14. QUARTA-FEIRA 18 DE MAIO


Rosa Figuerola se levantou às cinco da manhã na quarta-feira e fez um rápido jogging antes de tomar um banho e vestir uma calça jeans preta, uma regata branca e uma jaqueta leve de linho cinza. Preparou sanduíches e encheu uma garrafa térmica de café. Também vestiu o cinturão e tirou sua Sig Sauer do armário de armas. Pouco depois das seis horas, saiu no seu Saab 9-5 branco e foi até a Vittangigatan em Vâllingby.

Gõran Mârtensson morava no segundo e último andar de um prediozinho do subúrbio. Na terça-feira, ela levantara tudo o que conseguira sobre ele nos arquivos públicos. Era solteiro, o que não queria dizer que não morasse com alguém. Não havia nada sobre ele na Receita, ele não possuía nenhuma fortuna e seu nível de vida não parecia extravagante. Raramente faltava por motivo de saúde.

O único aspecto que poderia parecer digno de atenção era ele ter licença para dezesseis armas de fogo, sendo três espingardas de caça e pistolas de diferentes tipos. Ele ter porte de armas obviamente não constituía um crime, mas Rosa Figuerola nutria uma bem fundada desconfiança por pessoas que possuíam grande quantidade de armas.

O Volvo com a placa com as iniciais KAB estava num estacionamento a cerca de quarenta metros da praça em que Rosa Figuerola parou o carro. Ela serviu de meio copo de café preto e comeu um sanduíche de queijo e salada Depois descascou uma laranja e chupou demoradamente seus gomos.

Durante a visita matinal, Lisbeth Salander não estava em boa forma, sentia uma dor de cabeça terrível. Pediu um Alvedon, que lhe deram sem discutir.

Uma hora depois, a dor de cabeça tinha piorado. Tocou a campainha para chamar a enfermeira e pediu mais um Alvedon, que não fez efeito. Lá pelo meio-dia, Lisbeth estava com tanta dor de cabeça que a enfermeira chamou a Dra. Endrin, a qual, após um rápido exame, prescreveu analgésicos potentes.

Lisbeth deixou os comprimidos debaixo da língua e cuspiu-os fora assim que ficou sozinha.

Por volta das duas da tarde, começou a vomitar. Os vômitos recomeçaram por volta das três horas.

Por volta das quatro horas, chegou o Dr. Anders Jonasson, pouco antes de a Dra. Helena Endrin ir embora. Conversaram rapidamente.

— Ela está com náuseas e uma dor de cabeça muito forte. Receitei Dexofen. Não entendo o que está acontecendo... Ela vinha evoluindo tão bem nas últimas semanas. Pode ser algum tipo de gripe...

— Ela está com febre? — perguntou o Dr. Jonasson.

— Não, estava com 37,2 há uma hora. A pressão está normal.

— Certo. Vou ficar de olho nela esta noite.

— O problema é que estou saindo de férias por três semanas — disse Endrin. — Você ou o Svantesson é que vão ter que cuidar dela. Mas o Svantesson não acompanhou o caso direito...

— Certo. Passo a ser o médico responsável por ela enquanto você estiver fora.

— Maravilha. Se houver alguma crise e você precisar de ajuda, não hesite em me ligar.

Foram juntos visitar Lisbeth. Ela estava na cama, com o cobertor puxado até o nariz, e parecia péssima. Anders Jonasson pôs a mão em sua testa e verificou que estava úmida.


— Acho que vou ter que dar uma examinada nela.

Ele agradeceu à Dra. Endrin e deu-lhe boa-noite.

Por volta das cinco da tarde, o Dr. Jonasson notou que a temperatura de Lisbeth subira rapidamente para 37,8 graus, o que foi registrado na ficha. Ele foi vê-la três vezes no início da noite e anotou na ficha que a temperatura se mantinha estável em torno dos 38 graus — muito alta para ser considerada normal e muito baixa para constituir um problema de fato. Por volta das oito da noite, pediu uma tomografia do crânio.

Ao receber as tomografias, examinou-as minuciosamente. Não detectou nada digno de nota, mas constatou que havia uma área mais escura logo ao redor do orifício de entrada da bala. Registrou na ficha uma observação cuidadosamente formulada e inconclusiva:

"As tomografias não permitem nenhuma conclusão definitiva, mas o estado da paciente decaiu sensivelmente durante o dia. Não é de se excluir o surgimento de uma pequena hemorragia, não visível nas tomografias. Nos próximos dias, a paciente deverá permanecer em repouso e sob estrita vigilância."

Erika Berger encontrou vinte e três e-mails ao chegar ao SMP na quarta-feira às seis e meia da manhã.

