9 - DOMINGO 6 DE MARÇO – SEXTA-FEIRA 11 DE MARÇO
O Dr. A. Sivarnandan diminuiu o passo ao avistar Holger Palmgren e Lisbeth Salander pelo corredor envidraçado da sala de jantar. Estavam debruçados sobre um tabuleiro de xadrez. Ela parecia ter criado o hábito de visitá-lo uma vez por semana, geralmente aos domingos. Chegava sempre por volta das três da tarde e ficava algumas horas jogando xadrez com ele. Ia embora lá pelas oito horas, quando ele tinha de ir se deitar. Observara que ela o tratava sem o menor sinal de desrespeito, e como se ele não estivesse doente - pelo contrário, pareciam brigar carinhosamente e ela aceitava naturalmente ser servida, deixando que ele fosse buscar o café.
O Dr. A. Sivarnandan franziu o cenho. Não conseguia definir essa moça estranha que se considerava filha adotiva de Holger Palmgren. Sua aparência era absolutamente singular e ela dava a impressão de espreitar todos à sua vollta com a maior desconfiança. Brincar com ela era algo impossível. Também parecia quase impossível manter uma conversa normal com ela. Certa vez, tinha lhe perguntado qual era sua profissão e ela respondera de forma muito evasiva.
Dias depois da primeira visita, voltara com um calhamaço de documentos anunciando a criação de uma fundação que tinha por objetivo patrocinar a casa de saúde em seu trabalho de restabelecimento de Holger Palmgren. O presidente da fundação era um advogado domiciliado em Gibraltar. O escritório constituía-se de duas pessoas - outro advogado residente em Gibraltar e um auditor fiscal chamado Hugo Svensson, de Estocolmo. A fundação destinara dois milhões e meio de coroas, das quais o Dr. A. Sivarnandan podia dispor como bem lhe aprouvesse, sendo que o objetivo expresso era que a verba fosse empregada para oferecer a Holger Palmgren todos os cuidados imagináveis. Para poder utilizar esses fundos, Sivarnandan precisava endereçar um pedido ao auditor, que em seguida efetuava os depósitos.
Era um arranjo simplesmente inusitado, para não dizer único.
Sivarnandan refletira durante alguns dias sobre a possibilidade de esse arranjo conter algum aspecto contrário à ética. Não encontrou nada reprovável e resolveu, então, contratar Johanna Karolina Oskarsson, de trinta e nove anos, como assistente e terapeuta ocupacional particular de Holger Palmgren. Ela era fisioterapeuta formada, com especialização em psicologia e uma grande experiência em tratamentos de reabilitação. Oficialmente, era empregada da fundação e, para imensa surpresa de Sivarnandan, a primeira mensalidade foi paga adiantada, logo após a assinatura do contrato. Até então ele se perguntara vagamente se não se tratava de algum tipo de brincadeira idiota.
E os resultados não tardaram a aparecer. No decorrer do último mês, a coordenação e o estado geral de Holger Palmgren tinham apresentado uma melhora considerável, como atestavam os testes semanais. Sivarnandan se perguntou até onde deveria atribuí-los à terapia ocupacional ou às visitas de Lisbeth Salander. Saltava aos olhos que, como um garoto à espera de Papai Noel, Holger Palmgren se esforçava ao máximo e ficava feliz com a expectativa das visitas. E dava a impressão de que era um prazer para ele ser regularmente derrotado no xadrez.
O Dr. Sivarnandan lhes tinha feito companhia durante uma partida. Partida engraçada. Holger Palmgren estava com as brancas, fizera uma abertura siciliana conforme as regras. Refletira demoradamente antes de cada jogada. Fossem quais fossem suas limitações físicas decorrentes do derrame, sua acuidade intelectual funcionava à perfeição.
Lisbeth Salander estava mergulhada num livro sobre o estranhíssimo tema da calibragem de freqüência dos radiotelescópios em estado de microgravidade. Pusera uma almofada sobre a cadeira para alcançar uma altura aceitável à mesa. Quando Palmgren mexeu seu peão, ela ergueu os olhos e movimentou uma peça, aparentemente sem nem refletir, e em seguida retomou a leitura. Palmgren capitulara na vigésima sétima jogada. Salander erguera outra vez a cabeça e contemplara o tabuleiro por alguns segundos, testa franzida.
—Não - disse ela. —Você tem chance de fazer um pate. Palmgren suspirou e examinou o tabuleiro durante cinco minutos. Por fim, fitou Lisbeth Salander nos olhos.
—Me mostre.
Ela girou o tabuleiro e assumiu o jogo de Palmgren. Conseguiu o pate na trigésima nona jogada.
—Caramba - disse Sivarnandan.
—Ela é a-a-ssi-sim. Nunca jogue com ela a dinheiro - disse Palmgren. Ele ainda gaguejava um pouco.
Sivarnandan jogava xadrez desde menino e, adolescente, participara do campeonato de Abo, ficando em segundo lugar. Considerava-se um amador competente. Percebeu que Lisbeth Salander era uma jogadora temível. Aparentemente, nunca jogara por um clube e, quando ele mencionou que aquela partida parecia ser uma variante de uma clássica partida de Lasker, ela mostrou-se perplexa. Parecia nunca ter ouvido falar em Emmanuel Lasker. Ele morria de vontade de perguntar se o talento dela era inato e, se fosse, se tinha outros talentos que poderiam interessar a um psicólogo.
Mas não perguntou nada. Só constatou que Holger Palmgren parecia se sentir melhor do que nunca desde a chegada de Lisbeth Salander a Ersta.
0 Dr. Nils Bjurman chegou em casa tarde da noite. Passara quatro semanas seguidas na casa de campo perto de Stallarholmen. Estava abatido. Tirando o fato de que o gigante loiro trouxera o recado de que a proposta dele os interessava — o que lhe custaria cem mil coroas —, não acontecera nada que mudasse fundamentalmente sua mísera situação.
Um monte de correspondência se acumulara atrás da porta do hall de entrada. Juntou os envelopes e deixou-os na mesa da cozinha. Sentia um imenso vazio e desenvolvera um acentuado desinteresse por tudo que se referia ao trabalho e ao mundo exterior. Só mais tarde da noite seu olhar recaiu sobre a pilha de correspondência e ele a folheou meio distraído.
Um dos envelopes trazia o logotipo do Handelsbanken. Abriu-o e quase teve um choque ao descobrir que era a cópia de um extrato de débito de 9312 coroas efetuado na conta de Lisbeth Salander.
Ela estava de volta.
Foi até o escritório e pôs o documento sobre a escrivaninha. Contemplou-o com um olhar cheio de ódio por mais de um minuto, enquanto se recuperava do susto. Precisava achar o número do telefone. Então, pegou o aparelho e discou o número de um celular anônimo, de cartão. Visualizou o gigante loiro com o ligeiro sotaque.
—Sim?
—Aqui é o Nils Bjurman.
—O que você quer?
—Ela voltou para a Suécia.
Um breve silêncio se fez do outro lado da linha.
—Certo. Não ligue mais para este número.
—Mas...
—Em breve você vai receber instruções.
Para sua grande irritação, a ligação foi cortada. Bjurman blasfemou consigo mesmo. Foi até o bar e se serviu de uns dez centilitros de bourbon. Esvaziou o copo em duas talagadas. Preciso reduzir o álcool, pensou. Em seguida, serviu-se de mais um fundo de copo e o levou consigo para o escritório, onde mais uma vez contemplou o extrato do Handelsbanken.
Miriam Wu massageava as costas e a nuca de Lisbeth Salander. Fazia uns bons vinte minutos que ela amassava aplicadamente uma Lisbeth que, em suma, contentava-se em soltar um ou outro suspiro de satisfação. Ser massageada por Mimmi era incrivelmente bom e Lisbeth se sentia como um gatinho que só deseja uma coisa: dormir e agitar as patinhas.
Conteve um suspiro de decepção quando Mimmi lhe deu uns tapinhas no bumbum, informando que já estava bem assim. Ficou um instante sem se mexer, na vã esperança de que a amiga continuasse, mas quando ouviu Mimmi pegar uma taça de vinho, virou-se de costas.
—Obrigada - disse.
—Desconfio que você passa o dia parada na frente do computador. Por isso é que está com dor nas costas.
—Eu distendi um músculo, só isso.
As duas estavam nuas na cama de Mimmi, no apartamento da Lundagatan. Algumas taças de vinho as tinham deixado meio altas. Lisbeth franziu o cenho. Desde que retomara o contato com Miriam Wu, parecia que nunca se fartava. Adquirira o péssimo hábito de ligar para Mimmi o tempo todo - para ser sincera, com muito mais freqüência do que exigiria um mero e saudável desejo. Olhou para Mimmi e repetiu a si mesma que de modo algum podia se apegar novamente a uma pessoa. No fim da história, só sobrariam machucados.
Súbito, Miriam Wu inclinou-se para trás, sobre a borda da cama, e abriu a gaveta do criado-mudo. Pegou um pacotinho achatado embrulhado num papel de presente florido e preso com uma fita dourada, e o jogou no colo de Lisbeth.
—O que é isso?
—Seu presente de aniversário.
—Falta mais de um mês para o meu aniversário.
—Do aniversário do ano passado. Não consegui te achar na época. Encontrei o pacote quando fiz a mudança.
Lisbeth ficou um instante calada.
—Abro?
—Claro, se quiser.
Ela largou o copo, chacoalhou o pacote e abriu devagarinho. Era uma linda cigarreira de metal preto e azul, ornada com símbolos chineses.
—Você devia parar de fumar - disse Miriam Wu. —Mas se tiver mesmo que continuar, pelo menos guarde os cigarros numa embalagem com alguma estética.
—Obrigada - disse Lisbeth. —Você é a única pessoa que me dá presentes de aniversário. Você sabe o que significam esses símbolos?
—Como vou saber? Não sei chinês. É só uma coisinha que eu achei num mercado das pulgas.
—É uma cigarreira muito bonita.
