31 - QUINTA-FEIRA 7 DE ABRIL


Lisbeth Salander entrou no estábulo por uma porta de acesso a uma antiga fossa de purina. Não havia animais na granja. Olhou ao redor e constatou que havia três carros, mais nada - o Volvo branco da Auto-Expert, um velho Ford e um Saab um pouco mais novo. Mais ao fundo, havia um destorroador enferrujado e outras máquinas da época em que a granja estava em atividade.

Demorou-se na penumbra do estábulo, observando a casa. Anoitecera e a luz estava acesa em todos os cômodos do térreo. Ela não percebia nenhum movimento, mas tinha a impressão de vislumbrar o trêmulo clarão de um televisor. Deu uma olhada no relógio. Sete e meia. A hora do Rapport na tevê.

Intrigava-a Zalachenko ter optado por uma casa tão isolada. Não era do feitio do homem que ela conhecera tantos anos atrás. Não esperava encontrá-lo no campo, numa pequena granja pintada de branco e sim numa casa anônima no subúrbio ou em algum lugar de veraneio no exterior. Ele devia ter colecionado, ao longo da vida, mais inimigos que Lisbeth Salander. Achava perturbador o lugar ser aparentemente tão pouco protegido. Mas ponderou que ele devia ter armas em casa.

Depois de uma longa hesitação, esgueirou-se no crepúsculo para fora do estábulo. Atravessou o pátio com passos ágeis e parou encostada na fachada da casa. Chegaram-lhe aos ouvidos fracas notas musicais. Sem um ruído, contornou a casa e tentou espiar pelas janelas, mas elas ficavam muito no alto.

Lisbeth desgostava, instintivamente, daquela situação. Tinha vivido a primeira metade da sua existência com um terror constante daquele homem dentro de casa. A outra metade, depois de não ter conseguido matá-lo, ficara esperando ele ressurgir em sua vida. Desta vez, não pretendia cometer nenhum erro. Por mais que Zalachenko fosse um velho aleijado, era também um assassino tarimbado que sobrevivera a mais de uma batalha.

E também tinha que levar em conta Ronald Niedermann.

Teria preferido surpreender Zalachenko lá fora, ao ar livre, em algum ponto do pátio onde ele estaria vulnerável. Não sentia muita vontade de falar com ele, e gostaria de ter um fuzil com luneta. Mas não tinha, e o cara tendo dificuldades para andar, não havia por que ele sair. Só o vira naqueles minutos em que ele caminhara até o galpão de lenha, e não podia esperar que ele tivesse vontade de dar um passeio noturno. Ou seja, se quisesse aguardar uma melhor oportunidade, teria de se retirar e passar a noite na mata. Não tinha saco de dormir e, mesmo o anoitecer estando ameno, a noite seria fria. Agora que finalmente o tinha ao alcance da mão, não queria correr o risco de que tornasse a escapar. Pensou em Miriam Wu e em sua mãe.

Lisbeth mordeu o lábio inferior. Teria que entrar na casa, o que era a pior alternativa. Poderia, evidentemente, bater na porta e descarregar parte da munição assim que alguém abrisse, e depois entrar para pegar o outro patife. Mas desse modo o que estivesse lá dentro ficaria de sobreaviso, provavelmente armado. Análise das conseqüências. Quais eram as outras possibilidades?

Súbito, avistou o perfil de Niedermann passando por uma janela a apenas poucos metros dali. Ele olhava para dentro da sala por sobre o ombro, falando com alguém.

Estão os dois na sala à esquerda da entrada.

Lisbeth se decidiu. Pegou a pistola no bolso da jaqueta, soltou a trava de segurança e subiu, sem fazer barulho, os degraus da porta. Segurava a arma na mão esquerda enquanto, bem devagarinho, girava a maçaneta. A porta não estava trancada. Franziu o cenho e hesitou. Havia fechaduras duplas de segurança.

Zalachenko não deixaria a porta destrancada. Sentiu um arrepio na nuca.

Algo não estava batendo.

