7 - SÁBADO 29 DE JANEIRO – DOMINGO 13 DE FEVEREIRO


O gigante loiro entrou na aldeia de Svavelsjõ, entre Jàrna e Vagnharad, por volta das onze da manhã de sábado. O lugarejo compunha-se de umas quinze casas. Parou o carro na última construção, cerca de cento e cinquenta metros fora da aldeia. Era um antigo prédio industrial desbotado onde antes funcionara uma gráfica, mas que, de acordo com uma placa, hoje sediava o Moto Clube de Svavelsjõ. Embora o tráfego fosse inexistente, ele olhou em volta com atenção antes de abrir a porta. O ar estava frio. Vestiu luvas de couro marrom e tirou uma sacola esportiva do porta-malas.

Não que receasse ser notado. A velha gráfica estava localizada de tal modo que era quase impossível estacionar um carro sem ser visto. Se os tiras quisessem vigiar a construção, teriam de equipar seus homens com roupa de camuflagem e posicioná-los numa vala do outro lado do pasto, munidos de telescópios. Seriam rapidamente avistados pelas pessoas da aldeia, que comentariam e, como três daquelas casas pertenciam a membros do Moto Clube, em pouco tempo a notícia chegaria ao diretor do clube.

Em compensação, não queria entrar na casa. Os tiras já tinham feito duas ou três blitze na sede do clube, e vá saber se não tinham instalado um discreto sistema de escuta. Isso fazia que as conversas lá dentro se limitassem a carro, mulher e cerveja, ou até a projetos econômicos, e raramente girassem em torno de segredos de importância capital.

O gigante loiro esperou pacientemente, portanto, que Carl-Magnus Lundin saísse para o pátio. Magge Lundin, trinta e seis anos, era o presidente do clube. A princípio de constituição magra, tinha adquirido tantos quilos em alguns anos que ostentava a barriga característica dos bebedores de cerveja. Seu cabelo loiro era preso num rabo de cavalo e ele usava botinas, calça jeans preta e um casaco grosso de inverno. O sujeito tinha cinco condenações no currículo. Duas por pequenas infrações ligadas a droga, uma por receptação agravada e uma por roubo de carro e dirigir embriagado. A quinta condenação, mais séria, valera-lhe um ano de prisão por golpes e ferimentos agravados, um ato desnecessário e inteiramente gratuito cometido vários anos antes, quando, sob efeito do álcool, detonara um bar em Estocolmo.

Apertaram-se as mãos. Magge Lundin fez um sinal com a cabeça e eles puseram-se a andar devagar ao longo da cerca do pátio.

—Fazia meses que a gente não se via - disse Magge. O gigante loiro assentiu com a cabeça.

—Estamos num golpe. Mais de três quilos de metanfetamina, 3060 gramas para ser mais preciso.

—Igual à outra vez?

—Meio a meio.

Magge Lundin tirou um maço de cigarros do bolso interno do casaco. Meneou a cabeça. Gostava de fazer negócios com o gigante loiro. A metanfetamina era revendida nas ruas entre cento e sessenta e duzentas e trinta coroas por grama, conforme a oferta do momento. Aqueles 3060 gramas representavam mais de seiscentas mil coroas. Concretamente, o MC Svavelsjö distribuiria os três quilos em porções de cerca de duzentos e cinquenta gramas para revendedores fixos. Naquele elo da corrente, o preço era apenas cento e vinte ou cento e trinta coroas por grama, o que evidentemente reduzia o lucro teórico.

Era um bom negócio para o MC Svavelsjö. Diferentemente dos outros fornecedores, o gigante loiro nunca insistia para ser pago adiantado e nem impunha seus preços. Entregava a mercadoria e exigia cinquenta por cento dos lucros, um quinhão perfeitamente razoável. As duas partes sabiam, grosso modo, o quanto ganhariam com um quilo de metanfetamina; o valor exato dependeria da eficiência de Magge Lundin na hora da venda. Previa-se uma diferença de algumas cédulas de mil para mais ou para menos, mas, uma vez terminado o negócio, o gigante loiro voltaria para embolsar uma quantia de cerca de cento e noventa mil coroas e o mesmo tanto ficaria no caixa do MC Svavelsjö.

