23 - DOMINGO 3 DE ABRIL – SEGUNDA-FEIRA 4 DE ABRIL


Mikael preparou mais dois espressos. Desculpou-se ao acender um cigarro. Paolo Roberto deu de ombros. Mikael fitou-o pensativo.

Paolo Roberto tinha fama de ser um garganta que falava tudo que lhe vinha à cabeça. Mikael logo percebeu que também era garganta no trato pessoal, mas que era um homem inteligente e, no fundo, humilde. Lembrou que Paolo Roberto apostara numa carreira política como candidato ao Parlamento pelos socialdemocratas. Aparecia cada vez mais como um homem com alguma coisa na cabeça. Mikael flagrou-se gostando da figura.

—Por que você está me trazendo essa história?

—A Salander está na maior encrenca. Não sei o que dá para fazer, só acho que ela precisa de um amigo.

Mikael meneou a cabeça.

—O que te fez pensar que ela é inocente? - perguntou Paolo Roberto. —É difícil de explicar. A Lisbeth é uma pessoa superintransigente, mas simplesmente não acredito nessa história de ela ter matado o Dag e a Mia. Principalmente a Mia. Por um lado, ela não tinha motivo nenhum... —Nenhum que a gente saiba.

—Certo, a Lisbeth não teria escrúpulo em recorrer à violência com alguém que merecesse. Mas não sei. Desafiei o Bublanski, o tira que está conduzindo a investigação. Acho que existe um motivo por trás do assassinato do Dag e da Mia. E acho que esse motivo está na reportagem em que o Dag vinha trabalhando.

—Se você estiver certo, a Salander não só precisa de um amigo para segurar a mão dela quando for presa; precisa de ajuda da artilharia pesada.

—Concordo.

Um brilho perigoso cintilou nos olhos de Paolo Roberto.

—Se ela for inocente, terá sido vítima de um dos piores escândalos judiciários da história. Foi apontada como assassina pela mídia e pela polícia, e toda essa porcariada que escreveram...

—Também concordo.

—Então, o que a gente pode fazer? Será que posso ser útil de alguma forma?

Mikael refletiu.

—A melhor ajuda que podemos oferecer, claro, é apresentar outro culpado. Estou trabalhando nisso. Além do mais, para ajudá-la temos que pegada de qualquer jeito, antes que um tira acabe com ela. A Lisbeth não é bem do tipo que vai se entregar de boa vontade.

Paolo meneou a cabeça.

—E como a gente faz para encontrá-la?

—Não sei. Mas tem uma coisa que você poderia fazer. Uma coisa prática, se você tiver tempo e vontade.

—A minha mulher não está, vou estar solteiro na semana que vem. Com tempo e disposição.

—Certo, eu estava pensando no fato de você ser boxeador...

—Sim?

—A Lisbeth tem uma amiga, a Miriam Wu, os jornais falaram sobre ela.

—Apresentada como uma sapatão sadomasô... É, os jornais falaram nela.

—Tenho o celular dela e tentei entrar em contato. Mas ela desliga assim que vê que quem está falando é um jornalista.

—Dá para entender.

—Não estou com tempo para ir atrás da Miriam Wu. Mas li em algum lugar que ela pratica boxe tailandês. Fiquei pensando que se um boxeador conhecido ligar...

—Entendi. E você espera que ela possa nos levar até a Salander.

—Quando a polícia a interrogou, ela disse que ignorava totalmente o paradeiro da Lisbeth. Mas vale a pena tentar.

—Me dê o número. Acho ela para você.

Mikael passou o celular e o endereço na Lundagatan.

Gunnar Björck tinha passado o fim de semana analisando a situação. Seu futuro estava por um fio tênue e ele precisava jogar suas escassas cartas com sutileza.

Mikael Blomkvist era um canalha de primeira. A questão era saber se dava para convencê-lo a calar... o fato de ele ter recorrido aos serviços daquelas piranhas. O que ele fizera era passível de processo e não tinha dúvida de que, caso fosse divulgado, ele seria despedido. Os jornais fariam picadinho dele. Um agente da Säpo abusa de prostitutas adolescentes... se pelo menos aquelas malditas não fossem tão jovens.

Mas ficar sem fazer nada eqüivalia a selar sua sorte. Tivera o bom senso de não falar nada para Mikael Blomkvist. Decifrara a fisionomia de Blomkvist e registrara sua reação. Blomkvist estava preocupado. Queria informações. Mas teria de pagar. O preço era o seu silêncio. Era a única saída.

Zala alterava a equação de toda a investigação.

Dag Svensson tinha andado atrás de Zala.

Bjurman tinha procurado Zala.

E o delegado Gunnar Björck era o único, a saber, que existia um elo entre Zala e Bjurman, o que significava que Zala era um elo entre Enskede e Odenplan.

Isso colocava outro problema dramático para o futuro bem-estar de Gunnar Björck. Ele é quem passara a Bjurman a informação sobre Zalachenko - na maior amizade, esquecendo que essa informação ainda era mantida em segredo. Parecia pouco, mas isso na verdade o tornava culpado de um delito.

Além disso, desde a visita de Mikael Blomkvist, na sexta-feira, tornara-se culpado de outro delito. Ele era tira e, se detinha uma informação relacionada com uma investigação por homicídio, era seu dever alertar imediatamente a polícia. Só que, se passasse a informação para Bublanski ou o procurador Ekström, estaria automaticamente denunciando a si mesmo. Tudo viria a público. Nem tanto as putas, mas todo o caso Zalachenko.

No sábado, fizera uma breve aparição no seu trabalho, na Säpo de Kungsholmen. Pegara os antigos dossiês sobre Zalachenko e relera todos. Ele pró­prio redigira os relatórios, mas isso já fazia vários anos. Os mais antigos datavam de quase trinta anos. E o último documento, de dez anos.

Zalachenko.

Deslizando feito uma cobra nojenta. Zala.

