8. DOMINGO 15 DE MAIO – SEGUNDA-FEIRA 2 DE MAIO


Erika Berger inspirou fundo antes de abrir a porta do elevador e entrar na redação do Svenska Morgon-Posten. Eram 10h 15. Estava discretamente vestida com uma calça preta, um pulôver vermelho e um casaco escuro. O tempo, naquele primeiro dia de maio, estava magnífico, e ao atravessar a cidade ela observara que o movimento operário estava reunindo suas tropas. Constatara que, no que lhe dizia respeito, não participava de um desfile de 1º. de Maio havia mais de vinte anos.

Por um rápido instante, deixou-se ficar sozinha e invisível em frente ao elevador. Era o primeiro dia em seu novo local de trabalho. De onde estava, enxergava boa parte da redação central, com a editoria de Atualidades no meio. Ergueu um pouco o olhar e viu as portas envidraçadas da sala do redator--chefe que, pelo próximo ano, seria sua.

Não estava totalmente convencida de que era a pessoa certa para dirigir a monstruosa organização que o Svenska Morgon-Posten constituía. Era um passo gigantesco entre a pequena Millennium, com seus cinco funcionários, e um jornal diário que empregava oitenta jornalistas e outros noventa profissionais, incluindo administração, pessoal técnico, designers gráficos, fotógrafos, área comercial, distribuição e tudo mais relacionado à produção de um jornal. Somava-se a isso uma editora, uma empresa de produção e uma empresa de gerenciamento. Ao todo, mais de duzentas e trinta pessoas.

Por um breve instante, perguntou-se se não tinha cometido um erro monumental.

Então a recepcionista mais velha percebeu quem acabava de chegar à redação e saiu de trás de seu balcão, aproximando-se com a mão estendida.

— Senhora Berger. Seja bem-vinda ao SMP.

— Obrigada. Bom dia.

— Meu nome é Beatrice Sahlberg. Seja bem-vinda entre nós. Vou levá-la ao redator-chefe, o senhor Morander... enfim, quero dizer, ao redator-chefe que vai deixar o cargo.

— Obrigada, mas vejo que ele está ali no aquário — disse Erika, sorrindo. — Acho que posso achar o caminho. De qualquer modo, obrigada.

Atravessou a redação num passo rápido e observou que o burburinho diminuía um pouco. Sentiu de repente todos os olharem se voltarem para ela. Deteve-se diante da editoria de Atualidades semi-vazia e meneou cordialmente a cabeça.

— Vamos ter tempo de nos apresentarmos daqui a pouco — disse e, prosseguindo, foi bater na porta envidraçada.

Com cinqüenta e nove anos, Hâkan Morander, redator-chefe demissionário, passara doze anos no aquário em frente à redação do SMP. Como Erika, ele viera de outro veículo e fora cuidadosamente escolhido — também fizera, portanto, o trajeto que ela acabava de percorrer para ir ter com ele. Olhou-a perturbado, deu uma olhada no relógio e se levantou.

— Bom dia, Erika — cumprimentou. — Achei que você só começaria na segunda-feira.

— Não agüentei ficar mais um dia em casa, portanto aqui estou. Morander estendeu a mão.

— Bem-vinda. Estou feliz por você assumir o meu lugar.

— E a sua saúde, como vai? — perguntou Erika.

Ele deu de ombros. Beatrice, a recepcionista, entrou trazendo café e leite.

— Tenho a impressão de já estar funcionando em meia fase. Na verdade, prefiro não falar sobre isso. A gente passa a vida se sentindo um adolescente imortal e, de repente, só tem pouquíssimo tempo pela frente. E uma coisa é certa: não pretendo desperdiçar esse pouco tempo aqui dentro deste aquário.

Inconscientemente, ele esfregou o peito. Seus problemas cardiovasculares eram o motivo de sua súbita demissão e de Erika ter de começar vários meses antes da data combinada a princípio.

Erika se virou e contemplou a paisagem das mesas da redação. Estavam semi-ocupadas naquele feriado. Um jornalista e um fotógrafo dirigiam-se ao elevador, decerto para irem cobrir o desfile de 1º. de Maio, ela pensou.

— Se eu estiver atrapalhando, ou se você estiver ocupado, é só dizer que eu vou embora.

