4. SÁBADO 9 DE ABRIL - DOMINGO 10 DE ABRIL


À uma da tarde de sábado, a procuradora Martina Fransson, de Sõdertalje, concluíra suas reflexões. O cemitério natural na floresta de Nykvarn era uma encrenca bem feia e a área criminal já somara uma quantidade incrível de horas extras desde a quarta-feira, quando Paolo Roberto travara sua luta de boxe contra Ronald Niedermann no armazém. Estavam diante do homicídio de pelo menos três pessoas, cujos corpos haviam sido enterrados no terreno, um seqüestro com uso de violência seguido de golpes e ferimentos agravados contra Miriam Wu, amiga de Lisbeth Salander, e por fim um incêndio criminoso. Também tinham que associar Nykvarn ao incidente de Stallarholmen, que não se situava no mesmo distrito policial, mas do qual Carl-Magnus Lundin, do MC Svavelsjõ, era figura-chave. No momento, Lundin estava no hospital de Sõdertãlje com um pé engessado e uma placa de metal no maxilar. De qualquer forma, todos esses crimes estavam sob a autoridade da polícia local, o que significava que Estocolmo é que daria a palavra final.

Na sexta-feira, haviam deliberado acerca da expedição das ordens de prisão. Lundin estava ligado a Nykvarn, isso era certo. Com algum atraso, conseguiram estabelecer que o armazém era propriedade de uma certa Anneli Karlsson, de cinqüenta e dois anos, residente em Puerto Banus, na Espanha.


Era prima de Magge Lundin, não tinha ficha na polícia e, nesse contexto, parecia cumprir, sobretudo, o papel de testa de ferro.

Martina Fransson fechou a pasta do inquérito preliminar. A instrução estava em seu estágio inicial e ainda seria alimentada com várias centenas de páginas antes de resultar num processo. Mas Martina Fransson precisava desde já tomar uma decisão sobre alguns pontos. Olhou para seus colegas policiais.

— Temos material suficiente para abrir uma ação judicial contra Lundin por cumplicidade no seqüestro de Miriam Wu. Paolo Roberto o identificou como o motorista do furgão. Também vou detê-lo por provável cumplicidade no incêndio criminoso. Sobre as acusações de cumplicidade no homicídio das três pessoas desenterradas no terreno, vamos esperar pelo menos até todas serem identificadas.

Os policiais assentiram com a cabeça. Não esperavam outra coisa.

— E quanto ao Benny Nieminen, a gente faz o quê?

Martina Fransson folheou os documentos sobre sua mesa até encontrar o do Nieminen.

— Esse senhor tem um currículo impressionante. Roubo a mão armada, posse ilegal de arma, agressões de todo tipo, homicídio e infrações ligadas a drogas. E desse modo ele foi preso em Stallarholmen, junto com Lundin. Estou convencida de que ele está envolvido nisso tudo — o contrário seria surpreendente. O problema é que não temos nada contra ele.

— Ele afirma que nunca esteve no armazém de Nykvarn, que só estava dando uma volta de moto com o Lundin — disse o inspetor criminal de Sõdertãlje encarregado de Stallarholmen. — Diz que desconhecia totalmente o que o Lundin ia fazer em Stallarholmen.

Martina Fransson se perguntou se não haveria um jeito de repassar o caso para o procurador Richard Ekstrõm, de Estocolmo.

— Nieminen se recusa a contar o que aconteceu, mas nega veementemente ser cúmplice de um crime — prosseguiu o inspetor criminal.

— É, daqui a pouco nós vamos achar que ele e o Lundin é que são as vítimas de Stallarholmen — disse Martina Fransson tamborilando com os dedos, irritada. — Lisbeth Salander — acrescentou, deixando transparecer uma dúvida na voz. — Estamos falando de uma jovem que aparenta ter mal e mal passado da puberdade, mede um metro e cinqüenta e certamente não possui força física para dominar Nieminen e Lundin.

— A menos que estivesse armada. Com uma pistola, ela pode compensar as desvantagens do físico de passarinho que tem.

— Mas isso não bate totalmente com a reconstituição.

— Não. Ela usou gás lacrimogêneo e deu uns pontapés no meio das pernas e no rosto do Lundin com tamanha fúria que rebentou um testículo dele e quebrou seu maxilar. A bala no pé deve ter sido disparada depois. Mas custo a acreditar que ela é que estivesse armada.

— O laboratório identificou a arma que acertou o Lundin. Trata-se de uma Wanad P-83 polonesa, com munição Makarov. Foi encontrada em Gosseberga, próximo a Gõteborg, e traz as impressões digitais da Salander. É bem possível que ela tenha levado a pistola para Gosseberga.

— Sim. Mas o número de série mostra que ela foi roubada há quatro anos durante o assalto ao depósito de armas de Orebro. O ladrão acabou sendo preso, mas já tinha se livrado das armas. Era um talento ali da região, com problemas de drogas e que atuava em círculos próximos ao MC Svavelsjó. Estou tendendo a achar que a pistola era do Lundin ou do Nieminen.

— Pode ser simplesmente que o Lundin estivesse com a pistola, a Salander tentou pegar a arma e ela disparou sozinha, atingindo o pé dele. Seja como for, não houve intenção de matar, já que ele continua vivo.

— Ou então ela atirou no pé por puro sadismo. Sei lá! Mas como é que ela conseguiu dar conta do Nieminen? Ele não tem nenhum machucado aparente.

— Tem, sim, uma coisinha. Duas queimaduras pequenas no peito.

— E?

— Parece marca de cassetete elétrico.

— Quer dizer que a Salander estaria armada com um cassetete elétrico, gás lacrimogêneo e uma pistola. Quanto pesa tudo isso? Não, acho que foi o Lundin ou o Nieminen que trouxe a arma e ela conseguiu desarmá-los. Só vamos saber exatamente como o Lundin levou o tiro quando um dos protagonistas resolver falar.

— Certo.

— A situação é a seguinte: Lundin está cumprindo prisão temporária pelas acusações que já mencionei. Em compensação, não temos absolutamente nada contra o Nieminen. Vou ser obrigada a soltá-lo hoje à tarde.