Fazia muitos anos que o negócio entre eles funcionava nesse sistema. Magge Lundin sabia que o gigante loiro poderia duplicar seus ganhos tratando pessoalmente da distribuição. Sabia também por que o gigante loiro aceitava um lucro menor: permanecia na moita, enquanto o MC Svavelsjö assumia todos os riscos. E, à diferença de todos os outros fornecedores que Lundin conhecia, a relação se baseava nos princípios comerciais do crédito e da boa vontade. Nunca se elevava o tom de voz, nunca havia complicações ou ameaças.

Uma vez, inclusive, num fornecimento de armas que tinha dado errado, o gigante loiro tivera de engolir um prejuízo de quase cem mil coroas. Magge Lundin não conhecia ninguém no ramo capaz de absorver um prejuízo desses com uma calma tão estoica. Ele próprio estava apavorado de ter de se encontrar com ele para contar o que tinha acontecido. Explicara em detalhes por que o negócio tinha gorado, e por que um tira do Centro de Prevenção Criminal dera uma batida na casa de um dos membros da Fraternidade Ariana no Vármland. O gigante, porém, nem sequer levantou a sobrancelha. Até se mostrou simpático. Essas coisas aconteciam. Magge Lundin não tivera o lucro esperado e cinquenta por cento de nada era igual a zero. Assunto encerrado.

Magge Lundin não era desprovido de inteligência. Compreendia que um lucro menor, mas com relativamente pouco risco, era simplesmente uma boa idéia comercial.

Nunca cogitara enrolar o gigante loiro. Não teria sido fair-play. O gigante loiro e seus sócios aceitavam um lucro pequeno desde que as contas fossem honestas. Se ele tentasse enrolar o gigante, o cara viria ter com ele de qualquer jeito, e Magge Lundin tinha todos os motivos para achar que nessa ele perderia a vida. De modo que nem pensar em discutir.

—Quando você pode entregar?

O gigante loiro largou a sacola esportiva no chão.

—Está entregue.

Magge Lundin não se deu ao trabalho de abrir a sacola e conferir o conteúdo. Contentou-se em estender a mão para demonstrar que eles tinham um acordo e que cabia a ele cumprir sua parte.

—Tem outra coisa - disse o gigante loiro.

—O quê?

—A gente queria te contratar para um serviço especial.

—Pode falar.

O gigante loiro pegou um envelope do bolso interno da jaqueta. Magge Lundin o abriu e tirou uma foto de identidade e um papel contendo dados pessoais. Ergueu as sobrancelhas num ponto de interrogação.

—Ela se chama Lisbeth Salander, mora na Lundagatan, no Södermalm, em Estocolmo.

—Está anotado.

—Ela deve estar no exterior no momento, mas vai acabar aparecendo uma hora dessas.

—A gente vai estar lá.

—O meu patrão queria ter uma conversinha particular com ela sem ser incomodado. Ela precisa ser entregue viva. Por exemplo, naquele hangar perto de Yngern. Tem que providenciar alguém para fazer uma faxina depois da conversa. Ela deve sumir sem deixar rastro.

—Dá para fazer. Como a gente vai saber que ela chegou?

—Eu aviso quando for a hora.

—Quanto?

—Dez milhões no total. Não é um serviço complicado. Você vai até Estocolmo, pega a moça e me entrega.

Apertaram-se as mãos mais uma vez.

Na sua segunda visita à Lundagatan, Lisbeth se sentou no sofá para refletir. Precisava tomar algumas decisões estratégicas, e uma delas era resolver se ficava ou não com aquele apartamento.

Acendeu um cigarro, soprou a fumaça para o teto e jogou a cinza numa latinha vazia de Coca.

Não havia nenhum motivo para ela gostar do apartamento, para o qual se mudara com a mãe e a irmã quando tinha quatro anos. A mãe ocupava a sala, ao passo que ela e Camilla dividiam o quartinho. Com doze anos, quando Todo o Mal acontecera, ela primeiro tinha sido internada numa clínica pediátrica e depois, aos quinze anos, passara por diferentes famílias adotivas. Seu administrador ad hoc legal, Holger Palmgren, sublocara o apartamento e dera um jeito para que ela o recuperasse quando atingiu a maioridade e precisou de um lugar para morar.