— Hoje o meu trabalho é escrever um editorial de quatro mil e quinhentos caracteres sobre os desfiles do 1- de Maio. Já escrevi tantos que posso fazer isso até dormindo. Se os sociais-democratas querem declarar guerra à Dinamarca, tenho de explicar no que eles estão errados. Se os sociais-democratas querem evitar a guerra com a Dinamarca, tenho de explicar no que eles estão errados.

— Dinamarca? — perguntou Erika.

— Pois é, parte da mensagem do 1- de Maio fala do conflito da questão da integração. E, seja lá o que digam, os sociais-democratas estão sempre errados.

Ele caiu na risada.

— Você me parece bem cínico — disse Erika.

— Bem-vinda ao Svenska Morgon-Postenl

Erika nunca tivera nenhuma opinião especial sobre Hâkan Morander. Ele detinha um poder anônimo em meio à elite dos diretores de redação. Quando lia seus editoriais, ela o achava tedioso, conservador e um especialista em lamentações contra os impostos, um típico liberal militando pela liberdade de expressão, mas nunca tivera a oportunidade de encontrá-lo pessoalmente ou de ter contato com ele.

— Me fale sobre o trabalho — disse ela.

— Eu saio no final de junho. Vamos trabalhar dois meses juntos, por isso me permiti tratá-la logo com informalidade, é uma regra da casa. Você vai descobrir coisas positivas e negativas a meu respeito. Sou um cínico, você tem razão, de modo que meu olhar se volta, principalmente, acho, para as coisas negativas.

Ele se levantou e ficou ao lado dela, diante do vidro.

— Você vai perceber que fora deste aquário você tem um certo número de adversários — redatores-chefes diurnos e alguns veteranos, entre os redatores, que criaram seus próprios imperiozinhos ou clubes particulares dos quais você não vai poder participar. Vão tentar forçar os limites, impor suas manchetes e visões pessoais; cabe a você ser rigorosa para conseguir resistir.

Erika meneou a cabeça.

— Os redatores-chefes da noite, Billinger e Karlsson... são um capítulo à parte. Eles se odeiam e, por sorte, não formam uma equipe, mas se comportam como se fossem responsáveis pela publicação e redatores-chefes. Na editoria de Atualidades, você tem o Lukas Holm, com quem, necessariamente, vai ter muito contato. Tenho certeza de que vocês vão se atritar mais de uma vez. Na verdade, ele é quem produz diariamente o SMP. Temos aqui jornalistas que são legítimas prima-donas e outros que na verdade deveriam estar aposentados.

— Há algum colaborador decente no meio disso tudo? Morander caiu na risada.

— Sim. Mas cabe a você descobrir com quem vai se entender. Temos alguns jornalistas que são mesmo muito bons.

— E quanto à direção?

— O Magnus Borgsjõ é o presidente do conselho administrativo. Foi ele quem a contratou. É cheio de charme, metade velha escola, metade renovador, mas, antes de mais nada, é quem decide. Junte a isso alguns membros do conselho, vários deles oriundos da família proprietária do jornal que mais parecem figurantes, e outros que agitam como profissionais de conselhos administrativos.

— Você não parece muito satisfeito com o conselho administrativo.

— Cada um na sua. Você produz o jornal. Eles cuidam das finanças. Para todos os efeitos, eles não se metem no conteúdo do jornal, mas sempre surgem umas situações problemáticas. Para ser bem sincero, Erika, você vai passar alguns apuros.

— Por quê?

— A tiragem baixou praticamente cento e cinqüenta mil exemplares desde a belle époque dos anos 1960, e o SMP está a ponto de começar a operar no vermelho. Já racionalizamos e eliminamos mais de cento e oitenta cargos de 1980 para cá. Passamos para o formato tablóide — o que já devíamos ter feito há vinte anos. O SMP ainda está entre os grandes jornais, mas falta pouco para cairmos para a segunda divisão. Se é que já não caímos. __Mas, então, por que me escolheram? — perguntou Erika.

— Porque a idade média dos leitores do SMP é de cinqüenta anos ou mais, e os leitores na faixa dos vinte anos são praticamente zero. O SMP precisa se renovar. E o raciocínio da direção foi chamar o redator-chefe mais improvável que se pudesse imaginar.

— Uma mulher?