Um deles tinha como remetente o endereço redaktion-sr@sverigesradio.com

O texto era breve. Apenas duas palavras.

[PUTA NOJENTA]

Ela suspirou e estava prestes a apagar o e-mail quando, no último instante, mudou de idéia. Repassou todos os e-mails recebidos e abriu aquele enviado dois dias antes. O remetente era centralred@smpost.se. Humm. Dois e-mails com as palavras "puta nojenta" enviados por falsos remetentes da mídia. Criou uma pasta chamada [PIRADODAMÍDIA] e nela guardou as duas mensagens. Em seguida, passou à pauta das atualidades daquela manhã.

Gõran Mârtensson saiu de casa às 7h40. Pegou seu Volvo, tomou a direção do centro da cidade e entrou pela Stora Essingen e Grõndal rumo a Ardermalm. Foi pela Hornsgatan e chegou à Bellmansgatan via Brãnnkyrka. n Dobrou à esquerda na Tavastgatan, na altura do pub Bishop's Arms, e estacionou na esquina.

Rosa Figuerola teve uma sorte enorme. No exato momento em que chegou na frente do Bishop's Arms, uma caminhonete saiu, deixando-lhe uma vaga para que ela estacionasse na Bellmansgatan. Ficou com o capo exatamente na esquina da Bellmansgatan com a Tavastgatan. Da elevação onde estava, defronte ao Bishop's Arms, tinha uma visão perfeita. Enxergava um pedacinho do vidro traseiro do Volvo de Mârtensson na Tavastgatan. Logo em frente, na ladeira íngreme que descia em direção a Pryssgrãnd, ficava o número 1 da Bellmansgatan. Ela enxergava a lateral da fachada, de modo que não podia ver propriamente a porta de entrada, mas conseguia ver quando alguém saía. Não tinha a menor dúvida de que aquele endereço era o motivo da visita de Mârtensson ao bairro. Era a entrada do prédio de Mikael Blomkvist.

Rosa Figuerola se deu conta de que era um pesadelo vigiar a área em torno do número 1 da Bellmansgatan. Os únicos pontos de onde se podia observar diretamente a porta, na baixada da Bellmansgatan, eram a calçada e a passarela no alto da rua, no nível dos elevadores públicos e da Casa Laurin. Não havia mais lugar para estacionar lá em cima, e um observador na passarela se destacaria tão claramente como uma andorinha num antigo fio de telefone. O lugar em que Rosa Figuerola estacionara era a princípio o único em que ela podia ficar dentro do carro e ter condições de observar toda a área. Mas era também um lugar ruim, pois qualquer pessoa mais atenta poderia avistá-la facilmente dentro do carro.

Ela virou a cabeça. Não queria sair do carro e começar a zanzar pelo bairro; sabia que chamava facilmente a atenção. Para seu trabalho de tira, seu físico também tinha suas desvantagens.

Mikael Blomkvist saiu de seu prédio às nove e dez. Rosa Figuerola anotou a hora. Ela percebeu seu olhar percorrendo a passarela que transpunha o alto da Bellmansgatan. Ele começou a subir a ladeira vindo diretamente em sua direção.

Rosa Figuerola pegou no porta-luvas um mapa de Estocolmo e o deixou aberto no banco do passageiro. Depois abriu um caderno de anotações, tirou Uma caneta do bolso, pegou o celular e fingiu estar conversando. Mantinha a cabeça baixa de modo a que a mão que segurava o telefone escondesse parte do rosto.

Viu Mikael Blomkvist dando uma rápida olhada na Tavastgatan. Ele sabia que estava sendo vigiado e devia ter visto o carro de Mârtensson, mas continuou andando sem demonstrar nenhum interesse pelo carro. Agiu calma e friamente. Outros teriam rebentado a porta e dado uma surra no motorista.

Logo em seguida, ele passou pelo carro. Rosa Figuerola estava ocupadíssima procurando um endereço no mapa de Estocolmo enquanto falava ao celular, mas sentiu que Mikael olhou para ela ao passar. Desconfia de tudo que vê. Viu suas costas no retrovisor do passageiro enquanto ele seguia em direção à Hornsgatan. Já o tinha visto algumas vezes na tevê, mas era a primeira vez que o via pessoalmente. Usava jeans, camiseta e um paletó cinza. Estava com uma sacola pendurada no ombro e andava com grandes passadas indolentes. Até que era um cara bonito.