O próprio Gunnar Björck inscrevera o apelido na investigação, só não conseguia lembrar se alguma vez o utilizara.

Mas a ligação era clara como água de rocha. Com Enskede. Com Bjurman. E com Salander.

Gunnar Björck refletiu. Ainda não entendia como todas as peças do quebra-cabeça se encaixavam, mas julgava saber por que Lisbeth Salander tinha ido até Enskede. Também podia facilmente imaginar Lisbeth Salander matando Dag Svensson e Mia Bergman num ataque de raiva, se eles tivessem se negado a cooperar ou se a tivessem provocado. Ela tinha um motivo que só Gunnar Björck, e talvez mais duas ou três pessoas em todo o país, era capaz de entender.

É uma doente mental completa. Espero, pelo amor de Deus, que um tira acabe com ela quando for presa. Ela sabe. E, se ela falar, pode revelar a história toda.

Mas, por mais que Gunnar Björck raciocinasse para lá e para cá, permanecia o fato de que Mikael Blomkvist era sua única saída - o que, em sua atual situação, era a única questão digna de interesse. Seu desespero não parava de crescer. Precisava fazer que Mikael Blomkvist o tratasse como uma espécie de fonte sigilosa e convencê-lo a guardar silêncio sobre seus... pecadilhos com as malditas putas. Quem dera a Salander acertasse as contas com o Blomkvist.

Contemplou o número de telefone de Zalachenko e pesou os prós e os contras de ligar para ele. Não conseguia se decidir.

Mikael transformara numa virtude o fato de reavaliar constantemente suas pesquisas. Depois que Paolo Roberto saiu, dedicou uma hora a isso. Tornara-se quase um diário íntimo, em que ele dava livre curso aos pensamentos enquanto registrava em detalhe todas as conversas, encontros e buscas que fazia. Criptografava diariamente o documento com o PGP e mandava cópias por e-mail a Erika Berger e Malu Eriksson, para manter suas colaboradoras a par de tudo.

Dag Svensson se concentrara em Zala nas últimas semanas que precederam sua morte. O nome surgira na última conversa que tivera ao telefone com Mikael, apenas duas horas antes de ser assassinado. Gunnar Björck afirmava ter informações sobre Zala.

Mikael passou quinze minutos resumindo tudo o que descobrira sobre Björck, o que em suma era pouco.

Björck tinha sessenta e dois anos, era solteiro e nascera em Falun. Trabalhava na polícia desde os vinte e um anos. Começara como policial, depois fizera o curso de direito e assumira um cargo de agente secreto com apenas vinte e seis ou vinte e sete anos. Isso fora em 1969 ou 70, no final do mandato de Per-Gunnar Vinge na chefia da Säpo.

Vinge fora demitido por afirmar, em conversa com o presidente da Câ­mara de Vereadores de Norrbotten, Ragnar Lassinanti, que Olof Palme era espião dos russos. Depois vieram o caso IB, o Holmér, o Carteiro, e então o assassinato de Palme e os escândalos que se sucederam. Mikael desconhecia totalmente o papel de Gunnar Björck nos dramas internos da polícia secreta nos últimos trinta anos.

A carreira de Björck, entre 1970 e 1985, era em suma uma folha em branco, o que não era de surpreender tratando-se da Säpo, já que tudo que se referia à sua atividade trazia o lacre do sigilo. Björck tanto podia ter sido nomeado apontador de lápis como agente secreto na China. Esta última hipótese, porém, era bastante improvável.

Em outubro de 1985, Björck fora para Washington, onde trabalhara dois anos na embaixada sueca. Em 1988, reassumira seu cargo na Säpo em Estocolmo. No ano de 1996, tornou-se uma figura oficial, sendo nomeado chefe-adjunto da Brigada dos Estrangeiros. Mikael não dispunha de muitos dados sobre a exata natureza de suas atribuições. Depois de 1996, Björck aparecera diversas vezes na mídia pronunciando-se sobre a expulsão de algum árabe suspeito. Em 1998, estivera na berlinda quando vários diplomatas iraquianos foram expulsos do país.

Qual a relação disso tudo com a Lisbeth Salander e os assassinatos do Dag e da Mia? Nenhuma, provavelmente.

Mas Gunnar Björck sabe de alguma coisa sobre Zala.

O que significa que necessariamente existe uma relação.

Erika Berger não tinha contado a ninguém, nem a seu marido, de quem normalmente não escondia nada, que ia se transferir para o Svenska Morgon-Posten. Só lhe restava cerca de um mês na Millennium, depois disso iria trabalhar para o Grande Dragão. Estava angustiada. Sabia que os dias iriam voar com uma rapidez alucinada e que, de repente, seria o último dia.

Sentia-se também tremendamente preocupada com Mikael. Lera seu último e-mail com uma sensação de impotência. Reconhecia os sinais. Era a mesma obstinação que o fizera fincar pé em Hedestad dois anos antes, e a mesma obsessão com que atacara Wennerstrôm. Desde a última quinta-feira, nada mais existia para ele a não ser descobrir quem matara Dag e Mia e, de alguma maneira, conseguir inocentar Lisbeth Salander.

Embora aquela ambição contasse com toda a sua simpatia - Dag e Mia também eram amigos de Erika -, havia um lado em Mikael que lhe causava mal-estar. Ele desenvolvia uma certa falta de escrúpulos quando sentia cheiro de sangue.

Assim que ele ligara na véspera, dizendo que tinha lançado um desafio a Bublanski e começado a medir forças com ele no mais puro estilo caubói, ela compreendera que a caçada a Lisbeth Salander iria consumi-lo nos pró­ximos tempos. Sabia, por experiência própria, que ele ficaria insuportável enquanto não solucionasse o problema. Ia oscilar entre o egocentrismo e a depressão. E, em algum ponto da equação, também assumiria riscos totalmente irrefletidos.