— Não qualquer mulher. A mulher que derrubou o império Wennerstrõm e é aclamada como a rainha do jornalismo investigativo, com fama de ser dura na queda. Ponha-se no lugar deles. É irresistível. Se você não conseguir renovar o jornal, ninguém mais conseguirá. O SMP não está, portanto, contratando apenas Erika Berger, mas, principalmente, a reputação de Erika Berger.

Mikael Blomkvist saiu do Café Copacabana, ao lado do cinema Kvartersbion em Hornstull, pouco depois das duas da tarde. Pôs os óculos escuros e estava chegando ao Passeio de Bergsund, a caminho da estação de metrô, quando avistou o Volvo cinza estacionado na esquina. Continuou andando sem alterar o passo e constatou que a placa era a mesma e que não havia ninguém no carro.

Era a sétima vez em quatro dias que ele reparava naquele carro! Não sabia dizer desde quando ele vinha gravitando à sua volta, a verdade é que o notara por mero acaso. Na primeira vez que viu o carro, ele estava a caminho da redação da Millennium. Era quarta-feira de manhã e o veículo estava estacionado perto do seu prédio, na Bellmansgatan. Seu olhar havia batido na placa, que começava com as letras KAB, O que lhe chamara a atenção já que aquele era o nome da empresa inativa de Alexander Zalachenko, a Karl Axel Bodin S.A. Provavelmente ele não teria mais pensado no assunto se não tivesse visto o mesmo carro, com a mesma placa, horas depois, enquanto almoçava com Henry Cortez e Malou Eriksson na Medborgarplats. Dessa vez, o Volvo estava estacionado numa rua transversal à da redação da Millennium.

Perguntou-se vagamente se estava ficando paranóico, mas passado algum tempo, naquela mesma tarde, quando foi visitar Holger Palmgren no centro de reabilitação de Ersta, lá estava o Volvo cinza no estacionamento dos visitantes. Não podia ser apenas coincidência. Mikael Blomkvist começou a vigiar os arredores. Não se surpreendeu quando, na manhã seguinte, tornou a ver o carro.

Em nenhum momento chegara a ver o motorista. Mas uma ligação para o departamento de trânsito revelou que o veículo pertencia a um certo Gõran Mârtensson, de quarenta anos, residente na Vittangigatan, em Vállingby. Uma rápida pesquisa revelou que Gõran Mârtensson era consultor de empresas, tinha seu próprio negócio, com uma caixa postal por endereço, na Fleminggatan sobre Kungsholmen. Por volta dos dezoito anos, em 1983, prestara o serviço militar numa unidade especial da defesa costeira, ingressando em seguida na Defesa. Fora promovido a tenente antes de se demitir, em 1989, com o intuito de mudar de rumo, e entrara para a Escola de Polícia em Solna. De 1991 a 1996, trabalhara na polícia de Estocolmo. Em 1997, desaparecera e, em 1999, abrira sua empresa.

Conclusão: Sapo.

Mikael mordeu o lábio inferior. Um jornalista investigativo sério podia ficar paranóico por muito menos. Mikael concluiu que estava sob discreta vigilância, e realizada com tal inabilidade que ele tinha percebido.

Mas será que era mesmo inábil? Só tinha notado o carro por causa da placa, que por acaso tinha um significado para ele. Se não fosse pelo KAB, não teria sequer reparado.

Na sexta-feira, KAB se fez notar por sua ausência. Mikael não tinha certeza absoluta, mas achava que talvez nesse dia tivesse tido a companhia de um Audi vermelho, cuja placa não conseguiu identificar. No sábado, o Volvo estava de volta.

Exatamente vinte segundos depois que Mikael Blomkvist saiu do Café Copacabana, Christer Malm ergueu sua Nikon digital e tirou, do seu lugar à sombra da varanda do Café Rossos, uma seqüência de doze fotos do outro lado da rua. Fotografou dois homens que saíam do café logo atrás de Mikael e o seguiam em frente à Kvartersbion.

Um deles era de uma meia-idade difícil de definir, mais para jovem do que para velho, cabelos loiros. O outro parecia ser mais velho, tinha cabelos finos de um loiro ardente e usava óculos escuros. Ambos vestiam jeans e jaquetas de couro escuras.

Separaram-se ao chegar ao Volvo cinza. O mais velho abriu a porta, enquanto o mais jovem seguiu Mikael Blomkvist a pé na direção do metrô.

