22 - TERÇA-FEIRA 29 DE MARÇO – DOMINGO 3 DE ABRIL
Na manhã de terça-feira, Lisbeth Salander entrou nos arquivos da Cri minai Nacional e efetuou uma busca sobre Alexander Zalachenko. Ele não constava na lista, o que não era grande surpresa, já que, até onde ela sabia, nunca fora condenado na Suécia e sequer constava nos registros civis.
Para entrar nos arquivos, assumira a identidade do delegado Douglas Skiõld, de cinquenta e cinco anos, do distrito policial de Malmõ. Sobressaltou-se quando seu computador emitiu um barulhinho e um ícone do menu começou a piscar, alertando que alguém procurava por ela no chat do ICQ-
Teve um momento de hesitação. Seu primeiro impulso foi desconectar-se. Então raciocinou. Skiõld não tinha ICQ no seu computador. Poucas pessoas de mais idade tinham esse programa, que antes de mais nada era um software usado por jovens e usuários experientes afeitos aos chat.
Isso queria dizer que alguém estava tentando entrar em contato com ela. E nesse caso as possibilidades não eram muitas. Abriu o ICQ e escreveu:
[O que foi, Praga?]
[Olá, Wasp. Difícil te achar. Você nunca lê seus e-mails?] [Como você conseguiu?]
[Skiõld. Também tenho essa lista. Imaginei que você fosse usar uma das identidades com direito a acesso máximo.] [O que você quer?]
[Quem é esse Zalachenko que você está procurando?] [NTI.]
[?]
[Não Te Interessa.]
[O que está acontecendo?]
[Praga, vá se...]
[Eu achava que eu tinha uma deficiência de socialização, como você sempre diz. Mas, se eu for acreditar na imprensa, perto de você eu sou absolutamente normal.]
[??]
[Uma banana para você também. Está precisando de ajuda?]
Lisbeth hesitou um segundo. Primeiro Blomkvist, agora Praga. Aquilo não tinha fim, era uma multidão acorrendo em seu auxílio! O problema, com Praga, é que ele era um solitário de cento e sessenta quilos que só se comunicava com o mundo pela internet, fazendo Lisbeth Salander parecer um milagre de competência social. Como ela não respondia, Praga teclou mais uma linha.
[Você ainda está aí? Precisa de ajuda para sair do país?] [Não.]
[Por que você apagou os caras?] [Vá se...]
[Você pretende apagar mais gente? E nesse caso tenho que me preocupar? Acho que sou o único capaz de te rastrear.]
[Vá cuidar da sua vida, assim não vai precisar se preocupar.]
[Não estou preocupado. Me contate pelo hotmail se precisar de alguma coisa. Arma? PasSäporte novo?]
[Você é um sociopata.]
[Comparado com você?]
Lisbeth saiu do ICQ e se sentou no sofá para pensar. Passados dez minutos, voltou para o computador e mandou uma mensagem para o endereço hotmail de Praga.
[O procurador Rickard Ekström, que está conduzindo o inquérito preliminar, reside em Tãby. É casado, dois filhos, e tem cabo em casa. Eu preciso ter acesso ao laptop e/ou computador pessoal de mesa dele. Preciso lê-lo em tempo real. Hostile takeover com espelhamento do disco rígido.]
Sabia que Praga raramente saía de seu apartamento em Sundbyberg e esperava que ele pudesse contar com algum adolescente espinhento para fazer o trabalho de campo. Não assinou o e-mail, seria supérfluo. Quinze minutos depois, ele a chamou pelo ICQ.
(Quanto você está pagando?]
[10000 na sua conta + despesas e 5000 para o seu colaborador.] [Volto a entrar em contato.]
Na quinta-feira de manhã, recebeu um e-mail de Praga. Continha apenas um endereço ftp. Lisbeth ficou pasma. Não esperava um resultado antes de duas semanas, no mínimo. Montar um hostile takeover, mesmo com os programas geniais de Praga e seus softwares sob medida, era um procedimento laborioso que implicava pequenos fragmentos de informação serem injetados num computador, kilobyte por kilobyte, até que se criasse um programa simples. O tempo necessário dependia da freqüência com que o computador era utilizado. Depois, ainda eram precisos alguns dias para transferir toda a informação para um disco rígido espelhado. Fazer tudo isso em quarenta e oito horas não apenas era incrível como teoricamente impossível. Lisbeth ficou impressionada. Chamou-o pelo ICQ.