E Lisbeth Salander? Erika cruzara com ela uma única vez, e o pouco que sabia sobre aquela garota estranha não bastava para que conseguisse partilhar da convicção de Mikael quanto à sua inocência. E se Bublanski estivesse certo? E se ela fosse culpada? E se Mikael conseguisse encontrá-la e deparasse com uma doente mental de arma na mão?

A ligação de Paolo Roberto pela manhã não contribuíra para deixada mais calma. Era evidentemente muito bom Mikael não ser, afinal, o único a acreditar em Lisbeth Salander, mas Paolo Roberto também era do tipo fanfarrão.

Além disso, ela ainda precisava achar um sucessor para assumir o leme da Millennium. Agora era urgente. Pensou em ligar para Christer Malm e conversar sobre o assunto com ele, mas percebeu que não podia informá-lo e continuar ocultando a notícia de Mikael.

Mikael era um repórter brilhante, mas seria um desastre como diretor. Nesse aspecto, ela e Christer tinham muito mais em comum, só não era certo que Christer topasse. Malu era muito jovem e indecisa. Monica Nilsson, egocêntrica demais. Henry Cortez era um bom repórter, mas jovem demais e inexperiente. Lottie Karim, sensível demais. E Erika não estava segura de que Christer e Mikael aceitariam contratar alguém de fora.

Estava no maior aperto.

Não queria encerrar dessa maneira seus anos de Millennium.

No domingo à noite, Lisbeth Salander tornou a abrir o Asphyxia 1.3 e entrou no disco rígido espelhado de [MikBlom/laptop]. Viu que ele não estava conectado à internet, então passou algum tempo lendo tudo o que fora acrescentado nos dois últimos dias.

Leu o diário de investigação de Mikael e se perguntou vagamente se era por causa dela que ele escrevia com tantos detalhes e, nesse caso, o que aquilo significava. Ele sabia, evidentemente, que ela entrava em seu computador, e a conclusão óbvia era que Mikael queria que ela lesse o que ele escrevia. A questão era descobrir o que ele não escrevia. Sabendo que Lisbeth navegava em seu computador, ele podia manipular o fluxo de informações. Ela observou, de passagem, que ele manifestamente não conseguira muito mais do que desafiar Bublanski a um duelo sobre sua eventual inocência. Aquilo a irritou. Mikael, em geral, não era homem de basear suas conclusões em sentimentos, e sim em fatos. A ingenuidade desse cara é alucinante!

Mas ele tinha dado atenção a Zala. Bem pensado, Super-Blomkvist. Perguntou-se se ele teria se interessado por Zala caso ela não tivesse lhe mandado o nome.

Em seguida, notou com ligeira surpresa que Paolo Roberto aparecia de repente nos documentos. Boa notícia. Abriu um sorriso. Gostava daquela garganta. Era machista até o último fio de cabelo. Quando se enfrentavam no ringue, não hesitava em dar porrada. Desde que ela deixasse, claro.

Súbito, pulou da cadeira ao ler o último e-mail de Mikael Blomkvist para Erika Berger.

Gunnar Björck, da Säpo, detém informações sobre Zala.

Gunnar Björck conhecia o Bjurman.

O olhar de Lisbeth se turvou ao traçar mentalmente um triângulo. Zala. Bjurman. Björck. Damned, não é que faz sentido! Ela nunca tinha considerado o problema por esse ângulo. Mikael Blomkvist talvez não fosse tão bobo assim, afinal. Só que ele, obviamente, não entendia o contexto. Nem ela entendia, embora estivesse mais por dentro do que tinha acontecido. Pensou um pouco sobre Bjurman e se deu conta de que o fato de ele ter conhecido Björck o transformava numa peça um pouco mais importante do que ela imaginara.

Concluiu que provavelmente seria obrigada a fazer uma visita a Smádalarõ.

Em seguida, entrou no disco rígido de Mikael e criou um novo arquivo dentro da pasta [LISBETH SALANDER]. Chamou-o de [Canto do ringue]. Ele o veria na próxima vez que abrisse o iBook.

1. Fique longe de Teleborian. Esse cara é um sanguessuga.

2.Miriam Wu não tem absolutamente nada a ver com essa história.

3. Você está certo em se concentrar em Zala. Ele é a chave. Mas não vai encontrá-lo em nenhum registro.

4. Existe um elo entre Bjurman e Zala. Não sei qual é, mas estou trabalhando nisso. Björck?

5. Importante. Existe um relatório de polícia constrangedor a meu respeito, datado de fevereiro de 1991. Não sei o número do cadastro e não estou encontrando em lugar nenhum. Por que Ekström não o divulgou para a imprensa? Resposta: não está no PC dele. Conclusão: ele desconhece sua existência. Como é possível?]

Pensou um pouco e acrescentou mais um parágrafo.

[P. S. Mikael, eu não sou inocente. Mas não matei o Dag e a Mia nem tenho nada a ver com o assassinato deles. Estive com eles na noite da matança, mas fui embora antes de eles serem mortos. Obrigada por acreditar em mim. Diga ao Paolo que ele tem um esquerdo de mulherzinha.]

Pensou mais um pouco e percebeu que era realmente doloroso demais não saber, para uma viciada em informações do seu calibre. Acrescentou mais uma linha.

[P. S. 2. Como é que você sabe sobre o Wennerstrôm?]

Mikael Blomkvist viu o arquivo de Lisbeth três horas depois. Leu a mensagem, linha por linha, cinco vezes ou mais. Pela primeira vez, ela afirmava claramente alguma coisa. Dizia que não tinha matado Dag e Mia. Ele acreditou e sentiu um alívio imenso. Finalmente ela estava falando com ele, ainda que, como sempre, de forma misteriosa.

Reparou também que ela negava apenas o assassinato de Dag e Mia, sem mencionar Bjurman. Mikael preferiu achar que era porque ele só falara em Dag e Mia no seu e-mail. Depois de refletir um pouco, criou o [Canto do ringue 2].

