3 - SEXTA-FEIRA 17 DE DEZEMBRO - SÁBADO 18 DE DEZEMBRO
Lisbeth Salander acordou às sete da manhã, tomou um banho e desceu para falar com Freddy McBain na recepção. Perguntou se havia um beach buggy disponível para alugar por um dia. Dez minutos depois, já tinha pago a caução, ajustado o banco e o retrovisor, verificado a ignição e conferido o combustível. Passou no bar para pedir um caffè latte e um sanduíche de queijo para o café da manhã, e uma garrafa de água mineral para levar. Durante o café da manhã, rabiscou uns números no guardanapo e refletiu sobre o (x3 + y3 = z3) de Pierre de Fermat.
Pouco depois das oito, o Dr. Forbes desceu até o bar. Estava bem barbeado e vestia um terno escuro, camisa branca e gravata azul. Pediu ovos, torradas, suco de laranja e café preto. Às oito e meia, levantou-se e foi para o táxi que o aguardava.
Lisbeth o seguiu a uma distância razoável. Forbes desceu do táxi no Seascape, bem no início do Carenage, e ficou passeando à beira d’água. Ela o ultrapassou, estacionou na metade do calçadão do porto e esperou pacientemente que ele passasse por ela antes de segui-lo a pé.
A uma da tarde, Lisbeth Salander estava encharcada de suor e com os pés em frangalhos. Caminhara quatro horas a fio, subindo e descendo as ruas de São Jorge. O ritmo tinha sido tranqüilo, mas sem pausas, e as inúmeras subidas começavam a pôr seus músculos à prova. A energia do homem a deixava pasma. Tomou os últimos goles da água mineral e estava começando a cogitar abandonar o caso quando ele subitamente se encaminhou para o Turtleback. Ela esperou dez minutos antes de também entrar no restaurante e ir sentar-se na esplanada. Ocuparam os mesmos lugares do dia anterior e, como no dia anterior, ele tomou uma Coca-Cola contemplando as águas do porto.
Forbes era uma das raríssimas pessoas em Granada que usavam terno e gravata. Ela se espantava de ver como o calor parecia deixá-lo indiferente.
Às três horas, ele interrompeu o fio dos pensamentos de Lisbeth ao pagar a conta de repente e sair do restaurante. Andou pelo Carenage e fez sinal a um micro-ônibus que ia para Angra Grande. Lisbeth estacionou em frente ao Keys Hotel cinco minutos antes de o ônibus chegar e ele descer. Foi até o quarto, preparou um banho e mergulhou na banheira. Estava com dor nos pés. Sua testa exibia vincos fundos.
Os exercícios daquele dia tinham sido reveladores. O Dr. Forbes saía todas as manhãs do hotel, bem barbeado e vestido com rigor, munido de sua pasta. Passava o dia sem fazer absolutamente nada que não fosse matar o tempo. O que quer que estivesse fazendo em Granada, o certo é que não estava se dedicando ao projeto de construção de uma nova escola, mas, por alguma razão, queria dar a entender que estava na ilha a negócios. Por que a encenação?
A única pessoa de quem ele até poderia ter razões para esconder uma coisa desse gênero era sua mulher, e nesse caso precisava fazê-la acreditar que estava tremendamente ocupado durante o dia. Mas por quê? Os negócios tinham desandado e ele era orgulhoso demais para admiti-lo? Sua visita a Granada tinha um objetivo bem diverso? Estaria esperando alguém ou alguma coisa?
Ao olhar seu correio eletrônico, Lisbeth Salander encontrou quatro mensagens. A primeira era de Praga, que respondera uma hora depois de receber o e-mail de Lisbeth. A mensagem estava criptografada e continha uma pergunta lacônica: “Você ainda está viva?”. Nunca fora o estilo de Praga escrever e-mails longos, carregados de emoção. Aliás, também não era o estilo de Lisbeth.
Os dois e-mails seguintes tinham sido enviados por volta das duas horas. Um deles continha informações criptografadas mandadas por Praga, dizendo que um conhecido da rede, que assinava Bilbo e morava justamente no Texas, respondera ao seu pedido. Praga informava o endereço de Bilbo e sua chave PGP. Minutos depois, o tal Bilbo lhe enviara um e-mail, de um endereço hotmail. A mensagem era breve e avisava que Bilbo acreditava estar em condições de fornecer informações sobre o Dr. Forbes dentro de vinte e quatro horas.