Benny Nieminen estava com um humor detestável quando saiu da cela da carceragem da chefatura de polícia de Estocolmo. Estava também com sede, a ponto de parar imediatamente numa tabacaria para comprar uma Pepsi, que ele entornou num gole só. Comprou também um maço de Lucky Strike e um pacote de rape. Pegou o celular, conferiu o estado da bateria e em seguida digitou o número de Hans-Ake Waltari, trinta e três anos e número três na hierarquia do MC Svavelsjó. Ouviu o telefone tocar quatro vezes antes de Waltari atender.

— Nieminen. Estou fora.

— Parabéns.

— Onde você está?

— Em Nykõping.

— Fazendo o que em Nykõping?

— Quando você e o Magge foram presos, a gente achou melhor se encolher um pouco até ter uma idéia melhor da situação.

— Agora você já sabe qual é. Onde está todo mundo?

Hans-Ake Waltari explicou onde estavam os outros cinco membros do MC Svavelsjõ. A explicação não bastou para acalmar ou contentar Benny Nieminen.

— E quem está tocando o barco enquanto vocês ficam escondidos que nem mulherzinha?

— Não é justo. Você e o Magge somem para fazer um serviço, a gente nem desconfia do que se trata, e de repente vocês estão envolvidos num tiroteio com essa piranha que está com a polícia sueca toda atrás dela, o Magge leva um tiro e você vai para o xadrez. E, para completar, os tiras estão desenterrando uns presuntos no armazém de Nykvarn.

— Sim, e daí?

— Daí que a gente começou a se perguntar se você e o Magge não estavam escondendo alguma coisa.

— Escondendo o quê? Não é a gente que consegue os negócios para o grupo?

— Mas eu nunca ouvi dizer que o armazém também era um cemitério escondido no meio do mato. Quem são esses presuntos?

Benny Nieminen estava com uma resposta cortante na ponta da língua, mas se conteve. Hans-Ake Waltari era um perfeito idiota, porém a situação não era das mais propícias para começar uma briga. Tinham que agir depressa para consolidar as forças. Depois de passar por cinco interrogatórios em que negara absolutamente tudo, seria pouco esperto de sua parte sair clamando num celular, a duzentos metros da delegacia, que ele estava, afinal, por dentro do caso.

— Sei lá — disse. — Não dá bola para esses presuntos. Mas o Magge está encrencado. Vai ficar um bom tempo preso, e na ausência dele quem manda sou eu.

— Tudo bem. E quais são os próximos passos? — perguntou Waltari.

— Se vocês todos estão escondidos, quem está vigiando o local?

— O Danny Karlsson ficou por lá para controlar as posições. A polícia fez uma blitz no dia que vocês foram presos. Não acharam nada.

— O Danny K.! — exclamou Nieminen. — Mas o Danny K. é um novatozinho de merda, um fedelho ranhento!

— Fica frio. Ele está com o loirinho, sabe, o cara que você e o Magge às vezes levam com vocês.

Benny Nieminen gelou de repente. Deu uma rápida olhada ao redor e se afastou alguns metros da porta da tabacaria.

— O que foi que você disse? — perguntou em voz baixa.

— Sabe aquele loiro idiota que você e o Magge encontram de vez em quando? Ele apareceu pedindo ajuda para achar um esconderijo.

— Puta que pariu, Waltari, ele está sendo procurado no país inteiro pelo assassinato de um tira.

— E... por isso ele precisava de um esconderijo. O que a gente podia fazer? E um brother seu e do Magge.

Benny Nieminen fechou os olhos por uns dez segundos. Ronald Niedermann tinha passado muitos serviços e dado lucros enormes ao MC Svavelsjõ por vários anos. Mas não era um amigo, de jeito nenhum. Era um canalha perigoso e um psicopata, e ainda por cima um psicopata procurado a ferro e fogo pela polícia. Benny Nieminen não confiaria um segundo sequer em Ronald Niedermann. O melhor seria que ele fosse encontrado com uma bala na cabeça. No mínimo, daria uma acalmada no ânimo dos tiras.

— E o que vocês fizeram com ele?

— O Danny K. está cuidando disso. Levou ele até o Viktor.

Viktor Gõransson era o tesoureiro e contador do clube, morava para os lados de Jãrna. Gõransson tinha um diploma profissionalizante em economia e começara a carreira como consultor financeiro de um iugoslavo que reinava em alguns cabarés, até o bando todo ser preso por sonegação fiscal. Conheceu Magge Lundin na prisão de Kumla, no início dos anos 1990. Era o único do MC Svavelsjõ que sempre andava de terno e gravata.

— Waltari, você pega o caixa e vem se encontrar comigo em Sõdertãlje. Me procure em frente à estação ferroviária do subúrbio daqui a quarenta e cinco minutos.

— Tá bom, tá bom. Por que tanta pressa?

— Porque eu tenho que assumir o controle da situação o quanto antes.

Hans-Ake Waltari observava disfarçadamente Benny Nieminen, que mantinha um silêncio emburrado enquanto rodavam para Svavelsjõ. Ao contrário de Magge Lundin, Nieminen não era uma pessoa simpática. Era bonito e parecia doce, mas na verdade tinha pavio curto e sabia ser um bocado perigoso, principalmente depois de tomar umas e outras. No momento estava sóbrio, mas Waltari estava um pouco preocupado com a idéia de que Nieminen ia assumir o comando. Magge sempre soubera, de um jeito ou de outro, acalmar o jogo de Nieminen. Perguntava-se o que viria pela frente com Nieminen como presidente temporário do clube.

Danny K. não se encontrava no local. Nieminen tentou ligar duas vezes para o celular dele, mas não obteve resposta.

Foram para a casa de Nieminen, a um bom quilômetro do clube. Também lá a polícia realizara uma busca, mas não achara nada que servisse para a investigação sobre Nykvam. Sem nada do que ser acusado, Nieminen estava livre.

