16. DOMINGO 1º DE JUNHO — TERÇA-FEIRA 10 DE JUNHO


Após seis meses de especulações infrutíferas, uma brecha se abriu no caso Harriet Vanger quando Mikael, em apenas alguns dias da primeira semana de junho, descobriu três novas peças do quebra-cabeça. Duas completamente sozinho, a terceira com um pouco de ajuda.

Depois da visita de Erika, ele reabrira o álbum de fotografias e por várias horas examinara as fotos uma após outra, tentando entender o que o fizera reagir. Depois deixou tudo de lado e voltou a trabalhar na crônica familiar.

Num dos primeiros dias de junho, Mikael foi a Hedestad. Estava pensando em outra coisa, quando o ônibus entrou na rua da Estação, e foi então que subitamente se deu conta do que havia germinado em seu cérebro. A luz o atingiu como um relâmpago num céu sem nuvens. Ficou tão abalado que continuou até o terminal da estação ferroviária e voltou imediatamente a Hedeby para verificar se suas lembranças eram exatas.

Tratava-se da primeira foto do álbum. A última de Harriet, tirada na rua da Estação em Hedestad naquele dia funesto, quando ela assistia ao desfile da Festa das Crianças.

A foto destoava no álbum. Estava ali porque fora tirada no mesmo dia, mas era a única entre as outras cento e oitenta que não mostrava o acidente na ponte. Sempre que Mikael e (supunha ele) todos os outros olhavam o álbum, eram as pessoas e os detalhes das fotos da ponte que lhes chamavam a atenção. Nada havia de dramático na fotografia de uma multidão assistindo ao desfile da Festa das Crianças em Hedestad, várias horas antes dos acontecimentos decisivos.

Henrik Vanger devia ter olhado para aquela foto milhares de vezes, constatando com pesar que nunca mais tornaria a ver Harriet. Provavelmente se irritou por a foto ter sido tirada de tão longe e de Harriet Vanger só aparecer como uma figura qualquer na multidão.

Mas não foi isso que tinha feito Mikael reagir.

A foto fora tirada do outro lado da rua, provavelmente de uma janela do primeiro andar. A grande-angular captava a frente de um dos caminhões do desfile. Sobre a carroceria, vestidas com maios de banho cintilantes e pantalonas exóticas, mulheres lançavam bombons aos espectadores. Algumas pareciam dançar. Diante do caminhão saltitavam três palhaços.

Harriet estava na calçada, na primeira fila de espectadores. A seu lado, três colegas de classe e, ao redor, pelo menos uns cem outros habitantes de Hedestad.

Foi isso que o subconsciente de Mikael registrara e que de repente veio à tona quando o ônibus passou exatamente no local onde a foto fora tirada.

Os espectadores se comportavam como costumam se comportar. Os olhos dos espectadores sempre seguem a bolinha numa partida de tênis ou o disco de borracha no hóquei sobre gelo. Os que estavam mais à esquerda olhavam os palhaços bem à frente deles. Os mais próximos do caminhão dirigiam o olhar para a carroceria com as moças escassamente vestidas. Seus rostos estavam sorridentes. Crianças apontavam com o dedo. Alguns riam. Todos pareciam felizes.

Todos exceto uma pessoa.

Harriet Vanger olhava para o lado. Suas três colegas e as pessoas ao redor olhavam os palhaços. O rosto de Harriet estava voltado uns trinta ou trinta e cinco graus para a direita. Seu olhar parecia fixo em alguma coisa do outro lado da rua, mas que não aparecia no canto inferior à esquerda da foto.

Mikael pegou a lupa e tentou distinguir os detalhes. A foto fora tirada de muito longe para que ele tivesse absoluta certeza, mas, ao contrário de todos os outros, o rosto de Harriet não exprimia nenhuma alegria. A boca era um traço estreito. Olhos muito abertos. Mãos repousadas frouxamente ao longo do corpo.

Ela parecia estar com medo. Com medo ou com raiva.