[Olá, Sally,

Obrigado por finalmente dizer que é inocente. Acreditei em você, mas também fui influenciado por toda a tempestade da mídia e cheguei a sentir alguma dúvida. Me fez bem ouvir isso diretamente do seu teclado.

Então só nos resta encontrar o verdadeiro assassino. É algo que nós dois já fizemos. Avançaríamos mais depressa se você não fosse tão misteriosa. Imagino que esteja lendo o meu diário de investigação. Então sabe mais ou menos o que ando fazendo e como tenho raciocinado. Acho que o Björck sabe de alguma coisa e vou conversar de novo com ele um dia desses.

Estou na pista errada ao me focar nos clientes sexuais?

Essa história de relatório policial me intriga. Vou instruir a Malu, minha colaboradora, para que o encontre. Na época, você tinha doze ou treze anos, é isso? Do que se trata?

Registrei seu conselho quanto ao Teleborian. M.

P.S. Você deixou passar um troço no golpe do Wennerstrôm. Eu já sabia o que você tinha feito quando estivemos em Sandhamm no Natal, mas não perguntei nada porque você não tocou no assunto. E não pretendo dizer qual foi o seu erro, a menos que você me convide para um café.]

A resposta chegou três horas depois.

[Esqueça os clientes. O que interessa é o Zala. E um gigante loiro. Mas o relató­rio da polícia é interessante porque parece que alguém está querendo escondê-lo. Não pode ser por acaso.]

O procurador Ekström estava aborrecido quando juntou a equipe de Bublanski para uma reunião na segunda-feira de manhã. Mais de uma semana perseguindo um suspeito identificado e com uma aparência física bastante singular não dera nenhum resultado.

O humor de Ekström não melhorou quando Curt Bolinder, que estivera de plantão no fim de semana, relatou os últimos acontecimentos.

—Intrusão? - exclamou Ekström, sem disfarçar sua surpresa.

—O vizinho me ligou no domingo à noite quando percebeu que o lacre na porta de Bjurman tinha sido rompido. Fui até lá verificar.

—E no que deu sua verificação?

—Os lacres foram cortados em três lugares. Provavelmente com gilete ou estilete. Um bom trabalho. Mal dava para notar.

—Assalto? Existem bandidos especializados em defuntos...

—Não foi assalto. Examinei o apartamento. Estavam lá todos os objetos de valor corriqueiros, videocassete e coisas assim. Em compensação, a chave do carro de Bjurman estava em cima da mesa da cozinha.

—A chave do carro? - disse Ekström.

—O Jerker Holmberg esteve no apartamento na quarta passada para dar uma revisada, vai que a gente tivesse deixado escapar alguma coisa. Entre outras coisas, conferiu o carro. Ele jura que não tinha nenhuma chave de carro na mesa da cozinha quando saiu do apartamento, e que ele repôs o lacre.

—Ele pode ter esquecido de guardar a chave. Todo mundo pode se enganar.

—O Holmberg não usou aquela chave. Ele usou uma cópia do chaveiro do Bjurman que estava com a gente.

Bublanski passou a mão no queixo.

—Ou seja, não foi um assalto no sentido usual?

—Intrusão. Alguém entrou no apartamento do Bjurman para bisbilhotar. E só pode ter sido entre a quarta-feira e o domingo à noite, quando o vizinho notou que os lacres estavam rompidos.

—Em outras palavras, alguém foi procurar alguma coisa... Jerker?

—Não havia nada lá que a gente já não tivesse apanhado.

—Pelo menos que a gente saiba. O motivo dos assassinatos ainda não está muito claro. Partimos da hipótese de que a Salander é uma psicopata, mas até os psicopatas precisam de um motivo.

—O que você sugere?

—Não sei. Que alguém dedique um tempo passando o apartamento do Bjurman a pente-fino. Precisamos responder a duas perguntas. Primeira: quem? Segunda: por quê? O que deixamos passar?

Fez-se silêncio por alguns instantes.

—Jerker...

Jerker Holmberg deu um suspiro resignado.

—Está bem. Vou voltar lá no Bjurman passar um pente-fino no apartamento.

Eram onze horas de segunda-feira quando Lisbeth Salander acordou. Ficou meia hora preguiçando na cama antes de se levantar, ligar a cafeteira e tomar um banho. Feito isso, preparou dois sanduíches e sentou-se diante do Powerbook para se atualizar sobre o que se passava no computador do procurador Ekström e ler as edições on-line de vários jornais. Observou que o interesse pelos assassinatos de Enskede diminuía. Então abriu a pasta de investigação de Dag Svensson e leu atentamente suas anotações sobre o confronto com o jornalista Per-Áke Sandström, o cliente que fazia o jogo da máfia do sexo e sabia de alguma coisa sobre Zala. Ao terminar a leitura, serviu-se de mais um café e sentou-se no canto da janela para refletir.

Por volta das quatro da tarde, encerrou suas reflexões.

Precisava de dinheiro. Dispunha de três cartões de crédito. Um em nome de Lisbeth Salander, e logo, inutilizável na prática. O segundo em nome de Irene Nesser, mas Lisbeth evitava usado pois teria de apresentar o pasSäporte de Irene Nesser como documento de identidade, o que implicava algum risco. O terceiro estava em nome da Wasp Enterprises, referente a uma conta que continha mais de dez milhões de coroas e que podia ser movimentada via internet. Qualquer pessoa poderia usar o cartão, desde que mostrasse, evidentemente, um documento de identidade.

Foi até a cozinha, abriu uma lata de biscoitos e tirou de dentro um maço de cédulas. Restavam-lhe novecentas e cinquenta coroas, o que era pouco. Felizmente, também tinha mil e oitocentos dólares americanos que estavam ali desde que voltara para a Suécia e que ela podia trocar anonimamente em qualquer agência de câmbio. Assim já ficava melhor.