— Uma bobagem. Mas achei que você ia gostar. Sabe que não temos mais nada para beber?... Vamos sair para tomar uma cerveja em algum lugar?
—Quer dizer que a gente tem que levantar e se vestir?
—Acho que sim. De que serve morar num bairro como o Söder se a gente não vai num bar de vez em quando?
Lisbeth suspirou.
—Vamos -.disse Miriam Wu, brincando com a bijuteria no umbigo de Lisbeth. —Você está fixada em sexo. Mas a gente pode voltar para cá depois.
Lisbeth suspirou de novo, pôs um pé no chão e se esticou para pegar a calcinha.
Dag Svensson estava instalado a uma mesa que tinham lhe cedido a um canto da redação da Millennium, quando se surpreendeu com o ruído da fechadura da porta de entrada. Olhou para o relógio e percebeu que já eram nove da noite. Mikael Blomkvist ficou tão surpreso quanto ele ao topar com uma pessoa na redação.
—Então, fazendo hora extra? Olá, Micke. Eu, trabalhando no livro, nem vi o tempo passar. O que o traz aqui?
—Só passei para pegar um livro que eu esqueci. Está tudo certo?
—Está, bem, não... Faz três semanas que estou tentando achar uma pista desse canalha do Björck, da Säpo. Até parece que ele foi raptado por algum serviço de informações estrangeiro. Nem sinal dele.
Dag relatou seus reveses. Mikael pegou uma cadeira, sentou-se e refletiu alguns instantes.
—Você tentou o truque do sorteio premiado?
—Como?
—Crie um logotipo grandiloquente, escreva uma carta comunicando que ele ganhou um celular com GPS ou coisa do gênero. Imprima direitinho na sua impressora e mande para o endereço dele - no caso, a caixa postal. A manha é falar que ele já ganhou o celular. Ele só precisa dizer onde quer ir pegá-lo. E como ele tem direito ao bônus, é uma das vinte pessoas que ainda podem ganhar cem mil coroas. Tudo que ele precisa fazer é participar de uma pesquisa sobre diversos produtos. A pesquisa seria realizada em uma hora, por um pesquisador profissional. Depois... bem, você entendeu.
Dag Svensson olhou para Mikael, boquiaberto.
—Está falando sério?
—Por que não? Você já tentou de tudo, e até um figurão da Säpo deveria ser capaz de entender que a chance de ganhar cem mil coroas é bem aceitável, se ele já é um dos vinte selecionados.
Dag Svensson, de repente, deu por si chorando de rir.
—Você é completamente doido. Isso é legal?
—Acho difícil achar que seria ilegal dar um celular de presente.
—Puta merda! Você é mesmo incrível.
Dag Svensson ainda ficou rindo mais algum tempo. Mikael hesitou. Na verdade, estava indo para casa e não tinha o hábito de frequentar bares, mas gostava da companhia de Dag Svensson.
—O que você acha de a gente tomar uma cerveja? - perguntou. Dag Svensson consultou o relógio.
—Acho tentador - disse. —Por que não? Mas tem que ser rapidinho. Vou dar uma ligada para a Mia. Ela saiu com umas amigas, ficou de me pegar na volta.
Foram até o Moulin, principalmente por ser mais prático, era pertinho. Dag Svensson volta e meia caía na risada enquanto compunha de cabeça a carta que ia escrever para Björck. Mikael olhou de esguelha, cético, para aquele seu colaborador tão fácil de divertir. Um casal estava saindo na hora em que chegaram, e ficaram com a mesa deles, bem perto da porta. Cada um pediu um chope, aproximaram-se um do outro e se puseram a conversar sobre o tema que, no momento, monopolizava a vida profissional de Dag Svensson.
Mikael Blomkvist não viu Lisbeth Salander no bar com Miriam Wu. Lisbeth deu um passo atrás de modo a deixar Mimmi entre ela e Mikael. Com o semblante neutro, observou-o por cima do ombro de Mimmi.
Era a primeira vez que ela saía desde que voltara à Suécia, e é claro que tinha que topar logo com ele. Maldito Super-Blomkvist.
Era a primeira vez que o via em mais de um ano.
—O que houve? - perguntou Mimmi.
—Nada - disse Lisbeth Salander.
Continuaram a conversar. Ou melhor, Mimmi continuou contando a história de uma garota que ela havia conhecido durante uma viagem a Londres alguns anos antes. Tinha a ver com uma galeria de arte e uma situação que ia ficando cada vez mais cômica à medida que Mimmi tentava dar em cima dela. Lisbeth meneava a cabeça de vez em quando e, como sempre, perdeu o ponto alto da história.
Constatou que Mikael Blomkvist não tinha mudado muito. Estava tremendamente bonito; descontraído e de bem consigo, mas ainda assim com um ar sério. Escutava o que seu companheiro de mesa dizia e meneava regularmente a cabeça. A conversa não parecia estar muito divertida.
Lisbeth transferiu o olhar para o amigo de Mikael. Um rapaz loiro de cabelos muito curtos, alguns anos mais jovem que Mikael, que falava com ar compenetrado e parecia estar explicando alguma coisa. Ela nunca vira o cara antes e não fazia a mínima idéia de quem ele era.
Súbito, um grupo de pessoas acercou-se da mesa de Mikael para cumprimentá-lo. Uma das mulheres lhe deu um tapinha amigável no rosto e disse algo que fez todo mundo rir. Mikael pareceu constrangido, mas riu com os outros. Era claramente tratado como celebridade desde seu sucesso no caso Wennerström.
Lisbeth Salander franziu o cenho.
—Você não está me escutando - disse Mimmi.
—Estou sim.
—Você não é de nada como companheira de bar. Desisto. Quer ir embora e transar?
—Daqui a pouco - disse Lisbeth.
Chegou mais perto de Mimmi, pôs uma mão em seu quadril e deslizou discretamente o indicador debaixo da blusa dela para acariciar sua barriga. Mimmi baixou os olhos para ela.
—Estou a fim de te dar um beijo na boca.
—Não faça isso.
—Está com medo que as pessoas pensem que você é lésbica?
—Neste exato momento eu não quero chamar a atenção.
—Então vamos embora. Estou a fim de me divertir.
—Agora não. Espera um pouquinho.
Não precisaram esperar muito. Vinte minutos depois que eles chegaram, o homem que estava com Mikael recebeu uma ligação no celular. Esvaziaram seus copos de chope e se levantaram ao mesmo tempo.
—Ei, olhe aquele cara - disse Mimmi. —É o Mikael Blomkvist. Ficou famoso que nem estrela de rock depois do caso Wennerström.
—Ah, é? - fez Lisbeth.
—Você perdeu essa. Foi mais ou menos na época em que você se mandou para o exterior.
—Eu ouvi falar.
Lisbeth esperou mais cinco minutos antes de encarar Mimmi.
—Você estava a fim de me beijar na boca. Mimmi olhou para ela, surpresa.
—Era para implicar com você.
Lisbeth se ergueu na ponta dos pés, puxou o rosto de Mimmi para perto do seu e tascou-lhe um beijo de dois minutos. As pessoas bateram palmas.
—Você é completamente biruta - disse Mimmi.
Lisbeth Salander só voltou para casa por volta das sete da manhã. Puxou a camiseta para cheirar as axilas, pensou em tomar um banho, mas deixou para lá. Largou a roupa amontoada no chão e se deitou. Dormiu até as quatro da tarde, levantou-se e foi tomar café da manhã no Mercado do Söder.
Pensava em Mikael Blomkvist e em sua própria reação ao se defrontar com ele. Sua presença a incomodara demais, mas constatou também que já não doía vê-lo. Ele tinha virado um pontinho no horizonte, uma ligeira perturbação em sua existência.
Havia perturbações muito piores na vida.
Lamentou de repente não ter tido coragem de ir cumprimentá-lo. Ou, no outro extremo, de espancá-lo.
Ela hesitava entre as duas possibilidades, e de repente ficou muito curiosa para saber no que ele estava trabalhando. A tarde, fez algumas compras, voltou para casa lá pelas sete horas, ligou o Powerbook e iniciou o programa Asphyxia 1.3. O ícone MikBlom/laptop ainda constava no servidor holandês.
Clicou duas vezes e abriu uma cópia do disco rígido de Mikael Blomkvist Era sua primeira visita ao computador dele desde que deixara a Suécia havia mais de um ano. Notou, satisfeita, que ele ainda não atualizara a última versão do MacOS, o que teria significado a eliminação do Asphyxia e o fim da clonagem. Pensou também que teria de reescrever o software para evitar que uma atualização o destruísse.
O volume do disco rígido aumentara 6,9 gb desde sua última visita. Boa parte desse aumento consistia em arquivos PDF e cópias Quark de todos os números da Millennium. Os documentos Quark não ocupavam tanto espaço, à diferença dos arquivos de imagens, mesmo as comprimidas. Desde que voltara a ser o editor responsável pela publicação, ele aparentemente arquivara uma cópia de cada número da revista.
Ela organizou o disco rígido por data, com os documentos mais antigos em cima, e observou que nos últimos meses Mikael se ocupara principalmente de uma pasta intitulada [DAG SVENSSON], que era manifestamente o projeto de um livro. Depois abriu os e-mails de Mikael e passou em revista sua lista de contatos.
A certa altura, franziu o cenho. Dia 26 de janeiro, Mikael recebera um e-mail da Maldita Harriet Vanger. Abriu o e-mail e leu umas poucas linhas sobre uma assembléia geral da Millennium que aconteceria em breve, que terminavam com a informação de que Harriet tinha reservado o mesmo quarto de hotel que da outra vez.
Lisbeth levou um breve instante para digerir a informação. Depois deu de ombros e baixou os e-mails de Mikael Blomkvist, o manuscrito de Dag Svensson intitulado Os sanguessugas, com o subtítulo Os beneficiários da indústria da prostituição. Achou também a cópia de uma tese intitulada “Da Rússia com amor”, escrita por uma tal de Mia Bergman.