A entrada estava mergulhada no escuro. À direita, avistou uma escada para o andar de cima. Havia duas portas à sua frente e outra à esquerda. Podia ver a luz vindo por uma fresta acima da porta. Ficou imóvel e escutou. Então ouviu uma voz e o ranger de uma cadeira na sala da esquerda.

Deu dois passos grandes, abriu a porta e apontou a arma para... a sala estava deserta.

Ouviu um farfalhar de roupas atrás de si e virou-se como um réptil. No momento em que tentava mirar, o punho imenso de Ronald Niedermann fechou-se qual anel de aço em volta de seu pescoço, enquanto o outro agarrou a mão que segurava a arma. Ele pegou-a pela nuca e ergueu-a no ar como se fosse uma boneca.

Por um segundo, ela agitou as pernas no ar. Então se virou e deu um pontapé em direção da entreperna de Niedermann. Errou o golpe e atingiu-o no quadril. Foi como chutar o tronco de uma árvore. Começou a ver tudo preto quando ele apertou seu pescoço; Lisbeth sentiu que soltava a arma.

Droga.

Então Ronald Niedermann jogou-a dentro da sala. Ela caiu brutalmente em cima de um sofá e escorregou para o chão. Sentiu o sangue afluir de novo para a cabeça e se pôs de pé, ainda atordoada. Viu um pesado cinzeiro triangular de vidro maciço em cima de uma mesa, pegou-o e atirou-o ao se virar. Niedermann interceptou seu braço em pleno gesto. Ela enfiou a mão livre no bolso esquerdo da calça, pegou o cacetete elétrico, virou-se e enfiou-o na entreperna de Niedermann.

Sentiu em si mesma a descarga elétrica descarregada no braço que Niedermann segurava. Esperava que ele desabasse de dor. Em vez disso, ele olhou para ela com uma expressão atônita. Os olhos de Lisbeth Salander se arregalaram de espanto. Obviamente, o homem sentia algum incômodo, mas no geral não sabia o que era dor. Esse cara não é normal.

Niedermann se abaixou, pegou o cacetete e o examinou ainda atônito. Então deu-lhe uma bofetada com o dorso da mão. Foi como uma bordoada.

Ela desabou no chão, diante do sofá. Ergueu os olhos e encontrou os olhos de Ronald Niedermann. Ele a encarou com curiosidade, como se perguntando qual seria seu próximo movimento. Como um gato se preparando para brincar com sua presa.

Então ela pressentiu um movimento pela fresta de uma porta, mais adiante. Voltou a cabeça.

Ele caminhou devagar para dentro da luz.

Apoiava-se numa bengala inglesa e ela viu que uma de suas pernas terminava numa prótese.

A mão esquerda era uma bola atrofiada à qual faltavam dois dedos.

Ela ergueu o olhar para o rosto dele. O lado esquerdo era um patchwork de cicatrizes deixadas pelas queimaduras. Não restava quase nada da orelha e não havia sobrancelhas. Ele estava careca. Ela se lembrava dele como um homem viril e atlético, de cabelos pretos ondulados. Não media mais que um metro e setenta e cinco e estava esquelético.

—Oi, papai - disse ela com voz inexpressiva.

Alexander Zalachenko olhou para a filha com a mesma falta de expressão no rosto.

Ronald Niedermann acendeu a luz do teto. Apalpou sua jaqueta para verificar se ela não tinha outra arma, então pôs a trava de segurança na P-83 Wanad e tirou o carregador. Zalachenko se arrastou até uma poltrona e brandiu um controle remoto.

O olhar de Lisbeth bateu na tela da tevê atrás dele. Zalachenko clicou e ela viu surgir de repente uma imagem cintilante e esverdeada da área atrás do estábulo e um trecho da trilha de acesso. Câmera ótica com infravermelho. Eles viram quando ela se aproximou.

—Eu estava começando a achar que você não ia ter coragem de aparecer - disse Zalachenko. - Estamos te observando desde as quatro da tarde. Você fez disparar quase todos os alarmes da granja.