Nunca fora para ela um apartamento da felicidade, mas representara um ponto de referência durante a maior parte de sua existência. Embora não precisasse dele, a idéia de abandoná-lo e que estranhos viessem andar em seu piso a revoltava.

O problema logístico era que toda a sua correspondência oficial — até onde ela recebia correspondência — chegava na Lundagatan. Abandonar o apartamento a obrigaria a adotar um novo endereço. Lisbeth Salander não tinha muita vontade de ser uma pessoa concretamente presente em arquivos de todos os tipos. Mentalmente, funcionava no âmbito da paranóia e ela não tinha motivo nenhum para confiar nas autoridades nem, aliás, em quem quer que fosse.

Pela janela, viu o muro do pátio dos fundos que contemplara a sua vida inteira. Súbito, sentiu-se aliviada por ter decidido sair do apartamento. Nunca se sentira à vontade ou em segurança dentro dele. Sóbria ou bêbada de cair, cada vez que virava a esquina e se aproximava do portão do prédio dava uma boa olhada nos arredores, nos carros estacionados, nos pedestres. Tinha todos os motivos para achar que em algum lugar havia pessoas querendo lhe fazer mal, e muito provavelmente essas pessoas passariam ao ataque quando ela estivesse entrando ou saindo de casa.

Nunca houvera, no entanto, nenhuma agressão nem acontecera absolutamente nada. Mas nem por isso ela relaxava a vigilância. O endereço da Lundagatan estava em todos os arquivos oficiais, e em todos aqueles anos ela nunca tivera como incrementar sua segurança senão ficando permanentemente alerta. Não queria, de jeito nenhum, que alguém soubesse do seu novo endereço na Fiskaregatan. Seu instinto lhe dizia para se manter tão anônima quanto possível.

Isso, porém, não resolvia a questão do que ela deveria fazer com o apartamento. Ficou mais algum tempo quebrando a cabeça, depois pegou o celular e ligou para Mimmi.

—Oi, sou eu.

—Oi, Lisbeth. Desta vez está dando notícias depois de uma semana?

—Estou na Lundagatan.

—Sei.

—Fiquei pensando se você se interessaria em ficar com o meu apartamento.

—Como assim, ficar com o seu apartamento?

—Você mora numa caixa de sapatos.

—Mas me sinto bem aqui. Você pretende se mudar?

—Eu já me mudei. O apartamento está vazio. Mimmi hesitou do outro lado da linha.

—E está me perguntando se quero ficar com ele? Ora, Lisbeth, não tenho condições para isso.

—Ele está quitado. São 1480 coroas de condomínio por mês, o que deve ser menos do que você paga pela sua caixa de sapatos. E já está pago por um ano.

—Mas você pretende vender. Quero dizer, ele deve valer muito mais que um milhão.

—Um e meio, segundo os anúncios das imobiliárias.

—Eu não tenho condições.

—E eu não tenho intenção de vender. Você pode se mudar ainda hoje, pode morar aqui o tempo que quiser e não vai ter condomínio para pagar durante um ano. Não tenho o direito de sublocar, mas posso mencionar no contrato que você é minha companheira, assim você evita problemas com o condomínio.

—Espera aí, Lisbeth, você está me pedindo em casamento! — riu Mimmi.

O rosto de Lisbeth ficou de uma seriedade papal.

—O apartamento não me serve para nada e não tenho a intenção de vender.

—Quer dizer que eu posso morar aí de graça... Não é gozação?

—Não.

—Por quanto tempo?

—Pelo tempo que você quiser. Te interessa?

—Mas claro. Não é todo dia que me oferecem um apartamento de graça no Söder, e morar num bairro chique é tentador.

—Só tem uma coisa.

—Eu sabia.

—Você pode morar aqui o tempo que quiser, mas este vai continuar sendo o meu endereço, e a minha correspondência vai vir para cá. Só o que eu te peço é para pegar a correspondência e me avisar se tiver algo que interesse.

—Lisbeth, você é a mulher mais maluca que eu conheço. O que você está aprontando? Onde vai morar?