Christer Malm largou a máquina fotográfica e deu um suspiro. Não sabia por que Mikael o chamara a um canto e insistira que ele desse uma volta pelo bairro do Copacabana no domingo à tarde e procurasse um Volvo cinza com determinada placa. Ele teria que se posicionar de modo a conseguir fotografar a pessoa que, segundo Mikael, muito provavelmente iria abrir a porta do carro pouco depois das três horas. Ao mesmo tempo, tinha que ficar de olhos bem abertos para tentar descobrir se alguém seguia Mikael Blomkvist.

Aquilo estava com todo o jeito de um novo episódio das aventuras do Super-Blomkvist. Christer Malm sempre ficava na dúvida se Mikael Blomkvist era um paranóico por natureza ou se tinha talentos extrassensoriais. Desde os acontecimentos de Gosseberga, Mikael andava extremamente fechado e avesso à comunicação. Isso não tinha nada de estranho, claro, já que ele estava trabalhando numa matéria complexa — Christer já observara a mesma obsessão e os mesmos segredinhos durante o caso Wennerstrôm, mas dessa vez era ainda mais evidente.

Em compensação, não foi difícil para Christer constatar que Mikael Blomkvist estava de fato sendo seguido. Perguntou-se que encrenca estaria vindo pela frente e que provavelmente exigiria tempo, energia e os recursos da Millennium. Christer Malm achava que Mikael tinha escolhido uma péssima hora para dar uma de Super-Blomkvist, com a diretora da revista desertando para o Grande Dragão e com a estabilidade duramente conquistada da Millennium ameaçada.

Por outro lado, não pretendia ir ao desfile — fazia pelo menos dez anos que não participava de uma manifestação pública, com exceção da Gay Pride — e não tinha nada melhor para fazer, naquele domingo 1- de maio, do que quebrar um galho para o Mikael. Levantou-se e acompanhou com passos indolentes o homem que seguia Mikael Blomkvist. Isso não fazia parte das instruções que recebera. Porém, perdeu o homem de vista assim que entraram na Lângholmsgatan.


Ao perceber que seu telefone, muito provavelmente, estava sob escuta, uma das primeiras medidas de Mikael Blomkvist foi mandar Henry Cortez comprar alguns celulares em promoção. Cortez conseguira numa ponta de estoque um Ericsson TIO a preço de banana. Mikael comprou cartões Conviq, ficou com um telefone para si mesmo e distribuiu os outros para Malu Eriksson, Henry Cortez, Annika Giannini, Christer Malm e Dragan Armanskij. Seriam usados exclusivamente para conversas confidenciais. As ligações comuns seriam feitas dos números habituais. O resultado é que todos eles tinham que carregar dois celulares.

Mikael foi do Copacabana para a Millennium, onde Henry Cortez estava assumindo o plantão do fim de semana. Depois do assassinato de Zalachenko, Mikael estabelecera um rodízio, para que sempre houvesse alguém na redação da Millennium, inclusive para dormir. O rodízio incluía ele próprio, Henry Cortez, Malu Eriksson e Christer Malm. Ficaram de fora Lottie Karim, Monika Nilsson e Sonny Magnusson, o responsável pela publicidade. Nem sequer tinham sido convocados. Lottie Karim não escondia que tinha medo do escuro e jamais teria aceitado dormir na redação. Monika Nilsson não tinha esse tipo de problema, mas trabalhava feito louca em seus artigos e era dessas pessoas que voltam para casa no fim da jornada de trabalho. E Sonny Magnusson tinha sessenta e um anos, não estava envolvido no trabalho da redação e em breve iria tirar férias.

— Alguma novidade? — perguntou Mikael.

— Nada de especial — disse Henry Cortez. — As notícias de hoje estão obviamente ligadas ao 1- de Maio.

Mikael assentiu com a cabeça.

— Vou ficar aqui por uma ou duas horas. Tire o dia de folga e volte só à noite, lá pelas nove.

Assim que Henry Cortez saiu, Mikael pegou o celular novo em sua mesa. Ligou para Daniel Olofsson, um jornalista freelancer de Gõteborg. A Millennium publicara vários textos de Olofsson ao longo dos anos e Mikael tinha a maior confiança na sua capacidade jornalística de colher material de base.

— Olá, Daniel. É o Mikael Blomkvist. Você está disponível?

— Estou.

— Tenho um trabalho de pesquisa para você. Você vai poder faturar cinco dias e não vai precisar escrever nenhum texto. Sendo mais claro: se você quiser escrever alguma coisa, a gente topa publicar, mas o que nos interessa, acima de tudo, é a pesquisa.