—Detectores de movimento - disse Lisbeth.

—Dois na trilha de acesso e quatro no arvoredo do lado de lá do campo. Você estabeleceu seu posto de vigilância bem no lugar onde instalamos o alarme. É dali que se tem a melhor visão da granja. Em geral, quem chega muito perto são os alces ou cabritos, e às vezes pessoas juntando bagas. Mas é raro ver alguém se aproximando de arma na mão. Ele ficou um instante em silêncio.

—Você achava mesmo que Zalachenko ia ficar totalmente exposto numa casinha de campo?

Lisbeth massageou a nuca e fez menção de se levantar.

—Fique no chão - disse Zalachenko com dureza.

Niedermann parou de mexer na pistola de Lisbeth e contemplou-a calmamente. Alçou uma sobrancelha e sorriu para ela. Lisbeth lembrou do rosto massacrado de Paolo Roberto que tinha visto na tevê e concluiu que era uma boa hora para ficar no chão. Deu um suspiro e se recostou no sofá.

Zalachenko estendeu a mão direita intacta. Niedermann pegou uma arma no bolso da calça, puxou a corrediça e estendeu para ele. Lisbeth notou que era uma Sig Sauer, a arma-padrão da polícia. Zalachenko fez um sinal com o queixo. Sem outra forma de comunicação, Niedermann deu meia-volta e vestiu um casaco. Saiu da sala e Lisbeth ouviu a porta da rua se abrir e tornar a se fechar.

—Só para você não começar a pensar em bobagem. À menor tentativa de se levantar, eu te encho de chumbo.

Lisbeth relaxou. Dava tempo de ele atirar duas balas, ou até três, antes que ela o alcançasse, e ele provavelmente usava uma munição que a mataria de hemorragia em poucos minutos.

—Que cara ruim essa sua - disse Zalachenko, indicando a argola que ela usava na sobrancelha. —Parece uma puta.

Lisbeth o encarou.

—Mas você tem os meus olhos - disse ele.

—Isso dói? - ela perguntou, fazendo um gesto da cabeça em direção à prótese.

Zalachenko fitou-a demoradamente.

—Não. Não mais. Lisbeth meneou a cabeça.

—Seu sonho é me matar - ele disse.

Ela não respondeu. Ele caiu na gargalhada.

—Pensei em você nesses anos todos. Mais ou menos cada vez que me olho no espelho, eu penso em você.

—Você devia ter deixado a minha mãe em paz. Zalachenko riu.

—A sua mãe era uma puta.

Os olhos de Lisbeth ficaram negros como tinta.

—Ela não era uma puta. Era caixa num supermercado e tentava nos sustentar com seu salário.

Zalachenko riu novamente.

—Guarde as suas fantasias sobre ela para você. Eu sei que ela era uma puta. E rapidinho ela deu um jeito de ficar grávida, e depois tentou me empurrar um casamento. Até parece que eu ia me casar com uma puta!

Lisbeth não disse nada. Fitava o cano da arma, na esperança de que ele relaxasse a concentração por um momento.

—Aquela bomba incendiária foi uma coisa muito esperta. Eu odiei você. Mas depois tudo isso deixou de ter importância. Você não merecia que eu gastasse tanta energia. Se você não tivesse aparecido, eu nem teria feito nada.

—Mentira. O Bjurman te contratou para acabar comigo.

—Não tinha nada a ver. Era um acordo comercial. Ele precisava de um filme que está com você e eu dirijo um pequeno negócio.

—E você achou que eu ia te dar o filme.

—Sim, querida filha. Estou convencido de que você teria me dado esse filme. Você não imagina o quanto as pessoas ficam cooperativas quando o Ronald pede alguma coisa para elas. Principalmente quando ele liga uma serra elétrica e corta um pé delas fora. No meu caso, seria inclusive uma compensação adequada... um pé por um pé.

Lisbeth pensou em Miriam Wu nas mãos de Ronald Niedermann, no armazém de Nykvarn. Zalachenko interpretou mal sua expressão.