—A gente fala nisso outra hora — disse Lisbeth, evasiva.

Combinaram de se encontrar mais no final da tarde para que Mimmi conhecesse o apartamento. Com as coisas assim acertadas, Lisbeth se sentiu bem melhor. Consultou o relógio e concluiu que ainda tinha muito tempo antes de Mimmi chegar. Levantou-se e foi a pé até o Handelsbanken, na Hornsgatan, onde pegou uma senha e esperou pacientemente até um caixa ficar livre.

Mostrou sua carteira de identidade e explicou que tinha ficado algum tempo fora do país e queria consultar o extrato de sua poupança. Seu capital oficialmente declarado era de 82670 coroas. A conta tinha ficado parada por mais de um ano, a não ser por um depósito de 9312 coroas feito no outono. A herança de sua mãe.

Lisbeth Salander sacou a quantia correspondente à herança. Refletiu um momento. Queria usar esse dinheiro em alguma coisa que teria agradado à sua mãe. Alguma coisa especial. Foi até a agência de correios da Rosenlundsgatan e, sem que ela própria entendesse o porquê desta escolha, fez uma doação anônima na conta do SOS-Mulheres.

Eram oito da noite de sexta-feira, quando Erika desligou o computador e se espreguiçou. Tinha passado nove horas fazendo a última revisão da edição de março da Millennium e, como Malu Eriksson estava trabalhando em tempo integral no número temático de Dag Svensson, ela mesma tivera de fazer boa parte da redação. Henry Cortez e Lottie Karim até tinham lhe dado uma mão, mas eles tinham mais experiência como correspondente e repórter do QUE EM escrever.

De modo que Erika Berger se sentia cansada, e com o traseiro dolorido, mas no conjunto estava satisfeita com o seu dia e com a vida em geral. As finanças da revista andavam estáveis, as curvas dos gráficos estavam na direção certa, os textos chegavam antes do prazo-limite ou, pelo menos, sem muito atraso, os funcionários estavam satisfeitos e, passado um ano, continuavam estimulados pela injeção de adrenalina que o caso Wennerstrôm representara.

Passou uns momentos tentando massagear a nuca, pensou que uma chuveirada lhe faria muito bem e cogitou utilizar o banheirinho que ficava atrás da copa. Mas sentiu preguiça e contentou-se em descansar os pés sobre a mesa, constatando que ia fazer quarenta e cinco anos dali a três meses e que o tal futuro de que todo mundo falava estava começando a fazer cada vez mais parte do passado. O contorno dos seus olhos e boca já apresentava uma fina rede de pequenas rugas, mas ela sabia que ainda era bonita, e sua rotina incluía duas sessões infernais de academia por semana. Reconhecia que andava tendo mais dificuldade para subir no topo do mastro, quando fazia cruzeiros com o marido. Era sempre ela que subia quando necessário - Lars, seu marido, sofria de vertigem.

Também ponderou que seus primeiros quarenta e cinco anos de vida, apesar de alguns altos e baixos, no geral haviam sido felizes. Ela tinha dinheiro, status social, uma casa sensacional e um trabalho que adorava. Tinha um marido carinhoso que a amava e pelo qual ainda era, depois de quinze anos de casados, loucamente apaixonada. E, além disso, um amante agradável e aparentemente incansável que sem dúvida não satisfazia sua alma, mas seu corpo, nos momentos de necessidade urgente.

Sorriu, de repente, ao pensar em Mikael Blomkvist. Perguntou-se quando ele iria criar coragem para lhe confessar que tinha um caso com Harriet Vanger. Nem Mikael nem Harriet haviam sequer mencionado seu relacionamento, mas Erika não tinha nascido ontem. Por causa de um súbito palpite durante a reunião de agosto do conselho administrativo, e de uma troca de olhares entre Mikael e Harriet, ela percebera que havia alguma coisa entre os dois. Esperta, tentara ligar mais à noite para o celular de um e de outro e não se surpreendeu ao ver que estavam desligados. Claro que isso em si não constituía uma prova decisiva, mas nas reuniões seguintes observou que Mikael também nunca era encontrado à noite. Foi até engraçado ver com que rapidez Harriet deixara o restaurante depois da assembléia geral, pretextando cansaço e necessidade de dormir. Erika não sentia ciúmes nem vontade de levar a investigação adiante, mas pretendia mexer com os dois a respeito.

