29. SÁBADO 16 DE JULHO – SEXTA-FEIRA 7 DE OUTUBRO


Deparou com seu Palm no móvel do hall de entrada. Também estavam ali as chaves do seu "carro e a bolsa que ela tinha perdido na noite em que Magge Lundin a agredira em frente ao prédio da Lundagatan. Havia cartas abertas e outras fechadas, que alguém fora pegar na caixa postal da Hornsgatan. Mikael Blomkvist.

Lentamente, deu uma volta pela parte mobiliada do apartamento. Havia vestígios dele por todos os lados. Ele dormira em sua cama e trabalhara em seu escritório. Usara sua impressora, e no cesto de papéis ela achou os rascunhos do texto dele sobre a Seção, anotações e rabiscos que ele depois jogou fora.

Ele comprou e deixou na geladeira um litro de leite, pão, queijo, pasta de peixe e dez pacotes de Billys Pan Pizza.

Na mesa da cozinha, ela encontrou um pequeno envelope branco com seu nome. Era um bilhete dele. A mensagem era sucinta. O número do seu celular. Mais nada.

Lisbeth Salander percebeu de repente que a bola estava com ela. Ele não pretendia procurá-la. Ele tinha concluído a matéria, devolvera as chaves dela e não estava pensando em dar notícias. Que cara mais teimoso, porra!

Ligou a cafeteira, preparou quatro torradas e em seguida se acomodou no recanto da janela, contemplando o parque de Djurgârden. Acendeu um cigarro e se pôs a refletir.

Tudo tinha acabado, no entanto sua vida lhe parecia mais travada do que nunca.

Miriam Wu tinha ido para a França. A culpa é minha se você quase morreu. Ela receara o momento de rever Miriam Wu, e tinha decidido que, assim que fosse libertada, esta seria sua primeira visita. E a Miriam não está em casa, está na França. Droga!

De repente sentiu-se em dívida com um monte de gente.

Holger Palmgren. Dragan Armanskij. Teria de procurá-los para agradecer. Paolo Roberto. E Praga, e Trinity. Se quisesse ser bem objetiva, até aqueles malditos tiras, Bublanski e Modig, tinham ficado do seu lado. E ela não gostava de dever nada para ninguém. Sentia-se como um peão num jogo sobre o qual não tinha o menor controle.

Maldito Super-Blomkvist. E talvez também Maldita Erika Berger, com suas lindas covinhas, belas roupas e autoconfiança.

Acabou, dissera Annika Giannini quando elas estavam deixando o Palácio da Polícia. Sim. O julgamento tinha acabado. Acabado para Annika Giannini. E acabado para Mikael Blomkvist, que publicara a sua matéria, ia aparecer na tevê e, de quebra, com certeza ainda ia ganhar um ou outro maldito prêmio.

Mas não tinha acabado para Lisbeth Salander. Aquele era só o primeiro dia do resto de sua vida.

Às quatro da manhã, parou de refletir. Jogou sua roupa de punk no chão do quarto e foi até o banheiro tomar um banho. Limpou toda a maquiagem que usara na audiência e vestiu uma calça leve de linho escuro, uma camiseta regata branca e uma jaqueta fina. Preparou uma maleta de mão com alguma roupa de baixo e camisetas, e escolheu sapatos baixos simples.

Pegou seu Palm e em seguida chamou um táxi. Foi para o aeroporto de Arlanda, onde chegou um pouco antes das seis da manhã. Olhou o painel de embarques e comprou uma passagem para o primeiro destino que viu indicado. Usou seu passaporte com o próprio nome. Ficou surpresa que ninguém no balcão de reservas ou no check-in demonstrasse reconhecê-la ou reagisse ao ver seu nome.

Encontrara um lugar num vôo matutino para Málaga, onde aterrissou por volta do meio-dia sob um sol escaldante. Permaneceu algum tempo no terminal, hesitante. Então resolveu consultar um mapa, perguntando-se o que iria fazer na Espanha. Minutos depois, já tomara sua decisão. Não estava com a menor vontade de ficar pensando em ônibus ou em qualquer outro meio de transporte. Comprou óculos de sol numa loja do aeroporto, saiu do terminal e se acomodou no banco traseiro do primeiro táxi vazio que apareceu.

— Gibraltar. Vou pagar com cartão de crédito.

O trajeto durou três horas pela nova autoestrada ao longo da costa sul. O táxi a deixou no posto de fronteira do território britânico e ela seguiu a pé até a Europa Road e o Rock Hotel, situado na subida do rochedo de quatrocentos e vinte e cinco metros, onde perguntou se tinham um quarto disponível. Tinham um quarto duplo. Fez a reserva por duas semanas e apresentou seu cartão de crédito.

Tomou um banho e se sentou na sacada, enrolada numa toalha de banho, contemplando o estreito de Gibraltar. Avistou uns cargueiros e alguns veleiros. Distinguiu vagamente o Marrocos do lado de lá do estreito. Uma paisagem serena.

Passado algum tempo, voltou para o quarto, deitou-se e dormiu.

Na manhã seguinte, Lisbeth Salander acordou às cinco e meia. Levantou-se, passou rapidamente pelo chuveiro e foi tomar café da manhã no térreo, no restaurante do hotel. Às sete horas, deixou o hotel e foi comprar mangas e maçãs, depois pegou um táxi para o The Peak e foi ver os macacos. Chegou cedo, havia pouquíssimos turistas, portanto se viu quase sozinha com os animais.