Ela se desconectou e foi até a cozinha ligar a cafeteira. Depois se acomodou no sofá novo da sala com seu PowerBook. Abriu a cigarreira que Mimmi lhe dera, acendeu um Marlboro light e dedicou-se à leitura.
Por volta das nove da noite, concluiu a leitura da tese de Mia Bergman. Mordeu pensativa, o lábio inferior.
Âs dez e meia, terminou o livro de Dag Svensson. E percebeu que a Millennium não demoraria para voltar às manchetes.
Às onze e meia, quando estava acabando a leitura dos e-mails de Mikael Blomkvist, ergueu-se de repente, arregalando os olhos. Sentiu um arrepio percorrer suas costas.
Tratava-se de um e-mail de Dag Svensson para Mikael Blomkvist.
Svensson dizia que andava se fazendo algumas perguntas sobre um gângster do Leste europeu, um tal de Zala, que poderia, eventualmente, virar, sozinho, um capítulo do livro - mas constatava que não lhe restava muito tempo até a data de entrega do manuscrito. Mikael não respondera a esse e-mail.
Zala.
Lisbeth Salander permaneceu imóvel, refletindo, até que interveio o protetor de tela.
Dag Svensson largou seu bloco de anotações e coçou a cabeça. Contemplou, pensativo, a única palavra escrita bem no alto da página aberta. Quatro letras.
Zala.
Desconcertado, passou uns três minutos rabiscando uma série de círculos labirínticos em volta do nome. Então levantou-se e foi pegar uma xícara de café na copa. Olhou o relógio e pensou que deveria ir para casa dormir, mas descobrira que gostava de ficar trabalhando até tarde na redação da Millennium, quando o local estava calmo e tranqüilo. O prazo-limite para a entrega dos originais se aproximava inexoravelmente. Ele dominava bem o tema, mas, pela primeira vez desde que entrara no projeto, sentia uma vaga dúvida. Perguntava-se se poderia estar deixando passar um detalhe essencial.
Zala.
Até então, estivera impaciente para terminar o manuscrito e ver o livro publicado. Agora, gostaria de poder dispor de mais tempo.
Pensou no relatório da autópsia que o inspetor Gulbrandsen tinha lhe dado para ler. Irina P. fora encontrada no canal de Södertálje, vítima de extrema violência, provavelmente por meio de uma ferramenta pesada. Seu rosto e a caixa torácica apresentavam marcas fortes de contusão. A causa mortis tinha sido a nuca quebrada, mas pelo menos dois outros ferimentos foram considerados fatais. Ela estava com seis costelas quebradas e o pulmão esquerdo perfurado. O baço estava estraçalhado devido às pavorosas pancadas que levara. A origem dos ferimentos era difícil de determinar. A autópsia aventara a hipótese de um malho de madeira enrolado num pano. Ninguém conseguia explicar por que um assassino teria forrado a arma com tecido, mas os ferimentos não apontavam para nada que fosse característico dos instrumentos corriqueiros.
O crime ainda não fora desvendado, e Gulbrandsen observara que as chances de se encontrar um culpado eram extremamente escassas.
O nome de Zala tinha surgido em quatro oportunidades no material que Mia Bergman acumulara nos últimos anos, mas sempre de maneira periférica, fugidio como um fantasma. Ninguém sabia quem ele era ou mesmo se existia de fato. Algumas meninas referiam-se a ele como as crianças costumam falar no Bicho-Papão ou em algum monstro impreciso - uma ameaça não identificada que constituía um perigo para os desobedientes. Ele passara uma semana tentando obter mais informações sobre Zala, tinha questionado policiais, jornalistas e as diversas fontes relacionadas ao comércio sexual que ele havia reunido.
Mais uma vez fizera contato com o jornalista Per-Áke Sandström, que ele pretendia denunciar sem pruridos em seu livro. A esta altura, Sandström tinha começado a perceber que a situação era séria. Suplicara a Dag Svensson que tivesse piedade dele. Oferecera-lhe dinheiro. Como Dag Svensson pretendia mesmo denunciá-lo, valera-se, sem pudor nenhum, de sua posição de força para arrancar o máximo de Sandström.
O resultado foi frustrante. Sandström era um canalha corrompido que fizera o jogo da máfia do sexo. Nunca tinha estado com Zala, mas falara com ele por telefone e sabia que ele existia. Talvez. Não, não tinha o telefone dele. Não, não podia revelar quem fizera o contato. Piedade, eu lhe imploro.
De repente, Dag Svensson compreendeu que Per-Áke Sandström estava com medo. Um medo maior que a ameaça de ser denunciado. Ele temia por sua vida. Por quê?
10. SEGUNDA-FEIRA 14 DE MARÇO – DOMINGO 20 DE MARÇO
Usar o transporte coletivo para ir até o centro de reabilitação de Ersta representava uma enorme perda de tempo e era quase tão complicado quanto alugar um carro toda vez que visitava Holger Palmgren. Em meados de março, Lisbeth Salander resolveu comprar um carro e começou a procurar um estacionamento. O que se revelou mais problemático do que a compra do carro.
Ela dispunha de uma vaga na garagem do subsolo de seu prédio da Fiskaregatan, mas não tinha a menor intenção de usá-la. O carro ficaria associado ao proprietário e Lisbeth não queria que houvesse nenhuma ligação entre ela e o prédio. Em compensação, muitos anos antes, ela se candidatara a uma vaga na garagem de seu antigo apartamento na Lundagatan, para o caso de um dia vir a comprar um carro. Ligou para saber como estava a espera e descobriu que ela já era a primeira da lista. Melhor ainda: no próximo mês haveria uma vaga livre. Uma sorte e tanto. Ligou para Mimmi e pediu que ela corresse para assinar os papéis. No dia seguinte, saiu em busca de um carro; leou exatamente quatro horas e vinte minutos para encontrar um.
Tinha dinheiro suficiente para comprar um Rolls-Royce ou uma Ferrari cor de tangerina, mas não fazia questão de um automóvel vistoso que chamasse a atenção das pessoas. Esteve em dois revendedores de carros usados em Nacka e escolheu um velho Honda cor de vinho com câmbio automático. Durante uma hora, para imenso desespero do vendedor, examinou a fundo o motor. Regateou por uma questão de princípio, conseguiu baixar o preço em algumas notas de mil, e então pagou em dinheiro.
Depois foi dirigindo o Honda até a Lundagatan e subiu ao apartamento de Mimmi para deixar uma cópia das chaves. Mimmi poderia usar o carro, claro, desde que avisasse antes. Como a vaga da garagem só estaria disponível no começo do mês, enquanto isso deixaram o carro estacionado na rua.
Mimmi estava de saída para um encontro seguido de cinema, atividade tão excitante para Lisbeth quanto um debate orçamentário no Parlamento. Além do que, ia sair com uma amiga da qual Lisbeth nunca tinha ouvido falar. Como Mimmi estava exageradamente maquiada, vestia uma roupa trash e ostentava uma espécie de coleira de cachorro no pescoço, Lisbeth imaginou que se tratava de uma de suas namoradas e, embora Mimmi a convidasse para ir junto, ela recusou. Não tinha a menor vontade de se envolver num drama triangular com uma das amigas de Mimmi, de pernas longas, provavelmente supersexy e que a faria sentir-se uma idiota. Foram juntas até o metrô Hötorget, e ali se separaram.
Lisbeth fez a pé o trajeto até a OnOff de Sveavágen e entrou na loja dois minutos antes de ela fechar. Comprou um cartucho para a sua impressora a laser e pediu que o retirassem da embalagem para poder levá-lo na mochila.
Ao sair da loja, estava com um vaziozinho no estômago. Foi até o Stureplan, onde entrou, por puro acaso, no Café Hedon, um lugar descolado onde nunca tinha estado. Reconheceu imediatamente o doutor Nils Erik Bjurman, quase de costas, e recuou para perto da porta. Colocou-se próxima ao janelão que dava para a calçada e esticou o pescoço a fim de observar seu tutor, protegida por um balcão.
A visão de Bjurman não despertou nenhuma emoção especial em Lisbeth Salander. Não sentiu raiva, ódio ou medo. No que lhe dizia respeito, o mundo seria, sem dúvida alguma, um lugar melhor sem aquele cara, mas ele estava vivo porque ela resolvera que ele lhe seria mais útil assim. Voltou o olhar para o homem sentado em frente a ele e sobressaltou-se quando o homem se levantou de repente.
Clique.
O homem era particularmente alto, dois metros de altura pelo menos, e muito bem-apessoado. Excepcionalmente bem-apessoado, aliás. Tinha um rosto delicado, cabelos loiros rente às têmporas e uma franja curta. A impressão geral, porém, era de uma forte virilidade.
Lisbeth viu o gigante loiro inclinar-se e sussurrar algo para Bjurman, que meneou a cabeça. Apertaram-se as mãos e Lisbeth reparou que Bjurman retirava rapidamente a sua.
Ora, ora, quem é você? E o que está fazendo aí com o Bjurman?
Lisbeth Salander desceu depressa alguns metros rua abaixo e se postou à entrada de uma tabacaria. Estava observando as manchetes dos jornais quando o loiro saiu do Hedon e pegou à esquerda sem olhar para os lados. Passou a menos de trinta centímetros das costas de Lisbeth. Ela lhe deu uma vantagem de quinze metros e começou a segui-lo.
O passeio a pé não se estendeu. O gigante loiro entrou em seguida no metrô da Birger Jarlsgatan e comprou um bilhete na máquina. Esperou na plataforma da direção sul - que de todo modo era a direção de Lisbeth- e entrou no metrô para Norsborg. Desceu em Slussen e tomou a direção de Farsta, mas logo desceu em Skanstull e foi caminhando até o Café Blomberg, na Götgatan.