Enfiou a peruca de Irene Nesser, vestiu-se com cuidado e pôs uma muda de roupa e um estojo de maquiagem numa mochila. Então empreendeu sua segunda expedição para fora de casa. Foi até a Folkungagatan a pé, depois à Erstagatan, onde entrou na Watski pouco antes de a loja fechar. Comprou fita isolante, uma cábrea de duas roldanas e oito metros de um cordão de algodão forte.

Pegou o 66 para voltar. Na Medborgarplatsen, viu uma mulher esperando o ônibus. De início não a reconheceu, mas um alarme disparou no fundo de seu cérebro, olhou de novo e viu que era Asa Flemstrõm, que cuidava dos salários na Contabilidade da Milton Security. Estava com um penteado novo, mais na moda. Lisbeth desceu discretamente do ônibus enquanto Flemstrõm subia. Olhou ao redor com todo o cuidado, à espreita de um rosto que lhe parecesse familiar. Lisbeth passou em frente ao prédio da Bofill e chegou à Sõdra Station, onde pegou o trem do subúrbio na direção norte.

A inspetora Sonja Modig apertou a mão de Erika Berger, que imediatamente lhe ofereceu um café. Ao ir pegá-lo na cozinha, Erika sorriu ao ver as canecas desparelhadas, todas com logotipos de diferentes partidos políticos, sindicatos e empresas.

—Dão essas canecas para a gente nas reuniões eleitorais ou depois de alguma entrevista - explicou Erika Berger, estendendo-lhe uma com o logo dos jovens liberais.

Sonja Modig passou três horas sentada à mesa de Dag Svensson, auxiliada em sua tarefa pela assistente de redação Malu Eriksson, em parte para entender do que tratava o livro e o artigo de Dag Svensson, em parte para navegar pelo seu material de pesquisa. Sonja Modig ficou pasma ao descobrir a extensão dessa pesquisa. O sumiço do laptop de Dag Svensson representara um sério inconveniente para a investigação da polícia, que, com isso, pensou que não fosse ter acesso a seu trabalho. Mas na realidade fora feito, regularmente, um backup da maioria dos dados na redação da Millennium.

Mikael Blomkvist não estava, mas Erika Berger forneceu a Sonja Modig uma lista dos elementos que ele tirara da sala de Dag Svensson - principalmente anotações referentes à identidade das fontes. Modig acabou ligando para Bublanski para explicar a situação. Ficou decidido que todo o material da sala de Dag Svensson, inclusive o computador da Millennium, seria apreendido por razões técnicas de investigação. O chefe do inquérito preliminar voltaria lá para negociar caso se justificasse exigir também os elementos retidos por Mikael. Sonja Modig então preencheu um protocolo de apreensão e pediu ajuda a Henry Cortez para levar tudo até o carro.

Na segunda-feira à noite, Mikael sentiu-se profundamente frustrado. Desde a semana anterior, passara em revista dez dos nomes que Dag Svensson tivera a intenção de revelar. A cada vez, vira-se diante de homens preocupados, indignados e chocados. Constatou que a renda anual média desses sujeitos era de cerca de quatrocentas mil coroas. Era um amontoado patético de homens assustados.

Em nenhum momento, porém, teve a impressão de que os sujeitos lhe escondiam alguma coisa em relação aos assassinatos de Dag Svensson e Mia Bergman. Pelo contrário; muitos achavam que sua situação iria ficar catastró­fica quando a mídia começasse a denunciar nomes, os deles, associados aos homicídios.

Mikael abriu seu iBook para ver se havia uma nova mensagem de Lisbeth. Não havia. Em compensação, na mensagem anterior ela avisara que os clientes sexuais não tinham nenhum interesse para o caso e que ele estava gastando tempo à toa. Amaldiçoou-a com termos que Erika Berger teria qualificado de sexistas, além de inovadores. Estava com fome, mas não tinha a menor vontade de cozinhar. Sem falar que, tirando o leite do mercadinho da esquina, não tinha comprado nada para comer nos últimos quinze dias. Enfiou o casaco e desceu até a taberna grega da Hornsgatan, onde pediu cordeiro grelhado.

Lisbeth Salander tinha verificado a escada e ao anoitecer dera duas voltas discretas em torno dos prédios vizinhos. Eram edificiozinhos baixos onde, ela desconfiava, todos os ruídos deviam vazar com facilidade, o que não lhe facilitava as coisas. O jornalista Per-Ake Sandström morava num apartamento de canto no segundo andar, ou seja, no último. A escada continuava até uma porta de sótão. Deveria servir.

O único problema é que todas as janelas do apartamento estavam escuras, sinal de que o proprietário não se encontrava em casa.

Achou uma pizzaria algumas quadras adiante, pediu uma Hawaii, sentou-se a um canto e leu os jornais vespertinos. Pouco antes das nove horas, comprou um caffè latte numa revistaria e voltou para o pequeno edifício. As luzes do apartamento continuavam apagadas. Foi até a escada e sentou-se no patamar do sótão, de onde avistava a porta do apartamento de Per-Ake Sandström, meio andar abaixo. Tomou o café enquanto esperava pacientemente.

Foi no estúdio de gravação Recent Trash Records, num setor industrial de Alvsjó, que o inspetor Hans Faste enfim conseguiu encontrar Cilla Norén, vinte e oito anos, líder do grupo satanista Evil Fingers. O choque cultural foi comparável ao do primeiro encontro entre portugueses e índios caraibanos.

Depois de várias tentativas infrutíferas junto aos parentes de Cilla Norén, Faste afinal conseguira, com a irmã, uma pista levando àquele estúdio onde Cilla seria “assistente” de produção de um CD do grupo Cold Wax de Borlánge. Faste, que nunca tinha ouvido falar nesse grupo, reparou que era aparentemente constituído por uns caras na faixa dos vinte anos. Já no corredor de acesso ao estúdio, foi acolhido por um tsunami sonoro que lhe tirou o fôlego. Observou o Cold Wax através de um vidro e esperou que se abrisse uma brecha na cortina sonora.