—Não se preocupe. Não pretendemos decepar você. Ele olhou para ela.

—O Bjurman realmente estuprou você? Ela não respondeu.

—Que puta mau gosto tinha esse cara. Li no jornal que você é meio que uma sapatona nojenta. Não me surpreende. Entendo que nenhum homem queira saber de você.

Lisbeth continuou calada.

—Eu devia pedir para o Niedermann te dar um trato. Você parece que está precisando.

Ele refletiu sobre o assunto.

—Mas o Niedermann não trepa com mulher. Não, ele não é gay. Ele não trepa, só isso.

—Então você mesmo vai ter que me dar um trato - lançou Lisbeth, para provocá-lo.

Aproxime-se. Cometa um erro.

—Ora, é claro que não. Não sou perverso a esse ponto. Ficaram calados durante algum tempo.

—O que a gente está esperando? - perguntou Lisbeth.

—O meu sócio volta logo. Ele só foi tirar o seu carro e tratar de um negócio. Onde está a sua irmã?

Lisbeth deu de ombros.

—Responda.

—Não faço idéia e, para ser bem franca, estou pouco me lixando. Ele riu novamente.

—E o amor entre irmãs? Camilla sempre foi a que tinha alguma coisa na cabeça, enquanto você só servia para o lixo.

Lisbeth não respondeu.

—Mas admito que é realmente uma satisfação tornar a ver você assim de perto.

—Zalachenko - disse ela -, você está me cansando à beça. Foi o Niedermann quem matou o Bjurman?

—Mas é claro. Ronald Niedermann é um perfeito soldado. Não só obedece às ordens como também toma iniciativas quando necessário.

—Onde você foi achar esse cara?

Zalachenko olhou para a filha com uma expressão estranha. Abriu a boca como para dizer alguma coisa, mas hesitou e se manteve calado. Deu uma olhada para a porta da rua e sorriu de repente.

—Quer dizer que você ainda não entendeu - disse. —E isso que, segundo dizia o Bjurman, você é uma investigadora especialmente talentosa.

Então Zalachenko caiu na gargalhada.

—Nós começamos a ter contato na Espanha, no início dos anos 1990, quando eu ainda estava convalescendo daquela sua bombinha incendiária. Ele não é meu empregado... Temos uma parceria. Dirigimos um empreendimento próspero.

—Tráfico de mulheres. Ele deu de ombros.

—Dá para dizer que andamos diversificando e cobrimos várias áreas e serviços. A idéia é a nossa empresa ficar na moita, sem a gente aparecer. Quer dizer então que você realmente não entendeu quem é o Ronald Niedermann?

Lisbeth não disse nada. Não tinha a mínima idéia do que ele estava insinuando.

—O Ronald é seu irmão - disse Zalachenko.

—Não! - fez Lisbeth, sentindo-se sufocar.

Zalachenko riu de novo. Mas o cano da pistola continuava firmemente apontado para ela.

—Ou pelo menos seu meio-irmão - esclareceu Zalachenko. —O fruto de uma diversão, durante uma missão que eu efetuei na Alemanha em 1970.

—Você transformou seu filho num assassino.

—Que nada, eu só o ajudei a realizar seu potencial. Ele era capaz de matar muito antes de eu me encarregar da educação dele. E, quando eu não estiver mais aqui, ele vai tocar com sucesso o negócio da família.

—Ele sabe que eu sou irmã dele?

—Claro. Mas se está achando que vai poder apelar para os sentimentos fraternais dele, esqueça. A família dele sou eu. Você não passa de um vago zumbido no horizonte. Devo esclarecer que ele não é o seu único meio-irmão. Você tem pelo menos mais quatro, e três irmãs também, em diferentes países. Um desses seus irmãos é um abobado, mas um deles tem um certo potencial. Ele cuida da filial de Tallinn. Mas o Ronald é o único dos meus filhos que realmente faz justiça aos genes dos Zalachenko.

—Pelo jeito não há espaço para as minhas irmãs nessa empresa familiar.