Lisbeth ficou do lado de fora. Observou, pensativa, o homem com quem o gigante loiro foi se sentar. Clique. Lisbeth lhe atribuiu o perfil más notícias. Um sujeito gordo, com um rosto magro e uma barriga de bebedor de cerveja. Tinha cabelos loiros presos num rabo de cavalo e um bigode loiro. Vestia jeans preto, uma jaqueta jeans e usava botinas de salto. No dorso da mão direita, tinha uma tatuagem cujo desenho Lisbeth não conseguia distinguir àquela distância. Usava uma corrente de ouro no pulso e fumava Lucky Strike, a julgar pelo maço em cima da mesa. Lisbeth reparou no seu olhar errante, que ela associava a pessoas que se dopam. Reparou também que ele usava um colete por baixo da jaqueta jeans. Fez imediatamente a associação com motoqueiros.
O gigante loiro não fez nenhum pedido. Parecia falar em voz baixa. Explicava alguma coisa. O homem da jaqueta jeans meneava regularmente a cabeça, mas parecia não contribuir para o diálogo. Droga, por que não estou com meu microfone ultrassensível?
Passados cinco minutos, o gigante loiro se levantou e deixou o Café Blomberg. Lisbeth afastou-se depressa, mas ele nem sequer olhou em sua direção. Andou uns quarenta metros e subiu a escadaria da Allhelgonagatan, onde entrou num Volvo branco. Deu a partida e entrou devagarinho na rua. Lisbeth estava tão perto que teve tempo de anotar o número da placa antes de ele dobrar a esquina e sumir.
Lisbeth ficou alguns segundos pensativa, olhando para o lugar onde o Volvo estivera estacionado. Então voltou correndo ao Café Blomberg. Ausentara-se menos de três minutos, mas a mesa já estava vazia. Deu meia-volta, verificou a calçada nas duas direções, e não viu o homem de rabo de cavalo e jaqueta jeans. Então olhou do outro lado da rua e o avistou empurrando a porta do McDonald’s.
Foi obrigada a entrar para poder vê-lo outra vez. Estava sentado no fundo, na companhia de outro homem que usava roupas semelhantes às dele e claramente conotativas. Este usava o colete por cima da jaqueta jeans. Lisbeth leu os dizeres MOTO-CLUB SVAVELSJÖ. Com uma roda de moto estilizada que lembrava a cruz celta enfeitada com um machado.
Lisbeth saiu para a rua e ficou um momento indecisa antes de pegar a direção norte e voltar para casa. Caminhava com a sensação de que todo o seu sistema de alarme tinha disparado.
Lisbeth parou no 7-Eleven da Götgatan para fazer as compras da semana: um pacote grande de pizzas congeladas, três peixes gratinados, três tortas de bacon, um quilo de maçãs, dois pães, um pedaço grande de queijo, leite, café, um pacote de Marlboro light e os jornais da tarde. Pegou a Svartensgatan para subir na direção da Fiskaregatan e olhou atentamente em volta antes de digitar o código do prédio. Pôs uma das tortas de bacon no micro-ondas e tomou leite direto da caixa. Ligou a cafeteira elétrica e em seguida se instalou na frente do computador. Clicou em Asphyxia 1.3, entrou no servidor holandês e depois na reprodução do disco rígido do Dr. Bjurman. Passou o conteúdo do computador dele a pente fino.
Não encontrou absolutamente nada digno de interesse. Bjurman parecia usar muito pouco o correio eletrônico e ela só achou uma dúzia de e-mails breves e pessoais trocados com amigos. Nada na correspondência dele tinha alguma relação com Lisbeth Salander.
Achou um arquivo novo com fotos de pornografia explícita que mostravam que ele ainda se interessava por mulheres submetidas a situações sádicas. Seu olhar se endureceu um pouco, mas aquilo não constituía uma transgressão à regra que o proibia de frequentar mulheres.
Copiou o arquivo que continha os documentos relativos à missão de Bjurman como tutor da denominada Lisbeth Salander e leu com atenção os relatórios mensais. Todos correspondiam escrupulosamente às cópias que ela ordenara que ele enviasse por e-mail para um de seus inúmeros endereços no hotmail.
Estava tudo absolutamente normal.
Com exceção, talvez, de uma pequena variante... Quando conferiu a listagem, constatou que ele em geral criava os documentos bem no início do mês, dedicava uma média de quatro horas para redigir cada relatório e o enviava pontualmente à Comissão de Tutelas todo dia 20 do mês. Estavam em meados de março e ele ainda não cuidara do relatório mensal. Negligência? Atraso? Ocupado com outras coisas? Tramando algo suspeito? Uma ruga vincou a testa de Lisbeth Salander.
Desligou o computador, sentou-se no recanto da janela e abriu a cigarreira que Mimmi lhe dera. Acendeu um cigarro e fitou a escuridão lá fora. Dava-se conta de que descuidara sua vigilância sobre Bjurman. Esse canalha é mais traiçoeiro que uma hiena.
Foi sendo tomada por uma profunda inquietação. Primeiro o Maldito Super-Blomkvist, depois Zala e agora o Maldito Canalha do Nils Bjurman na companhia de um macho inflado de anabolizantes e em contato com uma gangue de motoqueiros. Em poucos dias, tinham aparecido várias pedrinhas na existência organizada que Lisbeth Salander estava tentando construir.
Às duas e meia daquela madrugada, Lisbeth Salander abriu a porta do prédio em que o Dr. Nils Bjurman morava. Parou na frente do apartamento, levantou bem devagarinho a portinhola da correspondência e introduziu o microfone extremamente sensível que tinha adquirido na Counterspy Shop de Mayfair, em Londres. Nunca tinha ouvido falar em Ebbe Carlsson, mas naquela mesma loja ele comprara o famoso material de escuta que, no final dos anos 1980, obrigara o ministro da Justiça sueco a se demitir bruscamente. Colocou as escutas no lugar e ajustou o volume.
Escutou o zumbido surdo de um refrigerador e os sonoros tiquetaques de pelo menos dois relógios, um deles um relógio de parede na sala, à esquerda da porta de entrada. Ajustou o volume e escutou, prendendo a respiração. Ouviu todo tipo de estalidos e ruídos no prédio, mas nenhum som de atividade humana. Levou um minuto para identificar os fracos ruídos de uma respiração pesada e regular.
Nils Bjurman estava dormindo.
Tirou o microfone e o enfiou no bolso interno da jaqueta de couro. Vestia uma calça jeans escura e tênis. Sem fazer barulho, introduziu a chave na fechadura e entreabriu a porta. Antes de abri-la totalmente, tirou do bolso um cacetete elétrico. Não trouxera nenhuma outra arma. Não julgava precisar de mais que isso para dominar Bjurman.
Entrou no hall, fechou a porta e deslizou pé ante pé pelo corredor até o quarto dele. Estacou ao perceber a luz de uma lâmpada, mas àquela altura já conseguia escutar os roncos sem a ajuda do microfone. Deslizou até o quarto. Na beira da janela havia uma luz acesa. O que há com você, Bjurman? Está com medo de dormir no escuro?
Aproximou-se da cama e o contemplou por vários minutos. Estava envelhecido e parecia desmazelado. Um cheiro dentro do quarto indicava que vinha negligenciando a higiene.
Não sentiu a menor compaixão. Por um segundo, o clarão de um ódio implacável brilhou em seus olhos em geral tão inexpressivos. Reparou num copo no criado-mudo e se inclinou para cheirá-lo. Álcool.
Por fim, saiu do quarto. Deu uma voltinha na cozinha, não encontrou nada de especial, continuou pela sala e se deteve à porta do escritório. Tirou do bolso uma dúzia de pedacinhos de torrada e os jogou no escuro pelo chão. Se alguém se esgueirasse pela sala, o ruído a alertaria.
Instalou-se à escrivaninha do Dr. Nils Bjurman e deixou o cacetete elétrico ao alcance da mão. Pôs-se a vasculhar metodicamente as gavetas. Examinou os extratos bancários das contas pessoais de Bjurman e deu uma olhada nas diversas operações efetuadas. Notou que ele estava ficando desorganizado e mais esporádico nas atualizações, mas não encontrou nada digno de interesse.
A última gaveta da escrivaninha estava fechada a chave. Lisbeth Salander franziu o cenho. Quando o visitara um ano atrás, todas as gavetas estavam abertas. Seu olhar se turvou quando tentou imaginar o conteúdo da gaveta. Na época, havia nela uma câmera fotográfica, uma teleobjetiva, um pequeno dictafone Olympus, um álbum de fotos encadernado em couro e uma caixinha com colares, jóias e uma aliança de ouro com a inscrição Tilda e Jacob Bjurman - 23 de abril de 1951. Lisbeth sabia que eram os nomes dos pais dele e que os dois já eram falecidos. Imaginou que ele guardava a aliança como recordação. Em suma, objetos que tinham algum valor afetivo. Certo, ele tranca a chave o que considera precioso.
Começou a examinar a prateleira com porta de correr que ficava atrás da escrivaninha e tirou duas pastas relativas à sua missão como tutor. Passou quinze minutos lendo minuciosamente todos os documentos, folha por folha. Os relatórios eram impecáveis e davam a entender que Lisbeth Salander era uma jovem boazinha e cuidadosa. Quatro meses antes, apresentara um relatório declarando que a seu ver ela parecia tão racional e competente que seria certamente o caso, quando da avaliação do ano seguinte, de se abrir uma discussão sobre a pertinência de se manter a tutela. Estava elegantemente formulado e constituía a primeira pedra para a anulação de sua colocação sob tutela.
A pasta continha igualmente anotações manuscritas mostrando que Bjurman fora procurado por uma certa Ulrika von Liebenstaahl, da Comissão de Tutelas, para uma conversa sobre a situação de Lisbeth. Estavam sublinhadas as palavras “necessidade de uma avaliação psiquiátrica”.
Lisbeth fez um muxoxo, guardou as pastas no lugar e olhou em volta. À primeira vista, não havia do que reclamar. Bjurman parecia estar se comportando escrupulosamente segundo suas instruções. Mordeu os lábios. Mesmo assim, tinha a impressão de que alguma coisa estava errada.
Levantou-se, e já ia apagar a luz quando se deteve. Tornou a pegar as pastas e examinou-as outra vez. Estupefata.