Ela gostava de Gibraltar. Era a terceira vez que visitava aquele estranho rochedo que dava para o Mediterrâneo, com sua cidade inglesa de uma densidade populacional absurda. Gibraltar não se parecia com nenhum outro lugar. A cidade permanecera isolada durante décadas, uma colônia que se negava persistentemente a ser anexada à Espanha. Os espanhóis protestavam, é claro, contra a ocupação. Mas Lisbeth achava que era melhor eles calarem a boca enquanto estivessem ocupando o enclave de Ceuta em território marroquino, do outro lado do estreito. Era um lugar curioso, afastado do resto do mundo, uma cidade de pouco mais de dois quilômetros quadrados constituída de um rochedo singular e um aeroporto que avançava sobre o mar. Era uma povoação tão pequena que cada centímetro quadrado era aproveitado e a expansão se dava necessariamente em direção ao mar. Para entrar na cidade, os visitantes eram obrigados a atravessar a pista de pouso do aeroporto.

Gibraltar era um exemplo notável do conceito de compact living.

Lisbeth viu um macaco macho, grande, trepar numa mureta próxima à trilha de passeio. Olhava para ela com o rabo dos olhos. Um Barbary ape. Ela sabia que não dava para tentar acariciar aqueles bichos.

— E aí, cara? — disse ela. — Sou eu, voltei.

Antes de sua primeira estada em Gibraltar, ela nunca tinha ouvido falar nesses macacos. Subira no alto do Rochedo apenas para admirar a vista e fora pega totalmente de surpresa, quando acompanhava um grupo de turistas, ao se ver no meio de um bando de macacos trepando por tudo, de um lado a outro do caminho.

Tinha sido uma sensação esquisita estar caminhando por uma trilha e topar de repente com mais de vinte macacos. Olhou para eles bem desconfiada. Não eram perigosos nem agressivos. Em compensação, eram fortes o bastante para morder seriamente se estivessem nervosos ou se sentissem ameaçados.

Ela localizou um dos guardas, mostrou sua sacola e perguntou se podia dar frutas aos animais. O homem não fez nenhuma objeção.

Pegou uma manga e colocou-a na mureta, a alguma distância do macho.

— Café da manhã — disse, apoiando-se na mureta para comer uma maçã.

O macaco olhou para ela, arreganhou os dentes e então pegou a manga, feliz da vida.

Cinco dias depois, por volta das quatro da tarde, Lisbeth Salander caiu de um banco do Harry's Bar, numa rua lateral da Main Street, a dois quarteirões de seu hotel. Tinha estado regularmente bêbada desde que deixara a montanha dos macacos, e a maior parte de sua bebedeira acontecera no bar de Harry O'Connell, o proprietário do bar que tinha um sotaque irlandês adquirido a grande custo, já que nunca na vida pusera os pés na Irlanda. Ele a observava com ar preocupado.

Quando ela pediu o primeiro copo, quatro tardes antes, ele quis ver seu passaporte, julgando estar diante de uma menina. Sabia que seu nome era Lisbeth e a chamava de Liz. Ela em geral chegava na hora do almoço, sentava-se num banco do fundo do bar e se encostava na parede. Em seguida, dedicava seu tempo a enxugar um número considerável de cervejas ou uísques.

Quando tomava cerveja, não ligava para a marca; aceitava o que ele servisse. Quando pedia uísque, sempre escolhia o Tullamore Dew, com exceção de uma vez em que examinara as garrafas atrás do balcão e pedira para experimentar o Lagavulin. Ela havia cheirado o copo, erguido as sobrancelhas e então tomara um gole bem pequeno. Descansara o copo na mesa e continuara olhando para ele durante um minuto, com uma expressão que dava a entender que considerava seu conteúdo um inimigo perigoso.

Acabara empurrando o copo de lado e pedindo que Harry lhe desse alguma coisa não destinada à calafetagem de barcos. Ele voltara a lhe servir Tullamore Dew e ela recomeçou a bebedeira. Nos últimos quatro dias, esvaziara uma garrafa sozinha. Ele não tinha contado as cervejas. Harry estava muito surpreso que uma moça com aquela modesta massa corpórea conseguisse absorver tantas, mas ponderava que se ela estava pretendendo beber, iria beber, fosse no seu bar ou em qualquer outro lugar.

Ela bebia devagar, não falava com ninguém e não criava caso. Sua única ocupação, fora o consumo de álcool, parecia ser brincar com um computador de mão que, de vez em quando, ela conectava ao celular. Ele tinha tentado várias vezes iniciar uma conversa, mas fora recebido por um silêncio obstinado. Ela parecia evitar qualquer companhia. Algumas vezes, quando havia gente demais no bar, ela tinha fugido para o terraço, e em outras ocasiões fora comer num restaurante italiano duas portas adiante. Depois voltara ao Harry's para pedir mais um Tullamore Dew. Em geral, deixava o bar por volta das nove da noite e seguia na direção norte.

Naquele dia em particular, bebera mais e mais depressa que nos outros, e Harry começou a vigiá-la. Ela já havia entornado sete copos de Tullamore Dew em duas horas, quando ele decidiu que se recusaria a lhe servir mais um. Não teve tempo de pôr em prática sua decisão, pois um estrondo anunciou que ela tinha caído do banco.

Ele largou o copo que estava enxugando, foi para o outro lado do balcão e levantou-a. Ela fez um ar ofendido.

— Acho que você já preencheu sua cota de hoje — disse ele. Ela o fitou com olhos turvos.

— Acho que você tem razão — respondeu, com voz surpreendentemente clara.

Agarrou-se ao balcão com uma das mãos, tirou algumas cédulas do bolso superior da jaqueta e então foi cambaleando em direção à porta. Ele segurou seu ombro com suavidade.