Mikael tirou a foto do álbum, enfiou-a numa folha de plástico e pegou o ônibus com destino a Hedestad. Desceu na rua da Estação e colocou-se no local onde a foto provavelmente fora tirada. Era numa das pontas do que constituía o centro da cidade. Tratava-se de um sobrado de madeira que agora abrigava uma videolocadora e uma loja de moda masculina, Sundström, existente desde 1932, conforme informava uma placa acima da porta de entrada. Ele entrou e logo percebeu que a loja ocupava os dois andares; uma escada em caracol conduzia à parte de cima.

No alto, duas janelas davam para a rua. Foi ali que o fotógrafo se instalara.

— Posso ajudá-lo? — perguntou um vendedor de certa idade, quando Mikael tirou do bolso o plástico com a fotografia. Havia pouca gente na loja.

— Bem, na verdade eu gostaria apenas de verificar de onde esta fotografia foi tirada. Posso abrir um instante a janela?

Deram-lhe permissão e ele estendeu a foto à sua frente. Podia ver o local exato onde Harriet Vanger estivera. Uma das duas casas de madeira que se viam atrás dela desaparecera, substituída por uma de tijolos. A outra casa, que sobreviveu, abrigava uma papelaria em 1966; atualmente havia ali uma loja de produtos dietéticos e um solário. Mikael fechou a janela, agradeceu e desculpou-se pelo incômodo.

Embaixo, na rua, foi se colocar no lugar onde Harriet estivera. Não teve dificuldade em se orientar entre a janela do primeiro andar da loja e a porta do solário. Virou a cabeça e reconstituiu a linha de mira de Harriet. Pelo que Mikael pôde avaliar, ela dirigira o olhar a um canto da casa que abrigava a loja de moda masculina. Era um canto de casa inteiramente comum, de onde saía uma rua lateral. O que Harriet teria visto lá?


Mikael guardou a fotografia na mochila e foi a pé até a entrada da estação, onde sentou-se num terraço e pediu um caffè latte. Sentia-se subitamente agitado.

Nos romances policiais ingleses, isso se chamava uma new evidence, o que era bem mais que um "novo dado". Ele acabava de ver algo novo, que ninguém mais observara numa investigação que se arrastava havia trinta e sete anos.

O único problema é que ele não sabia muito bem qual o valor dessa nova descoberta, nem mesmo se havia algum. No entanto ela lhe parecia importante.

O dia de setembro em que Harriet desapareceu fora dramático de diversas maneiras. Era um dia de festa em Hedestad com milhares de pessoas nas ruas, tanto jovens como velhos. E havia a reunião familiar anual na ilha. Só esses dois acontecimentos já quebravam a rotina do lugar. E o acidente na ponte, como a cereja no bolo, veio lançar sua sombra sobre o resto.

O inspetor Morell, Henrik Vanger e todos os que refletiram sobre o desaparecimento de Harriet haviam se concentrado nos acontecimentos da ilha. O próprio Morell escrevera que não conseguia afastar a suspeita de que havia uma ligação entre o acidente e o desaparecimento de Harriet. De repente Mikael se convenceu de que isso era inteiramente falso.

A cadeia de incidentes não começara na ilha, mas na cidade de Hedestad, várias horas antes naquele dia. Harriet Vanger tinha visto alguma coisa ou alguém que lhe causara medo e que a fizera voltar para casa e procurar de imediato Henrik Vanger, que infelizmente não teve tempo de lhe dar atenção. Depois aconteceu o acidente na ponte. Em seguida o assassino agiu.


Mikael fez uma pausa. Era a primeira vez que formulava conscientemente a suposição de que Harriet havia sido morta. Hesitou, mas logo percebeu que concordava com a convicção de Henrik Vanger. Harriet fora morta e agora ele buscava um assassino.

Retornou ao inquérito policial. Nos milhares de páginas, só uma parte mínima falava das horas em Hedestad. Harriet estava com três colegas de classe, e todas foram interrogadas. Elas se encontraram na entrada da estação ferroviária às nove da manhã. Uma das meninas precisava comprar um jeans e as outras a acompanharam. Tomaram um café no restaurante das lojas EPA e depois foram até a feira na praça de esportes, onde passearam entre as bancas e os pequenos lagos com patos, e onde também cruzaram com outros colegas de escola. Ao meio-dia, dirigiram-se ao centro da cidade para ver o desfile da Festa das Crianças. Um pouco antes das duas, Harriet anunciou repentinamente que precisava voltar para casa. Elas se separaram num ponto de ônibus perto da rua da Estação.