Elas deveriam conter muito mais que aquilo. Um ano antes, havia um resumo da Comissão de Tutelas cobrindo sua vida desde a infância. Esse relatório não estava mais lá. Por que Bjurman tiraria documentos de uma pasta? Franziu o cenho. Não conseguia pensar em nenhum motivo válido. A menos que ele guardasse outras informações em outro lugar. Deu uma olhada na prateleira de portas de correr e então baixou os olhos para a última gaveta da escrivaninha.
Não tinha trazido chave mestra e voltou pé ante pé ao quarto de Bjurman. Pescou seu molho de chaves no paletó pendurado no cabide. Na gaveta estavam os mesmos objetos de um ano atrás. Mas à coleção se somara uma caixa rasa com a foto de um Colt 45 Magnum na tampa.
Seu olhar se turvou mais uma vez ao repassar mentalmente a pesquisa que fizera sobre Bjurman dois anos antes. Ele praticava tiro num clube. Tinha porte de armas para um Colt 45 Magnum.
A contragosto, concluiu que ele estava certo em manter a gaveta trancada a chave.
Aquele estado de coisas não lhe agradava, mas no momento não via nenhum motivo para acordar Bjurman e quebrar a cara dele.
Mia Bergman acordou às seis e meia. Ouviu baixinho, o noticiário da tevê na sala e sentiu cheiro de café. Também ouviu o som do teclado do iBook de Dag Svensson. Sorriu.
Nunca tinha visto seu companheiro tão envolvido numa tarefa. A Millennium era um trabalho legal. Dag ainda era um pouco convencido, mas o contato com Blomkvist, Berger e os demais estava sendo benéfico para ele. Era cada vez mais frequente ele voltar para casa abatido depois de Blomkvist lhe apontar algumas falhas e desmontar algum raciocínio seu. Depois disso, trabalhava duas vezes mais.
Pôs a mão sobre o ventre e se perguntou se aquele seria o momento certo de perturbar a concentração dele. Sua menstruação estava três semanas atrasada. Não tinha certeza, mas um teste de gravidez da farmácia acabaria com a dúvida.
Perguntava-se se era mesmo um bom momento.
Ia fazer trinta anos. Dali a um mês, defenderia sua tese. Doutora Bergman! Sorriu novamente e resolveu não dizer nada a Dag antes de ter certeza, ou quem sabe até ele terminar o livro e ela própria festejar sua tese.
Ficou mais dez minutos na cama antes de se levantar e ir até a sala, enrolada num lençol. Ele ergueu os olhos.
—Sabe que não são nem sete horas? - perguntou ela.
—É o Blomkvist esmiuçando detalhes de novo - ele respondeu.
—Ele foi malvado com você? Isso não é ruim para você. Você gosta dele, não é?
Dag Svensson se recostou no sofá e seus olhares se encontraram. Passados alguns instantes, ele assentiu com a cabeça.
—A Millennium é um bom lugar para se trabalhar. Conversei com o Mikael no Moulin, outra noite, antes de você me pegar. Ele perguntou quais eram os meus planos depois que eu terminar este projeto.
—A-há... E o que você respondeu?
—Que eu não sabia. Faz tantos anos que estou ralando como frila. Queria um troço mais estável.
—A Millennium.
Ele fez que sim com a cabeça.
—Micke sondou o terreno, perguntou se meio período me interessava. Um contrato igual ao do Henry Cortez e da Lottie Karim. Eu teria uma sala e a Millennium me pagaria um salário-base, e o resto ficaria por minha conta.
—Você acha bom?
—Se eles me fizerem uma proposta concreta, sim.
—Certo, mas ainda não são nem sete horas e hoje é sábado.
—Tss. Eu só queria mexer em mais uma coisinha aqui num capítulo.
—E eu acho que você devia era voltar para a cama e mexer em outra coisinha lá.
Ela lhe lançou um bonito sorriso e abriu um lado do lençol. Ele colocou o computador em espera.
Lisbeth Salander passou a maior parte dos dias e noites seguintes na frente do Powerbook, pesquisando em diferentes direções; houve momentos em que já nem sabia exatamente o que procurava.
Parte do levantamento de dados era simples. Com base em arquivos da imprensa, reconstituiu o histórico do MC Svavelsjö. O clube aparecia pela primeira vez nas notas dos jornais em 1991, com o nome Tálje Hog Riders, quando a polícia fizera uma blitz em sua sede, na época uma escola abandonada nas proximidades de Södertálje. Vizinhos preocupados tinham avisado a polícia sobre tiros ouvidos na antiga escola; os tiras chegaram em peso, interrompendo uma festa copiosamente regada a cerveja e que havia descambado para um concurso de tiro com um rifle AK4, que se descobriu ter sido roubado do antigo 20a regimento de infantaria de Vãsterbotten no início dos anos 1980.
De acordo com o quadro traçado por um jornal vespertino, o MC Svavelsjö contava com seis ou sete membros e uma dúzia de hangarounds. Todos os membros efetivos haviam sido uma ou mais vezes condenados pela justiça por crimes relativamente pequenos mas que não excluíam a violência. Dois sujeitos do clube se destacavam. O chefe do MC Svavelsjö era um tal Carl-Magnus, o “Magge” Lundin, de quem o site do Aftonbladet traçava o perfil depois de a polícia ter feito outra blitz na sede do clube em 2001. Lundin fora condenado cinco vezes entre o final dos anos 1980 e início dos anos 1990. Três condenações por roubo, receptação e infrações ligadas à droga. Uma delas decorria de um registro criminal mais sério, com golpes e ferimentos agravados que lhe valeram dezoito meses de xadrez. Lundin foi solto em 1995 e promovido, pouco depois, a “presidente” dos Tálje Hog Riders, rebatizados de MC Svavelsjö.
O número dois do clube, de acordo com a polícia, era um tal de Benny Nieminen, de trinta e sete anos, com nada menos que vinte e três condenações registradas na ficha policial. Dando início à sua carreira com dezesseis anos de idade, fora submetido a um controle judiciário e medidas educativas. Durante os dez anos seguintes, Benny Nieminen fora condenado cinco vezes por roubo, uma vez por roubo agravado, duas por ameaça, duas por infrações relacionadas com drogas, chantagem, violência contra um funcionário público, duas vezes por porte ilegal de armas e uma por porte ilegal de arma agravado, direção em estado de embriaguez e nada menos que seis casos de golpes e ferimentos. Segundo um critério incompreensível para Lisbeth Salander, tinha sido condenado, além do controle judiciário, a multas e a períodos de um ou dois meses de prisão, até ser condenado em 1989 a dez meses de detenção por golpes e ferimentos agravados e roubo seguido de violência. Libertado meses depois, ficara quieto até outubro de 1990, quando seu envolvimento numa briga de bar em Södertálje, seguida de assassinato, resultara numa pena de seis anos de prisão. Nieminen tornara a sair em 1995 e, desde então, era o amigo mais chegado de Magge Lundin.
Em 1996, foi preso por cumplicidade no assalto a mão armada de um carro-forte. Não participara diretamente do assalto, mas fornecera as armas necessárias a três jovens. Foi sua segunda derrocada. Condenado a quatro anos de prisão, foi solto em 1999. Depois disso, Nieminen conseguira o milagre de não ser pego por outros crimes. Segundo um artigo publicado num jornal em 2001, que não citava seu nome, mas fornecia um histórico tão detalhado que não era difícil perceber de quem se tratava, Nieminen era suspeito de cumplicidade em pelo menos um assassinato, quando um membro do clube tinha sido morto.
Lisbeth baixou umas fotos de Nieminen e Lundin. Nieminen tinha um rosto bonito, cabelos castanhos crespos e olhos agressivos. Magge Lundin tinha cara de débil mental. Identificou facilmente Lundin como o homem que se encontrara com o gigante loiro no Café Blomberg, e Nieminen como o homem que o esperava no McDonald’s.
Uma invasão no Registro de Minas permitiu que encontrasse a pista do proprietário do Volvo branco usado pelo gigante loiro. Tratava-se de uma autolocadora, a Auto-Expert, de Eskilstuna. Discou o número, e do outro lado da linha atendeu um tal de Refik Alba.
—Alô, bom dia, meu nome é Gunilla Hansson. Meu cachorro foi atropelado ontem por um carro que não parou. O canalha fugiu, mas o número da placa mostra que o carro foi alugado aí. Era um Volvo branco.
Ela deu o número.
—Sinto muito.
—Exijo mais que isso. Quero o nome desse escroto para mandar para ele um pedido de indenização.
—A senhora deu parte à polícia?
—Não, prefiro resolver essa história amigavelmente.
—Sinto muito, mas não posso fornecer o nome dos nossos clientes se não houver um boletim de ocorrência.
A voz de Lisbeth Salander murchou. Perguntou se era mesmo uma boa política da empresa obrigá-la a denunciar seus clientes em vez de tentar um acordo amigável. Refik Alba lamentou mais uma vez e disse que infelizmente não podia fazer nada. Ela ainda argumentou por mais alguns minutos, mas não conseguiu obter o nome do gigante loiro.
O nome de Zala também parecia conduzir a um beco sem saída. Com dois intervalos para comer uma pizza acompanhada de uma garrafa grande de Coca, Lisbeth Salander passou a maior parte das vinte e quatro horas seguintes na frente do computador.
Encontrou centenas de Zalas - desde atletas italianos de alto nível até um compositor argentino -, mas não o que estava procurando.
Tentou Zalachenko, e não encontrou nada que prestasse.
Frustrada, finalmente cambaleou até o quarto e dormiu doze horas seguidas. Acordou às onze da manhã, ligou a cafeteira e preparou um banho de hidromassagem com óleo espumante. Levou o café e fatias de pão para o banheiro e tomou o café da manhã refestelada na banheira, sonhando cora a presença de Mimmi a seu lado. Mas isso era impossível. Ainda nem tinha lhe contado onde morava.