— Espere um pouco. Queria que você fosse até o banheiro vomitar os últimos copos e depois ficasse mais um tempo no bar. Não posso te deixar sair nesse estado.

Ela não reclamou quando ele a acompanhou até o banheiro. Ela enfiou os dedos na garganta e fez o que ele tinha mandado. Quando voltou para o bar, ele lhe serviu um copo grande de água mineral. Ela o tomou inteiro e arrotou. Ele lhe serviu mais um.

— Amanhã, você vai estar com uma ressaca daquelas — disse Harry. Ela concordou com a cabeça.

— Não tenho nada a ver com isso, mas no seu lugar eu passaria a seco por alguns dias.

Ela fez que sim com a cabeça. Em seguida foi vomitar no banheiro outra vez.

Lisbeth Salander permaneceu no Harry's Bar por mais uma hora, até que seu olhar estivesse focado o bastante para que Harry se atrevesse a deixá-la ir embora. Ela saiu de pernas bambas, foi caminhando na direção do aeroporto e em seguida beirando o mar e a marina. Ficou passeando até as oito e meia da noite, hora em que o sol parava de se balançar. Só então voltou ao hotel. Foi direto para o quarto, escovou os dentes, lavou o rosto, trocou de roupa e se encaminhou ao bar do hotel, onde pediu uma xícara de café preto e uma garrafa de água mineral.

Permaneceu sentada em silêncio e sem chamar atenção junto a uma coluna, observando os clientes do bar. Avistou um casal na faixa dos trinta anos conversando em voz baixa. A mulher estava com um vestido claro de verão. O homem segurava a mão dela embaixo da mesa. Duas mesas adiante, havia uma família africana, o homem com as têmporas grisalhas, a mulher com um lindo vestido estampado de amarelo, preto e vermelho. Tinham dois filhos pré-adolescentes. Examinou um grupo de homens de negócios, de camisa branca e gravata, o paletó no encosto da cadeira. Tomavam cerveja. Viu um grupo de aposentados, turistas americanos sem sombra de dúvida. Os homens usavam boné de beisebol, camisa pólo e calças descontraídas. E as mulheres, jeans de marca, tops vermelhos e óculos de sol com um cordãozinho. Viu um homem de paletó de linho claro, camisa cinza e gravata escura entrando na recepção para pegar as chaves antes de se dirigir ao bar e pedir uma cerveja. Estava sentada a três metros dele e seu olhar ficou atento quando ele pegou o celular e começou a falar em alemão.

— Oi, sou eu... tudo bem?... está tudo certo, a próxima reunião é amanhã à tarde... não, acho que vai dar... fico aqui mais uns cinco, seis dias pelo menos, depois vou para Madri... não, só volto no fim da semana que vem... eu também... te amo... claro... eu te ligo durante a semana... beijo.

Ele media um metro e oitenta e cinco, tinha uns cinqüenta, cinqüenta e cinco anos, cabelos grisalhos bem curtos, um queixo para dentro e uns bons quilos a mais na cintura.. Ainda assim, era relativamente bem conservado. Estava lendo o Financial Times. Quando terminou a cerveja e dirigiu-se ao elevador, Lisbeth Salander se levantou e o seguiu.

Ele apertou o botão do quinto andar. Lisbeth se postou a seu lado e recostou a cabeça na parede do fundo do elevador.

— Estou bêbada — disse. Ele olhou para ela.

— Ah,é?

— É. Esta semana eu não parei. Deixe eu adivinhar. Você é assim uma espécie de executivo, de Hanover ou de algum outro lugar do norte da Alemanha. É casado. Ama a sua mulher. E tem que ficar mais alguns dias aqui em Gibraltar. Foi o que entendi ao escutar seu telefonema lá no bar.

Ele a fitou, estupefato. Ela prosseguiu:

— Eu sou da Suécia. Estou com uma vontade irresistível de transar com alguém. Não estou nem aí se você é casado e não quero o número do seu telefone.

Ele ergueu as sobrancelhas.

— Estou no quarto 711, dois andares acima do seu. Vou para o meu quarto, tirar a roupa, tomar um banho e me deitar. Se quiser me fazer companhia pode bater na porta daqui uma meia hora. Depois disso vou pegar no sono.

— Isso por acaso é alguma pegadinha? — ele perguntou, quando o elevador parou.

— Não. Estou com preguiça de sair para caçar pelos bares. Ou você vem bater na minha porta, ou então azar o seu.

Vinte e cinco minutos depois, bateram na porta do quarto de Lisbeth. Ela foi abrir, enrolada numa toalha.

— Entre — disse.

Ele entrou e lançou um olhar desconfiado pelo quarto.

— Estou sozinha — disse ela.

— A propósito, qual é a sua idade?

Ela estendeu a mão para pegar o passaporte que estava em cima de uma cômoda, e mostrou a ele.

— Você parece mais jovem.

— Eu sei — disse ela, então tirou a toalha e jogou-a em cima da cadeira. Voltou para a cama e dobrou a colcha.

Ele fitou as tatuagens. Ela olhou para ele por cima do ombro.

— Não é nenhuma armadilha. Eu sou mulher, solteira, e vou passar uns dias aqui. Faz meses que não transo.

— E por que você me escolheu?

— Porque você era o único no bar que não parecia estar acompanhado.

— Eu sou casado...

— Eu não quero saber quem é ela nem quem é você. E não quero discutir sociologia. Eu quero trepar. Tire a roupa, ou então volte para o seu quarto.

— Assim, direto?