Tomou um banho e trocou de roupa enquanto Waltari esperava pacientemente na cozinha. Depois, caminharam cento e cinqüenta metros pelo mato atrás da casa de Nieminen e destaparam um baú superficialmente enterrado ali que continha seis armas, incluindo um AK-5, uma boa quantidade de munição e dois quilos de explosivos. Era o estoquezinho particular de Nieminen. Duas armas do baú eram Wanad P-83 polonesas. Pertenciam ao mesmo lote da pistola que Lisbeth Salander surrupiara de Nieminen em Stallarholmen.

Nieminen afastou Lisbeth Salander da mente. Aquele era um assunto delicado. Na cela da carceragem, em Estocolmo, repassara com freqüência a cena em que ele e Magge Lundin chegavam à casa de campo de Nils Bjurman e deparavam com Salander no pátio.

A seqüência dos acontecimentos fora absolutamente inesperada. Ele e Magge Lundin tinham ido lá pôr fogo na casa por ordem daquele maldito gigante loiro. E toparam com a piranha da Lisbeth Salander — sozinha, um metro e meio e um palito de magra. Nieminen se perguntava quanto ela pesava. De repente, as coisas tinham desandado numa orgia de violência para a qual nenhum dos dois estava preparado.

De um ponto de vista meramente técnico, ele conseguia entender a seqüência. Salander tinha esvaziado um cartucho de gás lacrimogêneo na cara de Magge Lundin. Magge deveria ter esperado por isso, mas não foi o caso. Ela então lhe desfechara dois pontapés, e para quebrar um maxilar não é preciso ter muita força muscular. Ela o pegara de surpresa. Dava para entender.

Mas aí ela atacara a ele, Benny Nieminen, o homem que os caras sarados pensavam duas vezes antes de provocar. Ela se movia com uma rapidez incrível. Ele tivera dificuldades para pegar a arma. Ela o esmagara com a humilhante facilidade de quem está simplesmente enxotando um mosquito com a mão. Tinha um cassetete elétrico. Tinha...

Quando acordou, não se lembrava de quase nada, Magge Lundin levara uma bala no pé e a polícia estava a caminho. Depois de alguma discussão entre a polícia de Stãngnás e a de Sõdertãlje, fora parar na cadeia de Sõdertãlje. E a pilantra ainda havia roubado a Harley Davidson do Magge Lundin. Tinha recortado, na jaqueta dele, o logo do MC Svavelsjõ — o mesmo símbolo que, nos botecos, fazia as pessoas se afastarem e conferia um prestígio que o sueco comum não podia entender. Ela o humilhara.

De repente, Benny Nieminen começou a ferver por dentro. Permanecera calado durante os interrogatórios. Jamais poderia contar o que tinha acontecido em Stallarholmen. Até então, Lisbeth Salander não significava absolutamente nada para ele. Era só um projetinho secundário de que Magge Lundin estava tratando — a pedido, mais uma vez, do maldito Niedermann.


Mas agora nutria por ela um ódio apaixonado que o surpreendia. Ele em geral era frio e lúcido, ao passo que agora só pensava em ter, qualquer dia, a oportunidade de se vingar e apagar a vergonha. Mas primeiro precisava pôr ordem no caos em que a Salander e o Niedermann, juntos, tinham lançado o MC Svavelsjõ.

Nieminen pegou duas pistolas polonesas que ainda estavam no baú, carregou-as e entregou uma para Waltari.

— Você tem algum plano?

— Vamos ter uma conversinha com o tal Niedermann. Ele não é dos nossos e nunca foi preso. Não sei como vai reagir se for pego, mas se ele abrir a boca pode acabar com a gente. Íamos todos em cana rapidinho.

— Quer dizer que a gente vai...

Nieminen já tinha decidido eliminar Niedermann, mas percebeu que não era hora de assustar Waltari.

— Não sei. Vamos ver qual é a dele. Se ele tiver um plano e puder se mandar logo para fora do país, a gente pode dar uma mãozinha. Mas enquanto ele estiver correndo o risco de ser preso, vai representar uma ameaça para a gente.

O sítio de Viktor Gõransson, próximo de Jãrna, estava às escuras quando, ao entardecer, Nieminen e Waltari entraram no pátio. Isso em si já parecia um mau sinal. Ficaram esperando algum tempo no carro.

— Talvez eles tenham saído — sugeriu Waltari.

— Tudo a ver. Eles podem ter ido até o boteco tomar um trago com o Niedermann — disse Nieminen, abrindo a porta do carro.

A porta da casa não estava trancada. Nieminen acendeu a luz. Passaram por todos os cômodos. Estava tudo limpo e arrumado, provavelmente graças à mulher com quem o Gõransson vivia.

Deram com Gõransson e sua companheira no porão, jogados na lavanderia.

Nieminen se inclinou e observou os cadáveres. Estendeu o dedo e encostou na mulher, cujo nome não lembrava. Estava gelada e rígida. Isso significava que podiam estar mortos havia umas vinte e quatro horas.

Nieminen não precisava do parecer de um médico-legista para saber como eles tinham morrido. O pescoço da mulher havia se partido quando a cabeça dela foi girada cento e oitenta graus. Vestia jeans e camiseta e não aparentava nenhum outro ferimento.

Já Viktor Gõransson estava apenas de cueca. Fora seriamente espancado e seu corpo estava coberto de ferimentos e hematomas. Os dois braços tinham sido quebrados e apontavam em várias direções, feito galhos tortos de pinheiro. Sofrerá maus-tratos prolongados que só podiam ser qualificados como tortura. Até onde Nieminen podia avaliar, fora enfim morto com um forte golpe na garganta. A laringe estava afundada no pescoço.

Benny Nieminen se levantou, subiu a escada do porão e saiu da casa. Waltari foi atrás dele. Nieminen atravessou o pátio e seguiu até a granja a cinqüenta metros dali. Soltou a tranca e abriu a porta.

Deparou com um Renault azul-escuro.

— Qual é o carro do Gõransson? — perguntou.

— Ele anda com um Saab.