Por volta do meio-dia, saiu da água, se secou e enfiou um roupão. Tornou a ligar o computador.
Obteve melhores resultados com os nomes de Dag Svensson e Mia Bergman. Conseguiu rapidamente ter uma idéia das atividades dos dois nos últimos anos. Baixou algumas cópias de artigos de Dag e achou uma foto dele a guisa de assinatura. Sem grande surpresa, constatou que era o homem que vira em companhia de Mikael Blomkvist no Moulin dias antes. Agora o nome tinha um rosto, e vice-versa.
Achou vários textos sobre, ou de, Mia Bergman. Anos antes destacara-se com um relatório sobre as diferentes maneiras como homens e mulheres eram tratados pela Justiça. O relatório tinha sido citado em editoriais e artigos de opinião nas revistas de várias organizações feministas; a própria Mia Bergman contribuíra para o debate com diversos artigos. Lisbeth Salander leu com bastante atenção. Algumas feministas julgavam suas conclusões importantes, ao passo que outras criticavam Mia Bergman e a acusavam de “espalhar ilusões burguesas”, mas nem por isso esclarecendo que ilusões burguesas seriam essas.
Por volta das duas da tarde, entrou no Asphyxia 1.3, mas em vez de MikBlom/laptop escolheu MikBlom/office, o computador de Mikael Blomkvist na redação da Millennium. Sabia, por experiência própria, que o computador da sala de Mikael não continha praticamente nada. Embora o utilizasse vez ou outra para navegar na internet, ele trabalhava quase o tempo todo no seu iBook. Em compensação, Mikael tinha o direito de controlar toda a redação da Millennium. Ela encontrou rapidamente a informação necessária com o código de acesso à rede interna da revista.
Para entrar nos demais computadores da Millennium, o espelhamento do disco rígido no servidor holandês não bastava; o original do MikBlom/office tinha de estar ligado e conectado à rede interna. Ela estava com sorte, Mikael Blomkvist parecia estar na revista e seu computador estava ligado. Esperou dez minutos e não percebeu nenhum sinal de atividade. Interpretou isso como um indício de que Mikael tinha ligado o computador ao chegar ao escritório, talvez o tivesse usado para navegar na internet e o deixara ligado enquanto cuidava de outras coisas ou trabalhava em seu computador portátil.
Precisava ir com calma. Durante uma hora, Lisbeth Salander pirateou os computadores um por um e carregou e-mails de Erika Berger, Christer Malm e uma tal de Malu Eriksson, que ela não conhecia. Por fim, achou o computador de Dag Svensson, segundo a informação do sistema um velho Macintosh PowerPC com disco rígido de 750 MB, OU seja, uma máquina antiga que provavelmente só era usada por usuários ocasionais para tratamento de texto. Estava ligado, o que significava que Dag Svensson se encontrava na redação da Millennium naquele momento. Ela carregou seu correio eletrônico e percorreu seu disco rígido. Encontrou um arquivo intitulado, simplesmente, [ZALA].
O gigante loiro estava insatisfeito e incomodado. Acabava de obter duzentas e três mil coroas em dinheiro, o que era mais do que ele esperava pelos três quilos de metanfetamina entregues a Magge Lundin no final de janeiro. Era igualmente um lucro razoável para umas poucas horas de trabalho efetivo - pegar a anfetamina com o intermediário, guardá-la por algum tempo, entregá-la a Magge Lundin e então embolsar cinquenta por cento do lucro. O MC Svavelsjö parecia não ter nenhuma dificuldade em levantar mensalmente uma quantia daquelas, e o bando de Magge Lundin era apenas um entre três operadores similares - os outros dois operavam nas áreas de Göteborg e Malmö. Juntos, os três bandos chegavam a render mais de meio milhão de coroas de lucro líquido por mês.
No entanto, sentia-se tão incomodado que parou no acostamento e desligou o motor. Não dormia havia quase trinta horas e se sentia entorpecido Abriu a porta para esticar as pernas e urinou na beira da estrada. Fazia frio e o céu estava limpo. Estava em frente a um campo, nas proximidades de Jârna.
O conflito era antes de natureza ideológica. A oferta de metanfetamina a menos de quatrocentos quilômetros de Estocolmo era ilimitada. A demanda no mercado sueco, indiscutível. O resto não passava de logística — como transportar o produto de um ponto A até um ponto B ou, mais precisamente, de um porão de Tallinn para o porto franco de Estocolmo?
Esse problema logístico se apresentava o tempo todo - como garantir um transporte regular da Estônia para a Suécia? Era o ponto crucial e o elo realmente frágil da cadeia, já que, depois de muitos anos de esforço, ainda estavam no nível da improvisação constante e das soluções temporárias.
O problema era que, nos últimos tempos, a engrenagem andava emperrando demais. Ele se orgulhava de seu talento para a organização. Em apenas poucos anos, criara uma engrenagem bem azeitada de contatos, mantidos com doses bem calculadas de cenoura e chicote. Ele é que tinha administrado o aspecto prático, identificado os parceiros, negociado acordos e cuidado para que a entrega chegasse ao lugar certo.
A cenoura era o estímulo oferecido a intermediários como Magge Lundin — um bom lucro praticamente sem riscos. O sistema era impecável. Magge Lundin nunca precisara levantar um só dedo para que lhe entregassem os produtos - nada de viagens complicadas nem negociações obrigatórias com todo tipo de gente, desde tiras da Brigada de Entorpecentes até a máfia russa, que poderia muito bem lhe passar a perna. Lundin sabia que o gigante loiro entregava e depois embolsava seus cinquenta por cento.
O chicote era necessário, já que cada vez mais vinha entrando areia na engrenagem. Um traficantezinho de bairro bom de faro acabara sabendo demais e por pouco não comprometera o MC Svavelsjö. O loiro fora obrigado a intervir e punir.
O gigante loiro era bom em punições.
Suspirou.
Sentia que a atividade estava se ampliando demais. Estava simplesmente diversificada demais.
Acendeu um cigarro e esticou as pernas na beira da estrada.
A metanfetamina era uma excelente fonte de renda, discreta e fácil de lidar — lucro amplo com risco mínimo. O negócio de armas se justificava até certo ponto, quando serviços embutidos pouco pertinentes podiam ser identificados e evitados. Considerando-se os riscos, o fato é que não era economicamente defensável fornecer dois revólveres por umas míseras notas de mil a uns pivetes muito doidos que sonhavam assaltar o quiosque da esquina.
Alguns casos de espionagem industrial ou contrabando de componentes eletrônicos para países do Leste até se justificavam, embora o mercado tivesse encolhido dramaticamente nos últimos anos.
Em compensação, as putas dos países bálticos eram indefensáveis do ponto de vista econômico. As putas só davam dinheiro para o gasto e representavam, antes de mais nada, uma complicação capaz de a qualquer momento suscitar matérias hipócritas na mídia e debates naquele estranho Parlamento sueco, chamado Riksdag, onde as regras do jogo, na opinião do gigante loiro, eram no mínimo pouco claras. A vantagem das putas é que elas não representavam praticamente nenhum risco jurídico. Todo mundo gosta de puta - o procurador, o juiz, os tiras e um parlamentar aqui e ali. Ninguém ia ficar cavoucando para pôr um fim a essa atividade.
E uma puta morta não causava necessariamente complicações. Se a polícia conseguisse prender um suspeito óbvio em poucas horas, e se o suspeito ainda estivesse com sangue na roupa, ele evidentemente era condenado a alguns anos de prisão ou internado em algum obscuro estabelecimento psiquiátrico. Mas se nenhum suspeito fosse encontrado em quarenta e oito horas, o loiro sabia por experiência que a polícia não demorava a ir cuidar de coisas mais importantes.
De qualquer modo, o gigante loiro não gostava do comércio de putas. Não gostava das putas, com seus rostos exageradamente maquiados e suas risadas estridentes de alcoólatras. Não eram puras. Eram capital humano, do tipo que dá tanta despesa quanto lucro. E tratando-se de capital humano, sempre havia o risco de uma das putas ter um surto e achar que podia pedir demissão ou começar a fazer denúncias para tiras, jornalistas e outros bisbilhoteiros. Então ele era obrigado a intervir e punir. E se as revelações fossem suficientemente precisas, a rede de procuradores e tiras era obrigada a agir - para não haver gritaria no maldito Parlamento. O comércio de putas só dava confusão.
Os irmãos Atho e Harry Ranta eram um exemplo típico de confusão - dois parasitas inúteis que sabiam muito mais do que deveriam sobre a atividade. Por ele, teria amarrado uma corrente no pescoço deles e afundado os dois no porto. Em vez disso, acompanhara esses senhores à balsa para Tallinn e pacientemente esperou que embarcassem. As férias forçadas se deviam a um maldito jornalista que começara a fuçar nas histórias deles, e a saída tinha sido eles permanecerem invisíveis até que o alerta passasse.
Suspirou mais uma vez.
O gigante loiro não gostava, principalmente, de serviços paralelos do tipo Lisbeth Salander. No que lhe dizia respeito, ela não oferecia o menor interesse. Não representava nenhum lucro.
Ele não gostava do Dr. Nils Bjurman e não conseguia entender por que tinham resolvido acatar o seu pedido. Mas agora a bola já estava rolando. Ordens tinham sido dadas e a missão, terceirizada com o MC Svavelsjö.
O fato era que a atual conjuntura não lhe agradava. Estava com um mau pressentimento.
Ao jogar fora o cigarro no barranco, seus olhos passaram pelo campo mergulhado na escuridão. De repente, captou um movimento com o canto do olho. Imobilizou-se, apurou o olhar. Não havia luz alguma além de uma tênue lua crescente, mas ainda assim conseguia distinguir o contorno de uma figura sombria rastejando em sua direção a uns trinta metros da estrada. A criatura avançava lentamente, fazendo pequenas pausas.
O gigante sentiu de repente um suor frio na testa.
Detestava a criatura do campo.