— E por que não? Eu já sou bem adulta e você sabe o que precisa fazer. Ele pensou por uns trinta segundos. Parecia prestes a ir embora. Ela se sentou na beira da cama e esperou. Ele mordeu o lábio inferior. Então tirou a calça e a camisa, e ficou de cueca, hesitante.

— Tudo — disse Lisbeth Salander. — Não pretendo trepar com um cara de cueca. E você tem que usar camisinha. Eu sei o que eu fiz, mas não sei o que você andou fazendo.

Ele tirou a cueca, aproximou-se dela e pôs a mão em seu ombro. Lisbeth fechou os olhos quando ele se inclinou para beijá-la. Ele tinha um gosto bom. Ela deixou que ele a deitasse na cama. Era pesado em cima dela.

O advogado Jeremy Stuart MacMillan sentiu seu cabelo se eriçar na cabeça no instante em que abriu a porta de seu escritório da Buchanan House, no Queensway Quay, sobre a marina. Sentiu um cheiro de cigarro e ouviu o rangido de uma cadeira. Era um pouco antes das sete da manhã, e a primeira coisa que pensou foi que surpreendera um assaltante.

Em seguida sentiu um cheiro de café vindo da copa. Depois de alguns segundos, foi entrando cautelosamente, cruzou o hall e olhou para a sua sala, ampla e elegante. Lisbeth Salander estava sentada na poltrona dele, de costas, os saltos apoiados no peitoril da janela. O computador estava ligado e ela aparentemente não tivera dificuldade para descobrir sua senha. Também não tivera dificuldade para abrir seu armário de segurança. No colo dela havia uma pasta aberta contendo sua correspondência particular e sua contabilidade.

— Bom dia, senhorita Salander — disse ele por fim.

— Humm — ela respondeu. — Tem café quentinho e uns croissants na copa.

— Obrigado — disse ele, com um suspiro resignado.

Ele havia, sem dúvida, comprado aquele escritório com o dinheiro de Lisbeth Salander, e a pedido dela, mas não esperava que ela fosse aparecer sem avisar. Além disso, ela encontrara, e obviamente folheara, uma revista pornográfica que ele guardava numa gaveta da escrivaninha.

Realmente constrangedor.

Ou talvez não.

Ele tinha a impressão de que Lisbeth Salander era a pessoa mais rígida que ele conhecia no que dizia respeito a pessoas que a irritavam, mas em compensação ela nem sequer erguia a sobrancelha diante das fraquezas pessoais dos outros. Ela sabia que ele era oficialmente heterossexual mas que secretamente sentia-se atraído por homens e que, desde que se divorciara, havia quinze anos, começara a realizar suas fantasias mais íntimas.

Estranho. Me sinto seguro com ela.


Já que estava mesmo em Gibraltar, Lisbeth tinha resolvido fazer uma visita ao Dr. Jeremy MacMillan, que cuidava de suas finanças. Não tinha tido contato com ele desde o Ano-Novo e queria saber se ele aproveitara a oportunidade para arruiná-la durante sua ausência.

Mas não era coisa urgente, e não era esse o motivo de ela ter ido direto a Gibraltar depois de sua libertação. Fora até lá porque sentia uma imperiosa necessidade de mudar de ares, e Gibraltar era perfeito para isso. Passara quase uma semana em estado de embriaguez e mais uns dias fazendo amor com o executivo alemão que acabara dizendo que se chamava Dieter. Duvidava que aquele fosse seu nome verdadeiro, mas não quisera saber mais. Ele passava os dias em reuniões e as noites jantando com ela antes de se recolherem, no seu quarto ou no de Lisbeth.

Ele não era ruim de cama, constatou Lisbeth. Sem muito treino, talvez, e às vezes desnecessariamente brutal.

Dieter de fato parecera surpreso que ela, apenas por impulso, tivesse dado em cima de um executivo alemão com excesso de peso e que nem sequer estava buscando uma aventura. Era casado e não costumava ser infiel ou procurar companhia feminina durante suas viagens de negócios. Mas quando a possibilidade se apresentou na forma de uma garota frágil e tatuada, não resistira à tentação. Foi o que ele disse.

A Lisbeth Salander importava muito pouco o que ele dizia. Seu único objetivo eram alguns bons momentos de sexo, mas surpreendera-se ao ver que ele realmente se esforçava por satisfazê-la. Na quarta noite, a última que passaram juntos, ele tivera de repente um angustiado acesso de pânico e começara a se perguntar o que diria a sua mulher. Lisbeth Salander achava que ele devia ficar de boca fechada e não contar nada para a mulher.

Mas ela não disse o que pensava.

Ele já era bem crescidinho e poderia ter recusado sua oferta. Ela não estava nem aí com os ataques de culpa dele ou se ele iria confessar tudo para a mulher. Ela deu-lhe as costas e o escutou por uns quinze minutos, até que, irritada, ergueu os olhos para o céu, virou-se e sentou escarranchada em cima dele.

— Será que você podia dar um tempo para a sua angústia e me dar prazer mais uma vez? — perguntou.

Já Jeremy MacMillan era outra história. Lisbeth Salander não se sentia nem um pouco atraída por ele. Era um tratante. Estranhamente, lembrava um pouco Dieter. Tinha quarenta e oito anos, algum charme, também uns quilos a mais, cabelos grisalhos penteados para trás. Usava óculos finos com aro de metal dourado.

No passado, fora advogado de empresas, com diploma de Oxbridge e baseado em Londres. Tinha um futuro promissor, era sócio num escritório de advocacia que prestava consultoria para grandes empresas e yuppies cheios da grana que brincavam com questões imobiliárias e fiscais. Passara os alegres anos 1980 freqüentando novos-ricos que brincavam de celebridades. Tinha bebido um bocado e cheirado coca com gente que ele na verdade preferia não encontrar na sua cama ao acordar no dia seguinte. Nunca tinha sido indiciado, mas perdera a mulher e os dois filhos, e depois fora despedido por má gestão e por ter se apresentado embriagado numa audiência de conciliação.