Nem pensava em se meter nas histórias de Mikael com as mulheres — que eram muitas e complicadas; só esperava que a relação dele com Harriet não resultasse em problemas na diretoria. Mas não chegava a se preocupar; Mikael não só era mestre em deixar suas amizades femininas bobas de satisfação como sabia terminar um caso sem criar nenhum drama. Sempre se tornava um bom amigo de suas ex-amantes e muito raramente se vira em dificuldades.

Quanto a Erika, adorava ser amiga e confidente de Mikael. Em certos aspectos, ele era absolutamente tapado e em outros, tão perspicaz que parecia um oráculo. Mikael nunca compreendera o amor que ela nutria pelo marido. Achava difícil aguentar Lars Beckman e nunca entendera por que Erika o considerava um ser fascinante, ardoroso, excitante e generoso, e, principalmente, desprovido dos tantos defeitos que ela detestava em muitos homens. Lars era o homem com quem ela queria envelhecer. Queria ter tido filhos com ele, mas isso se revelara impossível e agora já era tarde demais. Em sua escolha por um parceiro de vida, porém, não podia imaginar alternativa melhor e mais estável - um homem em quem podia confiar totalmente e estava sempre presente quando precisava dele.

Mikael era diferente. Era um homem com traços de caráter tão cambiantes que, a seu ver, às vezes parecia dotado de múltiplas personalidades. No lado profissional, era teimoso e quase doentiamente focado no trabalho. Apossava-se de uma história e ia avançando obstinadamente por ela até o ponto, próximo à perfeição, em que todos os fios se desatavam. Nos seus melhores momentos, era simplesmente brilhante e quando acontecia de ele ser ruim, ainda assim era muito acima da média. Parecia possuir um talento quase intuitivo para pôr o dedo em histórias que tinham dente-de-coelho e deixar para lá as que nunca passariam de bagatelas sem interesse. Nunca, em momento algum, Erika Berger se arrependera de ter se associado a Mikael.

Também nunca se arrependera de ter se tornado sua amante.

O único que entendia a paixão sexual de Erika Berger por Mikael Blomkvist era seu marido, e entendia porque ela tinha coragem de conversar sobre suas necessidades com ele. Não se tratava de infidelidade, mas de um desejo. Dormir com Mikael mergulhava-a em delícias que nenhum outro homem, inclusive Lars, sabia lhe dar.

O sexo era importante para Erika Berger. Ela perdera a virgindade aos catorze anos e passara boa parte de sua adolescência frustrada buscando a satisfação. Adolescente, experimentara de tudo: flertes avançados com colegas de escola, relação complicada com um professor bem mais velho, sexo por telefone e sexo com um neurótico. Provara de tudo o que lhe interessava no campo do erotismo. Se ensaiara em práticas sadomasoquistas, fora membro do clube Xtreme, que organizava festas pouco recomendáveis. Em várias oportunidades, experimentara o sexo com outras mulheres e concluíra, decepcionada, que não era a praia dela e que as mulheres eram incapazes de excitá-la como um homem. Ou dois homens. Experimentara o sexo com dois homens - Lars e um conhecido galerista. Percebera que seu marido tinha uma tendência bissexual muito acentuada, e que ela própria ficava quase paralisada de gozo ao sentir dois homens acariciando-a e satisfazendo-a, assim como sentia um túrbido prazer ao ver seu marido ser acariciado por outro homem. Lars e ela tinham repetido essa prática com parceiros regulares e a apreciaram.

Assim, não é que sua vida sexual com Lars fosse tediosa ou insatisfatória. É que simplesmente Mikael Blomkvist lhe oferecia uma experiência muito diversa.

Ele tinha talento. Era simplesmente um Amante Danado de Bom.

Tão bom que ela tinha a impressão de ter alcançado o equilíbrio perfeito com Lars como marido e Mikael como amante substituto segundo as necessidades. Não podia passar sem nenhum dos dois e não tinha a menor intenção de optar por um deles.