Ficou mais de um minuto praticamente paralisado, olhos grudados no avanço lento, mas constante, do vulto. Quando este chegou tão perto que ele conseguiu distinguir seus olhos cintilando no escuro, deu meia-volta e correu para o carro. Abriu a porta com um gesto seco e procurou nervosamente pela chave. Sentiu o pânico crescer até que por fim conseguiu dar a partida e ligar os faróis. A criatura tinha alcançado a estrada e o gigante loiro pôde enfim enxergá-la em detalhe à luz dos faróis. Parecia uma enorme raia-manta se arrastando pelo chão. Tinha um ferrão igual ao do escorpião.
Uma coisa era certa. Não era uma criatura deste mundo. Não estava descrita em nenhum livro de fauna conhecido. Era um monstro saído diretamente do inferno.
Engatou a primeira marcha e arrancou, cantando os pneus. Quando o carro passou pela criatura, viu que ela tentou um ataque, sem conseguir atingi-lo. Ele só parou de tremer muitos quilômetros depois.
Lisbeth Salander passou a noite lendo o resultado das investigações de Dag Svensson e da Millennium sobre o tráfico de mulheres. Aos poucos, foi obtendo um quadro bastante completo, ainda que baseado em fragmentos enigmáticos extraídos do correio eletrônico a que ela recorria para montar o seu quebra-cabeça.
Erika Berger mandava uma pergunta a Mikael Blomkvist sobre o andamento das confrontações; ele sucintamente respondia que estavam tendo dificuldades para achar o homem da Tcheka. Ela deduziu que um dos indivíduos a serem desmascarados na reportagem trabalhava na Säpo. Malu Eriksson anexava para Dag Svensson o resumo de uma pesquisa, com cópia para Mikael Blomkvist e Erika Berger. Svensson e o Super-Blomkvist respondiam com comentários e sugestões de aprofundamentos. Mikael e Dag trocavam e-mails várias vezes ao dia. Dag Svensson relatava uma confrontação que tivera com um tal de Per-Âke Sandström, jornalista.
Vendo os e-mails de Dag Svensson, pôde também constatar que ele se comunicava com um certo Gulbrandsen por um endereço Yahoo. Levou algum tempo até entender que Gulbrandsen devia ser um tira e que a comunicação entre eles se dava de forma confidencial através de um endereço neutro, e não pelo endereço de Gulbrandsen na polícia. O sujeito era, portanto, uma fonte.
A pasta [ZALA] era de uma exiguidade frustrante, continha apenas três documentos Word. O maior, de 128 Kb, tinha o nome [Irina P.] e continha fragmentos da vida de uma prostituta. Pelo relatório de autópsia fornecido por Dag Svensson, Lisbeth compreendeu que a garota estava morta.
Até onde Lisbeth conseguia entender, Irina P. tinha sofrido violências tão intensas que três de seus ferimentos foram mortais.
Lisbeth reconheceu no texto uma citação, palavra por palavra, da tese de Mia Bergman. Na tese, tratava-se de uma mulher chamada Tamara. Lisbeth deduziu que Irina P. e Tamara eram a mesma pessoa, e leu atentamente o trecho da entrevista com ela na tese.
O segundo documento, [Sandström], era muito mais sucinto. Continha o mesmo resumo enviado por Dag Svensson num e-mail ao Super-Blomkvist demonstrando que um jornalista chamado Per-Âke Sandström era um dos clientes sexuais que explorara uma menina de um país báltico, mas também tinha sido o homem da máfia do sexo e fora pago em drogas ou em sexo. Lisbeth ficou fascinada ao ver que em paralelo à sua produção de jornais empresariais, Sandström também tinha escrito diversos artigos num jornal diário condenando com indignação o comércio do sexo. Revelava entre outras coisas que um empresário sueco, cujo nome omitia, andara frequentando um bordel em Tallinn.
O nome de Zala não aparecia nem em [Sandström] nem em [Irina P.], mas Lisbeth imaginou que se os dois arquivos estavam guardados numa pasta intitulada [ZALA] havia necessariamente uma relação. O terceiro e último documento da pasta [ZALA] também se chamava [ZALA]. Era sucinto, redigido em forma de lista.
De acordo com Dag Svensson, o nome Zala aparecera nove vezes, vinculado a entorpecentes, armas ou prostituição, desde meados dos anos 1990. Ninguém parecia saber quem era Zala, mas diferentes fontes o mencionavam como iugoslavo, polonês e, eventualmente, tcheco. Todas as informações eram de segunda mão; nenhuma das pessoas com quem Dag Svensson conversara parecia ter alguma vez se encontrado com Zala.
Dag Svensson conversara extensamente sobre Zala com a fonte G. (Gulbrandsen?) e aventava a teoria de que Zala poderia ser o responsável pelo assassinato de Irina P. Se, por um lado, não se mencionava a opinião da fonte G. sobre tal teoria, Lisbeth descobriu que, por outro, um ano antes Zala fora tema de discussão numa reunião do “grupo especial de investigação sobre o crime organizado”. O nome aparecera tantas vezes que a polícia começou a fazer perguntas e tentou formar uma opinião sobre a realidade da existência de Zala.
Segundo o que Dag Svensson conseguira descobrir, o nome Zala surgira pela primeira vez por ocasião do assalto de um carro-forte em Orkelljunga, em 1996. Os assaltantes puseram as mãos em mais de três milhões e trezentas mil coroas, mas pisaram tanto na bola que em vinte e quatro horas a polícia identificou e prendeu a quadrilha. No dia seguinte mais uma pessoa foi presa: o criminoso profissional Benny Nieminen, membro do MC Svavelsjö, suspeito de ter fornecido as armas utilizadas no assalto, o que lhe valeu sua segunda condenação de peso, com quatro anos de xadrez.
Uma semana depois do assalto ao carro-forte de 1996, mais três pessoas foram detidas como cúmplices. A quadrilha compunha-se, portanto, de oito pessoas, das quais sete se negaram categoricamente a falar. A oitava, um garoto de apenas dezenove anos, Birger Nordman, não aguentou e entregou tudo nos interrogatórios. O processo foi uma vitória fácil para o procurador, o que poderia explicar (sugeria a fonte policial de Dag Svensson) por que, dois anos mais tarde, depois de desfrutar de uma autorização para sair e se divertir, Birger Nordman foi achado enterrado num areai de Vãrmland.
De acordo com a fonte G., a polícia suspeitava que Benny Nieminen era o homem-chave por trás da gangue. Suspeitava também que Nordman havia sido morto por ordem de Benny Nieminen, mas nada confirmava essas suposições. Nieminen era considerado extremamente perigoso e desprovido de escrúpulos. Na cadeia, estabelecera-se um vínculo entre Nieminen e a Fraternidade Ariana, uma organização nazista dentro das prisões, ligada por sua vez à Fraternidade Wolfpack e a outras, tanto gangues criminosas no universo dos motoqueiros como diversas organizações nazistas idiotas e violentas no estilo Movimento de Resistência Sueca etc.
O interesse de Lisbeth Salander, porém, era por algo bem distinto. Durante os interrogatórios, o assaltante Birger Nordman confessara que as armas usadas no assalto provinham de Nieminen, que por sua vez as obtivera de um iugoslavo que Nordman não conhecia, denominado “Sala”.
Dag Svensson concluía que se tratava de um sujeito muito discreto no mundo do crime. Como o nome Zala não correspondia a ninguém no registro civil, Dag imaginava se tratar de um apelido, mas também podia ser um delinquente especialmente precavido agindo sob nome falso.
O último ponto da lista consistia num breve relatório das informações sobre Zala fornecidas por Sandström, o jornalista cliente. Era muito pouco. Segundo Dag Svensson, Sandström certa vez falara ao telefone com uma pessoa com esse nome. As anotações não mencionavam o conteúdo da conversa.
Por volta das quatro da manhã, ela desligou o Powerbook, sentou-se no recanto da janela e contemplou a baía de Saltsjön. Permaneceu umas duas horas imóvel, fumando pensativamente um cigarro atrás do outro. Ia ser obrigada a tomar algumas decisões estratégicas e precisava fazer uma análise das conseqüências.
Começava a pensar que era chegada a hora de encontrar Zala e, de uma vez por todas, pôr fim aos probleminhas entre eles.
No sábado à noite da semana anterior à Páscoa, Mikael Blomkvist foi visitar uma antiga namorada na Slipgatan, perto de Hornstull. Fato raríssimo, tinha aceitado seu convite para uma festa. Ela hoje estava casada e nem um pouco interessada num relacionamento mais profundo com Mikael, mas trabalhava na imprensa e eles trocavam um alô quando se cruzavam. Ela acabava de publicar um livro gestado por pelo menos dez anos, que abordava o curioso tema de como era vista a mulher no mundo da mídia. Como contara um pouco com a colaboração de Mikael, convidara-o para a festa.
A participação de Mikael limitara-se à pesquisa de uma questão bem simples. Ele pegara os planos de igualdade entre os sexos que a agência de notícias TT, Dagens Nyheter, Rapport e alguns outros veículos afirmavam respeitar, e então assinalara quem era homem e quem era mulher na direção dessas empresas nos cargos superiores a assistente de redação. O resultado foi lamentável. Presidente: homem. Presidente do conselho administrativo: homem. Redator-chefe: homem. Responsável do domínio estrangeiro: homem. Diretor de redação: homem... e assim por diante, até que aparecesse a primeira mulher, geralmente uma exceção do tipo Christina Jutterström ou Amelia Adamo.
A festa daquela noite era particular e os convidados, principalmente pessoas que de um modo ou de outro tinham trazido alguma contribuição ao livro.
A reunião estava muito festiva, a comida, boa, e a conversa, descontraída. Mikael pretendia ir embora cedo, mas a maioria dos convidados eram velhos conhecidos que raramente se encontravam. Sem contar que, só para variar, ninguém insistiu em falar no caso Wennerström. A animação foi se estendendo e só lá pelas duas da manhã de domingo é que o grosso do pessoal começou a ir embora. Desceram juntos até a Lângholmsgatan, onde se separaram.