— Sou todo ouvidos.

— E um pouco delicado. Você só vai poder falar sobre o assunto comigo e utilizar apenas o hotmail para se comunicar comigo. Não quero que comente com ninguém que está fazendo uma pesquisa para a Millennium.

— Trabalhinho simpático. O que você está procurando?

— Queria que você fosse ao Hospital Sahlgrenska fazer uma reportagem sobre determinado setor de trabalho. A reportagem vai se chamar "Plantão Médico", e para todos os efeitos vai mostrar as diferenças entre a realidade e o seriado da tevê. Queria que você acompanhasse por alguns dias o trabalho do pronto-socorro e da UTI. Que conversasse com os médicos, as enfermeiras, o pessoal da limpeza, todos que trabalham lá. Quais as condições de trabalho, as tarefas, esse tipo de coisa. Com fotos, evidentemente.

— UTI? — disse Olofsson.

— Isso mesmo. Queria que você se concentrasse nos cuidados dispensados aos pacientes do setor 11C, que apresentam ferimentos graves. Quero um mapa do setor, que pessoas trabalham ali, de que tipo elas são e qual o passado delas.

— Humm — disse Daniel Olofsson. — Ou muito me engano, ou uma tal de Lisbeth Salander está internada no 11C.

Ele não tinha nascido ontem.

— Ah é? — disse Mikael Blomkvist. — Interessante. Descubra em que quarto ela está, o que há nos quartos vizinhos e qual a rotina de atendimento.

— Imagino que essa reportagem vá tratar de algo bem diferente — disse Daniel Olofsson.

— Como eu dizia... Só estou interessado na pesquisa que você vai fazer. Trocaram seus endereços hotmail.

Lisbeth Salander estava deitada de costas no chão de seu quarto no Sahlgrenska, quando a enfermeira Marianne abriu a porta.

— Humm — disse Marianne, expressando suas reservas sobre a pertinência de se ficar deitada no chão numa unidade de terapia intensiva. Mas reconheceu que era o único lugar possível para fazer um pouco de exercício.

Lisbeth Salander estava molhada de suor depois de passar trinta minutos tentando fazer flexões de braços, alongamentos e abdominais, de acordo com as recomendações de seu fisioterapeuta. Havia uma seqüência de movimentos que ela precisava executar todos os dias para reforçar a musculatura das escapulas e do quadril após a cirurgia de três semanas antes. Respirou pesadamente e sentiu que tinha perdido muito de sua forma. Cansava-se rápido e seu ombro repuxava e latejava ao menor esforço. Mas sem dúvida nenhuma estava se recuperando. A dor de cabeça que a atormentara nos primeiros dias após a cirurgia se abrandara e só se manifestava de vez em quando.

Ela se sentia restabelecida o suficiente para deixar o hospital sem hesitação ou, pelo menos, para dar uma rápida saída, se fosse possível, o que ainda não era o caso. De um lado, os médicos não a tinham declarado restabelecida e, por outro, a porta de seu quarto continuava fechada a chave e vigiada por um maldito tira da Securitas que ficava plantado numa cadeira, no corredor.

Em compensação, estava em condição de ser transportada para um setor de reabilitação comum. Porém, depois de discutirem por longo tempo o assunto, a polícia e a direção do hospital haviam concluído que era melhor ela ficar no quarto 18 até segunda ordem. O motivo alegado era que o quarto podia ser facilmente vigiado, pois sempre havia alguém da equipe por perto, e que o quarto ficava num corredor em L. Era mais simples, portanto, mantê-la no setor 11C, onde a equipe de lá, após o assassinato de Zalachenko, já havia assimilado as regras de segurança e já estava à par dos problemas que a cercavam, do que transferi-la para um novo setor com tudo o que isso implicaria em termos de mudança na rotina.

De qualquer modo, sua permanência no Sahlgrenska era, quando muito, questão de semanas. Assim que os médicos assinassem a alta, seria transferida para a casa de detenção de Kronoberg, em Estocolmo, onde aguardaria o julgamento. E a decisão caberia ao dr. Anders Jonasson.

Tinham se passado dez dias do tiroteio em Gosseberga, quando o Dr. Jonasson autorizou a polícia a realizar o primeiro interrogatório de fato, o que aos olhos de Annika Giannini era magnífico.