Cilla Norén tinha cabelos negros compridos, com mechas vermelhas e verdes, e usava maquiagem preta. Era um pouco rechonchuda e vestia um pulôver curto que deixava à mostra sua barriga com um piercing no umbigo. Usava um cinto com tachas nos quadris e tinha toda a aparência de uma personagem de filme de terror.

Faste mostrou sua identificação policial e pediu para ter uma conversa com ela. Ela estava mascando chiclete e olhava para ele com ceticismo. Por fim, indicou uma porta e o conduziu pelo que parecia ser uma espécie de cozinha com mesa e cadeiras, onde ele por pouco não se estatelou ao tropeçar num saco de lixo largado bem atrás da porta. Norén encheu uma garrafa plástica com água e bebeu quase a metade, depois sentou-se à mesa e acendeu um cigarro. Fitou Hans Faste com seus olhos azul-celeste. Ele não sabia por onde começar.

—O que é a Recent Trash Records? Ela parecia mortalmente entediada.

—É um selo que produz novos grupos de jovens.

—Qual é a sua função?

—Técnica de som. Faste olhou para ela.

—Você tem formação para isso?

—Não. Aprendi na prática.

—Dá para viver disso?

—A resposta é mesmo importante?

—Eu só queria saber. Imagino que você tenha lido as matérias sobre Lisbeth Salander nesses últimos tempos.

Ela fez que sim com a cabeça.

—Disseram que você a conhece. É verdade?

—Pode ser.

—Sim ou não?

—Depende do que quer saber.

—Quero encontrar uma destrambelhada suspeita de três assassinatos. Quero informações sobre Lisbeth Salander.

—Não tenho notícias da Lisbeth desde o ano passado.

—Quando esteve com ela pela última vez?

—No outono, há dois anos. No Moulin. Ela ia lá de vez em quando, depois não soubemos mais dela.

—Você tentou entrar em contato com ela?

—Liguei algumas vezes para o celular. O número não existe mais.

—E você sabe onde eu poderia encontrada?

—Não.

—O que é o Evil Fingers?

Cilla Norén mostrou uma expressão divertida.

—O senhor não lê os jornais?

—Por quê?

—Todos eles escreveram que somos um grupo satanista.

—Isso é verdade?

—Eu tenho cara de satanista?

—Não sei que cara tem uma satanista.

—Escute, não sei quem está mais biruta, se a polícia ou os jornais.

—Escute aqui, senhorita, essa é uma pergunta séria.

—Se a gente é satanista?

—Responda às minhas perguntas, em vez de ficar enrolando.

—E qual é a sua pergunta?

Hans Faste fechou os olhos por um segundo e pensou na visita profissional que fizera, na Grécia, durante suas férias alguns anos antes. Na Grécia, apesar de todos os problemas, a polícia tinha uma enorme vantagem em relação à polícia sueca. Lá, se Cilla Norén adotasse a mesma atitude, ele a teria algemado e nocauteado com o cassetete. Olhou para ela.

—A Lisbeth Salander fazia parte do Evil Fingers?

—Acho que não.

—O que quer dizer?

—A Lisbeth talvez seja a pessoa mais hermética em relação a música que eu já conheci.

—Hermética em relação a música?

—Ela sabe distinguir um trompete de uma bateria, mas seu talento musical acaba mais ou menos por aí.

—Eu quis dizer: ela pertencia ao grupo Evil Fingers?

—Acabo de responder à pergunta. O que o senhor acha que era o Evil Fingers?

—Me conte.

—Está conduzindo uma investigação policial lendo as matérias de uns jornais idiotas.

—Responda à pergunta.

—Evil Fingers era um grupo de rock. A gente era um grupo de garotas que, em meados dos anos 1990, gostava de hard rock e tocava para se divertir. Para ficarmos conhecidas, a gente chamava a atenção com pentagramas e um pouco de sympathy for the Devil. Depois, paramos de tocar e eu sou a única que continuou trabalhando com música.

—E a Lisbeth Salander não fazia parte do grupo?

—É o que acabo de dizer.

—Por que as nossas fontes afirmam que a Salander fazia parte do grupo?

—Porque as suas fontes são quase tão idiotas quanto os jornais.

—Explique-se.

—Nós éramos cinco meninas, e continuamos nos encontrando de vez em quando. Antes, a gente se encontrava no Moulin uma vez por semana. Agora, é mais ou menos uma vez por mês. A gente mantém contato.

—E o que vocês fazem quando se encontram?

—O que é que as pessoas fazem no Moulin? Hans Faste suspirou.

—Quer dizer que vocês se encontram para beber.

— A gente toma uma cervejinha. Fala besteira. E o senhor, faz o que quando encontra com os amigos?

—E a Lisbeth Salander entra onde nesta história?

—Eu conheci Lisbeth na komvux quando eu tinha dezoito anos. Ela ia até o Moulin de vez em quando se juntar ao grupo e tomar uma cerveja com a gente.

—O Evil Fingers não poderia ser visto como uma organização? Cilla Norén o encarou como se ele viesse de outro planeta.

—Vocês são lésbicas?

—Quer levar um tabefe?

—Responda à pergunta.

—O que a gente é ou deixa de ser não lhe diz respeito.

—Calminha. Você não vai conseguir me tirar do sério.

—Alô... alô?... A polícia diz que Lisbeth Salander assassinou três pessoas e aí vem me fazer perguntas sobre as minhas preferências sexuais. Ah, vá se catar.

—Epa... eu posso te pôr no xadrez.

—Com que motivo? Aliás, esqueci de mencionar que estou no terceiro ano de direito e que o meu pai é o Ulf Norén, do escritório Norén & Knape. A gente se vê no tribunal?

—Pensei que você trabalhasse com música.