O quarto e-mail, também assinado Bilbo, fora enviado no final da tarde. Continha o número criptografado de uma conta bancária e um endereço ftp. Lisbeth digitou o endereço e deparou com um arquivo ZIP de 390 kb, que ela baixou para o seu computador. O dossiê continha quatro fotos em baixa resolução e cinco documentos Word.
As quatro fotos estavam em formato jpg. Duas eram retratos do Dr. Forbes, outra tinha sido tirada na estreia de uma peça de teatro e mostrava Forbes na companhia da mulher. A quarta foto mostrava Forbes no púlpito de uma igreja.
O primeiro documento tinha onze páginas de texto — era o relatório de Bilbo. O segundo, oitenta e quatro páginas de textos baixados da internet. Os dois documentos seguintes eram cópias escaneadas de recortes do jornal local Austin-American Statesman, e o último documento um panorama da congregação do Dr. Forbes, a Presbyterian Church of Austin South.
Tirando o fato de que sabia o Levítico de cor — no ano anterior, fora levada a se interessar por castigos bíblicos — os conhecimentos de Lisbeth Salander em história das religiões eram modestos. Tinha uma vaga noção da diferença entre as religiões judia, presbiteriana e católica, e sabia que a igreja judia se chamava sinagoga. Por um breve instante, receou ter de assimilar detalhes teológicos, depois refletiu que não estava nem aí para o tipo de congregação a que Forbes pertencia.
O Dr. Richard Forbes, também conhecido como reverendo Richard Forbes segundo o recorte anexado tinha quarenta e dois anos. A tela de apresentação do site da Church of Austin South informava que a Igreja tinha sete funcionários, com o reverendo Duncan Clegg encabeçando a lista, o que dava a entender que era ele a figura teológica emblemática. Uma foto mostrava um homem robusto, com abundantes cabelos grisalhos e uma barba grisalha bem-cuidada.
Richard Forbes aparecia em terceiro lugar, como responsável pelas questões de educação. Associada a seu nome, estava a Holy Water Foundation, entre parênteses.
Lisbeth leu a introdução da mensagem da Igreja.
Através da oração e das ações de graça, queremos servir o povo de Austin South oferecendo-lhe a estabilidade, a teologia e a ideologia repleta de esperança defendida pela Igreja Presbiteriana da América. Enquanto servos de Cristo, oferecemos refúgio às pessoas desesperadas e uma promessa de redenção através da oração e da bênção batista. Alegremo-nos no amor de Deus. Nosso dever é derrubar os muros existentes entre os homens e afastar as barreiras que prejudicam a compreensão da mensagem do amor de Deus.
Logo abaixo, vinha o número da conta-corrente da Igreja e a exortação a uma demonstração concreta de amor a Deus.
A biografia fornecida por Bilbo era breve e perfeita. Lisbeth descobriu que Richard Forbes nascera em Cedar’s Bluff, em Nevada. Tinha sido agricultor, homem de negócios, guarda de escola, correspondente local de um jornal do Novo México e empresário de um grupo de rock cristão antes de aderir à Church of Austin South aos trinta e um anos de idade. Era formado em contabilidade e também estudara arqueologia. Bilbo não encontrara, no entanto, nenhum diploma de doutor.
Na congregação, Forbes conhecera Geraldine Knight, única filha do fazendeiro William F. Knight, também ele membro fundador de Austin South. Richard e Geraldine se casaram em 1997, após o que a carreira de Richard Forbes decolara no seio da congregação. Ele se tornara chefe da Fundação Santa Maria, cuja missão era “investir o dinheiro de Deus em projetos educacionais para os necessitados”.
Forbes tinha sido preso em duas ocasiões. Aos vinte e cinco anos, em 1987, fora acusado de lesões corporais graves por ocasião de um acidente de carro. Foi absolvido no processo. Até onde Lisbeth pôde avaliar pela leitura dos recortes, ele era de fato inocente. Em 1995, fora acusado de desvio de dinheiro pelo grupo de rock do qual era empresário. Também dessa vez foi absolvido.