[Como você conseguiu?]
[São quatro pessoas com PC na casa. Nem te conto sobre a falta de firewall Segurança zero. Foi só entrar no cabo e carregar. Deu seis mil coroas de despesas. Não é demais para você?]
[Tá beleza. Mais um bônus pela rapidez.]
Hesitou um instante, então transferiu trinta mil coroas para a conta de Praga via internet. Não queria brindá-lo com quantias exageradas. Depois, instalou-se confortavelmente e abriu o laptop do chefe do inquérito preliminar, o procurador Ekström.
Uma hora depois, já tinha lido todos os relatórios que o inspetor Jan Bublanski lhe enviara. Lisbeth ponderou que, de acordo com o regulamento, relatórios desse tipo não deveriam sair da delegacia, e que Ekström estava simplesmente passando por cima do regulamento ao levar trabalho para casa por meio de uma conexão de internet particular e sem firewall.
Isso só vinha provar mais uma vez que nenhum sistema de segurança é melhor que o mais idiota dos colaboradores. Graças ao computador de Ekström, encontrou vários elementos indispensáveis de informação.
Primeiro, descobriu que Dragan Armanskij destacara dois colaboradores para juntar-se gratuitamente ao grupo de investigação de Bublanski, o que na prática significava que a Milton Security estava patrocinando a busca dos tiras para apanhá-la. A tarefa deles era contribuir de todas as formas possíveis para a captura de Lisbeth Salander. Muito obrigada, Armanskij. Não vou me esquecer disso. Ficou preocupada ao descobrir quem eram os colaboradores. Embora achasse Bohman meio rígido, ele sempre tivera um comportamento correto com ela. Niklas Eriksson era um torpe miserável que se aproveitara de sua posição na Milton Security para extorquir uma cliente da empresa.
A ética de Lisbeth Salander era seletiva. Não era avessa à idéia de extorquir clientes da empresa, desde que isso fosse merecido, mas jamais faria isso depois de aceitar um serviço que exigisse sigilo profissional.
Em seguida, Lisbeth descobriu que o anônimo que vinha repassando informações para a mídia era o próprio chefe do inquérito preliminar. Isso aparecia na correspondência eletrônica de Ekström, quando ele respondia às perguntas referentes à investigação médico-legal de Lisbeth e à ligação entre ela e Miriam Wu.
O terceiro elemento de informação fundamental era que a equipe de Bublanski não tinha a menor pista sobre onde deveria procurar Lisbeth Salander. Leu com o maior interesse um relatório que enumerava as medidas tomadas e os endereços colocados sob vigilância esporádica. A lista era sucinta.
Lundagatan, evidentemente, mas também o endereço de Mikael Blomkvist, o antigo endereço de Miriam Wu, perto de Sankt Eriksplan, e o Moulin, onde tinha sido vista. Droga, o que foi que me deu naquele dia para me expor daquele jeito com a Mimmi? Só uma retardada completa mesmo!
Na sexta-feira, os investigadores de Ekström também tinham achado a pista das Evil Fingers. Imaginou que, em conseqüência disso, mais endereços passariam a ser vigiados. Franziu o cenho. Com isso, as meninas do Evils iam sumir do seu círculo de conhecidos, mesmo que não tivesse tido nenhum contato com elas desde sua volta à Suécia.
Quanto mais pensava no assunto, mais perplexa ficava. O procurador Ekström estava deixando vazar na mídia todo tipo de nojeira a seu respeito. Não era difícil entender o objetivo de Ekström; a publicidade lhe era favorável e ele preparava o terreno para o dia em que fosse indiciá-la.
Mas por que não havia divulgado o relatório policial de 1991? Estava ali a razão de seu internamento no Sankt Stefan. Por que ele estava ocultando aquele caso?
Entrou no computador de Ekström e passou uma hora verificando os arquivos. Quando terminou, acendeu um cigarro. Não tinha encontrado uma única referência ao que acontecera em 1991. Isso levava a uma estranha conclusão. Ele não sabia do relatório.