—Faço isso porque é legal. Ou você acha que eu conseguiria viver disso?

—Não faço idéia do que você vive.

—Não é de nenhuma atividade satanista e lésbica, se é isso que está pensando. Se essa é a premissa da polícia para procurar a Lisbeth Salander, entendo que vocês não consigam prendê-la.

—Você sabe onde ela está?

Cilla Norén começou a balançar o corpo, erguendo as mãos à sua frente.

—Eu sinto que ela está muito perto... espere, vou me conectar por telepatia.

—Pare com essa bobagem.

—Eu já disse que não sei dela há quase dois anos. Não faço idéia de onde ela está. Mais alguma coisa?

Sonja Modig ligou o computador de Dag Svensson e passou o final da tarde inventariando o conteúdo do disco rígido e dos ZIP. Ficou até as dez e meia da noite lendo o livro de Dag Svensson.

Ela se deu conta de duas coisas. Primeiro, descobriu que Dag Svensson era um escritor brilhante, cuja prosa era de uma objetividade fascinante quando descrevia os mecanismos do comércio do sexo. Gostaria que ele tivesse dado uma palestra na escola de polícia - seus conhecimentos seriam uma bem-vinda complementação ao curso. Hans Faste, por exemplo, era um que poderia se beneficiar dos conhecimentos de Svensson.

Em segundo lugar, ela compreendeu, de repente, o ponto de vista de Mikael Blomkvist, que achava que a investigação de Dag poderia constituir um motivo para os assassinatos. A denúncia dos clientes sexuais que Dag Svensson planejava fazer não iria prejudicar só um punhado de pessoas. Era uma denúncia brutal. Algumas figuras mais conhecidas, que já haviam sido condenadas em processos contra a moral e os bons costumes, ou que tinham participado de debates públicos sobre o tema, seriam totalmente aniquiladas. Mikael Blomkvist estava certo. O livro era um motivo para matar.

O único problema era que, mesmo que um cliente perigando ser denunciado tivesse resolvido matar Dag Svensson, não havia nenhum elo com o Dr. Nils Bjurman. Ele nem sequer constava no material de Dag Svensson, o que não só limitava consideravelmente o peso dos argumentos de Blomkvist como reforçava a imagem de Lisbeth Salander como única suspeita possível.

Embora o motivo fosse pouco claro no tocante aos assassinatos de Dag Svensson e Mia Bergman, Lisbeth Salander estava associada ao local e à arma do crime. Indícios técnicos tão evidentes dificilmente poderiam ser mal interpretados. Indicavam que Salander era mesmo a pessoa que disparara os tiros mortais no apartamento de Enskede.

A arma significava, além disso, um elo direto com o assassinato do Dr. Bjurman. E, no caso de Bjurman, existia incontestavelmente um vínculo pessoal e um motivo possível - a julgar pela decoração artística na barriga dele, podia se tratar de algum tipo de abuso sexual ou, em todo caso, de uma relação sadomasoquista entre eles. Era difícil imaginar que Bjurman tivesse permitido se deixar tatuar daquela forma estranha, o que levaria a supor que ele experimentava uma espécie de gozo na humilhação, ou então que Salander - se era mesmo ela quem tinha feito a tatuagem - o reduzira a uma condição de impotência. Modig não tinha vontade de especular sobre como ela teria feito aquilo.

E Peter Teleborian confirmara que a violência de Lisbeth Salander se dirigia a pessoas que, por motivos variados, ela considerava ameaçadoras ou que a teriam ofendido.

Sonja Modig refletiu um instante sobre o que Teleborian dissera sobre Lisbeth Salander. Ele parecera autenticamente preocupado em proteger sua ex-paciente e não queria que ela fosse machucada. Ao mesmo tempo, a investigação se fundamentava mais que nada na análise que ele apresentara - de uma desequilibrada social no limite da psicose.

Mas a teoria de Mikael Blomkvist era subjetivamente atraente.

Ela mordeu de leve o lábio inferior enquanto tentava visualizar outro cenário que não o de Lisbeth Salander como assassina solitária. Por fim, pegou uma caneta e escreveu hesitante, uma linha no bloco de anotações à sua frente.

Dois motivos totalmente distintos? Dois assassinos? Uma única arma do crime?

Uma idéia fugaz que ela não conseguia formular ficava passando por sua cabeça, uma pergunta que ela pretendia levantar na próxima reunião matinal de Bublanski. Não conseguia de fato explicar por que se sentia de repente tão pouco à vontade com a idéia de Lisbeth Salander no papel de única assassina.

Em seguida, decidiu que já tinha trabalhado o bastante, desligou resolutamente o computador e trancou os ZIP na gaveta da escrivaninha. Enfiou a jaqueta, apagou a luz e estava fechando a porta à chave quando ouviu um ruído no corredor, mais adiante. Franziu o cenho. Julgava estar sozinha àquela hora no escritório, e foi caminhando pelo corredor até chegar em frente à sala de Hans Faste. A porta estava entreaberta e ela o escutou falando ao telefone.

—Sem dúvida alguma, isso liga uma coisa à outra - escutou-o dizer. Ficou indecisa um instante, antes de inspirar fundo e bater na moldura da porta. Hans Faste ergueu dois olhos surpresos ao vê-la. Ela o cumprimentou levantando dois dedos no ar.

—Modig ainda está na casa - disse Faste ao telefone. Escutou e meneou a cabeça, sem tirar os olhos de Sonja Modig. —O.k. Eu falo para ela.

E desligou.

—Era o Bubolha - explicou. —O que você queria?

—O que é que liga uma coisa à outra? - ela inquiriu. Ele perscrutou-a.

—Anda ouvindo atrás da porta, é?

—Não, mas a porta estava aberta e você falou isso bem na hora em que eu ia bater.

Faste deu de ombros.

—Eu liguei para o Bubolha para dizer que o laboratório enfim forneceu algo aproveitável.

—Ah, é?