Nenhuma das colegas observou algo fora do comum. Uma delas, Inger Stenberg, afirmou que Harriet se tornara "impessoal", ao descrever sua mudança no último ano. Disse que naquele dia Harriet estava taciturna como de costume e que apenas acompanhava as outras.

O inspetor Morell entrevistou todos os que tinham visto Harriet naquele dia, mesmo os que apenas a cumprimentaram na feira ou na rua. Sua foto foi publicada nos jornais da região quando a deram por desaparecida. Vários habitantes de Hedestad entraram em contato com a polícia para dizer que julgavam tê-la visto durante o dia, mas ninguém observou nada de incomum.


Mikael passou a noite refletindo sobre como continuar investigando a pista que acabava de formular. Na manhã seguinte, foi se encontrar com Henrik Vanger no momento em que ele tomava o café-da-manhã.

— Você me disse que a família Vanger sempre teve participações no Hedestads-Kuriren.

Isso mesmo.

— Preciso consultar os arquivos fotográficos do jornal. De 1966. Henrik Vanger pousou o copo de leite e enxugou o lábio superior.

— Mikael, o que você descobriu? Ele olhou o velho bem nos olhos.

— Nada de concreto. Mas acho que podemos ter cometido um erro de interpretação no que se refere ao desenrolar dos acontecimentos.

Mostrou a foto e relatou suas conclusões; Henrik não disse nada por um longo tempo.

— Se tenho mesmo razão, devemos nos concentrar no que se passou em Hedestad naquele dia, não apenas no que se passou na ilha — disse Mikael. — Não sei o que foi feito delas depois de tantos anos, mas muitas fotografias das festividades certamente nem foram publicadas. São essas fotos que quero ver.

Henrik Vanger utilizou o telefone de parede na cozinha. Chamou Martin Vanger, explicou o que procurava e perguntou quem era hoje o responsável pelo arquivo fotográfico do Kuriren. Dez minutos mais tarde, a pessoa foi localizada e a autorização obtida.


A responsável pelo arquivo fotográfico do Hedestads-Kuriren chamava-se Madeleine Blomberg, mais conhecida por Maja, e tinha sessenta anos. Era a primeira mulher nessa função que Mikael encontrava em sua carreira, numa profissão em que ainda se julgava a fotografia como um domínio artístico reservado aos homens.

Era um sábado e a redação estava vazia, mas Maja Blomberg morava a apenas cinco minutos a pé dali e recebeu Mikael na porta do jornal. Ela havia trabalhado no Hedestads-Kuriren a maior parte de sua vida. Começou como revisora em 1964, a seguir trabalhou na preparação das fotos e passou muitos anos no laboratório, sendo enviada também para algumas coberturas fotográficas quando os efetivos faltavam. Acabou sendo promovida a editora e, dez anos antes, quando o ex-responsável pelo setor de fotografia se aposentou, ela assumiu a chefia do departamento. Mas isso não significava que dirigisse um vasto império. O departamento de fotografia fora integrado ao de publicidade dez anos antes e contava com apenas seis pessoas, todas encarregadas do mesmo trabalho por turno.

Mikael perguntou como os arquivos estavam organizados.

— Na verdade, o arquivo está uma grande bagunça. Depois dos computadores e das fotos digitais, passamos a arquivar tudo em CDs. Um dos nossos estagiários escaneou as fotos antigas importantes, mas isso só representa um ou dois por cento das fotos catalogadas. As mais antigas estão organizadas em arquivos de negativos, por data. Estão ou aqui na redação, ou no depósito.

— O que me interessa são as fotos tiradas no desfile da Festa das Crianças de 1966, mas também, de modo geral, fotos tiradas naquela semana.

Maja Blomberg perscrutou Mikael com o olhar.