Depois do caos decorrente do assassinato de Zalachenko, ele fizera uma avaliação do estado de Lisbeth Salander. A conclusão foi que ela havia, obviamente, sido exposta a um elevado nível de estresse, considerando-se que ficara sob a suspeita de haver cometido um triplo assassinato. Anders Jonasson nada sabia sobre sua eventual culpa ou inocência e, como médico, a resposta não o interessava nem um pouco. Limitou-se a afirmar que Lisbeth Salander tinha sido exposta a um estresse. Levara três tiros, um dos quais atingira seu cérebro e por pouco não a matara. Estava com uma febre persistente e uma forte dor de cabeça.

Ele optara pela cautela. Suspeita de assassinato ou não, ela era sua paciente e o trabalho dele era cuidar para que se recuperasse o quanto antes. Em virtude disso, decretou uma proibição de visitas que nada tinha a ver com a proibição da procuradora, cujo embasamento era jurídico. Prescreveu um tratamento médico e repouso absoluto.

Visto que Anders Jonasson acreditava que o isolamento era uma forma desumana de punir pessoas, francamente equiparável à tortura, e que ninguém poderia ficar bem estando afastado dos amigos, decidiu que a advogada de Lisbeth Salander, Annika Giannini, faria as vezes de amiga. Conversou com ela a sós e explicou que Annika poderia visitar Lisbeth Salander todos os dias, por uma hora. Durante a visita poderia conversar com ela ou simplesmente lhe fazer companhia, sem dizer nada. Na medida do possível, o assunto não deveria abordar os problemas de Lisbeth Salander nem as batalhas jurídicas que tinha pela frente.

— Lisbeth Salander levou um tiro na cabeça e se machucou gravemente — ele explicou. — Acho que ela está fora de perigo, mas sempre existe o risco de uma hemorragia ou de alguma outra complicação. Ela precisa de repouso e de tempo para se recuperar. Só depois vai poder começar a pensar nos seus problemas jurídicos.

Annika Giannini percebeu a lógica do raciocínio do dr. Jonasson. Teve com Lisbeth Salander algumas conversas de ordem geral, mencionando qual era a sua estratégia e a de Mikael, mas nos primeiros dias não teve a menor condição de desenvolver nenhum raciocínio muito detalhado. Lisbeth Salander estava simplesmente entorpecida pela medicação, e tão exausta que quase todas as vezes caía no sono no meio da conversa.


Dragan Armanskij examinou a série de fotos que Christer Malm tirara dos dois homens que haviam seguido Mikael Blomkvist. Estavam bem nítidas.

— Não — disse ele. — Nunca vi esses homens antes.

Mikael Blomkvist balançou a cabeça. Estavam na sala de Armanskij, da Milton Security, na segunda-feira de manhã. Mikael entrara no prédio pela garagem.

— O mais velho é Gõran Mârtensson, o proprietário do Volvo, portanto. Ele me seguiu feito consciência pesada durante no mínimo uma semana, mas quem sabe faz até mais tempo.

— E você acha que ele é da Sapo.

Mikael contou sobre a carreira pregressa de Mârtensson, que ele havia reconstituído. Era muito eloqüente. Armanskij hesitou. A revelação de Blomkvist o deixava dividido.

Tudo bem, os agentes secretos do Estado pisavam muitas vezes na bola. Era a ordem natural das coisas, não só na Sapo como provavelmente em todos os serviços de informação do mundo. Pois se a polícia secreta francesa tinha até mandado uma equipe de mergulhadores à Nova Zelândia para torpedear o Rainbow Warrior, do Greenpeace! Tratava-se, sem dúvida, da operação de informações mais idiota da história mundial, com exceção, talvez, do arrombamento do Watergate do presidente Nixon. Com um comando tão tolo, não era de surpreender que escândalos acontecessem. Em compensação, seus êxitos nunca eram revelados. Pelo contrário, a mídia literalmente caía em cima da polícia secreta quando acontecia alguma coisa ilícita, estúpida ou algum fracasso, assumindo a atitude de bem-que-eu-falei, tão fácil de adotar depois.

Armanskij nunca entendera a relação da mídia sueca com a Sapo.

De um lado, a mídia tinha na Sapo uma ótima fonte, e praticamente toda falha política impensada acabava nas manchetes. A Sapo suspeita... Uma declaração da Sapo era tinha peso para a primeira página.