Zalachenko pareceu estupefato.

—Zalachenko... você não passa de um reles calhorda que não gosta de mulher. Por que vocês mataram o Bjurman?

—O Bjurman era um idiota. Caiu das nuvens quando descobriu que você era minha filha. Ele era uma das raríssimas pessoas neste país que conhecia o meu passado. Confesso que fiquei preocupado quando ele me procurou de repente, mas em seguida tudo se ajeitou da melhor maneira. Ele morreu e você é que foi acusada.

—Mas por que vocês o mataram? - insistiu Lisbeth.

—Não estava nos planos. Eu estava satisfeito com a idéia de trabalhar com ele por mais alguns anos, e é sempre útil ter um discreto acesso à Sapo, mesmo que através de um idiota. Mas aquele jornalista de Enskede descobriu uma ligação entre nós dois e ligou para o Bjurman bem quando o Ronald estava na casa dele. O Bjurman entrou em pânico e se descontrolou totalmente. O Ronald foi obrigado a tomar uma decisão de última hora. E fez exatamente o que tinha que ser feito.

O coração de Lisbeth caiu como uma pedra dentro do peito quando seu pai confirmou o que ela já intuíra. Dag Svensson tinha descoberto o elo. Ela havia conversado com Dag e Mia por mais de uma hora. Gostara imediatamente de Mia, ao passo que seus sentimentos por Dag Svensson eram mais misturados. Ele lhe lembrava demais Mikael Blomkvist — um insuportável salvador do mundo que achava que podia mudar as coisas publicando um livro. Mas ela acreditara em suas boas intenções.

De modo geral, a visita a Dag e Mia tinha sido perda de tempo. Eles não podiam levá-la até Zalachenko. Dag Svensson topara com o nome e começara a escavar, mas não conseguira identificá-lo.

Em compensação, ela cometera um erro fatal durante a visita. Como sabia que existia um elo entre Bjurman e Zalachenko, tinha feito perguntas sobre Bjurman para tentar descobrir se Dag Svensson tinha topado com o nome dele. Não fora o caso, mas ele tinha um bom faro. Focara imediatamente no tal de Bjurman e a enchera de perguntas.

Embora Lisbeth não revelasse grande coisa para Dag Svensson, ele percebeu que ela estava envolvida na trama. Percebeu também que ele próprio tinha informações que ela queria. Haviam combinado de tornar a se encontrar depois da Páscoa. Depois disso, Lisbeth Salander voltou para casa e foi dormir. Ao acordar de manhã e ver o noticiário, ficou sabendo que duas pessoas haviam sido assassinadas num apartamento em Enskede.

Durante sua visita, oferecera a Dag Svensson uma única pista utilizável. O nome de Nils Bjurman. Dag Svensson devia ter pego o telefone e ligado para Bjurman assim que ela saiu do apartamento.

O elo era ela. Se não tivesse ido visitar Dag Svensson, ele e Mia ainda estariam vivos.

Zalachenko riu.

—Você não avalia a nossa surpresa quando a polícia começou a te procurar pelos homicídios.

Lisbeth mordeu o lábio inferior. Zalachenko examinou-a.

—Como foi que você me achou? - ele perguntou. Ela deu de ombros.

—Lisbeth... o Ronald vai voltar daqui a pouco. Posso pedir para ele quebrar todos os ossos do seu corpo até você responder. Poupe-nos esse trabalho.

—A caixa postal. Segui a pista do carro alugado de Niedermann e esperei que o carinha cheio de espinhas aparecesse para pegar a correspondência.

—Uau, bom trabalho! Obrigado. Vou me lembrar disso.

Lisbeth refletiu um instante. A arma continuava apontada para a parte superior de seu corpo.

—E você acha mesmo que essa tempestade vai se acalmar? - perguntou Lisbeth. —Você cometeu muitos erros, a polícia vai acabar te identificando.

—Eu sei - respondeu seu pai. —O Björck ligou ontem e contou que um jornalista da Millennium já farejou a história e que agora é tudo uma questão de tempo. É possível que a gente seja obrigado a cuidar do jornalista.