Passada a ressaca, sem parar muito para pensar, fugira de Londres um tanto envergonhado. Não sabia por que tinha escolhido justamente Gibraltar, mas em 1991 associara-se a um advogado local e abrira um modesto escritório de segunda categoria que oficialmente cuidava de sucessões e testamentos não muito glamorosos. De maneira nem tão oficial, o escritório MacMillan & Marks também abria empresas-fantasma e servia de testa de ferro para europeus que optavam por permanecer na sombra. A atividade se mantinha aos trancos e barrancos, até que Lisbeth Salander escolheu Jeremy MacMillan para administrar os 2,4 bilhões de dólares que ela surrupiara do império falido do financista Hans-Erik Wennerstróm.

MacMillan era inegavelmente um vigarista. Mas Lisbeth o considerava o seu vigarista, e ele próprio se surpreendera ao manter com ela um relacionamento de uma honestidade irretocável. Na primeira vez, ela o contratara para uma tarefa simples. Por uma modesta quantia, ele abrira algumas empresas--fantasma que ela poderia usar e nas quais investira um milhão de dólares. Ela o contatara por telefone e não passara de uma voz longínqua. Ele nunca havia lhe perguntado de onde vinha aquele dinheiro. Contentara-se em agir conforme as instruções dela, separando cinco por cento do negócio para si mesmo. Pouco depois, ela injetara uma quantia maior, que ele deveria usar para abrir uma empresa, a Wasp Enterprises, com a finalidade de comprar um apartamento em Estocolmo. Assim, a relação com Lisbeth Salander se tornara lucrativa, mesmo que para ele se tratasse de pequenas quantias.

Dois meses depois, ela fora visitá-lo repentinamente em Gibraltar. Ligara para ele e propusera que ele fosse jantar com ela no seu quarto do Rock que era, se não o maior, o hotel mais refinado do Rochedo. Ele não sabia bem o que esperar, mas certamente não uma cliente com jeito de boneca, uma garota que aparentava não ter mais que quinze anos. Por um momento, pensou que fosse alguma brincadeira.

Logo mudou de opinião. A garota estranha falava, despreocupada, sem nunca sorrir ou se mostrar calorosa. Aliás, nem distante. Ele ficara paralisado quando, em poucos minutos, ela pusera abaixo a fachada profissional de respeitabilidade mundana que ele fazia questão de exibir.

— O que você quer? — ele perguntou.

— Eu roubei uma quantia de dinheiro — ela respondeu muito séria. — Preciso de um vigarista para administrá-la.

Ele se perguntara se ela batia bem da cabeça, mas entrara educadamente no jogo. Ela era um alvo potencial para uma trapaça passível de render pequenos lucros. Depois, ficara como que fulminado quando ela lhe explicara de quem tinha roubado o dinheiro, como tinha sido e qual o total da pilhagem. O caso Wennerstrõm vinha sendo o assunto mais discutido no mundo das finanças internacionais.

— Entendi.

Vieram-lhe à cabeça inúmeras possibilidades.

— Você é um bom advogado empresarial e um bom investidor. Se fosse algum idiota, não teria obtido os contratos que obteve nos anos 1980. Agora, você se comportou como um idiota, a ponto de ter sido mandado embora.

Ele ergueu as sobrancelhas.

— Daqui para a frente, eu vou ser sua única cliente.

Ela o fitara com os olhos mais inocentes que ele já tinha visto.

— Tenho duas exigências. A primeira é que você nunca deve cometer nenhum crime ou se envolver com qualquer coisa que possa nos criar problemas e òhamar a atenção das autoridades para as minhas empresas e as minhas contas bancárias. A outra é que você jamais deve mentir para mim. Jamais, está entendendo? Nem uma vez. E por motivo nenhum. Se você mentir, nosso contrato fica imediatamente anulado e, caso eu me aborreça de fato, arruíno você.

Ela lhe serviu uma taça de vinho.

— Não há motivo nenhum para mentir para mim. Já sei tudo o que há para saber sobre sua vida. Sei quanto você ganha nos meses das vacas gordas e nos meses das vacas magras. Sei quanto você gasta. Sei que freqüentemente você fica sem dinheiro. Sei que tem uma dívida de cento e vinte mil libras, a ser quitada a curto e médio prazo, e se arrisca e trapaceia o tempo todo para saldar essa dívida. Você se safa com elegância e tenta manter as aparências, mas está afundando e faz meses que não compra um paletó novo. Em compensação, há duas semanas mandou consertar o forro de um paletó velho. Antigamente, você colecionava livros raros, mas aos poucos foi vendendo todos. No mês passado, vendeu uma antiga edição de Oliver Twist por setecentas e sessenta libras.

Ela se calou e olhou para ele. Ele engoliu em seco.

— Mesmo assim, na semana passada, você tirou a sorte grande. Uma fraude esperta contra a viúva que você representa. Você passou a mão em seis mil libras que decerto não vão fazer muita falta para ela.

— Droga, como você sabe disso?

— Eu sei que você foi casado, que tem na Inglaterra dois filhos que não querem te ver e que depois do divórcio você deu seu grande salto, mantendo hoje em dia basicamente relações homossexuais. Talvez sinta vergonha, já que foge de boates gays, evita ser visto na cidade com um de seus namorados e sempre atravessa a fronteira espanhola para se encontrar com outros homens.