Ficou em dúvida sobre o rumo a tomar. Então deu uma olhada no Powerbook. Ali estava um belo desafio para o maldito Super-Blomkvist. Reiniciou o computador, entrou no disco rígido de Blomkvist e criou o documento [MB2].
[O procurador E. está despejando informações na mídia. Pergunte a ele por que ele não repassou o antigo relatório policial.]
Deveria ser suficiente para lhe dar um impulso. Esperou pacientemente umas duas horas até que Mikael se conectasse. Ele primeiro conferiu os e-mails e demorou quinze minutos para ver seu documento, depois outros cinco para responder pelo arquivo [Críptica]. Não tinha mordido a isca. Em vez disso, repetia que queria saber quem tinha matado os amigos dele.
Aquele era um argumento ao alcance de Lisbeth. Ela amansou um pouco e respondeu com [Críptica 2],
[O que você faria no meu lugar?]
Essa era, na verdade, uma pergunta pessoal. Ele respondeu com [Críptica 3]. Ela ficou abalada.
[Lisbeth, se você pirou de vez, só o Peter Teleborian, na certa, pode te ajudar. Mas não acredito que você tenha matado o Dag e a Mia. Espero não estar enganado.
O Dag e a Mia pretendiam denunciar o comércio do sexo. Minha hipótese é que isso de alguma forma motivou os crimes. Mas não tenho nada para fundamentar essa hipótese.
Não sei o que deu errado entre nós, mas houve um momento em que conversamos sobre amizade. Eu te disse que a amizade se baseia em duas coisas - respeito e confiança. Mesmo que você não goste de mim, pode confiar em mim totalmente. Nunca revelei seus segredos. Nem mesmo o que aconteceu com os bilhões de Wennerstrôm. Confie em mim. Não sou seu inimigo. M.]
Mikael se referir a Peter Teleborian de início deixou-a furiosa. Então entendeu que ele não estava querendo aborrecê-la. Desconhecia por completo quem era Peter Teleborian, era provável que só o tivesse visto na tevê, onde ele aparecia como um especialista responsável e mundialmente respeitado em psiquiatria infantil.
Mas o que de fato a abalou foi a menção aos bilhões de Wennerstrôm. Não conseguia entender como ele descobrira. Estava convencida de que não cometera nenhuma falha e que ninguém no mundo sabia o que ela tinha feito.
Releu várias vezes a carta.
A referência à amizade lhe causou mal-estar. Não sabia o que responder. Por fim, criou o [Críptica 4],
[Vou pensar no assunto.]
Desconectou-se e acomodou-se no vão em frente à janela.
* * *
Foi só por volta das onze da noite de sexta-feira, nove dias depois dos assassinatos, que Lisbeth Salander saiu do seu apartamento em Mosebacke. Seu estoque de Billys Pan Pizza e de outras provisões, assim como o derradeiro farelo de pão e queijo, esgotara-se havia vários dias. Nos três últimos, alimentara-se com um pacote de flocos de aveia comprado por impulso num dia em que tinha jurado se alimentar melhor. Descobrira que dez centilitros de flocos de aveia, mais umas uvas passas e vinte centilitros de água, deixados sessenta segundos no microondas, transformavam-se num mingau comestível.
A falta de comida não era o único motivo de sua saída. Precisava ver uma pessoa. Infelizmente, não podia fazê-lo trancada num apartamento na Praça de Mosebacke Torg. Abriu o armário, pegou a peruca loira e muniu-se do passaporte norueguês com o nome de Irene Nesser.
Irene Nesser existia de fato. Tinha alguma semelhança com Lisbeth Salander e perdera o pasSäporte havia cerca de três anos. Fora parar nas mãos de Lisbeth graças a Praga, e nos últimos dezoito meses ela usara a identidade de Irene Nesser ao sabor da necessidade.