O que mais a atraía na relação com Mikael é que ele não tinha a menor propensão para controlá-la. Não era nem um pouco ciumento, e se ela própria tivera várias crises de ciúmes no início do seu relacionamento, vinte anos atrás, descobrira que, no caso dele, não tinha por que ter ciúmes. Sua relação era baseada na amizade, e ele era de uma lealdade sem limites na amizade. Sua relação podia sobreviver aos piores golpes.

Erika Berger tinha consciência de pertencer a um círculo de pessoas cujo estilo de vida não seria aprovado pela Associação das Donas de Casa Cristãs da Suécia Profunda. O que para ela não era nenhum problema. Desde jovem resolvera que o que ela fazia na cama e o seu jeito de viver a vida só diziam respeito a si mesma. Mas ficava irritada de ver tantos amigos seus comentarem sua relação com Mikael Blomkvist, e sempre pelas costas.

Mikael era homem. Podia ir de uma cama a outra sem que ninguém sequer piscasse. Ela era mulher, e o fato de ter um amante, um só, e isso com a aprovação do marido - e ainda por cima ser fiel a esse amante há vinte anos -, suscitava conversas no mínimo interessantes nos jantares da cidade. As pessoas realmente não têm mais o que fazer! Refletiu um instante, então pegou o telefone e ligou para o marido.

—Sou eu. Querido, o que você está fazendo?

—Estou escrevendo.

Lars Beckman não era apenas artista plástico; era sobretudo especialista em história da arte e autor de vários livros sobre o assunto. Participava regularmente de debates públicos, e grandes empresas de arquitetura o consultavam com freqüência. Nos últimos seis meses, vinha trabalhando na importância da decoração artística dos edifícios e a questão do bem-estar que as pessoas sentiam em certos prédios e em outros não. O livro assumira ares de panfleto sobre funcionalidade e, na opinião de Erika, iria sacudir o debate estético.

—Tudo bem com você?

—Tudo. Tudo tranqüilo. E com você?

—Acabo de fechar o último número. Ele vai para a gráfica na quinta-feira.

—Parabéns.

—Estou absolutamente exausta.

—Tenho a impressão que você está tramando alguma coisa.

—Você planejou alguma coisa para hoje à noite? Ficaria muito chateado se eu não dormisse em casa hoje?

—Diga ao Blomkvist que ele está brincando com fogo — disse Lars.

—Acho que ele não liga.

—Certo. Diga a ele que você é uma bruxa insaciável e que ele vai envelhecer antes do tempo.

—Ele já sabe.

—Nesse caso, só me resta o suicídio. Vou ficar escrevendo até cair de sono. Divirta-se.

Trocaram beijos ao telefone e então Erika ligou para Mikael. Ele estava na casa de Dag Svensson e Mia Bergman, em Enskede, acabavam de acertar alguns detalhes meio confusos do livro de Dag. Ela perguntou se ele tinha algum compromisso à noite ou se aceitaria fazer massagem numas costas doloridas.

—Você tem a chave - disse Mikael. —Sinta-se em casa.

—É o que eu pretendo fazer - ela respondeu. —Nos vemos em uma hora.

Levou dez minutos para ir a pé até a Bellmansgatan. Despiu-se, tomou um banho, preparou um espresso, enfiou-se na cama de Mikael e esperou nua e impaciente.

Ocorreu-lhe que a satisfação ideal para ela provavelmente seria um ménage à trois com seu marido e Mikael Blomkvist, o que, com uma probabilidade próxima dos cem por cento, jamais aconteceria. Mikael era tão hétero que, só para provocá-lo, ela o acusava de ser homofóbico. Ele nunca sequer experimentara com homens. Suspiro. Era apenas a prova de que não se pode ter tudo neste mundo.

Irritado, o gigante loiro franziu o cenho enquanto, ao volante do carro, avançava a quinze quilômetros por hora numa pista florestal tão malcuidada que por um breve instante chegou a pensar que de algum modo tinha entendido errado as indicações que lhe deram. Começava a anoitecer quando a estrada se fez mais larga e a casa, enfim, apareceu. Estacionou, desligou o motor e olhou em volta. A casa estava a uns bons cinquenta metros.