— Não é a semana em que Harriet Vanger desapareceu?

— A senhora conhece a história?

— Impossível ter trabalhado a vida inteira no Hedestads-Kuriren e não conhecê-la, e quando Martin Vanger me chamou hoje de manhã, no meu dia de folga, tirei minhas próprias conclusões. Revisei artigos que falavam do caso nos anos 1960. Por que está investigando? Haveria novas revelações?

Maja Blomberg também parecia ter faro. Mikael balançou a cabeça com um breve sorriso e lançou seu pretexto.

— Não, e duvido muito que algum dia tenhamos a resposta para o que aconteceu com ela. Peço que não espalhe, mas estou escrevendo a biografia de Henrik Vanger. O desaparecimento de Harriet é um assunto à parte, mas também um capítulo que não se pode ignorar. Procuro fotos que possam ilustrar aquele dia, de Harriet e de suas colegas.

Maja Blomberg pareceu cética, porém como a explicação era plausível ela não tinha por que duvidar do que ele dizia.

O fotógrafo de um jornal utiliza em média entre dois e dez filmes por dia. Em épocas de grandes acontecimentos, esse número pode facilmente dobrar. Cada filme contém trinta e seis negativos, portanto não é incomum um jornal acumular mais de trezentas fotos todos os dias, das quais poucas são publicadas. Uma redação bem organizada divide os filmes em seis e põe cada tira dessas em seis envelopes numa página. Com isso, um filme equivale a mais ou menos uma página num arquivo de negativos. Um arquivo contém pouco mais de cento e dez filmes. Em um ano, acumulam-se entre vinte e trinta arquivos. Ao longo dos anos, isso acaba se transformando numa quantidade espantosa de arquivos, geralmente sem o menor valor comercial, atulhando as prateleiras da redação. No entanto, todos os fotógrafos e editores de fotografia estão convencidos de que as imagens representam um documento histórico de valor inestimável e não jogam nada fora.

Fundado em 1922, o Hedestads-Kuriren dispunha de uma editoria de fotografia desde 1937. O depósito do Kuriren abrigava mais de mil e duzentos arquivos de fotos, classificados por data. As imagens de setembro de 1966 representavam quatro arquivos de encadernação barata.

— Como eu faço? — perguntou Mikael. — Vou precisar de um negatoscópio e também copiar as fotos que me interessarem.

— Não temos mais laboratório. Escaneamos tudo. Sabe usar um escâner de negativos?

— Sim, já fiz fotos, eu mesmo tenho um Agfa em casa. Trabalho com o Photoshop.

— Então está tão bem equipado como nós.

Maja Blomberg levou Mikael para dar uma volta rápida pela redação, indicou-lhe um lugar diante de um negatoscópio e ligou um computador e um escâner. Mostrou-lhe também onde preparar café na copa. Arrumou tudo para que Mikael pudesse trabalhar sozinho e livremente, mas ele devia chamar Maja Blomberg quando fosse embora da redação, para que ela viesse trancar tudo e ligar o alarme. Ela o deixou com um jovial "Divirta-se".


Mikael precisou de várias horas para percorrer os arquivos. Dois fotógrafos trabalhavam no Hedestads-Kuriren naquela época. O que trabalhou no dia em questão foi Kurt Nylund, que Mikael já conhecia. Na época, Nylund tinha vinte anos. Mais tarde foi morar em Estocolmo e tornou-se um fotógrafo profissional reconhecido, atuando como freelancer mas também com a Pressens Bild, em Marieberg. Seus caminhos se cruzaram várias vezes nos anos 1990, quando a Millennium comprou fotos da Pressens Bild. Mikael tinha a lembrança de um homem magro de cabelos finos. Kurt Nylund utilizara um filme pouco sensível usado por muitos repórteres-fotográficos.

Mikael tirou dos envelopes as fotos do jovem Nylund e as pôs no negatoscópio, examinando uma por uma com a lupa. Mas ler negativos é uma arte que requer algum hábito, coisa que Mikael não tinha. Para saber se as fotos continham alguma informação valiosa, ele percebeu que seria obrigado a escanear cada imagem para observá-la depois no computador. Isso levaria horas. Decidiu então fazer um levantamento dos negativos que poderiam interessá-lo.