Nieminen assentiu com a cabeça. Tirou as chaves do bolso e abriu uma porta no fundo da granja. Uma olhada rápida lhe informou que chegara tarde demais. Um armário pesado onde se guardavam as armas estava aberto de par em par.

Nieminen fez uma careta.

— Pouco mais de oitocentas mil coroas — disse.

— O quê?

— Pouco mais de oitocentas mil coroas é o que o MC Svavelsjõ tinha neste armário. A nossa grana.

Três pessoas sabiam onde o MC Svavelsjõ guardava o dinheiro a ser investido ou lavado. Viktor Gõransson, Magge Lundin e Benny Nieminen. Niedermann estava fugindo. Precisava de dinheiro vivo. Sabia que Gõransson era quem cuidava do financeiro.

Nieminen fechou a porta e saiu sem pressa da granja. Raciocinava febrilmente, tentando formar um panorama do desastre. Uma parte dos recursos do MC Svavelsjõ estava investida em títulos a que ele poderia ter acesso e outra parte poderia ser reconstituída com o auxílio de Magge Lundin. Mas uma boa parte dos investimentos só estava registrada na cabeça de Gõransson, a menos que ele tivesse passado instruções claras para Magge Lundin. Nieminen duvidava muitíssimo disso — Magge nunca fora um gênio da economia. Por cima, Nieminen avaliou que com a morte de Gõransson o MC Svavelsjõ podia ter perdido até sessenta por cento de seu capital. Um golpe tremendo. Era sobretudo dinheiro vivo de que precisavam para as despesas diárias.

— O que a gente faz agora? — perguntou Waltari.

— Agora a gente informa a polícia sobre o que aconteceu.

— Informar a polícia?

— Claro, porra. As minhas digitais estão por toda a casa. Só quero que eles encontrem o Gõransson e a mulher o quanto antes e o legista possa determinar que eles foram mortos quando eu ainda estava detido.

— Entendo.

— Melhor assim. Descubra onde está o Danny K. Quero falar com ele. Quer dizer, se ele ainda estiver vivo. Depois disso, vamos atrás do Ronald Niedermann. A ordem, para os nossos contatos em todos os clubes da Escandinávia, é abrir o olho. Quero a cabeça desse calhorda. Ele provavelmente está usando o Saab do Gõransson. Descubra o número da placa.

Quando Lisbeth Salander acordou, às duas da tarde de sábado, estava sendo examinada por um médico.

— Boa tarde — disse ele. — Meu nome é Sven Svantesson, sou médico. Está sentindo alguma dor?

— Sim — disse Lisbeth Salander.

— Daqui a pouco vamos te dar um analgésico. Mas primeiro eu queria olhar você.

Ele apertou e apalpou seu corpo machucado. Antes de ele terminar, Lisbeth já estava claramente irritada, mas sentia-se exausta demais para começar sua temporada no Sahlgrenska com uma discussão, por isso optou por ficar quieta.

— Como é que eu estou? — perguntou.

— Acho que você vai ficar bem — disse o médico, que fez algumas anotações antes de se levantar.

Não era uma resposta das mais brilhantes.

Depois que ele saiu, apareceu uma enfermeira que ajudou Lisbeth com a comadre. Em seguida, ela pôde voltar a dormir.


Alexander Zalachenko, aliás, Karl Axel Bodin, ingeria um almoço constituído de alimentos líquidos. Qualquer movimento, mesmo mínimo, dos músculos faciais lhe causava dores fortíssimas no maxilar e no osso malar, e mastigar não era sequer cogitável.

Porém, mesmo a dor sendo tremenda, ele sabia administrá-la. Zalachenko estava acostumado com a dor. Nada se comparava àquela que experimentara semanas e meses a fio quinze anos antes, depois de arder feito uma tocha dentro do carro junto a uma calçada da Lundagatan. O tratamento não passara de uma interminável maratona de dor.

Os médicos o julgavam fora de perigo, mas dada a gravidade de seus ferimentos e por causa de sua idade, permaneceria na uri por mais alguns dias.

Naquele sábado, ele recebeu quatro visitas.

Por volta das dez da manhã, o inspetor Ackerman tornou a aparecer. Dessa vez, tinha deixado aquela babaquinha da Sonja Modig em casa e vinha acompanhado do inspetor Jerker Holmberg, claramente mais simpático. Fizeram mais ou menos as mesmas perguntas que tinham feito na noite anterior sobre Ronald Niedermann. Ele estava com a sua versão bem ensaiada e não cometeu nenhum erro. Quando começaram a bombardeá-lo com perguntas sobre sua eventual participação no tráfico de mulheres e em outras atividades criminosas, ele mais uma vez negou saber qualquer coisa sobre o assunto. Vivia da sua pensão de invalidez e não sabia do que estavam falando. Jogou tudo nas costas de Ronald Niedermann e se ofereceu para colaborar no que fosse possível para localizar o assassino do policial.

Infelizmente, na prática ele não tinha muito como ajudar. Desconhecia os círculos que Niedermann freqüentava e não fazia idéia de a quem ele poderia pedir refúgio.

Por volta das onze horas, recebeu a breve visita de um representante do Ministério Público, que lhe comunicou formalmente que ele era suspeito de cumplicidade em golpes e ferimentos agravados, e mesmo tentativa de homicídio, contra Lisbeth Salander. Zalachenko respondeu pacientemente, explicando que a vítima era ele e que, na verdade, Lisbeth Salander é quem tentara matá-lo. O sujeito do Ministério Público lhe ofereceu ajuda jurídica na forma de um advogado de ofício. Zalachenko disse que ia pensar.


Isso ele não tinha a menor intenção de fazer. Já possuía um advogado e sua primeira medida, naquela manhã, fora ligar para ele pedindo que viesse o quanto antes. De modo que Martin Thomasson foi seu terceiro visitante. Entrou, com um ar descontraído, passou a mão na cabeleira loira, ajeitou os óculos e apertou a mão de seu cliente. Era um falso magro e um verdadeiro sedutor. E certo que pairava sobre ele a suspeita de ter pertencido à máfia iugoslava, caso que ainda estava sendo investigado, mas também tinha a reputação de ganhar seus processos.