Gõran Mârtensson surgiu na esquina do Bishop's Arms e acompanhou Mikael Blomkvist com o olhar. Estava com uma sacola esportiva um tanto volumosa no ombro e concluía uma ligação no celular. Rosa Figuerola imaginou que ele fosse seguir Mikael Blomkvist, mas para sua surpresa ele atravessou a rua bem na frente de seu carro, dobrou à esquerda e desceu a ladeira em direção ao prédio de Mikael Blomkvist. No instante seguinte, um homem de macacão de trabalho passou pelo carro de Rosa Figuerola e foi andando atrás de Mârtensson. Ora, ora, de onde você surgiu?

Pararam em frente à porta do prédio de Mikael Blomkvist. Mârtensson teclou o código e os dois sumiram na escadaria. Eles estão querendo examinar o apartamento. A festa dos amadores. Esse aí acha que pode tudo.

Em seguida, Rosa Figuerola levantou os olhos para o retrovisor e teve um sobressalto ao ver Mikael Blomkvist. Ele tinha voltado e estava uns dez metros atrás dela, próximo o suficiente para avistar Mârtensson e seu assistente ali da parte mais elevada da rua que dominava o número 1. Ela observou seu rosto. Ele não estava olhando para ela. Em compensação, viu quando Gõran Mârtensson sumiu pela porta. Um instante depois, Blomkvist deu meia-volta e seguiu em direção à Hornsgatan.

Rosa Figuerola permaneceu imóvel por uns trinta segundos. Ele sab& que está sendo seguido. Está observando o que acontece a sua volta. Mas por não faz nada? Uma pessoa normal já teria mexido céus e terras... ele tem algum plano.

Mikael Blomkvist desligou e contemplou, pensativo, o bloco de notas sobre sua mesa. O Departamento de Trânsito acabava de lhe informar que o carro que ele notara no alto da Bellmansgatan pertencia a uma tal de Rosa Fieuerola, nascida em 1969 e com endereço na Pontonjãrgatan em Kungsholmen. Como ele vira uma mulher dentro do carro, Mikael supôs que se tratava da própria Rosa Figuerola.

Ela estava falando ao celular e consultando um mapa da cidade, aberto no banco do passageiro. Mikael não tinha nenhum motivo para imaginar que ela tivesse algo a ver com o bando Zalachenko, mas ele costumava registrar qualquer coisa que fugisse da rotina à sua volta, principalmente nas proximidades de sua casa.

Ergueu a voz e ligou para Lottie Karim.

— Quem é essa mulher? Consiga uma foto dela, descubra onde trabalha e tudo o que puder sobre o seu passado.

— Está bem, chefe — disse Lottie Karim, e voltou para sua sala.

O diretor financeiro do SMP, Christer Sellberg, parecia simplesmente atônito. Afastou a folha A4 com os nove itens sucintos que Erika Berger apresentara na reunião semanal da comissão de orçamento. O chefe do orçamento, Ulf Flodin, parecia preocupado. Borgsjõ, o presidente do conselho administrativo, exibia seu costumeiro ar neutro.

— Impossível — decretou Sellberg com um sorriso educado.

— Por quê? — perguntou Erika Berger.

— O conselho nunca vai aceitar isso. Vai contra o bom-senso.

— Vamos retomar do início — sugeriu Erika Berger. — Fui contratada Para fazer o SMP voltar a ser rentável. Para conseguir isso, preciso ter condições de trabalhar, não é?

— É, mas...

— Não posso produzir o conteúdo de um jornal diário num passe de Mágica, torcendo para tudo dar certo trancada naquele aquário.

— Você não entende nada da realidade econômica.

— Pode até ser. Mas sei fazer um jornal. E a realidade é que de quinze anos para cá o número de funcionários do SMP sofreu uma redução de cento e dezoito pessoas. Até entendo que a metade era de designers gráficos que foram substituídos pelos avanços tecnológicos etc. e tal, mas o número de jornalistas que produzem texto sofreu uma redução de quarenta e oito pessoas nesse período.

— Foram cortes necessários. Sem eles, o jornal já teria deixado de existir há muito tempo.

— Vejamos o que é necessário e o que não é. Nesses três últimos anos, dezoito cargos de jornalistas foram eliminados. Além disso, hoje, nove cargos estão vagos e parcialmente cobertos por freelancers. A seção de Esportes tem um déficit enorme de pessoal. Deveria haver lá nove funcionários e, por mais de um ano, dois cargos ficaram sem ser preenchidos.

— Trata-se de economia. Simples assim.