Em Austin, tornou-se uma figura conhecida, membro da Comissão de Educação do município. Era filiado ao Partido Democrata, participava assiduamente das festas beneficentes e angariava fundos para financiar a educação de crianças pobres. A Church of Austin South concentrava boa parte de suas atividades em famílias hispanoparlantes.
Em 2001, Forbes fora acusado de irregularidades nas contas da Fundação Santa Maria. O artigo de um jornal insinuava que ele aplicara em fundos de investimento uma quantia mais alta do que estipulava o estatuto. As acusações foram refutadas pela congregação, e o pastor Clegg apoiou firmemente Forbes na polêmica que se seguiu. Não houve nenhuma ação na Justiça, e uma investigação na contabilidade nada revelou.
Lisbeth dedicou um interesse reflexivo ao relatório sobre as contas pessoais de Forbes. Ele desfrutava de uma renda anual de sessenta mil dólares, o que era considerado um salário pertinente, mas não possuía bens pessoais. Quem respondia pela estabilidade econômica da família era Geraldine Forbes. Em 2002 falecera seu pai, o fazendeiro William Knight. A filha era a única herdeira de uma fortuna de mais de quarenta milhões de dólares. O casal não tinha filhos.
Richard Forbes dependia, portanto, da boa vontade da esposa. Lisbeth franziu o cenho. Não era a situação ideal para bater na mulher.
Lisbeth se conectou e mandou uma lacônica mensagem criptografada a Bilbo, agradecendo o relatório. Também transferiu quinhentos dólares para a conta corrente que ele indicara.
Foi até a sacada e debruçou-se na balaustrada. O sol estava se pondo. Súbito, notou que um vento crescente sacudia as folhas das palmeiras junto ao muro que dava para a praia. Granada estava no limiar da rota do Mathilda. Lisbeth seguiu o conselho de Ella Carmichael e enfiou na sacola de náilon o computador, Dimensions in Mathemathics, alguns objetos pessoais e uma muda de roupa, deixando-a depois em cima da cama. Em seguida, desceu para o bar e pediu um prato de peixe e uma garrafa de Carib.
O único fato digno de interesse que observou foi Forbes, no balcão do bar, inquirindo avidamente Ella Carmichael sobre as tribulações do Mathilda. Não parecia preocupado. Tinha mudado de roupa, usava sapatos esportivos, camisa polo clara e bermuda, uma corrente com crucifixo no pescoço, e estava superatraente.
Lisbeth Salander sentia-se exausta depois de ter passado o dia inteiro andando a esmo por toda São Jorge. Fez um rápido passeio depois do jantar, mas o vento soprava com força e a temperatura baixara sensivelmente. Resolveu ir para o quarto e se deitou às nove da noite. Escutou o barulho do vento rente à janela. Tinha pensado em ler um pouco, mas pegou no sono quase em seguida.
Acordou sobressaltada com uma enorme barulheira. Olhou o relógio: 23hl5. Fez um esforço para sair da cama, abriu a porta da sacada e, sem querer, deu um passo atrás, surpreendida pelas rajadas de vento que se atiravam em cima dela. Apoiou-se no vão da porta, deu um passo cauteloso pela sacada e olhou ao redor.
Lâmpadas suspensas em volta da piscina, balançadas pelo vento, criavam no pátio um impressionante jogo de sombras. Avistou vários clientes do hotel enfileirados diante da abertura praticada no muro, olhando para a praia. Outros mantinham-se próximos do bar. Ao norte, avistavam-se as luzes de São Jorge. O céu estava encoberto, mas não chovia. Por causa da escuridão, não conseguia enxergar o mar, embora o som das ondas estivesse muito mais forte que de costume. Não fazia frio, mas, pela primeira vez desde que chegara às Antilhas Menores, Lisbeth estremeceu de repente.
Estava ali parada quando alguém bateu com insistência à porta. Ela se enrolou num lençol e foi abrir. Freddy McBain parecia preocupado.
—Desculpe incomodar, mas a tempestade parece estar chegando.
—Mathilda.
—Mathilda - confirmou McBain. —Passou lá pelos lados de Tobago no final da tarde e estão falando em prejuízos consideráveis.
Lisbeth visualizou o mapa das Antilhas, Trinidad-Tobago situava-se a cerca de duzentos quilômetros a sudoeste de Granada. Fez uns cálculos de cabeça: um ciclone tropical podia sem problema nenhum se estender por um raio de cem quilômetros e seu olho podia se deslocar a uma velocidade de trinta a quarenta quilômetros por hora. O que queria dizer que Mathilda podia estar, naquele exato momento, prestes a bater às portas de Granada. Tudo dependia da direção que ele iria tomar.