Um contato de negócios encaminhara Zalachenko para Thomasson cinco anos antes, quando precisara redistribuir um capital relacionado com uma pequena empresa de investimentos que ele possuía no Liechtenstein. Não eram quantias fabulosas, mas Thomasson atuara com mãos de mestre e Zalachenko deixara de pagar as taxas obrigatórias. Depois disso, recorrera a ele em outras ocasiões. Thomasson compreendia que o dinheiro provinha de uma atividade criminosa, o que não parecia perturbá-lo. Por fim, Zalachenko decidira fundir todas as suas atividades numa nova empresa, pertencente a ele próprio e a Niedermann. Tinha procurado Thomasson e o convidara a participar como terceiro sócio oculto, encarregado de tudo que se relacionasse ao financeiro. Thomasson aceitara sem pensar duas vezes.

— E então, senhor Bodin, isso tudo não está me parecendo lá muito agradável.

— Fui vítima de golpes e ferimentos agravados e tentativa de assassinato — disse Zalachenko.

— E o que estou vendo. Uma tal Lisbeth Salander, se entendi direito. Zalachenko baixou a voz.

— O nosso parceiro Niedermann se meteu numa encrenca daquelas, como você deve ter percebido.

— Foi o que entendi.

— A polícia suspeita que eu esteja envolvido nessa história...

— O que obviamente não é o caso. Você é uma vítima, e é importante plantar depressa essa idéia nos meios de comunicação. A senhorita Salander já teve um bocado de publicidade negativa... Vou cuidar disso.

— Obrigado.

— Mas vou avisando que não sou advogado criminal. Você vai precisar de um especialista. Vou procurar alguém em quem você possa confiar.


A quarta visita chegou às onze da noite e conseguiu passar pela barragem das enfermeiras exibindo sua identidade e especificando que vinha por causa de um assunto urgente. Indicaram-lhe o quarto de Zalachenko. O paciente ainda não estava dormindo, achava-se em plena reflexão.

— Meu nome é Jonas Sandberg — cumprimentou o visitante, estendendo uma mão que Zalachenko optou por ignorar.

O homem tinha cerca de trinta e cinco anos. Tinha cabelo cor de areia e vestia um jeans descontraído, camisa xadrez e jaqueta de couro. Zalachenko contemplou-o em silêncio por uns quinze segundos.

— Eu estava justamente me perguntando quando é que um de vocês ia aparecer.

— Eu trabalho na Sapo — disse Jonas Sandberg, mostrando as credenciais.

— É claro que não — disse Zalachenko.

— Como?

— Você talvez seja funcionário da Sapo, mas não trabalha para eles. Jonas Sandberg ficou um momento calado, olhando ao redor. Pegou a cadeira destinada aos visitantes.

— Se eu vim assim tão tarde, foi para não chamar atenção. Andamos discutindo sobre uma maneira de ajudá-lo e precisamos combinar mais ou menos o que vai acontecer. Estou aqui simplesmente para escutar a sua versão e ver quais são as suas intenções, para que a gente possa montar uma estratégia conjunta.

— E qual seria essa estratégia, a seu ver?

Jonas Sandberg contemplou pensativamente o homem deitado na cama. Por fim, afastou as mãos.

— Senhor Zalachenko... Receio que já esteja em curso um processo envolvendo danos difíceis de avaliar. Discutimos a situação. O túmulo encontrado em Gosseberga e os três tiros que a Salander levou são fatos difíceis de minimizar. Mas nem tudo está perdido. O conflito entre o senhor e sua filha pode explicar por que tem tanto medo dela e por que tomou medidas tão drásticas. Receio, porém, que isso signifique alguns meses de prisão.

Zalachenko se sentiu alegre de repente e teria dado uma boa gargalhada se isso não fosse impossível nas suas condições. O resultado foi apenas um leve tremor nos lábios. Qualquer coisa, além disso, seria dolorida demais.

— Então essa é nossa estratégia conjunta?

— Senhor Zalachenko. O senhor conhece o conceito de controle dos danos. É indispensável que encontremos uma via comum. Vamos fazer o possível para ajudá-lo, fornecendo um advogado e a assistência necessária, mas vamos precisar da sua colaboração e de algumas garantias.

— Vou lhe dar uma garantia. Vocês vão dar um jeito de sumir com tudo isso. — Ele fez um gesto com a mão. — O Niedermann vai servir de bode expiatório, e garanto que ele nunca será encontrado.

— Existem provas formais que...

—- Deixe as provas formais para lá. O importante é como a investigação vai ser conduzida e como os fatos vão ser apresentados. A minha garantia é a seguinte... se vocês não usarem sua varinha mágica para dar um sumiço em tudo isto, eu vou convocar a imprensa para uma entrevista coletiva. Eu conheço nomes, datas, fatos. Não me diga que eu preciso lembrar você de quem eu sou...

— O senhor não está entendendo...

— Estou entendendo muito bem. Você não passa de um boy. Transmita para o seu chefe o que acabei de dizer. Ele vai entender. Diga que eu tenho cópias de... tudo. Vou detonar vocês.

— Temos que tentar entrar num acordo.

— A conversa está encerrada. E agora dê o fora. E fale para eles me mandarem um homem da próxima vez, um adulto com quem eu possa conversar.

Zalachenko virou a cabeça de maneira a interromper o contato visual com o visitante. Jonas Sandberg contemplou-o um breve instante. Então deu de ombros e se levantou. Já estava chegando à porta quando ouviu novamente a voz de Zalachenko.

— Outra coisa. Sandberg se virou.

— Salander.

— O que tem ela?

— Ela precisa sumir.

— O que o senhor quer dizer?

Por um momento, Sandberg pareceu tão preocupado que Zalachenko foi obrigado a sorrir, apesar da dor que lhe transpassou o maxilar.