—Vai ser uma lista grande — disse Lisbeth. — Mikael Blomkvist, a chefe dele, Erika Berger, a assistente de redação e vários funcionários da Millennium. Sem falar no Dragan Armanskij e em dois ou três empregados da Milton Security. E Bublanski, e vários outros tiras da investigação. Quantas pessoas você vai matar para abafar essa história? Eles vão acabar te pegando.

Zalachenko riu mais uma vez.

—E daí? Eu não matei ninguém e não existe nenhuma prova técnica contra mim. Eles que identifiquem quem bem entenderem. Acredite... eles podem vir revistar esta casa que não vão achar um único grão de poeira me relacionando com alguma atividade criminosa. Foi a Säpo que te jogou no hospício, não eu, e eles decerto não vão estar muito interessados em colocar todas as cartas na mesa.

—Niedermann - lembrou Lisbeth.

—Amanhã de manhã, o Ronald vai sair de férias no exterior por algum tempo, enquanto aguardamos o desenrolar dos fatos.

Zalachenko encarou Lisbeth com olhos triunfantes.

—Você continuará sendo a principal suspeita dos assassinatos. De modo que o mais indicado é você desaparecer pura e simplesmente, sem alarde.

Quase uma hora se passou até Ronald Niedermann voltar. Estava usando botas.

Lisbeth Salander deu uma olhada no homem que, segundo seu pai, era seu meio-irmão. Não conseguia detectar nenhuma semelhança. Pelo contrário, ele era-lhe diametralmente oposto. Em contrapartida, Lisbeth tinha a sensação muito clara de que algo estava errado com Ronald Niedermann. Sua estrutura, o rosto flácido e a voz que ainda não amadurecera de fato, tudo evocava algum tipo de falha genética. Ele não sentira o cacetete elétrico, suas mãos eram enormes. Nada em Ronald Niedermann parecia complemente normal.

Tudo indica que existe um monte de falhas genéticas na família Zalaenko - ela pensou com amargura.

—Está pronto? - perguntou Zalachenko.

Niedermann meneou a cabeça. Estendeu a mão para pegar a sua Siguer de volta.

—Eu vou junto - disse Zalachenko. Niedermann hesitou.

—Vamos ter que caminhar um bocado.

—Eu vou junto. Pegue o meu casaco.

Niedermann deu de ombros e fez o que ele tinha mandado. Então, começou a mexer na arma enquanto Zalachenko se vestia e sumia por um breve instante no cômodo ao lado. Lisbeth observou Niedermann, que parafusava O adaptador com silencioso de confecção caseira.

—Vamos lá - disse Zalachenko, próximo à porta.

Niedermann se inclinou e ergueu Lisbeth, pondo-a de pé. Ela cruzou o olhar com o dele.

—Eu vou matar você também - ela disse.

—Vamos admitir, você tem confiança em si mesma - disse seu pai.

Niedermann sorriu com suavidade e a empurrou na direção da porta e, depois, pelo pátio. Segurava-a pela nuca com mão firme. Seus dedos davam tranqüilamente a volta em seu pescoço. Levou-a para a mata ao norte do estábulo.

Avançavam devagar e Niedermann parava de tempos em tempos para esperar por Zalachenko. Tinham se munido de lanternas potentes. Quando chegaram ao meio das árvores, Niedermann soltou seu pescoço. A um metro de distância, apontava a pistola para suas costas.

Seguiram por uma trilha impraticável por cerca de quatrocentos metros. Lisbeth tropeçou duas vezes e nas duas vezes foi recolocada de pé.

—Pegue à direita - disse Niedermann.

Uns dez metros depois chegaram a uma clareira. Lisbeth viu o buraco no chão. À luz da lanterna de Niedermann, notou uma pá cravada em uma elevação de terra. Então entendeu o que Niedermann tinha ido fazer. Ele a empurrou para o buraco, ela tropeçou e caiu de quatro. Suas mãos afundaram profundamente na areia. Levantou a cabeça e olhou para ele sem nenhuma expressão. Zalachenko vinha devagar e Niedermann o esperava calmamente. Em momento algum a pistola deixou de apontar para Lisbeth.