Ficava próxima de Stallarholmen, não muito longe de Mariefred. Era uma casinha bem simples dos anos 1950, construída em plena mata. Em meio às árvores, avistava uma faixa clara de gelo sobre o lago Mãlaren.

Tinha a maior dificuldade em entender como alguém podia gostar de passar seu tempo livre num mato isolado daqueles. Desceu do carro, fechou a porta e imediatamente se sentiu pouco à vontade. A mata lhe parecia imensa e ameaçadora. Sentia-se observado. Começou a andar em direção ao pátio, então escutou um súbito farfalhar que o fez estacar.

Olhou fixamente para a mata. Estava tudo quieto e calmo no crepúsculo. Permaneceu uns dois minutos parado, os sentidos alertas, até avistar com o rabo dos olhos um vulto se mexendo de mansinho entre as árvores. Quando focou o olhar, o vulto ficou absolutamente imóvel, a uns trinta metros mato adentro, e o encarou.

O gigante loiro teve uma vaga sensação de pânico. Procurou distinguir mais detalhes. Viu um rosto sombrio e anguloso. A criatura parecia um anão de cerca de um metro de altura, e usava roupas de camuflagem que lembravam uma fantasia feita de musgo e ramos de pinheiro. Um gnomo da floresta? Um duende? Será que eram perigosos?

Por um instante, o gigante loiro prendeu a respiração. Sentiu os cabelos se eriçarem na cabeça.

Então piscou vigorosamente os olhos e balançou a cabeça. Quando tornou a olhar, a criatura tinha se deslocado uns dez metros para a direita. Não havia nada. Ele sabia que estava tendo uma alucinação. Mesmo assim, enxergava com nitidez a criatura no meio das árvores. E, de repente, a criatura se mexeu, aproximando-se. Parecia avançar depressa e descrever um semicírculo irregular para se pôr em posição de ataque.

O gigante loiro se recompôs e tratou de alcançar a casa. Bateu à porta meio forte demais, de um jeito meio ansioso demais. Assim que escutou movimentos humanos lá dentro, o pânico o abandonou. Deu uma olhada por cima do ombro. Não havia nada.

Só relaxou, porém, quando a porta se abriu. O Dr. Nils E. Bjurman o cumprimentou educadamente e o convidou a entrar.

Miriam Wu estava sem fôlego quando voltou da lixeira, para onde descera o último saco de lixo das coisas deixadas por Lisbeth Salander. O apartamento estava assepsiado e cheirava a sabão, tinta e café quente. Este último era obra de Lisbeth. Sentada num banquinho, ela contemplava, pensativa, o apartamento vazio em que as cortinas, os tapetes, os cupons de desconto grudados na geladeira e sua tradicional bagunça no hall de entrada tinham desaparecido milagrosamente. Estava surpresa de ver o quanto o apartamento agora parecia grande.

Miriam Wu e Lisbeth Salander não tinham o mesmo gosto, quer se tratasse de roupas, mobília ou estímulo intelectual. Mais especificamente: Miriam Wu tinha preferências e opiniões precisas quanto a decoração, os móveis que queria e as roupas que tinham estilo. Lisbeth Salander, segundo Mimmi, não tinha gosto nenhum.

Depois de ela inspecionar o apartamento da Lundagatan com um olhar especulativo, ambas conversaram e Mimmi concluiu que teria de tirar mais ou menos tudo o que havia ali. Principalmente o sofá amarronzado puído da sala. Lisbeth queria ficar com alguma coisa? Não. Mimmi passara então alguns dias, e algumas horas toda noite durante quinze dias, jogando fora os velhos móveis resgatados nos caminhões de lixo seco, limpando os armários, areando, esfregando a banheira e pintando a cozinha, a sala, o quarto e o hall de entrada, passando sinteco no assoalho da sala.

Lisbeth era absolutamente refratária a esse tipo de exercício, mas aparecera para dar uma olhada e descobrira, fascinada, a obra de Mimmi. O apartamento estava vazio, com exceção de uma pequena mesa de cozinha de madeira maciça que Mimmi pretendia lixar e envernizar, dois sólidos banquinhos de que Lisbeth se apossara quando um morador do prédio fizera uma limpa no sótão e uma estante robusta na sala, na qual Mimmi achava que podia dar um jeito.