Lisbeth tirou a argola que usava na sobrancelha e se maquiou diante do espelho do banheiro. Enfiou uma calça jeans escura e um pulôver marrom com sobrecostura amarela, simples, mas quente, e botinas de salto. Tinha numa caixa um pequeno estoque de cartuchos de gás lacrimogêneo, e pegou um. Também pegou um cacetete elétrico que havia um ano não pegava e carregou-o. Colocou uma muda de roupa numa sacola de náilon. Tarde da noite, então, deixou o apartamento. Primeiro, foi até o McDonald’s da Hornsgatan. Escolheu esse porque ali, diferentemente do de Slussen ou da Medborgarplatsen, havia menos perigo de cruzar com um de seus ex-colegas da Milton Security. Comeu um Big Mac regado com uma Coca máxi.
Quando terminou, pegou o ônibus n° 4 em Vásterbron e foi até Sankt Eriksplan. Andou até Odenplan e chegou ao endereço do falecido Dr. Bjurman, na Upplanksgatan, pouco depois da meia-noite. Não esperava que o apartamento estivesse sendo vigiado, mas reparou que havia luz numa janela vizinha, no mesmo andar, e foi dar uma volta para os lados de Vanadisplan. Quando voltou, uma hora depois, o apartamento vizinho estava escuro.
* * *
Com passos leves como pluma e sem acender a luz, subiu a escada até o apartamento de Bjurman. Com um estilete, cortou com capricho a fita adesiva que a polícia grudara na porta. Penetrou no apartamento sem fazer nenhum ruído.
Acendeu a luz do hall que, sabia não se via da rua, e então ligou uma lanterna pequena e foi direto para o quarto. As persianas estavam baixadas. Deixou o feixe de luz percorrer a cama ainda respingada de sangue. Passou-lhe pela cabeça que ela própria quase morrera naquela cama, então sentiu-se profundamente satisfeita por Bjurman ter enfim sumido de sua vida.
O objetivo de sua visita ao local do crime era achar uma resposta a duas perguntas. Em primeiro lugar, não entendia qual a relação entre Bjurman e Zala. Estava convencida de que existia necessariamente uma relação, mas não conseguira identificá-la examinando o conteúdo do computador de Bjurman.
Em segundo lugar, uma dúvida vinha preocupando-a. Em sua visita noturna de algumas semanas atrás, notara que Bjurman havia tirado da pasta “Lisbeth Salander” um documento a seu respeito. As páginas que faltavam eram parte da descrição da tarefa que lhe fora atribuída pela Comissão de Tutela, na qual o estado psíquico de Lisbeth Salander era resumido de modo bastante sucinto. Bjurman não precisava daquilo e era bem possível que simplesmente tivesse dado uma limpa na pasta e jogado as páginas fora. Ia contra essa hipótese o fato de que advogados nunca jogam fora documentos relativos a um caso em andamento. Podiam até ser documentos supérfluos, mas livrar-se deles não tinha muita lógica. No entanto, não estavam na pasta e ela tampouco os vira em outro lugar no escritório.
Descobriu que a polícia tinha levado as pastas referentes à sua humilde pessoa, além de outros documentos. Ficou duas horas passando um pente-fino pelo apartamento para se certificar de que a polícia não tinha deixado escapar alguma coisa, e foi com uma ligeira frustração que constatou que não fora esse o caso.
Na cozinha, achou uma lata com todo tipo de chave. Ali estavam as chaves do carro e outras duas numa argola, sendo uma a chave de um prédio e a outra a de um cadeado. Foi silenciosamente até o sótão, onde tateou todos os cadeados até achar o box de Bjurman. Ele guardara ali alguns móveis velhos, um armário com roupas não usadas, esquis, uma bateria de carro, caixas com livros e outras velharias. Não achou nada de interessante, desceu a escada e usou a chave do prédio para abrir a garagem. Deparou com a Mercedes dele e dedicou-lhe um tempinho até perceber que não continha nada de útil.
Não foi ao escritório. Estivera lá poucas semanas antes, quando fizera sua visita noturna ao apartamento, e sabia que fazia dois anos ele não usava o escritório. Tudo que havia lá era poeira.
Retornou ao apartamento e sentou-se no sofá para pensar. Minutos depois, levantou-se, voltou à cozinha e pegou a lata das chaves. Examinou uma por uma. Havia chaves especiais de segurança e uma chave rústica, estilo antigo, enferrujada. Franziu o cenho. Então ergueu os olhos para uma prateleira acima da bancada, onde Bjurman pusera uns vinte pacotes de sementes. Pegou-os e constatou que se tratava de sementes para uma horta de ervas aromáticas.