— Vocês são todos uns bundas-moles e eu sei que têm escrúpulos demais para matá-la. Sei também que vocês não têm condições para isso. Quem iria cuidar disso... você? Mas ela precisa sumir. O testemunho dela tem que ser declarado inaceitável. Ela tem que voltar para uma instituição e ali ficar o resto da vida.

Lisbeth Salander escutou os passos no corredor em frente a seu quarto. Não conseguira distinguir o nome Jonas Sandberg, e era a primeira vez que escutava aqueles passos.

A porta de seu quarto tinha ficado aberta desde o final da tarde, já que as enfermeiras vinham vê-la mais ou menos de dez em dez minutos. Tinha escutado o homem chegar e explicar a uma enfermeira, bem perto de sua porta, que precisava de qualquer forma ver o Sr. Karl Axel Bodin para tratar de um assunto urgente. Imaginou que ele estivesse apresentando suas credenciais, mas não foi dita nenhuma palavra que pudesse fornecer uma pista sobre seu nome ou a natureza dessas credenciais.

A enfermeira pediu que ele esperasse enquanto ia verificar se o Sr. Karl Axel Bodin estava acordado. Lisbeth Salander concluiu então que as credenciais deviam ser bem convincentes.

Percebeu que a enfermeira seguiu no corredor pela esquerda e deu dezessete passos até chegar a seu destino, e que o visitante percorreu a mesma distância com apenas catorze passos. O que dava uma média de 15,5 passos. Ela calculou o comprimento dos passos em sessenta centímetros, o que, multiplicado por 15,5, indicava que Zalachenko estava num quarto situado a novecentos e trinta centímetros do lado esquerdo do corredor. Bem, digamos dez metros. Calculou que seu quarto tinha cerca de cinco metros de largura, o que queria dizer que Zalachenko se encontrava a duas portas dali.

De acordo com os números verdes do relógio digital no criado-mundo, a visita durou exatos nove minutos.

Zalachenko permaneceu um bom tempo acordado depois que Jonas Sandberg o deixou. Imaginou que aquele não era seu verdadeiro nome, a experiência lhe ensinara que os espiões amadores suecos tinham fixação em nomes de fachada mesmo que não fossem absolutamente necessários. De todo modo, aquele Jonas (ou qualquer que fosse seu nome) era um primeiro sinal de que a Seção estava ciente de sua situação. Com aquele estardalhaço da imprensa, seria difícil não estar. Mas sua visita também confirmava que sua situação inspirava cuidados. Como não poderia deixar de ser.

Ele pesou as vantagens e as desvantagens, alinhou possibilidades e rejeitou alternativas. Já tinha entendido e aceitado que as coisas haviam desandado pra valer. Num mundo ideal, àquela altura ele estaria em casa, em Gosseberga, Ronald Niedermann estaria a salvo no exterior e Lisbeth Salander enterrada a seis palmos debaixo da terra. Mesmo que, de um ponto de vista racional, compreendesse o que tinha acontecido, tinha a maior dificuldade em entender como ela conseguira sair de dentro da cova, voltar para a granja e destruir a existência dele com duas machadadas. Ela realmente dispunha de recursos incríveis.

Em compensação, percebia muito bem o que acontecera com Ronald Niedermann e por que ele fugira para se salvar em vez de acabar de uma vez por todas com Salander. Sabia que Niedermann tinha algum problema na cabeça, que ele tinha visões, que via fantasmas. Mais de uma vez tivera de intervir ao ver Niedermann se comportando de maneira irracional e se encolhendo de pavor.

Aquilo o preocupava. Considerando que Ronald Niedermann ainda não havia sido detido, Zalachenko tinha certeza de que ele funcionara normalmente nos dias seguintes à fuga de Gosseberga. Talvez tentasse ir até Tallinn, onde obteria ajuda com algum contato do império criminoso de Zalachenko. Sua preocupação é que não dava para prever em que momento Niedermann ficaria paralisado. Se acontecesse durante a fuga, ele cometeria algum erro, e se cometesse algum erro acabaria sendo preso. E como não iria se entregar tão fácil, policiais iriam morrer, e muito provavelmente ele também.

Essa idéia afligia Zalachenko. Não queria que Niedermann morresse. Niedermann era seu filho. Por outro lado, por mais lamentável que fosse, a verdade é que Niedermann não podia ser apanhado vivo. Niedermann nunca fora detido pela polícia e Zalachenko não conseguia imaginar qual seria sua reação num interrogatório. Desconfiava, infelizmente, que Niedermann não saberia ficar calado. Seria melhor, portanto, que fosse morto ao ser capturado. Zalachenko prantearia o filho, mas a outra alternativa seria pior. Significaria ele próprio passar o resto da vida na prisão.

Entretanto, quarenta e oito horas já haviam transcorrido desde a fuga de Niedermann e ele ainda não tinha sido pego. Era um bom sinal. Mostrava que Niedermann ainda estava em movimento, e um Niedermann em movimento era imbatível.

A longo prazo, esboçava-se outra preocupação. Ele se perguntava como Niedermann iria se virar sozinho, sem o pai a seu lado para conduzi-lo na vida. Tinha observado, naqueles anos todos, que quando deixava de dar instruções ou soltava as rédeas para que Niedermann tomasse suas próprias iniciativas, este tendia a cair num estado de passividade e apatia.

Mais uma vez Zalachenko constatou como essas particularidades de seu filho representavam uma verdadeira calamidade. Ronald Niedermann era sem dúvida uma pessoa muito inteligente, dotada de qualidades físicas que o transformavam num homem temível e temido. Além disso, era um executor excelente, que sabia manter o sangue-frio. Seu único problema era não ter instinto de liderança. Precisava sempre de alguém que lhe dissesse o que devia ser feito.

Mas tudo isso estava, no momento, fora de seu controle. Ele, Zalachenko, é que era a questão. Sua situação era delicada, talvez mais delicada do que nunca.

A visita do Dr. Thomasson, mais cedo naquele dia, não lhe soara muito tranqüilizadora. Thomasson era, e continuava sendo, um especialista em direito empresarial, e sua eficiência nessa área não lhe seria de grande ajuda no atual contexto.