—O Dag Svensson tinha um celular com cartão Comviq. Finalmente conseguiram uma lista das chamadas. Foi confirmada a ligação dele para o Mikael Blomkvist às 20h 12. Blomkvist ainda estava na casa da irmã a essa hora.

—Muito bem. Mas não acho que o Blomkvist tenha qualquer relação com esses assassinatos.

—Nem eu. Mas Dag Svensson fez outra ligação naquela noite. Às 2lh34. A conversa durou três minutos.

—E?

—Foi uma ligação para o telefone fixo do Dr. Nils Bjurman. Em outras palavras, existe um elo entre os dois assassinatos.

Sonja Modig deixou-se cair lentamente na cadeira de visitantes de Hans Faste.

—Por favor. Sente-se. Ela ignorou a alfinetada.

—Certo. O que diz o cronograma? Pouco depois das oito da noite, Dag Svensson liga para Mikael Blomkvist e marca um encontro para mais tarde naquela noite. Às nove e meia, Svensson liga para Bjurman. Pouco antes das dez da noite, Salander compra cigarro na tabacaria de Enskede, que estava quase fechando. Pouco depois das onze, Mikael Blomkvist e a irmã chegam a Enskede e, as onze e onze, ele liga para o SOS - Brigada.

—Isso mesmo, Miss Marple.

—Mas não está batendo de jeito nenhum. Segundo o legista, Bjurman foi morto entre dez e onze da noite. Nessa hora, Salander já estava em Enskede. A gente sempre achou que primeiro ela tinha matado o Bjurman c depois o casal de Enskede.

—Isso não quer dizer nada. Eu falei com o legista. Só descobrimos o Bjurman na noite seguinte, quase vinte e quatro horas depois. O médico diz que a hora da morte pode variar em pelo menos uma hora.

—Mas o Bjurman tem que ser a primeira vítima, já que encontramos a arma dele em Enskede. Isso quer dizer que ela matou o Bjurman em algum momento após as 21h34, hora em que Svensson ligou para o Bjurman, e foi imediatamente para Enskede comprar cigarro na tabacaria. Dava tempo para ir de Odenplan até Enskede?

—Dava. Ela não pegou o transporte coletivo como a gente achava de início. Ela tinha um carro. Eu e o Steve Bohman fizemos o trajeto para conferir, e deu tempo de sobra.

—Mas ela ainda esperou meia hora antes de matar Dag Svensson e Mia Bergman. O que ela fez nesse meio-tempo?

—Tomou um café com eles. As digitais dela estão na xícara.

Ele lançou-lhe um olhar triunfante. Sonja Modig suspirou. Ficou em silêncio alguns minutos.

—Hans, para você este caso é um lance de prestígio. Você às vezes sabe ser um cretino e tira as pessoas do sério, mas acontece que vim bater à sua porta para pedir desculpas pela bofetada. Foi injustificada.

Ele a fitou demoradamente.

—Modig, você até pode achar que eu sou um cretino. Mas eu acho que você não é muito profissional e não tinha nada que estar na polícia. Pelo menos não neste nível.

Sonja Modig considerou diferentes respostas, mas acabou dando de ombros e se levantando.

—Certo. Assim fica claro como a gente se coloca um em relação ao outro - disse ela.

—Assim fica claro. E, pode crer, você não fica muito tempo por aqui. Sonja Modig fechou a porta atrás de si com mais força do que pretendia.

Não deixe esse escroto te tirar do sério. Desceu até a garagem para pegar o carro. Hans Faste sorria, satisfeito, do outro lado da porta.

Mikael Blomkvist acabava de chegar quando seu celular tocou.

—Oi. É a Malu. Você pode falar?

—Mas é claro.

—Ontem teve uma coisa que me chamou a atenção.

—Sei.

—Estava lendo os recortes sobre a caçada à Salander que estão lá na redação, e achei aquela matéria grande sobre o passado dela nos hospitais psiquiátricos.

—Sei.

—Eu até posso estar procurando pelo em ovo, mas fico pensando no porquê de uma lacuna tão grande na biografia dela.

—Lacuna?

—É. Existe uma profusão de detalhes sobre todas as histórias em que ela se envolveu na escola. Com os professores e os outros alunos, você sabe.

—Estou lembrado. Havia uma professora dizendo que tinha medo da Lisbeth no início do ginásio.

—A Birgitta Miáãs.

—Isso mesmo.

—Bem. E também há um bocado de detalhes sobre a Lisbeth na psiquiatria infantil. E um monte de outros detalhes sobre ela nas famílias adotivas em que ficou durante a adolescência, aquela agressão na Gamla Stan e tudo mais.

—Sei. Aonde você quer chegar?

—Ela foi internada na psiquiatria pouco antes de fazer treze anos.

—Sei.

—Mas não há uma só palavra explicando por que ela foi internada. Mikael ficou calado.

—Você quer dizer...

—Quero dizer que se uma menina de doze anos é internada na psiquiatria, é porque alguma coisa provocou isso. E no caso da Lisbeth deve ter sido uma coisa imensa, quer dizer, uma puta de uma crise, e isso deveria constar na biografia dela. Só que não há nenhuma explicação.

Mikael franziu o cenho.

—Malu, eu sei de fonte segura que existe um relatório policial sobre a Lisbeth, datado de fevereiro de 1991, quando ela tinha doze anos. Não está no cadastro. Eu ia mesmo te pedir para tentar encontrar esse relatório.

—Se existe um relatório, ele necessariamente tem que estar registrado no cadastro. Senão, é ilegal. Você verificou mesmo?

—Não, mas a minha fonte diz que o relatório não consta no cadastro. Por um momento, Malu não disse nada.

—E essa sua fonte é boa?

—Muito boa.

Malu ficou mais um tempo em silêncio. Ela e Mikael chegaram juntos à mesma conclusão.

—A Säpo - disse Malu.

—Björck - disse Mikael.

Загрузка...