Com o choque, Jeremy MacMillan tinha ficado mudo. De repente, ficou apavorado. Ignorava como ela descobrira tudo aquilo, mas o fato é que ela tinha informações suficientes para acabar com ele.

— E eu vou falar uma vez só: não me interessa nem um pouco com quem você trepa. Não tenho nada com isso. Quero saber quem você é, mas jamais iria tirar vantagem do que sei. Não tenho a intenção de te ameaçar nem de te chantagear.

MacMillan não era nenhum idiota. Percebeu, obviamente, que o que ela sabia a seu respeito representava uma ameaça. Ela estava no controle. Por um instante, considerou a possibilidade de erguê-la e jogá-la sacada abaixo, mas controlou-se. Nunca na vida havia sentido tanto medo.

— O que você quer? — conseguiu articular.

— Uma associação com você. Você vai encerrar todos os seus outros casos em andamento e trabalhar para mim com exclusividade. Vai ganhar mais dinheiro do que jamais sonhou.

Ela explicou o que queria que ele fizesse e como imaginava as linhas gerais do caso.

— Quero permanecer invisível — ela explicou. — Você administra meus negócios. Tudo na mais perfeita legalidade. O que eu aprontar do meu lado nunca irá te atingir e nunca vai ter relação com os nossos negócios.

— Entendo.

— Então eu vou ser sua única cliente. Você tem uma semana para encerrar com os seus outros clientes e com todas as suas tramoiazinhas.

Ele também percebeu que acabava de receber uma proposta que nunca se repetiria. Refletiu por um minuto, e então aceitou. Tinha apenas uma pergunta a fazer.

— Como você sabe que eu não vou te sacanear?

— Faça isso, e você vai se arrepender pelo resto da sua vidinha miserável.

Não havia motivo nenhum para trapacear. Lisbeth Salander lhe propunha um trabalho que era potencialmente tão vantajoso que seria um absurdo colocá-lo em risco por uma ninharia. Enquanto ele não tivesse grandes pretensões e não fizesse besteira, seu futuro estava garantido.

Não tinha a intenção de sacanear Lisbeth Salander.

Portanto tinha se tornado honesto, ou pelo menos tão honesto quanto pode ser um advogado suspeito que administra uma pilhagem de proporções astronômicas.

Lisbeth não estava nem um pouco interessada em administrar suas finanças. A tarefa de MacMillan era aplicar o dinheiro dela e cuidar para que houvesse saldo suficiente nos cartões bancários que ela utilizava. Conversaram por algumas horas. Ela explicou como queria que suas finanças funcionassem. O trabalho dele consistia em cuidar desse funcionamento.

Boa parte da quantia roubada fora aplicada em fundos estáveis, o que a tornava financeiramente independente pelo resto da vida, mesmo que ela resolve-se gastar a rodo e levar uma existência perdulária. Esses fundos serviriam para abastecer o saldo de seus cartões de crédito.

Quanto ao restante do dinheiro, ele podia brincar de investir à vontade, contanto que não investisse em nada que criasse problemas com a polícia. Ele estava proibido de cometer pequenos furtos ridículos e fraudes insignificantes, que — se o azar resolvesse dar as caras — acarretariam investigações que, por sua vez, poderiam chamar a atenção para ela. Restava definir o quanto ele ganharia com o serviço.

— Os honorários iniciais são de quinhentas mil libras. Você vai poder pagar suas dívidas e ainda ficar com uma bela quantiazinha. Depois disso, você vai ganhar seu próprio dinheiro. Vai abrir uma empresa, tendo a mim como sócia. Vinte por cento dos lucros são seus. Quero que você seja suficientemente rico para não ficar tentado a fazer besteira, mas não rico o bastante para se acomodar.

Ele deu início a seu novo trabalho em 1º. de fevereiro. No final de março, já tinha quitado todas as suas dívidas pessoais e equilibrado seu orçamento. Lisbeth insistira para que ele priorizasse a organização de suas finanças e saísse do vermelho. Em maio, ele encerrou a sociedade com seu colega alcoólatra George Marks, a outra metade da MacMillan & Marks. Sentiu uma pontinha de culpa em relação a seu antigo parceiro, mas estava fora de cogitação envolver Marks nos negócios de Lisbeth Salander.

Ele conversou sobfe o assunto com Lisbeth quando, no início de julho, ela o visitou um dia em Gibraltar e descobriu que MacMillan estava trabalhando em seu apartamento e não no pequeno escritório numa rua afastada que lhe coubera até então.

— O meu sócio é alcoólatra e seria difícil para ele se virar nos nossos assuntos. Pelo contrário, ele representaria um grande fator de risco. Mas quando eu cheguei a Gibraltar, há quinze anos, ele me salvou a vida ao me aceitar como sócio.

Ela refletiu por uns dois minutos, observando MacMillan.

— Entendo. Você é um patife leal. Essa é, sem dúvida, uma qualidade admirável. Sugiro que você abra uma pequena conta para que ele se divirta à vontade. Cuide para que ele ganhe todo mês algumas notas de mil, o suficiente para viver.

— Você me dá sinal verde?

Ela fez que sim com a cabeça e olhou para o apartamento de solteirão dele. MacMillan morava numa quitinete numa das vielas próximas ao hospital. A única coisa agradável era a vista. Embora fosse difícil escapar daquela vista em Gibraltar.

— Você precisa de um escritório e de outro apartamento — disse ela

— Não deu tempo — ele respondeu.

— Tudo bem — disse ela.