Zalachenko estava ofegante. Precisou de mais de um minuto até conseguir falar.

—Eu deveria dizer alguma coisa, mas acho que não tenho nada para te falar - disse.

—Por mim, tudo bem - disse Lisbeth. —Também não tenho muito para falar.

Ela endereçou-lhe um sorriso enviesado.

—Vamos acabar com isso - disse Zalachenko.

—Fico feliz de saber que a última coisa que eu fiz foi te encurralar - disse Lisbeth. —A polícia vai bater na sua casa ainda esta noite.

—Balela. Eu sabia que você ia tentar alguma coisa desse tipo. Você veio i para me matar, só isso. Não falou para ninguém.

O sorriso de Lisbeth cresceu. Súbito, exibiu uma expressão malévola.

—Deixa eu te mostrar uma coisa, paizinho.

Ela enfiou lentamente a mão no bolso da perna esquerda e tirou um eto quadrado. Ronald Niedermann espreitava o menor de seus gestos.

— Cada palavra que você pronunciou nesta última hora foi divulgada internet.

Ela brandiu seu PDA Palm Tungsten T3.

Uma ruga rasgou a testa de Zalachenko no lugar onde deveriam estar as sombrancelhas.

—Me mostra isso aí - disse ele, estendendo a mão ilesa. Lisbeth jogou-lhe o PDA. Ele o pegou no ar.

—Balela - disse Zalachenko. —É só um Palm comum.

Quando Ronald Niedermann se inclinou para ver o PDA, Lisbeth Salander jogou-lhe um punhado de areia direto nos olhos. Ele ficou cego na hora, mas disparou maquinalmente a pistola provida de silencioso. Lisbeth já tinha dado dois passos para o lado, e a bala atingiu o vazio. Ela apanhou a pá e bateu com a lâmina na mão que segurava a arma. Atingiu com toda a força as juntas dos dedos e viu sua Sig Sauer fazer uma ampla curva no ar e ir cair no meio de uns arbustos. Viu jorrar sangue de um corte profundo na falange do indicador.

Era para ele estar urrando de dor.

Niedermann tateou o ar com a mão ferida enquanto com a outra esfregava os olhos, desesperado. A única chance de Lisbeth vencer o combate era causar rapidamente estragos consideráveis; se houvesse um corpo a corpo, ela estaria perdida. Precisava de uma trégua de cinco segundos para sumir dentro da mata. Puxou a pá para trás e tornou a balançada com toda a força. Tentou virar o cabo para atingido com o gume, mas estava mal posicionada. Foi o dorso da pá que bateu no rosto de Niedermann.

Ele resmungou quando seu nariz se quebrou pela segunda vez em poucos dias. Continuava cegado pela areia, mas fez um movimento largo com o braço direito e conseguiu empurrar Salander. Ela foi para trás e seu pé pisou numa raiz. Caiu por um segundo no chão, levantando-se logo de um salto. Niedermann estava fora do páreo por enquanto. Eu vou conseguir.

Deu dois passos em direção ao mato, quando, com o rabo do olho - clique -, viu Alexander Zalachenko levantar o braço.

Esse velho cretino também está com uma pistola.

A descoberta estalou feito uma chicotada em sua cabeça.

Mudou de direção no exato momento em que ele atirou. A bala raspou seu quadril e a fez vacilar e perder o equilíbrio.

Ela não sentiu dor.

A segunda bala atingiu-lhe as costas e parou junto a escapula esquerda. Uma dor aguda e paralisante atravessou seu corpo.

Caiu de joelhos. Durante alguns segundos, não foi capaz de se mexer. Tinha consciência de que Zalachenko estava atrás dela, a uns cinco, seis metros. Num derradeiro esforço, levantou-se e deu um passo titubeante em direção ao escudo protetor dos arbustos.