Começou selecionando as fotografias do acidente com o caminhão-tanque. Mikael constatou que o arquivo de cento e oitenta fotos de Henrik Vanger não estava completo; a pessoa que copiara a coleção — talvez o próprio Nylund — eliminara cerca de trinta fotos, ou porque estavam desfocadas, ou porque sua qualidade era medíocre para publicação.

Mikael deixou o computador do Hedestads-Kurirem e ligou o escâner em seu próprio notebook. Passou duas horas escaneando o restante das fotos.

Uma delas chamou de imediato sua atenção. Num certo momento entre 15hl0 e 15hl5, exatamente nos minutos em que Harriet desapareceu, alguém abrira a janela do quarto dela; Henrik Vanger tentara em vão descobrir quem foi. De repente, Mikael tinha na tela uma foto que devia ter sido tirada no momento em que a janela estava aberta. Era possível ver uma silhueta e um rosto, mas imprecisos, desfocados. Concluiu que a análise dessa foto poderia esperar até que ele escaneasse o resto.

Nas horas seguintes, Mikael examinou as fotos da Festa das Crianças. Kurt Nylund usou seis filmes, isto é, tirou mais de duzentas fotos. Era uma série descontínua de crianças com balões, adultos, vendedores de cachorro-quente, o desfile propriamente dito, um artista local sobre um estrado e uma distribuição de prêmios.

Mikael decidiu, por fim, escanear o conjunto de fotos. Ao cabo de seis horas, tinha um dossiê com noventa fotografias. Ele seria obrigado a voltar ao Hedestads-Kuriren.

Às nove da noite, ligou para Maja Blomberg, agradeceu e voltou para sua casa na ilha.

Ele regressou às nove da manhã do domingo. Também não havia ninguém quando Maja Blomberg o fez entrar. Mikael não se dera conta de que era feriado de Pentecostes e que o jornal só sairia na terça-feira. Pôde utilizar a mesma mesa de trabalho da véspera e passou o dia escaneando. Por volta das seis, ainda restavam quarenta fotos da Festa das Crianças. Mikael examinou os negativos e concluiu que os belos primeiros planos com crianças ou as fotos de artistas em cena não tinham o menor interesse para ele. O que lhe interessava era a animação das ruas e da multidão.


Mikael passou toda a segunda-feira de Pentecostes examinando o novo material fotográfico. Fez duas descobertas. A primeira o encheu de consternação. A segunda fez seu coração bater mais rápido.

A primeira descoberta era sobre o rosto na janela do quarto de Harriet Vanger. A foto estava desfocada por causa da movimentação e por isso fora eliminada da coleção. O fotógrafo se posicionara diante da igreja e visara a ponte. As casas se achavam no plano de fundo. Mikael enquadrou a imagem de modo a recortar apenas a janela em questão, e a seguir fez diversas tentativas, ajustando o contraste e aumentando a precisão, até obter o que julgou ser a melhor qualidade possível.

O resultado foi uma imagem granulada de tons cinza, que mostrava uma janela retangular, uma cortina, a ponta de um braço e um rosto difuso em forma de meia-lua um pouco recuado no cômodo.

Constatou que o rosto não pertencia a Harriet Vanger, que tinha cabelos pretos, mas a uma pessoa com cabelos bem mais claros.

Constatou ainda que se podia distinguir partes mais escuras onde ficavam os olhos, o nariz e a boca, mas que era impossível obter traços nítidos do rosto. Estava convencido, porém, de que via uma mulher; a parte mais clara ao lado do rosto continuava até os ombros e indicava uma cabeleira feminina. Constatou que a pessoa usava roupas claras.

Fez uma estimativa da altura dela tomando por base a janela; uma mulher de cerca de um metro e setenta.

Ao fazer desfilar outras fotos do acidente da ponte, constatou que uma pessoa correspondia exatamente aos sinais que distinguia — Cecilia Vanger, aos vinte anos.