E então ela o levou às compras e conseguiu um escritório de cento e trinta metros quadrados com uma pequena sacada com vista para o mar, no Buchanan House, em Queensway Quay, o que em Gibraltar era o suprassumo. Contratou um arquiteto de interiores para repaginar e mobiliar o local.

MacMillan recordou que, enquanto ele se ocupava da papelada, Lisbeth acompanhara pessoalmente a instalação do sistema de alarme, do equipamento de informática e do armário de segurança, esse mesmo que ela havia vasculhado antes de ele chegar ao escritório naquela manhã.

— Caí em desgraça? — ele perguntou.

Ela largou a pasta de correspondência que estava examinando.

— Não, Jeremy. Você não caiu em desgraça.

— Que bom — disse ele, e foi buscar um café. — Você realmente tem o dom de aparecer quando a gente menos espera.

— Andei ocupada nos últimos tempos. Eu só queria me atualizar sobre as últimas notícias.

— Se entendi bem a história toda, você esteve sendo procurada por triplo assassinato, levou uma bala na cabeça e foi acusada de mais um monte de crimes. Teve uma hora em que fiquei realmente preocupado. Achei que você ainda estivesse atrás das grades. Você fugiu?

— Não. Fui absolvida de todas as acusações e me puseram em liberdade. Você ouviu dizer o quê, exatamente?

Ele hesitou um segundo.

— Certo. Não vou mentir. Quando percebi que você estava na pior, contratei uma agência de tradução, que foi me dissecando todos os jornais suecos e me informando do desenrolar da história. Estou relativamente bem informado.

— Se você se baseou no que saiu nos jornais, não pode estar bem informado. Mas imagino que tenha descoberto alguns segredos sobre mim.

Ele fez que sim com a cabeça.

— E agora, o que vai acontecer? — perguntou MacMillan. Ela olhou para ele, surpresa.

— Nada. Vai continuar tudo igual. A nossa relação não tem nada a ver com os meus problemas na Suécia. Me conte o que aconteceu durante a minha ausência. Como é que você se virou?

— Eu não bebo — disse ele. — Se é o que você quer dizer.

— Não. A sua vida pessoal não é assunto meu, desde que não interfira nos meus negócios. O que eu quero dizer é: estou mais ou menos rica do que um ano atrás?

Ele puxou a cadeira das visitas e se sentou. Não via o menor problema em Lisbeth Salander estar sentada no lugar dele. Não havia motivo para entrar numa luta de poder com ela.

— Você me entregou dois bilhões e quatrocentos milhões de dólares. Investimos duzentos milhões em fundos para você. O resto você me deu para brincar.

— Isso.

— Os seus fundos pessoais só variaram nos juros. Posso aumentar seus rendimentos se...

— Não estou interessada em aumentar meus rendimentos.

— Certo. Você só gastou uma quantia ridícula. As maiores despesas foram o apartamento que comprei para você e o fundo beneficente para aquele advogado, o Palmgren. No mais, você teve um consumo normal, pequeno até. Os juros foram vantajosos. Você está mais ou menos com o que tinha no início.

— Ótimo.

— O resto eu investi. No ano passado não conseguimos grande coisa. Eu estava meio enferrujado e levei algum tempo até reaprender como o mercado funciona. Tivemos despesas. Este ano é que vamos começar a ter lucro. Enquanto você esteve presa, tivemos uma entrada de povico mais de sete milhões. De dólares, quero dizer.

— Dos quais vinte por cento são para você.

— Dos quais vinte por cento são para mim.

— Está satisfeito?

— Ganhei mais de um milhão de dólares em seis meses. Sim Estou satisfeito.

— Olha... não seja guloso demais. Você pode se afastar quando estiver satisfeito. Mas continue administrando meus negócios algumas horas, aqui e ali.

— Dez milhões de dólares — disse ele.

— Como?

— Depois que eu juntar dez milhões de dólares, eu paro. Foi bom você ter vindo. Temos umas coisas para conversar.

— Diga-

Ele afastou as mãos.

— Essa coisa toda representa tanto dinheiro que entro meio em pânico. Não sei como lidar com isso. Não sei qual o objetivo das operações, fora ganhar mais e mais. Para que vai servir esse dinheiro todo?

— Não sei.

— Nem eu. Mas o objetivo do dinheiro pode acabar virando o próprio dinheiro. E isso não é bom. Por isso, resolvi parar depois que juntar dez milhões. Não quero mais essa responsabilidade.

— Certo.

— Antes de eu me afastar, queria que você decidisse como quer que sua fortuna seja administrada no futuro. Precisa haver um objetivo, diretrizes e uma organização que assuma a responsabilidade.

— Humm.

— E impossível uma pessoa só aplicar tanto dinheiro assim em múltiplas aplicações. Eu dividi a quantia, de um lado em investimentos fixos a longo prazo: imóveis, títulos, esse tipo de coisa. Tenho uma lista completa no computador.

— Eu li.

— A outra parte eu uso para especular, mas é tanto dinheiro para administrar que não estou dando conta. Por isso, abri uma empresa de investimentos em Jersey. Por enquanto, você tem seis funcionários em Londres. Dois jovens investidores competentes mais um pessoal de escritório.

— A Yellow Ballroom Ltd.? Eu estava mesmo me perguntando o que era isso.

— É a nossa empresa. Aqui, em Gibraltar, eu contratei uma secretária e um jovem e promissor advogado... aliás, eles devem chegar daqui a uma meia hora.

— Ahã. Molly Flint, quarenta e um anos, e Brian Delaney, vinte e seis

anos.

— Você quer conhecer os dois?

— Não. O Brian é seu amante?

— O quê? Não!

Ele pareceu chocado.

— Eu não misturo...