—Não há perigo iminente - continuou McBain. —Mas não vamos correr nenhum risco. Queria que você pusesse seus objetos de valor numa sacola e fosse até a recepção. O hotel está oferecendo café e sanduíches.
Lisbeth seguiu seu conselho. Passou a cabeça debaixo da torneira para acordar direito, enfiou uma calça jeans, sapatos e uma camisa de flanela e jogou a sacola no ombro. Antes de sair do quarto, abriu a porta do banheiro e acendeu a luz. Nenhum lagarto verde à vista, ele já tinha se enfiado em algum buraco por aí. Nada bobo, o bichinho.
No bar, dirigiu-se tranqüilamente para o seu lugar habitual e observou Ella Carmichael mandando os funcionários encherem as garrafas térmicas com bebidas quentes. Um instante depois veio ter com Lisbeth.
—Olá. Você parece que acabou de acordar.
—Eu estava dormindo. O que vai acontecer agora?
—Vamos esperar. A tempestade está ao largo e recebemos de Trinidad um alerta de ciclone. Se piorar e se o Mathilda vier na nossa direção, vamos para o porão. Você podia dar uma mãozinha para a gente?
—O que quer que eu faça?
—Temos na recepção sessenta cobertores que precisam ser levados para o porão. E mais um monte de coisas para pôr ao abrigo.
Lisbeth passou a hora seguinte ajudando a carregar cobertores para o porão e a juntar vasos, mesas, espreguiçadeiras e outros objetos que estavam em volta da piscina. Satisfeita, Ella a dispensou agradecendo, então Lisbeth dirigiu-se até a abertura do muro que dava para a praia e andou uns passos no escuro. O mar rugia perigosamente e rajadas de vento a açoitaram com tamanha força que ela foi obrigada a se inclinar para conseguir ficar em pé. As palmeiras batiam a cadência ao longo do muro.
Voltou ao bar, pediu um caffè latte e sentou-se ao balcão. Era cerca de meia-noite. Um evidente clima de preocupação reinava entre hóspedes e funcionários. Nas mesas, as conversas seguiam em voz baixa entre pessoas que espiavam regularmente o céu. Ao todo, havia no Keys Hotel trinta e dois clientes e uma equipe de uns dez funcionários. De repente, Lisbeth notou Geraldine Forbes sentada a uma mesa bem ao fundo, para o lado da recepção. Seu semblante estava tenso e ela tinha um drinque na mão. Seu marido não estava por perto.
Lisbeth estava tomando seu café e começava a refletir sobre o teorema de Fermat quando Freddy McBain saiu do escritório e parou no meio do hall de entrada.
—Atenção, por favor. Acabo de receber a confirmação de que uma forte tempestade do tipo furacão atingiu a Pequena Martinica. Vou então pedir a todos que desçam até o porão.
Freddy McBain cortou qualquer tentativa de questionamento e conversa e conduziu os hóspedes para a escada de acesso ao porão, atrás da recepção. A Pequena Martinica era uma ilhota do arquipélago das Granadinas, situada a poucas milhas náuticas da ilha principal. Lisbeth olhou discretamente para Ella Carmichael e esticou o ouvido quando ela se aproximou de Freddy McBain.
—Está ficando ruim a esse ponto? - perguntou Ella.
—Não sei. O telefone parou de funcionar - respondeu McBain em voz baixa.
Lisbeth desceu para o porão e colocou sua sacola em cima de um cobertor a um canto. Refletiu alguns instantes e então subiu de volta, na contracorrente, até a recepção. Deteve Ella Carmichael e perguntou se podia ajudar em alguma coisa. Ella meneou a cabeça com ar compenetrado.
—Vamos ver o que acontece. Essa Mathilda é uma sacana.
Lisbeth reparou num grupo de cinco adultos e uma dúzia de crianças se engolfando na porta de entrada. Freddy McBain os acolheu e os encaminhou para a escada do porão.
Uma preocupação repentina tomou conta de Lisbeth.
—Imagino que a esta hora todo mundo esteja se escondendo no porão - ela disse em voz baixa.