Kurt Nylund tirara ao todo dezoito fotos postado à janela do primeiro andar da Sundström, Moda Masculina. Harriet Vanger aparecia em dezessete. Harriet e suas colegas haviam chegado à rua da Estação no mesmo instante em que Kurt Nylund começara a fotografar. Mikael calculou que as fotos deviam ter sido tiradas num lapso de tempo de cinco minutos. Na primeira, Harriet e suas colegas estavam descendo a rua e entraram no campo da imagem. Nas fotos de 2 a 7 estavam imóveis, observando o desfile. Depois se deslocaram cerca de seis metros adiante na rua. Na última foto, talvez tirada um pouco mais tarde, o grupo inteiro havia desaparecido.

Mikael reuniu uma série de imagens na qual enquadrou Harriet da cintura para cima, tentando obter o melhor contraste. Colocou as fotos numa nova pasta, abriu o programa Graphic Converter e executou a função Diaporama. O efeito foi um filme mudo e entrecortado em que cada imagem aparecia durante dois segundos.

Harriet chega, foto de perfil. Harriet se detém e olha a calçada. Harriet vira o rosto para a rua. Harriet abre a boca para dizer alguma coisa à sua colega. Harriet ri. Harriet toca a orelha da colega com a mão esquerda. Harriet sorri. Harriet parece de repente surpresa, o rosto num ângulo de aproximadamente vinte graus à esquerda da objetiva. Harriet arregala os olhos e pára de sorrir. A boca de Harriet se transforma num traço estreito. Harriet fixa o olhar em alguma coisa. Em seu rosto se pode ler... o quê? Aflição, choque, raiva? Harriet baixa os olhos. Harriet não está mais lá.

Mikael repassou a sequência várias vezes.

Ela confirmava nitidamente a hipótese que ele formulara. Alguma coisa ocorreu na rua da Estação em Hedestad. A lógica era evidente.

Ela vê alguma coisaalguémdo outro lado da rua. Está chocada. Mais tarde vai procurar Henrik Vanger para uma conversa particular que nunca aconteceu. Depois desaparece sem deixar vestígios.

Alguma coisa ocorreu naquele dia. Mas as fotos não explicavam o quê.


Às duas da manhã de terça-feira, Mikael fez café e preparou sanduíches que comeu sentado no banco da cozinha. Estava ao mesmo tempo desanimado e excitado. Contra todas as expectativas, ele havia descoberto novos indícios. O problema era que, se eles jogavam uma nova luz sobre os acontecimentos, não o faziam avançar um milímetro na solução do enigma.

Refletiu muito sobre o papel que Cecilia Vanger desempenhara no drama. Henrik Vanger descrevera em detalhe as atividades de todos os protagonistas naquele dia e Cecilia não fora exceção. Em 1966 ela morava em Uppsala, mas chegou a Hedeby dois dias antes daquele sábado funesto. Estava hospedada num quarto de hóspedes da casa de Isabella Vanger. Declarou ter visto Harriet de manhã, mas não chegou a falar com ela. No sábado foi a Hedestad fazer compras. Não viu Harriet e regressou à ilha por volta da uma da tarde, no momento em que Kurt Nylund tirava a série de fotos na rua da Estação. Trocou de roupa e às duas começou a ajudar a preparar a mesa para o almoço.

Como álibi, era fraco. As horas eram aproximadas, sobretudo no que dizia respeito a seu retorno à ilha, mas Henrik Vanger nunca duvidou um segundo de que ela pudesse ter mentido. Cecilia era uma das pessoas da família que Henrik queria bem. Além disso, fora amante de Mikael. Ele tinha dificuldade de ser objetivo e não podia de modo algum imaginá-la no papel de uma assassina.

E eis que agora uma foto na janela vinha insinuar que ela mentira ao dizer que não havia entrado no quarto de Harriet. Os pensamentos se engalfinhavam na cabeça de Mikael.

Se ela mentiu sobre isso, que outras mentiras teria contado?