Ele tem uma casa de campo! Ou então uma horta em algum lugar, com uma cabana. Está aí o que eu deixei passar.
Levou alguns minutos para achar, na contabilidade de Bjurman, um recibo de seis anos antes relativo ao pagamento da fatura de uma empresa que efetuara obras de aterramento em seu terreno, e mais um minuto para encontrar recibos do seguro de uma construção perto de Stallarholmen, para os lados de Mariefred.
Às cinco da manhã, parou no 7-Eleven que ficava aberto vinte e quatro horas, no alto da Hantverkaregatan, perto da Fridhemsplan. Comprou uma quantidade expressiva de Billys Pan Pizza, leite, pão, queijo e outros produtos de primeira necessidade. Também comprou um jornal matutino cuja manchete deixou-a fascinada.
A MULHER PROCURADA TERÁ DEIXADO O PAÍS?
Por razões que Lisbeth ignorava, o jornal optara por não citar seu nome. Referia-se a ela como “a mulher de vinte e seis anos”. O texto informava que segundo uma fonte da polícia ela talvez tivesse deixado o país e poderia estar em Berlim. Não explicava por que ela teria fugido para Berlim, mas, segundo a tal fonte, sua presença tinha sido assinalada num clube “anarco-feminista de Kreuzberg. O clube era descrito como um antro de jovens fanáticas por mais ou menos qualquer coisa, desde terrorismo político até antiglobalização e satanismo.
Pegou o ônibus da manhã para voltar a Södermalm, desceu na Rosenlundsgatan e seguiu a pé até seu apartamento. Desceu o lixo e pôs as pilhas de jornais acumulados em dois sacos plásticos que guardou no armário do hall. Lavou roupa, primeiro as roupas íntimas e as camisetas, depois os jeans. Encheu e ligou a máquina de lavar louça e, por fim, passou aspirador e um pano úmido no chão.
Eram nove da noite e ela estava encharcada de suor. Encheu a banheira com uma generosa porção de espuma para banho. Entrou na água, fechou os olhos e ficou matutando. Quando acordou, era meia-noite e a água estava gelada. Saiu do banho irritada e se enxugou antes de ir se deitar. Adormeceu quase instantaneamente.
No domingo de manhã, Lisbeth Salander ficou subitamente furiosa quando ligou o PowerBook e leu a montoeira de bobagens que haviam escrito sobre Miriam Wu. Sentiu-se arrasada e cheia de culpa. Não tinha imaginado que iriam atacar Mimmi a este ponto. E o único crime de Mimmi era ser... hmm.. sua namorada? Amiga? Amante?
Não sabia bem que palavra usar para definir sua relação com Mimmi, mas imaginava que qualquer que fosse a forma que tivesse assumido, agora estava terminada. Lisbeth teria de riscar o nome de Mimmi da sua lista, já não muito longa, de conhecidos. Depois de tudo o que aqueles retardados tinham escrito, duvidava que Mimmi ainda quisesse ter contato com aquela louca psicótica da Lisbeth Salander.
Era mesmo de dar raiva.
Memorizou o nome de Tony Scala, o jornalista que iniciara a perseguição. E resolveu também descobrir quem era o cronista particularmente desagradável de um jornal vespertino cujo artigo, com pretensões ao humor, recorria a todo instante à expressão “lésbica sadomasô”.
A lista das pessoas de que Lisbeth tencionava cuidar estava começando a ficar comprida.
Mas primeiro precisava encontrar Zala.
E não sabia muito bem o que iria acontecer quando o encontrasse.
* * *
Mikael foi acordado pelo telefone às sete e meia da manhã do domingo Ainda sonolento, estendeu a mão e atendeu.
—Bom dia - disse Erika Berger.
—Mmmm - respondeu Mikael.
—Você está sozinho?
—Infelizmente, sim.
—Então sugiro que tome uma ducha e prepare um café. Vai receber uma visita daqui a uns quinze minutos.
—É mesmo?
—Paolo Roberto.
—O boxeador? O rei do ringue?
—Em pessoa. Ele me ligou, a gente conversou uma meia hora.
—Por quê?