Mikael viu o ônibus noturno passando antes de ele conseguir chegar ao ponto, mas a noite estava agradável e ele resolveu voltar a pé em vez de esperar pelo ônibus seguinte. Seguiu pela Högalidsgatan até a igreja e dobrou na Lundagatan, o que imediatamente lhe despertou antigas recordações.
Desde dezembro Mikael vinha mantendo sua promessa de parar de passar pela Lundagatan na esperança de topar com Lisbeth Salander. Nesta noite, parou na calçada defronte ao prédio dela. Sentiu vontade de atravessar a rua e tocar a campainha dela, mas ponderou que era muito improvável ela estar de volta e com vontade de falar com ele.
Por fim, deu de ombros e prosseguiu sua caminhada na direção de Zinkensdamm. Tinha percorrido uns cinquenta metros quando escutou um barulho. Virou a cabeça e seu coração disparou. Dificilmente alguém se confundiria ao ver aquele corpo raquítico. Lisbeth Salander acabava de sair do prédio e ia se afastando. Ela parou diante de um carro estacionado.
Mikael estava abrindo a boca para chamá-la quando de repente as palavras travaram em sua garganta: avistou um vulto surgindo de um dos carros estacionados rente à calçada. Era um homem, indo na direção de Lisbeth Salander. Mikael teve a impressão de que ele era alto e tinha uma barriga proeminente. O cabelo estava preso num rabo de cavalo.
Lisbeth Salander escutou um barulho e percebeu um movimento com o rabo dos olhos no momento em que ia introduzir a chave na fechadura do Honda cor de vinho. Ele chegou meio de lado, por trás, e ela se virou um segundo antes que ele a atingisse. Identificou-o imediatamente: Carl-Magnus, vulgo “Magge” Lundin, trinta e seis anos, do MC Svavelsjö, que dias antes estivera com o gigante loiro no Café Blomberg.
Notou os cento e vinte quilos de Magge Lundin e suas más intenções. Usou as chaves do carro como um soco-inglês e não hesitou um microssegundo sequer antes de retalhar-lhe profundamente o rosto, da base do nariz até a orelha, com uma rapidez reptilínea. O punho de Lundin deu um soco no ar, e então Lisbeth Salander pareceu sumir dentro da terra.
Mikael Blomkvist viu quando Lisbeth Salander atacou seu agressor. Um décimo de segundo depois, ela jogou-se no chão e rolou entre as rodas do
Quase instantaneamente, Lisbeth se pôs de pé do outro lado do carro pronta para a luta ou para a fuga. Cruzou o olhar com o inimigo por sobre o capô e no ato optou pela segunda possibilidade. Do rosto do homem escorria sangue. Antes de ele sequer ter tempo de vê-la direito, ela já corria pela Lundagatan em direção à igreja de Högalid.
Mikael ficou petrificado e boquiaberto vendo o agressor acelerar de repente e se lançar rua afora ao encalço de Lisbeth Salander. Parecia um tanque de assalto perseguindo um brinquedinho.
Lisbeth galgou, de quatro em quatro, os degraus da escadaria da Lundagatan. Ao chegar lá em cima, deu uma olhada por sobre o ombro e viu seu perseguidor colocando o pé no primeiro degrau. Puta merda, esse cara corre rápido! Quase tropeçou, mas no último instante avistou as placas de sinalização e os montes de areia de uma obra da prefeitura.
Magge Lundin já estava quase chegando ao topo da escadaria quando Lisbeth Salander voltou a entrar em seu campo de visão. Teve tempo de perceber que ela estava atirando alguma coisa, mas não de reagir antes que o paralelepípedo atingisse sua têmpora. Não foi um golpe preciso, mas a pedra era pesada e abriu um segundo corte em seu rosto. Sentiu que perdia o equilíbrio e que o mundo oscilava quando caiu de costas na escadaria. Conseguiu interromper a queda segurando-se no corrimão, mas perdera vários segundos.
A paralisia de Mikael cessou quando o homem desapareceu perto da escadaria. Berrou para que ele parasse imediatamente.
Lisbeth já tinha atravessado metade do pátio quando ouviu a voz de Mikael Blomkvist. Que merda é esta? Mudou de direção e olhou sobre a grade de segurança do terraço. Três metros abaixo, viu Mikael Blomkvist na rua, um pouco mais adiante. Hesitou um décimo de segundo antes de voltar a correr.
Enquanto saía correndo em direção à escadaria, Mikael viu um Dodge Van arrancando em frente ao prédio de Lisbeth Salander, bem ao lado do carro que ela tinha tentado abrir. O veículo passou por Mikael na direção de
Zinkensdamm, e ele chegou a vislumbrar um rosto. A placa estava ilegível sob a luz fraca da iluminação pública.
Indeciso, Mikael ficou olhando para a caminhonete enquanto corria ao encalço do perseguidor de Lisbeth. Alcançou-o no alto da escadaria. O homem tinha parado de costas para Mikael, estava imóvel, olhando ao redor.
Quando Mikael estava quase alcançando-o, ele se virou e desfechou-lhe um violento tapa no rosto. Mikael foi pego totalmente de surpresa. Despencou de cabeça por todos os degraus.
Lisbeth ouviu o grito abafado de Mikael e quase parou. O que está acontecendo, porra? Então olhou por cima do ombro e viu Magge Lundin, uns quarenta metros atrás dela, dando um pique na sua direção. Ele é mais rápido. Vai me alcançar.
Não teve dúvida, virou à esquerda e subiu a toda uns poucos degraus até o terraço entre os prédios. Desembocou num pátio onde não havia o menor lugar para se esconder e percorreu a distância até a esquina seguinte num tempo que teria arrancado um bocado de medalhas de Caroline Klüft nos jogos olímpicos. Virou à direita, percebeu que estava entrando num beco sem saída e deu uma guinada de cento e oitenta graus. Nenhum esconderijo à vista, e no exato momento em que chegava ao ângulo do prédio seguinte avistou Magge Lundin no alto da escada que dava para o pátio. Continuou fora do seu campo de visão por mais alguns metros e mergulhou atrás de um pé de rododendro, num canteiro rente ao prédio.
Escutou, sem vê-lo, os passos pesados de Magge Lundin. Permaneceu totalmente imóvel atrás do arbusto, espremida contra a parede do prédio.
Lundin passou em frente ao esconderijo e parou a menos de cinco metros. Demorou-se uns dez segundos e então continuou correndo pelo pátio. Um minuto depois, estava de volta. Deteve-se no mesmo lugar. Desta feita, ficou parado por uns trinta segundos. Lisbeth contraiu os músculos, pronta para fugir imediatamente caso fosse descoberta. Então ele recomeçou a andar. Passou a menos de dois metros de onde ela estava. Ela escutou seus passos se afastarem do pátio.
A nuca e o maxilar de Mikael doíam quando ele a muito custo conseguiu ficar de pé. Sentia gosto de sangue no lábio rebentado. Experimentou dar alguns passos, e tropeçou.
Tornou a subir a escadaria e olhou em volta. Viu as costas do agressor a cem metros, lá embaixo na rua. O homem do rabo de cavalo parou para espiar entre os prédios, em seguida recomeçou a correr. Segundos depois, sumiu no fim da rua. Mikael foi até o parapeito e procurou-o com os olhos. O homem estava atravessando a Lundagatan e entrando no Dodge Van que já estava arrancando em frente ao prédio de Lisbeth. Logo depois o carro sumiu na esquina, para os lados de Zinkensdamm.
Mikael subiu devagar a Lundagatan à procura de Lisbeth Salander. Não a viu em lugar nenhum. Aliás, não viu uma alma sequer e ficou espantado de constatar como uma rua de Estocolmo podia estar tão vazia às três da manhã de um domingo de março. Instantes depois, voltou para a frente do prédio de Lisbeth, mais abaixo na Lundagatan. Ao passar pelo local onde ocorrera a agressão, pisou em alguma coisa e descobriu que era o chaveiro de Lisbeth. Quando se abaixou para apanhá-lo, viu a bolsa dela debaixo do carro.
Mikael ficou um bom tempo esperando, em dúvida sobre que atitude tomar. Por fim, foi testar as chaves na porta do prédio. Não eram as chaves certas.
Lisbeth Salander ficou escondida por quinze minutos atrás do arbusto, só se mexendo para olhar o relógio. Pouco depois das três, escutou uma porta se abrindo e fechando, e passos se dirigindo ao bicicletário do pátio.
Quando o ruído cessou, ela se ajoelhou devagar e apontou a cabeça para fora do arbusto. Examinou os mínimos recantos do pátio, mas não viu Magge Lundin em parte alguma. Voltou para a rua com passos leves, o tempo todo prestes a dar meia-volta e fugir. Parou no alto da escadaria, perscrutou a parte baixa da Lundagatan e, súbito, avistou Mikael Blomkvist em frente ao seu prédio. Estava com a sua bolsa na mão.
Ela permaneceu absolutamente imóvel, escondida por um poste de luz, quando o olhar de Mikael Blomkvist percorreu o parapeito do nível superior. Ele não a viu.
Mikael Blomkvist ficou na frente do seu prédio por quase meia hora. Ela o observou pacientemente sem se mexer, até que ele resolveu ir embora, na direção de Zinkensdamm. Depois que ele sumiu, ela ainda esperou algum tempo antes de começar a refletir sobre os acontecimentos. Era difícil entender como ele tinha entrado em cena daquele jeito, surgindo do nada. Quanto à agressão em si, não dava margem a muita interpretação. O canalha do Carl-Magnus Lundin. Magge Lundin havia estado com o gigante loiro que ela avistara em companhia do Dr. Nils Bjurman.
O maldito canalha do Nils Bjurman.
Esse escroto nojento pagou um maldito macho de merda para acabar comigo. E olhe que eu expliquei direitinho para ele que consequência isso poderia ter.
Súbito, Lisbeth Salander começou a ferver por dentro. Estava tão furiosa que chegou a sentir um gosto de sangue na boca. Desta vez, seria obrigada a puni-lo.