Mikael fez um balanço do que sabia sobre Cecilia. Via-a como uma pessoa apesar de tudo reservada, aparentemente marcada pelo passado, e o resultado é que vivia sozinha, carente de vida sexual e com dificuldade de se aproximar das pessoas. Guardava distância dos outros e, quando por um momento se deixou levar e se lançou sobre um homem, escolheu Mikael, um estranho de passagem. Cecilia disse que estava rompendo a relação deles por não suportar a idéia de que ele ia desaparecer de sua vida de uma hora para a outra. Mas foi exatamente pela mesma razão, talvez, que ousou dar um passo e iniciar um caso com ele. Como se tratava de um caso passageiro, ela não precisava temer uma transformação radical de sua vida. Mikael suspirou e deixou essas especulações psicológicas de lado.


Ele fez a segunda descoberta nessa mesma noite. A chave do enigma — ele estava convencido — era o que Harriet tinha visto na rua da Estação em Hedestad. Mikael nunca saberia o que era, a não ser que inventasse uma máquina do tempo e se colocasse atrás de Harriet para olhar por cima de seu ombro.

No momento mesmo em que esse pensamento lhe aflorou ao espírito, ele bateu na testa com a palma da mão e precipitou-se ao notebook. Clicou para fazer surgir a série de imagens não recortadas da rua da Estação e... ali estava!

Atrás de Harriet Vanger, cerca de um metro à direita dela, havia um jovem casal, ele de suéter listado e ela com uma blusa clara. Ela segurava uma máquina fotográfica na mão. Mikael ampliou a foto e teve a impressão de ver uma Kodak Instamatic com flash embutido — um aparelho barato para pessoas que não entendem de fotografia.

A mulher mantinha o aparelho na altura do queixo. Depois o levantava e fotografava os palhaços, no momento em que o rosto de Harriet mudava de expressão.

Mikael comparou a posição da máquina com a direção do olhar de Harriet. A mulher havia fotografado quase exatamente o que Harriet Vanger estivera olhando.

De repente, Mikael tomou consciência de que seu coração batia com força. Jogou o corpo para trás e tirou o maço de cigarros do bolso da camisa. Alguém havia tirado uma foto. Mas como identificar essa mulher? Como obter sua foto? Teria o filme sido aproveitado e, nesse caso, a foto existiria em algum lugar?

Mikael abriu a pasta com as fotos que Kurt Nylund havia tirado da multidão. Passou a hora seguinte ampliando cada fotografia e examinando-a centímetro quadrado por centímetro quadrado. Reencontrou o casal exatamente na última. Kurt Nylund havia fotografado outro palhaço, com balões na mão, posando diante da objetiva com um eternizado sorriso nos lábios. A foto fora tirada no estacionamento junto à praça de esportes onde se realizava a festa. Deve ter sido depois das duas da tarde — a seguir Nylund fora avisado do acidente com o caminhão-tanque e interrompera a cobertura da Festa das Crianças.

A mulher estava quase inteiramente oculta, mas via-se com clareza o perfil do homem de suéter listado. Ele tinha chaves na mão e se inclinava para abrir a porta de um carro. A imagem mostrava o palhaço em primeiro plano e a foto estava ligeiramente desfocada. Não se via toda a placa, mas ela começava por AC3 alguma coisa.

As placas dos veículos nos anos 1960 começavam com a letra das regiões, e Mikael aprendera, quando criança, a identificar a proveniência dos carros. AC designava o Västerbotten.

Depois Mikael identificou outra coisa. No vidro traseiro havia um adesivo. Deu um zoom, porém o texto desapareceu numa mancha. Realçou o adesivo e levou algum tempo trabalhando no contraste e na nitidez. Não conseguia ler o texto, mas se baseou nas formas imprecisas para determinar a que letras podiam corresponder. Muitas se assemelhavam. Um O podia ser tomado por um D, um B por um E ou várias outras letras. Trabalhando com papel e lápis, e após eliminar algumas letras, deparou com um texto incompreensível.

Fixou a imagem até seus olhos doerem. E então o texto apareceu: MARCENARIA DE NORSJÖ, seguido de sinais menores e impossíveis de ler, mas que formavam, provavelmente, um número telefônico.


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