—Por que ele me ligou? Bem, a gente se conhece o suficiente para se dar oi quando se cruza por aí. Nos conhecemos quando fiz uma longa entrevista com ele no lançamento de Stockholmsnatt, sabe, o filme do Hildebrand sobre a vida de Paolo e a violência das gangues juvenis. Temos nos cruzado regularmente nesses anos.
—Eu não sabia. Mas o que eu queria saber é: por que ele está vindo aqui?
—Porque... Não, acho melhor ele mesmo explicar.
Mikael mal tinha saído do chuveiro e enfiado a calça quando Paolo Roberto tocou a campainha. Foi atender e pediu ao boxeador que sentasse à mesa da sala de jantar enquanto ele procurava uma camisa e preparava dois espressos duplos, que ele serviu com uma colher de leite. Paolo olhou para o café, impressionado.
—Você queria falar comigo?
—Foi a Erika Berger que aconselhou.
—O.k., pode falar, estou escutando.
—Eu conheço a Lisbeth Salander. Mikael ergueu as sobrancelhas.
—Ah, é?
—Fiquei meio surpreso quando a Erika Berger me disse que você também a conhecia.
—Acho melhor você começar do começo.
—Está bem. Vou explicar. Cheguei anteontem, depois de passar um mês em Nova York, e dei com a cara da Lisbeth estampada na primeira página de todas essas porras de jornais. Estão escrevendo um monte de merda sobre ela. Parece que não tem um único maldito tabloide falando bem dela.
—Você já conseguiu colocar um porra, um merda, um maldito na sua fala.
Paolo caiu na gargalhada.
—Desculpe. É que estou furioso. Na verdade, liguei para a Erika porque precisava conversar, e não sabia direito com quem. Como o jornalista morto em Enskede trabalhava para a Millennium e eu conhecia a Erika Berger, liguei para ela.
—Certo.
—Quer dizer, mesmo que a Salander tenha ficado louca e feito tudo o que a polícia diz que ela fez, mesmo assim tem que jogar limpo com ela. Estamos numa sociedade de direito e ninguém pode ser condenado sem ser ouvido.
—É exatamente essa a minha opinião - disse Mikael.
—Foi o que a Erika me explicou. Quando liguei, achei que vocês todos da Millennium estavam querendo a cabeça dela, já que o Dag Svensson trabalhava lá. Mas a Erika me disse que você acha que ela é inocente.
—Eu conheço a Lisbeth Salander. Acho difícil imaginá-la como essa assassina ensandecida.
Paolo riu mais uma vez.
—A menina é birutinha... mas é do bem. Gosto dela.
—De onde você a conhece?
—Faço boxe com a Salander desde que ela tem dezessete anos.
Mikael Blomkvist fechou os olhos uns dez segundos antes de tornar a fitar Paolo Roberto. Lisbeth Salander sempre haveria de surpreendê-lo.
—Mas eu sou mesmo um babaca! Lisbeth Salander lutando boxe com Paolo Roberto... E, claro, vocês estão na mesma categoria de peso!
—Estou falando sério.
—Está bem, acredito. Um dia ela me contou que fazia um pouco de sparring com uns caras num clube de boxe.
—Espere, vou explicar. Há dez anos, a A. S. de Zinken me convidou para ser treinador suplente dos juniores interessados em boxe. Eu era um boxeador conhecido e eles achavam que eu poderia atrair um público, então eu ia lá à tarde ser o sparring dos caras.
—Ah, sim.
—O fato é que fiquei nessa todo o verão e parte do outono. Eles tinham lançado uma campanha, com cartaz e tudo, e esperavam atrair os jovens para o boxe. E atraíram um bocado de caras na faixa dos quinze, dezesseis, até vinte anos. Muitos imigrantes. O boxe era uma boa alternativa para não ficar de bobeira na rua aprontando besteira. Sei do que estou falando.
—Entendi.
—Então, um belo dia, no meio do verão, eis que surge do nada aquela magricela. Sabe como ela é. Chegou ali e me disse que queria aprender a lutar boxe.
—Posso imaginar a cena.