Depois, houvera a visita de Jonas Sandberg. Sandberg representava uma tábua de salvação muito mais sólida. Mas uma tábua que também podia se revelar uma armadilha. Ele teria de jogar suas cartas com habilidade e retomar o controle da situação. O controle era fundamental.

E, afinal de contas, ele podia confiar em seus próprios recursos. Por enquanto, precisava de cuidados médicos. Mas dali a alguns dias, uma semana quem sabe, teria recobrado suas forças. Se a situação chegasse a um extremo, só poderia contar consigo mesmo. O que significava sumir, sumir nas barbas de todos aqueles policiais que o cercavam. Iria precisar de um esconderijo, de um passaporte e de dinheiro vivo. Thomasson podia conseguir tudo isso. Mas, primeiro, precisava se recuperar o suficiente para ter condições de fugir.

A uma hora da manhã, a enfermeira veio ver como ele estava. Fingiu que estava dormindo. Quando ela tornou a fechar a porta, endireitou-se com esforço na cama e jogou as pernas para fora. Ficou um bom tempo sentado sem se mexer, testando seu equilíbrio. Então, devagar, pôs o pé esquerdo no chão. Por sorte, o machado atingira a perna direita, que já era defeituosa. Esticou o braço para apanhar a prótese, no armário junto à cama, e prendeu-a no coto. Em seguida, levantou-se. Jogou o peso para a perna esquerda intacta e tentou apoiar a direita no chão. Uma dor fulgurante o transpassou.

Cerrou os dentes e deu um passo. Precisava de suas bengalas, mas tinha certeza de que o hospital não tardaria a lhe fornecer uma. Apoiou-se na parede e foi manquejando até a porta. Levou vários minutos, sendo obrigado a parar depois de cada passo para dominar a dor.

Apoiou-se sobre a perna sã, abriu a porta bem de leve e verificou o corredor. Não viu ninguém, e pôs a cabeça um pouquinho mais para fora. Escutou vozes abafadas à esquerda e virou a cabeça. A sala de plantão das enfermeiras da noite ficava a uns vinte metros dali, do outro lado do corredor.

Ele virou a cabeça para a direita e avistou a saída, no fim do corredor.

Tinha se informado naquele dia sobre o estado de Lisbeth Salander. Era, apesar de tudo, pai dela. As enfermeiras tinham sido visivelmente instruídas a não falar sobre os pacientes. Uma delas só dissera, em tom neutro, que seu estado era estável. Mas, como que por reflexo, lançara uma olhada rápida para o lado esquerdo do corredor.

Em algum dos quartos entre o seu próprio e a sala das enfermeiras estava Lisbeth Salander.

Fechou a porta devagar, voltou manquejando para a cama e retirou a prótese. Estava encharcado de suor quando finalmente conseguiu se enfiar debaixo da coberta.

O inspetor Jerker Holmberg regressou a Estocolmo no domingo por volta do meio-dia. Estava cansado, com fome e sentia-se esgotado. Pegou o metrô, desceu na estação da prefeitura e seguiu a pé até a chefatura de polícia na Bergsgatan, onde subiu até a sala do inspetor Jan Bublanski. Sonja Modig e Curt Bolinder já estavam lá. Bublanski os convocara para aquela reunião em pleno domingo porque sabia que o chefe do inquérito preliminar, Richard Ekstrõm, estava em um compromisso fora.

— Obrigado por terem vindo — disse Bublanski. — Acho que está mais do que na hora de conversarmos calmamente entre nós para tentarmos lançar uma luz nessa confusão toda. Jerker, alguma novidade?

— Nada que eu já não tenha lhe falado por telefone. O Zalachenko não está cedendo um só milímetro. Ele se diz totalmente inocente e não pode nos ajudar em nada. Vejam só...

— Sim?

— Sonja, você estava certa. É um dos indivíduos mais sinistros que já conheci. Parece meio idiota dizer isso. Sei que a gente não devia raciocinar desse jeito na polícia, mas ele tem uma coisa assustadora por baixo daquele verniz calculista.

— Certo — disse Bublanski, pigarreando. — O que a gente tem? Sonja? Ela exibiu um sorrisinho.

— Os investigadores particulares venceram este round. Não encontro o Zalachenko em nenhum cadastro oficial, ao passo que um tal de Karl Axel Bodin nasceu em 1939 em Uddevalla. Os pais dele eram Marianne e Georg Bodin. Eles existiram, mas morreram num acidente em 1946. Karl Axel Bodin foi criado por um tio na Noruega. Portanto não temos nada sobre ele até os anos 1970, quando voltou para a Suécia. A versão de Mikael Blomkvist, segundo a qual ele seria um ex-agente russo do GRO, parece impossível de checar, mas tendo a acreditar que ele está certo.

— E isso implicaria o quê?

— Obviamente, ele ganhou uma identidade falsa. E deve ter sido com o consentimento das autoridades.

— A Sapo, portanto?

— É o que o Blomkvist afirma. Mas não sei ao certo como foi. Supõe--se que sua certidão de nascimento e mais um monte de documentos foram falsificados e lançados nos cadastros suecos oficiais. Não me atrevo a opinar sobre o aspecto legal dessa história. Provavelmente vai depender de quem tomou a decisão. Mas só seria legal se a decisão tivesse sido quase em nível de primeiro escalão.


Instalou-se um silêncio na sala de Bublanski, enquanto os quatro inspetores criminais refletiam sobre todas as implicações daquilo.

— Humm — fez Curt Bolinder. — Isso poderia provocar nada menos que uma crise constitucional. Nos Estados Unidos, membros do governo podem ser convocados para um interrogatório diante de um tribunal comum. Na Suécia, têm que passar pela Comissão Constitucional.

— Agora, o que a gente pode fazer é perguntar para o chefe — disse Jerker Holmberg.

— Perguntar para o chefe? — estranhou Bublanski.

— Thorbjõm Fãlldin. Era o primeiro-ministro na época.

— É isso aí. A gente aparece na casa dele, não se sabe onde, e pergunta ao ex-primeiro-ministro se ele falsificou documentos de identidade para um espião russo dissidente. Não me parece uma boa idéia.