Ella Carmichael olhou para a família em frente à escada.
—Infelizmente, o nosso é um dos raros porões de Angra Grande. Na certa, outras pessoas virão procurar abrigo aqui.
Lisbeth olhou atentamente para Ella.
—E os outros, fazem o quê?
—Os que não têm porão? — Ela riu com um riso amargo. - Se escondem dentro de casa ou se protegem do jeito que der. Entregam nas mãos de Deus.
Lisbeth deu meia-volta, atravessou correndo o hall de entrada e saiu pela porta.
George Bland.
Ouviu o chamado de Ella, mas não parou para explicar.
Ele mora numa casinha furreca que vai desabar na primeira rajada.
Assim que pôs os pés na estrada para São Jorge, o vento a apanhou e ela perdeu o equilíbrio. Apressou o passo com determinação. O vento vinha em sentido contrário e rajadas fortíssimas a faziam cambalear. Precisou de quase dez minutos para percorrer os quatrocentos metros que a separavam da casa de George Bland. Não avistou vivalma em todo o trajeto.
A chuva surgiu de repente do nada, feito uma ducha glacial lançada por uma mangueira, no exato momento em que Lisbeth bifurcava em direção ao galpão de George Bland e avistava a luz do lampião por uma fresta entre as tábuas. Num instante, ficou encharcada até os ossos e a visibilidade se reduziu a poucos metros. Tamborilou na porta. George Bland abriu e arregalou os olhos.
—O que está fazendo aqui? - ele berrou, para encobrir o vento.
—Vem. Você tem que vir para o hotel. Lá tem um porão.
George Bland parecia surpreso. Súbito, o vento bateu a porta e ele levou vários segundos até conseguir abri-la. Lisbeth agarrou-o pela camiseta e o puxou para fora. Enxugou a água que lhe escorria pelo rosto, pegou na mão dele e se pôs a correr. Ele a seguiu.
Optaram pelo caminho da praia, cem metros mais curto que a estrada, que fazia uma curva pelo interior. Na metade do trajeto, Lisbeth percebeu que fora provavelmente um erro. Na praia, não tinham nenhuma proteção. O vento e a chuva caíam sobre eles com tanta força que foram obrigados a parar. Areia e galhos de árvores voavam pelo ar. O barulho era de apavorar. Depois do que lhe pareceu ser uma eternidade, Lisbeth finalmente avistou o muro do hotel se materializando e apressou o passo. No instante em que se achavam em frente à porta, promessa de segurança, ela deu uma olhada por cirna do ombro na direção da praia. Estacou de súbito.
Em meio a uma rajada, avistou dois vultos claros a uns cinquenta metros dali, na praia. George Bland puxou-a pelo braço para que ela atravessasse o portão. Ela rechaçou sua mão e se encostou no muro, tentando enxergar melhor. Por um momento, perdeu os vultos de vista através da chuva, até que um relâmpago iluminou o céu.
Ela já sabia que se tratava de Richard e Geraldine Forbes. Eles estavam mais ou menos no lugar em que ela observara as idas e vindas de Richard Forbes na noite anterior.
Quando o raio seguinte explodiu, viu que Richard Forbes parecia estar puxando a mulher e que ela resistia.
De repente, as peças do quebra-cabeça se encaixaram. A dependência econômica. As acusações de irregularidades financeiras em Austin. A errância inquieta dele e sua imóvel matutação no Turtleback.
Ele pretende assassiná-la. Quarenta milhões estão em jogo. O furacão vai servir de camuflagem. É agora ou nunca.
Lisbeth Salander empurrou George Bland portão adentro, olhou ao redor e viu a cadeira bamba do guarda-noturno, que, com a tempestade, tinham esquecido de guardar. Pegou a cadeira, quebrou-a com toda a força de encontro ao muro e armou-se de um de seus pés. Atônito, George Bland ficou gritando às suas costas enquanto ela disparava em direção à praia.
Cada rajada por pouco não a derrubava, mas ela cerrou os dentes e avançou, passo a passo. Estava quase chegando à altura do casal quando um raio iluminou a praia. Viu Geraldine Forbes de joelhos na beira d’água e Richard Forbes inclinado sobre ela, o braço erguido para bater nela. Ele empunhava alguma coisa parecida com um cano de metal. Viu o seu braço descrever um arco na direção da cabeça da mulher, que parou de se mexer.