Zalachenko teve tempo de sobra para mirar.

A terceira bala atingiu-a cerca de dois centímetros acima da orelha esquerda. Perfurou o osso da cabeça, causando uma rede de fissuras irradiantes no crânio. A bala de chumbo penetrou em sua cabeça, alojando-se na massa cinzenta, quatro centímetros abaixo da crosta cerebral.

Para Lisbeth Salander, a descrição médica da situação não passava de jargão científico. Em termos práticos, a bala resultou num traumatismo amplo e imediato. Sua última percepção foi a de um choque vermelho se transformando em luz branca.

Em seguida, escuridão.

Clique.

Zalachenko tentou apertar mais uma vez o gatilho, mas suas mãos tremiam tanto que não conseguia mirar. Por pouco ela não se safa. Por fim, percebeu que ela já estava morta e abaixou a arma, tremendo, enquanto a adrenalina afluía por todo o seu corpo. Olhou para a arma. Chegara a pensar em deixar a pistola em casa, mas acabara enfiando-a no bolso, como se precisasse de um mascote. Aquela garota era um monstro. Estavam ali dois homens adultos, sendo um deles Ronald Niedermann, e ainda por cima armado com uma Sig Sauer. E essa puta nojenta por pouco não se safa.

Deu uma olhada no corpo da filha. À luz da lanterna, parecia uma boneca de pano ensanguentada. Acionou a trava de segurança e enfiou a pistola no bolso, depois acercou-se de Ronald Niedermann. Ele estava completamente desamparado, lágrimas nos olhos e sangue escorrendo da mão e do nariz. O nariz ainda não tinha sarado desde a luta decisiva contra Paolo Roberto, e o dorso da pá fizera novamente estragos consideráveis.

—Acho que quebrei o nariz de novo - disse ele.

—Imbecil - disse Zalachenko. —Por pouco ela não se safa mais uma vez.

Niedermann continuou a esfregar os olhos. Não sentia dor, mas as lágrimas escorriam e ele estava quase totalmente cego.

—Endireite-se, porra! - Zalachenko balançou a cabeça com desprezo. —Puta merda, o que seria de você sem mim?

Niedermann piscou desesperadamente. Zalachenko manquejou até o corpo da filha e agarrou sua jaqueta pelo alto das costas. Ergueu-a e puxou-a na direção do túmulo, que não passava de um buraco no chão, pequeno demais para ela poder descansar deitada. Suspendeu o corpo de modo que os pés ficassem acima do buraco, e então deixou-a cair feito um saco de batatas. Lisbeth caiu em posição fetal, para a frente, com os joelhos dobrados sob o corpo.

—Tape isso aí, para a gente poder ir para casa - ordenou Zalachenko. Ronald Niedermann, ainda meio cego, precisou de algum tempo para pôr a terra no buraco. Jogou a sobra pelo terreno em volta com pazadas vigorosas.

Zalachenko fumou um cigarro enquanto contemplava o trabalho de Niedermann. Continuava tremendo, mas a adrenalina começava a refluir. Sentiu de repente um alívio por ela ter sido eliminada. Ainda lembrava de seus olhos no instante em que jogara a bomba incendiária, tantos anos atrás.

Eram nove da noite quando Zalachenko olhou ao redor e meneou a cabeça. Conseguiram achar a Sig Sauer de Niedermann no meio dos arbustos. Então, voltaram para casa. Zalanchenko se sentia extremamente satisfeito. Dedicou um tempo a cuidar da mão de Niedermann. O golpe com a pá deixara um corte fundo, e ele precisou pegar linha e agulha para costurá-lo - uma coisa que aprendera a fazer na escola militar de Novossibirsk quando tinha quinze anos. Pelo menos não precisava de anestesia. Em compensação, a ferida podia ser séria a ponto de obrigar Niedermann a ir para o hospital. Fez um curativo com tala.

Quando terminou, abriu uma cerveja para si, enquanto Niedermann enxaguava os olhos no banheiro.

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