— Muito bem.

— Aliás... carinhas jovens não me interessam... quero dizer, os caras sem experiência.

— Eu sei, você tem atração por uns caras com uma aparência mais sarada do que um garotão pode oferecer. Continua não sendo assunto meu. Mas, Jeremy...

— Sim?

— Tome cuidado.

Lisbeth não tinha programado ficar em Gibraltar mais do que duas semanas para reorientar a sua vida. A certa altura, porém, descobriu que não tinha a menor idéia do que ia fazer nem de que rumo tomar. Ficou doze semanas. Verificava seu correio eletrônico uma vez por dia e respondia com docilidade aos e-mails de Annika Giannini nas raras vezes em que mandava notícias. Não dizia onde estava. Não respondia aos outros e-mails.

Continuava freqüentando o Harry's Bar, mas agora só aparecia no final da tarde para tomar uma cerveja. Passava a maior parte do dia no Rock, ou no terraço, ou na cama. Teve mais um relacionamento casual, com um oficial trintão da Marinha britânica, mas foi apenas um caso de uma noite e, em suma, uma experiência desinteressante.

Ela percebeu que estava se entediando.

No início de outubro, jantou com Jeremy MacMillan. Os dois tinham se visto poucas vezes durante sua estada. Já anoitecera, e eles bebiam um vinho branco frutado e discutiam a melhor maneira de empregar os bilhões de Lisbeth. De repente, ele a surpreendeu perguntando-lhe o que a estava perturbando.

Ela olhou para ele enquanto refletia. Então, de forma também surpreendente, falou na sua relação com Miriam Wu, de como ela fora espancada e quase morta por Ronald Niedermann. Por sua culpa. A não ser por um alô transmitido por Annika Giannini, Lisbeth não tivera mais notícia de Miriam Wu, que agora estava morando na França.

Jeremy MacMillan ficou algum tempo sem falar nada.

— Você está apaixonada por ela? — perguntou de repente.

Lisbeth Salander pensou antes de responder. Por fim, balançou a cabeça.

— Não. Não acho que eu seja do tipo que se apaixona. Ela era uma amiga. E transava muito bem.

— Ninguém pode evitar de se apaixonar — disse ele. — A gente talvez queira negar, mas a amizade é sem dúvida a forma mais comum de amor.

Ela olhou para ele, estupefata.

— Você vai ficar chateada se eu disser uma coisa pessoal?

— Não.

— Se manda pra Paris, caramba.

Ela aterrissou no aeroporto Charles de Gaulle às duas e meia da tarde, pegou o ônibus para o Arco do Triunfo e passou duas horas percorrendo as redondezas em busca de um quarto de hotel. Foi na direção do sul e do Sena, e só muito tempo depois encontrou por fim um quarto no pequeno Hotel Victor-Hugo, na Rue Copernic.

Tomou um banho e ligou para Miriam Wu. Elas se encontraram por volta das nove da noite num bar perto de Notre-Dame. Miriam Wu usava uma camisa branca e um blazer. Estava sublime. Lisbeth sentiu-se imediatamente desconfortável. Trocaram beijos.

— Desculpe eu não ter te dado notícias nem ter aparecido no julgamento — disse Miriam Wu.

— Tudo bem. O julgamento acabou sendo a portas fechadas.

— Passei três semanas no hospital e, quando voltei para a Lundagatan, estava tudo um caos. Eu não conseguia dormir. Tinha pesadelos com esse canalha do Niedermann. Liguei para a minha mãe dizendo que queria vir morar com eles.

Lisbeth meneou a cabeça.

— Me desculpe — disse Miriam Wu.

— Não seja boba. Eu é que vim te pedir desculpas.

— Por quê?

— Eu fui muito burra. Em nenhum momento me ocorreu que eu estivesse colocando sua vida em perigo quando deixei o apartamento para você mas continuei oficialmente morando nele. Se você quase morreu, é culpa minha. Entendo que você me odeie.

Miriam pareceu estupefata.

— Isso nem me passou pela cabeça. Quem tentou me matar foi o Ronald Niedermann. Não você.

Permaneceram algum tempo em silêncio.

— Está bem — disse Lisbeth afinal.

— Certo — disse Miriam Wu.

— Eu não vim atrás de você porque estou apaixonada — disse Lisbeth. Miriam fez um gesto de assentimento com a cabeça.

— Você é superboa dê cama, mas eu não estou apaixonada por você — enfatizou Lisbeth.

— Lisbeth... eu acho...

— O que eu queria dizer é que eu espero que... droga.

— O quê?

— Eu não tenho muitos amigos... Miriam Wu assentiu com a cabeça.

— Vou ficar em Paris por um tempo. Meu curso na Suécia não deu certo e acabei me matriculando na universidade daqui. Vou ficar no mínimo um ano.

Lisbeth fez que sim com a cabeça.

— Depois, não sei. Mas vou voltar para Estocolmo. Vou pagar as taxas do apartamento da Lundagatan, eu queria ficar com ele. Se você topar.

— O apartamento é seu. Você faz o que quiser com ele.

— Lisbeth, você é mesmo especial — disse ela. — Eu quero continuar sendo sua amiga.

Conversaram por cerca de duas horas. Lisbeth não tinha nenhum motivo para esconder seu passado de Miriam Wu. Qualquer pessoa que tivesse tido acesso aos jornais suecos conhecia o caso Zalachenko, e Miriam o acompanhara com interesse. Ela contou com detalhes o que acontecera em Nykvarn na noite em que Paolo Roberto salvara sua vida.

Depois, foram até o quarto de estudante de Miriam Wu, perto da universidade.


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