Richard Forbes não viu Lisbeth Salander.
Só sentiu uma dor fulgurante quando ela bateu com o pé da cadeira em sua nuca. Ele caiu de bruços.
Lisbeth Salander se inclinou e agarrou Geraldine Forbes. Enquanto a chuva as açoitava, virou o corpo. Suas mãos ficaram cobertas de sangue. Geraldine Forbes estava com um ferimento grande na cabeça. Pesava toneladas e Lisbeth lançou um olhar desesperado em volta, perguntando-se como conseguiria carregar o corpo até o muro do hotel. No segundo seguinte, George Bland se materializou a seu lado. Gritou alguma coisa que Lisbeth não chegou a ouvir por causa da tempestade.
Lisbeth olhou de relance para Richard Forbes. Estava de costas para ela, mas se reerguendo, de quatro. Ela agarrou o braço esquerdo de Geraldine Forbes, passou-o em volta de seu pescoço e fez sinal para que George Bland pegasse o outro braço. Começaram, com dificuldade, a arrastar o corpo pela praia.
A meio-caminho do muro do hotel, Lisbeth se sentiu absolutamente extenuada, como se todas as suas forças a estivessem abandonando. Seu coração deu um salto mortal dentro do peito quando sentiu de repente uma mão agarrando seu ombro. Soltou a cintura de Geraldine Forbes, virou-se e deu um pontapé com o pé direito na virilha de Richard Forbes. Ele cambaleou e caiu de joelhos. Ela tomou impulso e desfechou-lhe um pontapé no meio da cara. Lisbeth deparou com o olhar apavorado de George Bland. Deu-lhe meio segundo de atenção antes de tornar a agarrar Geraldine Forbes e recomeçar a carregá-la.
Segundos depois, virou-se novamente. Avistou Richard Forbes a uns dez metros atrás deles. Ele tinha se levantado e cambaleava feito um bêbado em meio às rajadas.
Mais um relâmpago riscou o céu e Lisbeth Salander arregalou os olhos. Pela primeira vez, sentiu um pavor paralisante.
Atrás de Richard Forbes, a uns cem metros dentro d’água, enxergou o dedo de Deus.
Uma imagem instantânea, congelada à luz do relâmpago, uma coluna negra como tinta que se alçava e sumia no espaço onde os olhos não alcançavam.
Mathilda.
Não é possível.
Um furacão - sim.
Um tornado - impossível.
Granada não está situada numa zona de tornados.
Uma megatempestade maluca numa zona em que supostamente não se formam tornados.
Tornados não se formam no mar.
Ei tem um erro científico aí!
Coisa de louco, essa história.
E essa coisa vai me arrastar para a porra desse céu de merda. George Bland também tinha visto o tornado. De repente, os dois gritaram ao mesmo tempo para andarem depressa, sem escutar o que o outro dizia.
Ainda tinham vinte metros a percorrer até o muro. Dez. Lisbeth tropeçou e caiu de joelhos. Cinco. Chegada ao portão, Lisbeth olhou por cima do ombro. Teve um breve vislumbre de Richard Forbes sendo tragado pelas águas como por uma mão invisível. Então ele sumiu, e com a ajuda de George Bland ela arrastou seu fardo pela abertura do muro. Atravessaram o pátio cambaleando e, em meio à fúria da tempestade, Lisbeth escutou o barulho de vidraças se quebrando e um lamento dissonante de chapa metálica dobrando-se em algum lugar. Surgida não se sabe de onde, uma tábua passou voando rente ao nariz de Lisbeth. No instante seguinte, ela sentiu uma dor quando alguma coisa bateu em suas costas. A pressão do vento diminuiu quando eles conseguiram chegar ao hall de entrada.
Lisbeth deteve George Bland e o agarrou pela gola. Puxou-lhe a cabeça para pertinho de sua boca e gritou-lhe no ouvido:
—A gente encontrou ela na praia. Não vimos o marido. Entendeu? Ele fez que sim com a cabeça.
Arrastaram Geraldine Forbes escada abaixo e Lisbeth deu um pontapé na porta do porão. Freddy McBain veio abrir e os fitou, boquiaberto. Então segurou Geraldine Forbes e os deixou entrar, batendo a porta em seguida.