—Estou me mudando no fim de semana. Tem certeza de que não vai se arrepender?

—Eu não preciso deste apartamento.

—Mas é um apê irado. Quero dizer, existem outros maiores e melhores, mas não aqui no Söder, e o condomínio é baixíssimo. Lisbeth, você está abrindo mão de uma fortuna não vendendo isto aqui.

—Tenho o suficiente para me virar.

Mimmi se calou, sem saber direito como interpretar os comentários lacônicos de Lisbeth.

—Onde você vai morar? Lisbeth não respondeu.

—Posso ir te visitar?

—Por enquanto não.

Lisbeth abriu a bolsa e pegou uns documentos que entregou a Mimmi.

—Já cuidei do contrato com o condomínio. Como eu te falei, não posso sublocar. O mais simples, portanto, é eu declarar que você mora comigo e que estou te vendendo metade do apartamento. O preço de venda é uma coroa. Você tem que assinar o contrato.

Mimmi pegou a caneta e pôs sua assinatura e data de nascimento no documento.

—É só isso?

—Só isso.

—Lisbeth, eu não questionei o seu bom senso, mas você se dá conta de que está me dando metade deste apartamento de presente? Nada contra, mas não queria que você de repente se arrependesse e isso gerasse um problema entre nós.

—Não vai haver problema nenhum. Eu quero que você more aqui. Para mim está bem.

—Mas assim, sem nada em troca? Você está louca.

—Você vai cuidar da minha correspondência. É a única condição.

—Vai me custar quatro segundos por semana. Você pretende aparecer de vez em quando para fazer amor?

Lisbeth fitou Mimmi. Não falou nada por alguns instantes.

—Mimmi, tenho muita vontade de fazer amor com você, mas isso não faz parte do contrato. Você pode recusar quando quiser.

Mimmi suspirou.

—E eu que estava justamente começando a gostar da idéia de ser uma mulher teúda e manteúda. Sabe, com uma patroa que me paga um apartamento e dá as caras de vez em quando para uma transa. Lisbeth, saiba que eu te acho completamente biruta.

Lisbeth não respondeu. Então Mimmi se levantou, decidida, foi até a sala e apagou a lâmpada que pendia do teto.

—Vem cá. Lisbeth a seguiu.

—Eu nunca fiz amor no chão de um apartamento recém-pintado e sem nenhum móvel dentro. Mas um dia assisti a um filme com o Marlon Brando, ele estava com uma garota, era em Paris.

Lisbeth baixou os olhos para o chão.

—Estou a fim de me divertir. E você?

—Estou quase o tempo todo a fim.

—Hoje estou a fim de brincar de dominadora. Sou eu quem decide. Tire a roupa.

A fisionomia de Lisbeth se iluminou de repente num sorriso de esguelha se despiu. Levou dez segundos.

—Deite no chão. De bruços.

Lisbeth obedeceu. O assoalho estava frio e ela logo ficou toda arrepiada.

Mimmi pegou a camiseta de Lisbeth, com os dizeres You have the right to remain silent, para lhe amarrar as mãos nas costas.

Lisbeth lembrou de repente que o canalha do Dr. Nils Bjurman a tinha amarrado do mesmo jeito dois anos antes.

Mas as semelhanças acabavam aí.

Com Mimmi, Lisbeth só experimentava uma espera abarrotada de desejo. Submeteu-se com docilidade quando Mimmi rolou-a de costas e abriu suas pernas. Na penumbra, observou enquanto Mimmi se despia por sua vez, ficou fascinada com a curva dos seios dela. Então Mimmi tapou-lhe os olhos com a camiseta que acabava de tirar. Lisbeth escutou as roupas farfalhando enquanto Mimmi acabava de se despir. Segundos depois, sentiu a língua de Mimmi em sua barriga, logo acima do umbigo, e seus dedos entre suas coxas. Ficou subitamente mais excitada do que havia muito tempo não ficava. Cerrou os olhos por trás da venda e deixou que Mimmi ditasse o ritmo.

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