—Tinha ali uma meia dúzia de caras, todos mais ou menos pesando o dobro que ela, muito maiores, e eles caíram na gargalhada. Eu fui um dos que acharam graça. Quero dizer, nada sério, mas a gente curtiu um pouco com a cara dela. A gente também tem uma turma feminina, e eu falei um troço idiota, tipo a gente só deixa as gatinhas lutarem boxe às quintas-feiras, algo assim.
—Imagino que ela não achou a menor graça.
—Niet. Ela não riu. Olhou furiosa para mim. Depois vestiu um par de luvas que alguém tinha deixado numa cadeira. Não estavam amarradas nem nada, e eram muito grandes para ela. E a gente riu mais ainda. Está entendendo?
—Essa história está prometendo. Paolo deu mais uma risada.
—Como eu era o dirigente, fui lá e fiz de conta que dava uns jabs.
—Ai, ai, ai.
—Mais ou menos. De repente, ela me tascou um puta de um direto no meio da cara.
Ele riu de novo.
—Imagina só a cena, eu, ali de palhaçada com ela, não estava preparado para aquilo. Ela ainda teve tempo de me dar mais dois ou três antes de eu conseguir me esquivar. Ou seja, ela era força zero nos músculos, e eu tinha a impressão de estar apanhando com uma pluma. Mas quando comecei a defender os golpes, ela mudou de tática. Boxeava instintivamente e me atingiu mais umas vezes. Então comecei a me defender de verdade, e descobri que ela era mais rápida que a porra de um réptil. Se fosse mais alta e mais forte, até teria tido luta, se é que você me entende.
—Entendo, sim.
—Então ela mudou mais uma vez de tática e me tascou um puta swing na virilha. Esse eu senti.
Mikael meneou a cabeça.
—Com essa, mandei ver um jab e atingi o rosto dela. Quer dizer, não foi com muita força nem nada, só um pof. Aí ela me deu um pontapé no joelho. Quer dizer, não foi pouca coisa. Eu era três vezes mais alto e mais pesado que ela, ela não tinha nenhuma chance, mas continuou me espancando como se a vida dela dependesse daquilo.
—Você tinha zombado dela.
—Depois eu entendi. E fiquei com vergonha. Quer dizer... a gente tinha colocado cartazes para tentar atrair os jovens para o clube, e quando ela vem e pede, muito séria, para aprender boxe, topa com um bando de idiotas rindo da cara dela. Eu também teria tido um treco se me tratassem daquele jeito.
Mikael meneou a cabeça.
—A história durou um bom tempo. Por fim, eu a agarrei, pus ela no chão e fiquei segurando até ela parar de se mexer. Pode não acreditar, mas ela estava com lágrimas nos olhos e me encarou com tanta raiva que... você sabe.
—Aí você começou a lutar boxe com ela.
—Quando ela se acalmou, eu soltei ela e perguntei se era sério, se ela queria mesmo aprender a lutar. Ele me jogou as luvas na cara e foi em direção à saída. Então fui atrás e não deixei ela passar. Pedi desculpas e disse que se ela estava falando sério, eu ensinava para ela e, nesse caso, era só ela aparecer no dia seguinte às cinco da tarde.
Calou-se e seus olhos se perderam ao longe.
—Na tarde seguinte, era o horário das meninas e ela apareceu. Coloquei ela no ringue com uma menina chamada Jennie Karlsson, que tinha dezoito anos e lutava boxe havia um ano. O problema é que não tínhamos ninguém com mais de doze anos na categoria de peso da Lisbeth. Instruí a Jennie para simular os golpes e ir devagar com a Salander, pois ela era claramente uma novata.
—E como foi?
—Sinceramente... em dez segundos, a Jennie estava com um lábio partido. O tempo de um round. A Salander conseguiu alinhar os golpes e esquivar tudo o que a Jennie tentava. Quer dizer, estamos falando de uma garota que nunca tinha posto os pés num ringue antes disso. No segundo round, Jennie estava tão furiosa que bateu de verdade, e não conseguiu acertar uma. Fiquei bobo. Nunca tinha visto um boxeador de verdade se movimentar tão rápido. Se eu tivesse metade da habilidade da Salander, já ficaria feliz.
Mikael meneou a cabeça.