Em um segundo, o barulho do ciclone baixou de uma quantidade insuportável de decibéis para um crepitar, com um trovejar em pano de fundo. Lisbeth inspirou profundamente.
Ella Carmichael serviu café quente num copinho e lhe ofereceu. Lisbeth Salander estava tão exausta que mal teve forças para estender o braço. Estava sentada no chão, passivamente recostada na parede. Alguém cobrira Lisbeth e George com cobertores. Encharcada até os ossos, tinha um ferimento abaixo do joelho que sangrava abundantemente. Em sua calça jeans havia um rasgo de dez centímetros cuja causa ela não recordava. Sem a menor emoção, observou Freddy McBain e alguns hóspedes cuidarem de Geraldine Forbes e colocarem uma bandagem em sua cabeça. Pescou umas palavras soltas aqui e ali e entendeu que havia um médico no grupo. Notou que o porão estava lotado e que pessoas de fora tinham se juntado aos hóspedes no abrigo. Por fim, Freddy McBain veio ter com Lisbeth e se agachou. —Ela está viva.
Lisbeth não respondeu.
O que aconteceu?
A gente a encontrou na praia, perto do muro.
Faltavam três pessoas quando contei os clientes aqui no porão. Você e o casal Forbes. Ella me disse que você saiu feito louca na hora que a tempestade começou.
Fui buscar o meu amigo George. —Lisbeth indicou seu companheiro com um gesto de cabeça. —Ele mora mais adiante na estrada, num barraco que a esta hora certamente não está mais de pé.
Foi um gesto idiota, e sem dúvida muito corajoso - disse Freddy McBain, olhando para George Bland. —Vocês viram o marido dela, Richard Forbes?
—Não - respondeu Lisbeth com um olhar inexpressivo. George Bland olhou para Lisbeth e meneou a cabeça. Ella Carmichael fitou Lisbeth Salander com um olhar severo. Lisbeth retribuiu, sem a menor expressão nos olhos.
Geraldine Forbes voltou a si por volta das três da manhã. Lisbeth Salander dormia, a cabeça apoiada no ombro de George Bland.
Milagrosamente, Granada sobreviveu àquela noite. Quando amanheceu, a tempestade amainara e fora substituída pela pior chuva que Lisbeth já tinha visto. Freddy McBain convidou os hóspedes a subir para o hotel.
O Keys teria de realizar enormes reparos. A devastação do hotel, como em toda a costa, era considerável. O bar externo de Ella Carmichael, sob um toldo em frente à piscina, desaparecera por completo, e uma varanda estava inteiramente destruída. Venezianas haviam sido arrancadas em toda a fachada, e uma parte saliente do telhado se dobrara ao meio. A recepção era um verdadeiro caos de materiais diversos. Mas, no conjunto, o hotel continuava no lugar.
Cambaleando, Lisbeth conduziu, vacilando, George Bland para o seu quarto. Pendurou provisoriamente um cobertor em frente ao vão da janela vazia, para impedir que a chuva entrasse. George Bland cruzou o olhar com o dela.
—A gente vai ter menos coisa para explicar se dissermos que não vimos o marido - disse Lisbeth, antes de ele ter tempo de fazer perguntas.
Ele assentiu com a cabeça. Ela tirou a roupa, deixou-a amontoada no chão e bateu na beira da cama a seu lado. Mais uma vez ele assentiu com a cabeça, despiu-se e se deitou junto dela. Caíram quase imediatamente no sono.
Despertou por volta do meio-dia, com o sol brilhando por uns rasgos entre as nuvens. Cada músculo de seu corpo doía e seu joelho estava tão inchado que ela mal conseguia dobrar a perna. Saiu devagarinho da cama e entrou no chuveiro, dirigindo um cumprimento de cabeça ao lagarto verde que estava de volta à parede, debaixo do teto. Enfiou um short e uma regata e saiu do quarto mancando, sem acordar George Bland.
Ella Carmichael ainda estava atarefada. Parecia cansada, mas já pusera o bar em funcionamento no hall de entrada. Manquejando, Lisbeth foi sentar-se a uma mesa perto do balcão, pediu café e um sanduíche. Olhou pelas janelas desfeitas da entrada e viu um carro de polícia estacionado. Acabavam de lhe entregar o café quando Freddy McBain saiu de sua sala, atrás do balcão da recepção, seguido por um sujeito de uniforme. McBain avistou-a e disse alguma coisa ao policial antes de ir até a mesa de Lisbeth.