De outro, a mídia e os políticos de todas as tendências não hesitavam em execrar como se deve, quando desmascarados, os agentes da Sapo envolvidos na espionagem de cidadãos suecos. Era tão paradoxal que Armanskij mais de uma vez concluíra que tanto os políticos como a mídia se perdiam completamente nessa questão.


Armanskij nada tinha contra a existência da Sapo. Afinal, alguém precisava cuidar para que algum iluminado nacional-bolchevique que tivesse lido Bakunin ou outro guru qualquer até enjoar não resolvesse fabricar uma bomba com adubo químico e petróleo e colocá-la num furgão em frente ao Palácio Rosenbad, só para explodir com todo o governo sueco. Armanskij achava que a Sapo era indispensável e que um pouco de espionagem anódina não fazia mal enquanto seu objetivo fosse zelar pela segurança dos cidadãos.

O problema é que, evidentemente, uma organização cuja tarefa era espionar os cidadãos precisava, de forma obrigatória, estar sujeita a um rígido controle, e cabia à Constituição garantir acesso às informações. Ora, era praticamente impossível que políticos ou deputados conseguissem manter um olhar sobre a Sapo, mesmo quando o primeiro-ministro designava um investigador especial que, no papel, teria acesso a tudo. Armanskij tomara emprestado Uma missão, de Carl Lidbom, que lera com um espanto crescente. Nos Estados Unidos, pelo menos uns dez cabeças da Sapo já teriam sido detidos por obstrução da justiça e intimados a comparecerem perante uma comissão do Congresso. Na Suécia, eles eram aparentemente inatacáveis.

O caso Lisbeth Salander mostrava que havia algo de podre no seio da organização, mas quando Mikael Blomkvist aparecera para lhe dar um telefone celular seguro, a primeira reação de Dragan Armanskij fora achar que Blomkvist estava paranóico. Contudo, depois de estudar os detalhes e examinar as fotos de Christer Malm, foi forçado a reconhecer, a contragosto, que as suspeitas de Blomkvist tinham fundamento. E isso não prenunciava nada de bom; pelo contrário, indicava que a maquinação que derrubara Lisbeth Salander quinze anos antes não era algo à toa.

Havia simplesmente coincidências demais para ser algo fortuito. Em último caso, até se poderia aceitar que Zalachenko tivesse sido morto por um justiceiro solitário. Mas já não dava para acreditar nessa hipótese quando se sabia que, no mesmo instante, era roubado, tanto de Mikael Blomkvist como de Annika Giannini, o documento que constituía o fundamento da argumentação deles. Aquilo era uma verdadeira calamidade. E, ainda por cima, a principal testemunha resolvera se enforcar.

— Bem — disse Armanskij, juntando a documentação de Mikael. — Estamos de acordo que eu transmita isto aqui para o meu contato?

— Já que se trata de uma pessoa em quem você diz ter inteira confiança...

— Sei que é uma pessoa de muita ética e com um comportamento absolutamente democrático.

— Dentro da Sapo — disse Mikael Blomkvist, com evidente desconfiança na voz.

— Nós precisamos estar de acordo. Tanto eu como o Holger Palmgren aceitamos o seu plano e estamos colaborando. Mas posso garantir que não vamos conseguir apenas com nossos recursos. Se a gente não quiser que isto acabe mal, temos de encontrar aliados na administração governamental.

— Está bem — disse Mikael a contragosto. — E que estou acostumado a esperar que a Millennium esteja impressa para me sentir desobrigado. Nunca entreguei uma informação relativa a uma matéria antes de ela estar publicada.

— Mas foi o que você fez neste caso. Já contou para mim, para a sua irmã e para o Palmgren.

Mikael fez um gesto de concordância com a cabeça.

— E se fez isso, é porque você mesmo percebe que este caso é muito maior do que uma matéria .de capa da sua revista. Aqui você não é um jornalista neutro, e sim um personagem da trama.

Mikael concordou de novo com a cabeça.

— E, enquanto personagem, precisa de ajuda para atingir seus objetivos. Mikael meneou a cabeça mais uma vez. Sabia perfeitamente que não tinha contado toda a verdade nem para Armanskij nem para Annika Giannini. Ainda partilhava alguns segredos com Lisbeth Salander. Apertou a mão de Armanskij.


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