—Só que, claro, o problema da Salander é que os golpes dela não valiam nada. Comecei a treiná-la. Ela ficou na turma das garotas algumas semanas e perdeu várias lutas porque, mais cedo ou mais tarde, a adversária conseguia se alinhar e aí a gente era obrigado a parar a luta, tipo mandar ela para o vestiário porque ela ficava brava e começava a dar pontapé, morder e dar soco para todo lado.
—Isso é a cara da Lisbeth.
—Ela nunca desistia. No fim, ela tinha enfurecido tantas meninas que o treinador mandou ela embora.
—Ih...
—Sim, era simplesmente impossível lutar com ela. Ela só conhecia uma posição, que a gente chamava de terminator mode, que consistia em tascar golpes de direita no adversário, fosse um aquecimento ou um treino amistoso. E as meninas volta e meia iam para casa com hematomas porque elas tinham levado sapatadas da Lisbeth. Foi então que eu tive uma idéia. Eu estava com um problema com um cara chamado Samir. Ele tinha dezessete anos, originário da Síria. Era um bom boxeador de estrutura sólida e tinha punch... mas não sabia se movimentar. Ficava parado o tempo todo.
—Sei.
—Aí eu pedi para a Salander aparecer no clube uma tarde em que eu ia treinar o Samir. Ela se trocou e eu a mandei para o ringue com ele, de capacete, protetor bucal e tudo mais. No início, Samir recusou o sparring com ela porque era uma “chata de uma menina”, aquele discurso machista todo. Então eu falei bem alto para todo mundo ouvir, que aquilo não era um sparring, e apostei quinhentos paus que ela ia acabar com ele. Para a Salander, eu disse que ela não estava ali para treinar e que o Samir ia nocautear ela de verdade. Ela me olhou com aquele jeito cético dela, você sabe. O Samir ainda estava discutindo quando o gongo soou. Ela partiu para cima dele como se a vida dela estivesse em jogo, e tascou-lhe um no meio da cara e ele caiu de bunda. Nessa época, eu já tinha treinado com ela o verão todo e ela já estava começando a pôr um pouco mais de músculo e peso nos golpes.
—Imagino que o Samir deve ter adorado.
—Nem me diga, falaram nessa história durante meses. O Samir simplesmente tomou uma surra. Ela ganhou nos pontos. Se tivesse mais força física, teria machucado o cara. Depois de um tempo, o Samir estava tão frustrado que passou a bater com toda a força. Fiquei com medo que ele acabasse com ela, a gente ia ter que chamar uma ambulância. Ela ficou com hematomas tentando se proteger com os ombros uma ou outra vez, e ele conseguiu jogar ela nas cordas porque ela não aguentava o peso dos golpes. Mas ele estava a dez mil léguas de atingir ela para valer.
—Caramba. Eu queria ter visto isso.
—A partir desse dia, os caras do clube começaram a respeitar a Salander. Principalmente o Samir. E eu acabei colocando ela como sparring-partner dos caras bem maiores e mais pesados. Ela era a minha arma secreta, e foram uns supertreinos aqueles. A gente preparava sessões em que a Lisbeth tinha por objetivo atingir cinco partes diferentes do corpo... o queixo, a testa, a barriga, e assim por diante. E os caras que ela enfrentava tinham que se defender e proteger aquelas partes. No fim, virou uma glória ter lutado com a Lisbeth Salander. Era um pouco como lutar contra um vespão. Aliás, o apelido dela era vespa, e ela se tornou uma espécie de mascote do clube. Acho que ela gostava, porque um dia apareceu com uma vespa tatuada no pescoço.
Mikael sorriu. Lembrava-se perfeitamente da vespa. Estava até incluída na descrição dos avisos de busca.
—Quanto tempo durou isso?
— Uma noite por semana por quase três anos. Eu assumi em tempo integral só no verão, depois ficou mais esporádico. O treino da Salander ficou com o Putte Karlsson, o treinador júnior. Depois ela começou a trabalhar e já não tinha como ir tão seguido, mas até o ano passado ela ainda aparecia por lá uma vez por mês. Estive com ela umas quatro, cinco vezes no ano para fazer aula. Muito legal, só para treinar, e garanto que a gente suava para valer Ela quase não falava com ninguém. Quando estava sem parceiro, era capaz de ficar duas horas batendo no saco de areia como se fosse um inimigo mortal.