—Esse é o agente Fergusson. Ele quer lhe fazer umas perguntas. Lisbeth concordou educadamente com a cabeça. O agente Fergusson parecia cansado. Pegou um bloco e uma caneta e anotou o nome de Lisbeth.
—Miss Salander, eu soube que a senhorita, junto com um amigo, encontrou a senhora Richard Forbes durante a tempestade desta noite.
Lisbeth assentiu com a cabeça.
—Onde encontrou a senhora Forbes?
—Na praia, perto do portão - respondeu Lisbeth. —A gente praticamente tropeçou nela.
Fergusson tomou nota.
Ela disse alguma coisa? Lisbeth negou com a cabeça.
Ela estava desmaiada?
Lisbeth meneou a cabeça com ar entendido.
Ela estava com um ferimento feio na cabeça. Lisbeth meneou mais uma vez a cabeça.
Sabe o que causou esse ferimento?
Lisbeth balançou a cabeça. Fergusson parecia meio irritado com a falta de respostas.
—Havia um monte de destroços voando pra tudo quanto era lado disse ela, cooperativa. —Por pouco não levei uma tábua na cabeça. Fergusson meneou a cabeça, sério.
—A senhorita machucou a perna?
Fergusson apontou para o curativo de Lisbeth. Ela assentiu com a cabeça.
O que houve?
Não sei. Só vi o ferimento quando cheguei ao porão.
A senhorita estava com um rapaz. Lisbeth meneou a cabeça.
Qual o nome dele?
George Bland.
Onde ele mora?
—No galpão atrás do Coconut, na estrada que vai para o aeroporto. Quer dizer, se é que ainda existe galpão.
Lisbeth se absteve de mencionar que, no momento, George Bland dormia em sua cama no andar de cima.
—A senhorita viu o marido dela, o Richard Forbes? Lisbeth balançou a cabeça. O agente Fergusson aparentemente não tinha mais nada a perguntar e fechou seu bloco de anotações.
Obrigado, senhorita Salander. Tenho que ir registrar o óbito.
Ela morreu?
—A senhora Forbes? Não, está no hospital de São Jorge. Ela sem dúvida deve agradecer à senhorita e ao seu amigo por estar viva. Mas o marido morreu. Foi encontrado no estacionamento do aeroporto duas horas atrás.
Mais de seiscentos metros ao sul!
Estava bem machucado - explicou Fergusson.
Coitado - disse Lisbeth Salander, sem dar mostras de estar muito chocada.
Depois que McBain e Fergusson foram embora, Ella Carmichael apareceu e sentou-se à mesa de Lisbeth. Trazia dois copinhos de rum. Lisbeth interrogou-a com os olhos.
—Depois de uma noite dessas, a gente precisa de um revigorante. A rodada é por minha conta. Também estou pagando o seu café da manhã.
As duas mulheres se olharam. Então, ergueram os copos e brindaram.
Mathilda ainda seria por muito tempo objeto de estudos científicos e nos institutos meteorológicos das Antilhas e dos Estados Unidos. Tornados da envergadura do Mathilda eram quase desconhecidos na região. Era até mesmo considerado impossível que se formassem no mar. Por fim, os especialistas chegaram a um consenso e declararam que uma configuração articularmente estranha de frentes meteorológicas havia criado um pseudotornado - de fato, não se tratava de um legítimo tornado, só parecia ser um. Alguns opositores aventaram teorias envolvendo o efeito estufa e um desequilíbrio ecológico.
Lisbeth Salander não prestou atenção à discussão teórica. Ela sabia o que tinha visto e resolveu tentar evitar para todo o sempre ficar no caminho de alguma irmã de Mathilda.
Várias pessoas tinham saído feridas naquela noite. Por milagre, só havia uma morte a lamentar.
Ninguém conseguia entender o que levara Richard Forbes a sair em meio ao furacão, a não ser, eventualmente, a imprudência que sempre parecia estar associada aos turistas americanos. Geraldine Forbes não tinha nenhuma explicação a oferecer. Estava com um grave traumatismo craniano e só guardava imagens fragmentadas do que acontecera naquela noite. Em compensação, estava inconsolável por se encontrar viúva.