— O Fãlldin mora em As, na comuna de Hárnõsand. Eu nasci naqueles lados, a poucos quilômetros da casa dele. Meu pai é centrista e conhece o Fãlldin muito bem. Cruzei com ele várias vezes quando criança, e quando adulto também. E um sujeito bem descontraído.

Três inspetores criminais lançaram a Jerker Holmberg um olhar atônito.

— Você conhece o. Fãlldin — disse Bublanski, hesitante. Holmberg assentiu com a cabeça. Bublanski fez um muxoxo.

— Realmente... — disse Holmberg. — Daria para resolver um monte de problemas se a gente conseguisse do ex-primeiro-ministro um relatório que ajudasse a nos situar nesta encrenca toda. Eu poderia ir até lá conversar com ele. O pior que pode acontecer é ele não falar. Mas, se falar, talvez nos poupe um bocado de tempo.

Bublanski refletiu sobre a sugestão. Então balançou a cabeça. Com o rabo dos olhos, viu tanto Sonja Modig como Curt Bolinder meneando a deles, pensativos.

— Holmberg... o que você sugere é legal, mas acho que vamos deixar para mais tarde. Vamos voltar ao caso. Sonja?

— Segundo o Blomkvist, o Zalachenko chegou aqui em 1976. Até onde eu sei, só existe uma pessoa que pode ter passado essa informação para ele.

— Gunnar Bjõrck — disse Curt Bolinder.

— O que foi que o Bjõrck disse para a gente? — perguntou Jerker Holmberg.

— Nada de mais. Ele alegou sigilo profissional e disse que não pode comentar o assunto sem autorização dos seus superiores.

— E quem são os superiores dele?

— Ele se recusa a dizer.

— O que vai acontecer com ele então?

— Eu o indiciei por remuneração de serviços sexuais. Graças ao Dag Svensson, dispomos de uma excelente documentação. Isso tirou o Ekstrõm do sério, mas como eu tinha feito um relatório ele pode se complicar se abandonar a investigação — disse Curt Bolinder.

— Ahã. Infração à lei sobre remuneração de serviços sexuais. Isso dá o quê, imagino que uma multa?

— Provavelmente. Mas com essa ele fica no nosso sistema e pode ser chamado outra vez para um interrogatório.

— Mas aí já estamos invadindo a praia da Sapo. Isso pode causar turbulências.

— O problema é que nada do que está acontecendo hoje teria acontecido se a Sapo não estivesse envolvida, de um jeito ou de outro. E possível que o Zalachenko seja de fato um espião russo que pendurou as chuteiras e pediu asilo político. Também é possível que ele tenha trabalhado para a Sapo como agente, ou fonte, não sei bem como dizer, e que haja um bom motivo para terem fornecido a ele uma identidade falsa e o anonimato. Mas existem três poréns. Primeiro, a investigação realizada em 1991 que levou à internação da Lisbeth Salander é ilegal. Segundo, a atividade do Zalachenko a partir dessa data não tem absolutamente nada a ver com segurança nacional. O Zalachenko é um gângster muito do ordinário e provavelmente cúmplice de uma série de homicídios e outros crimes. Terceiro, não resta a menor dúvida de que atiraram na Lisbeth Salander e a enterraram nas terras do Zalachenko em Gosseberga.

— Falando nisso, eu gostaria muito de ler esse famoso relatório — disse Jerker Holmberg.

A expressão de Bublanski se turvou.

— O Ekstrõm pôs as mãos nele na sexta-feira. Quando pedi de volta, ele disse que ia fazer uma cópia, mas nada. Em vez disso, me ligou dizendo que tinha falado com o Ministério Público e que havia um problema. Segundo o procurador-geral da nação, como é um dossiê considerado segredo de segurança nacional, o relatório não pode circular ou ser copiado. O procurador exigiu que lhe fossem entregues todas as cópias até que o caso seja esclarecido. E, portanto, a Sonja foi obrigada a devolver a cópia que ela tinha.

— Quer dizer que não temos mais esse relatório?

— Não.

— Droga — disse Holmberg. — Isso não é um bom sinal.

— Não é mesmo — disse Bublanski. — Mas significa, principalmente, que alguém está agindo contra nós, e o que é pior: agindo rápido e com eficiência. Foi essa investigação que tinha nos posto na pista certa.

— Então vamos precisar descobrir quem está agindo contra nós — disse Holmberg.

— Outra coisa — disse Sonja Modig. — Também tem o Peter Teleborian. Ele colaborou com a nossa investigação apresentando um perfil da Lisbeth Salander.

— Exato — disse. Bublanski com uma voz ainda mais sombria. — E o que ele diz?

— Que estava muito preocupado com a segurança dela, que só queria o bem dela. Mas depois desse blá-blá-blá, acrescentou que ela era muito perigosa e capaz de resistir. E nós baseamos boa parte do nosso raciocínio no que ele falou.

— E ele também deixou o Hans Faste um tanto assustado — disse Holmberg. — Por sinal, alguém tem notícias dele?

— Está de férias — respondeu Bublanski secamente. — A questão é o que a gente vai fazer agora.

Passaram as duas horas seguintes discutindo diferentes possibilidades. A única decisão prática que resultou disso foi que Sonja Modig retornaria a Góteborg no dia seguinte para ouvir Lisbeth Salander, ver se ela tinha algo a dizer. Quando finalmente encerraram a reunião, Sonja Modig e Curt Bolinder desceram juntos até a garagem.

— Estava pensando numa coisa... — Curt Bolinder se interrompeu.

— Sim? — perguntou Sonja Modig.

— É que, quando a gente consultou o Teleborian, você foi a única da equipe que fez algumas perguntas e até discordou dele.

— Foi.

— Foi... pois é. Boa intuição — disse ele.

Curt Bolinder não tinha fama de jogar confete, e de fato era a primeira vez que ele dizia algo positivo ou estimulante para Sonja Modig. Então saiu, deixando-a surpresa ao lado do carro...


Загрузка...