.
A solução do problema fora bastante simples. Karl Axel Bodin podia desaparecer em algum momento durante seu processo de reeducação. Agneta Sofia Salander desapareceria em meio aos tratamentos de longo prazo, com lesões cerebrais irreversíveis. Todas as investigações policiais ficaram concentradas na DGPN/Sapo e foram repassadas para a Seção através do secretário-geral.
Peter Teleborian acabava de assumir o cargo de médico-chefe adjunto na clínica Sankt Stefan de psiquiatria infantil, em Uppsala. Só precisavam de uma perícia médico-legal redigida em conjunto por Bjõrck e Teleborian, seguida de uma decisão sumária e não muito contestável de um tribunal de instâncias. Só dependia da forma como a questão seria apresentada. A Constituição nada tinha a ver com isso. Afinal, tratava-se da segurança nacional. As pessoas iriam entender.
E Lisbeth Salander era claramente uma doente mental. Alguns anos internada numa instituição psiquiátrica só iriam lhe fazer bem. Gullberg meneara a cabeça e dera seu aval para a operação.
Todas as peças do* quebra-cabeça tinham se encaixado, numa época em que, de qualquer modo, o grupo Zalachenko estava para ser dissolvido. A União Soviética deixara de existir e o período de glória de Zalachenko estava definitivamente relegado ao passado. Sua data de validade estava mais do que vencida.
O grupo conseguira para Zalachenko uma generosa indenização, fornecida por um dos fundos da Sapo. Ofereceram-lhe os melhores tratamentos imagináveis e, seis meses depois, com um suspiro de alívio, acompanharam Karl Axel Bodin ao aeroporto de Arlanda, munido de um bilhete de ida para a Espanha. Explicaram-lhe que, a partir daquele momento, Zalachenko e a Seção seguiriam caminhos diferentes. Aquele foi um dos últimos casos de Gullberg. Uma semana depois, aposentava-se em função da idade e deixava o lugar a seu herdeiro Fredrik Clinton. Gullberg passou a atuar apenas como consultor e conselheiro em assuntos mais delicados. Permaneceu mais três anos em Estocolmo, trabalhando quase diariamente na Seção, mas as missões foram ficando cada vez mais escassas e ele próprio foi esmorecendo. Voltou para Laholm, sua cidade natal, e realizou alguns trabalhos à distância. Nos primeiros anos, ainda vinha regularmente a Estocolmo, mas mesmo essas viagens foram se tornando mais e mais episódicas.
Nunca mais tinha pensado em Zalachenko. Até o dia em que, ao acordar de manhã, deu com a filha de Zalachenko na primeira página de todos os jornais como suspeita de um triplo homicídio.
Gullberg acompanhou o noticiário com uma sensação de confusão. Percebia claramente que Bjurman não se tornara tutor de Salander por acaso, mas o ressurgimento do velho caso Zalachenko não se afigurava para ele como um perigo iminente. Salander era uma doente mental. Que ela tivesse planejado uma orgia assassina não chegava a surpreendê-lo. Em compensação, nunca lhe ocorrera que Zalachenko pudesse estar ligado ao caso até ver, no noticiário da manhã, o relato dos acontecimentos de Gosseberga. Foi quando começou a dar uns telefonemas e acabou comprando uma passagem de trem para Estocolmo.
A Seção enfrentava sua pior crise desde que a organização fora criada. Tudo ameaçava explodir.
Zalachenko arrastou-se até o banheiro e urinou. Desde que o Hospital Sahlgrenska fornecera-lhe muletas, conseguia se locomover. Dedicara o domingo a breves sessões de exercícios. Uma dor infernal ainda lhe varava o maxilar e ele só ingeria alimentos líquidos, mas já conseguia se levantar e percorrer uns poucos metros.
Como já usasse uma prótese fazia quase quinze anos e estava acostumado com bengalas, treinou locomover-se com as muletas sem fazer barulho, dando voltas dentro do quarto. A cada vez que seu pé encostava no chão, uma dor fulgurante lhe transpassava a perna.
Cerrou os dentes. Pensou em Lisbeth Salander que — se tinha entendido direito — achava-se num quarto próximo, à esquerda, duas portas adiante.
Por volta das duas da manhã, dez minutos depois da última visita da enfermeira da noite, estava tudo calmo e silencioso. Zalachenko levantou-se a muito custo e tateou em busca das muletas. Aproximou-se da porta, mas não escutou nada. Abriu a porta e foi para o corredor. Caminhou até a saída no fundo do corredor, abriu a porta e deu uma espiada na escada. Havia elevadores. Voltou para o corredor. Ao passar em frente à porta de Lisbeth Salander, deteve-se e se apoiou uns trinta segundos nas muletas.
Naquela noite, as enfermeiras tinham fechado a porta. Lisbeth Salander abriu os olhos ao escutar um ligeiro som de atrito no corredor. Não conseguia identificar esse som. Parecia alguém arrastando devagarinho alguma coisa no chão. Por um momento, tudo ficou quieto e ela se perguntou se não seria uma alucinação. Um minuto depois, tornou a ouvir o mesmo ruído se afastando. Relaxou e deitou a cabeça no travesseiro.
Pouco depois, apalpou a comadre e descobriu os botões que a mantinham fechada. Abriu-os e derrubou a comadre no chão. De repente, respirar ficou mais fácil.
Gostaria de ter uma arma ao alcance da mão ou força suficiente para se levantar e se livrar dele de uma vez por todas.
Por fim, apoiou-se nos cotovelos e se ergueu. Acendeu a luz lateral e observou o quarto à sua volta. Não viu nada que pudesse servir de arma. Então seu olhar se deteve na mesa das enfermeiras, a três metros da cama. Constatou que alguém deixara um lápis sobre ela.
Esperou a visita da enfermeira, que naquela noite parecia vir ocorrendo a cada meia hora. Imaginou que verificações menos freqüentes significavam que os médicos viam uma melhora em seu estado, já que antes vinham vê--la de quinze em quinze minutos, ou até menos. Quanto a ela, não percebia nenhuma diferença.
Uma vez sozinha, juntou suas forças e se sentou, balançando as pernas sobre a beirada da cama. Os eletrodos presos à seu corpo registravam seu pulso e sua respiração, mas os fios seguiam todos na mesma direção do lápis. Levantou-se bem devagar e titubeou de repente, totalmente sem equilíbrio. Por um segundo, achou que ia desmaiar, mas apoiou-se na cama e focou o olhar na mesa em frente. Deu três passos vacilantes, estendeu a mão e apanhou o lápis.
Recuou até a cama. Estava completamente esgotada.
Depois de alguns instantes, achou forças para puxar o cobertor sobre si. Ergueu o lápis e verificou a ponta. Era um lápis de madeira comum. Fora recentemente apontado, estava afiado feito uma agulha. Daria uma arma adequada para enfiar num rosto ou nos olhos.
Deixou o lápis facilmente acessível junto ao quadril e voltou a dormir.