— Três cargos não preenchidos na Cultura. Um cargo na editoria de Economia. A editoria de Direito não existe na prática, mas... temos ali um redator--chefe que quando necessário apela para os jornalistas da Geral. E tem muito mais, e pior. O SMP não faz nenhuma cobertura digna desse nome sobre os serviços estatais e as autoridades há pelo menos oito anos. Para isso, dependemos totalmente de freelancers e das informações repassadas pela TT... e, como vocês sabem, faz séculos que a TT desativou sua área de Serviços Públicos. Ou seja, não existe uma única redação na Suécia em condições de observar os Serviços Públicos e as autoridades do Estado.

— A imprensa escrita está passando por uma situação delicada...

— A realidade é que ou o SMP fecha as portas imediatamente, ou a direção resolve passar para o ataque. Temos hoje menos funcionários produzindo mais textos por dia. Os textos são medíocres, superficiais e carecem de credibilidade. Resultado: as pessoas deixam de ler o SMP.

— Parece que você não está entendendo...

— Estou cheia de ouvir vocês dizerem que eu não estou entendendo. Não sou nenhuma colegial estagiária que está aqui para se divertir.

— Mas a sua postura é insensata.

— Ah, é? Por quê?

— Está sugerindo que o jornal não gere receita.

- Escute, Sellberg, este ano você vai distribuir uma alta quantia de dinheiro em dividendos para os vinte e três acionistas do jornal. Acrescente-se bônus delirantes para os nove membros do conselho administrativo, que deverá custar ao SMP perto de dez milhões de coroas. Claro, estamos longe dos bônus que alguns diretores se auto-atribuíram na Skandia, mas a meu ver vocês não valem nem um centavo. Espera-se que o bônus seja dado quando alguém faz alguma coisa que fortaleça o SMP. Na verdade, as demissões que vocês promoveram enfraqueceram o SMP e só serviram para aumentar a crise.

— O que você está dizendo é muito injusto. O conselho ratificou todas as medidas que eu tomei.

— O conselho ratifica as suas medidas porque você garantiu uma distribuição anual de dividendos. É isso que deve acabar aqui e agora.

— Você está propondo a sério que o conselho tome a decisão de abolir toda a distribuição de dividendos e todos os bônus? Você imagina mesmo que os acionistas vão aceitar?

— Estou propondo um sistema de lucro zero para este ano. Isso equivaleria a uma economia de quase vinte e um milhões de coroas e à possibilidade de fortalecer a equipe e as finanças do SMP. Eu ganho por mês oitenta e oito mil coroas, o que é uma insanidade pura num jornal que não tem sequer condições de garantir os cargos da seção de Esportes.

— Então você quer reduzir seu próprio salário? Está defendendo uma espécie de comunismo dos salários, é isso?

— Não fale besteira. Você ganha cento e doze mil coroas por mês, contando o bônus anual. Isso é uma loucura. Se o jornal estivesse firme e os lucros fossem astronômicos, você poderia se conceder quantos bônus quisesse. Mas o momento, este ano, não é de aumentos. Proponho dividir pela metade o salário de todos os diretores.

— O que você não entende é que os nossos acionistas são acionistas Porque querem ganhar dinheiro. Isso se chama capitalismo. Se propuser que eles percam dinheiro, não vão mais querer ser acionistas.

— Não estou propondo que eles percam dinheiro, mas também é possível que se chegue a isso. Ser proprietário implica responsabilidades. Você mesmo disse: aqui quem manda é o capitalismo. Os donos do SMP querem lucrar. Mas nas regras do capitalismo quem decide se vai haver lucro ou prejuízo é o mercado. Pelo seu raciocínio, você gostaria que essas regras valessem para todos os funcionários do SMP, mas que você e os acionistas fossem exceções.

Sellberg suspirou e ergueu os olhos para o céu. Desamparado, procurou Borgsjõ com o olhar. Borgsjõ estudava, pensativo, o programa de nove itens de Erika Berger.

Rosa Figuerola esperou quarenta e nove minutos até que Gõran Mârtensson e o desconhecido saíssem do prédio da Bellmansgatan. Quando começaram a subir a ladeira em sua direção, ela ergueu sua Nikon com teleobjetiva de trezentos milímetros e tirou duas fotos. Guardou a câmera no porta-luvas e voltou a se ocupar com seu mapa de Estocolmo, quando deu uma olhada na direção dos elevadores públicos. Não acreditou no que via. No alto da Bellmansgatan, bem do lado das portas do elevador, uma mulher morena estava filmando Mârtensson e seu assistente com uma câmera digital. Caramba... que porra é essa? Um congresso de espionagem na Bellmansgatan?

Mârtensson e o desconhecido se separaram no alto da rua sem se falar. Mârtensson foi até seu carro, na Tavastgatan. Ligou o motor, se afastou da calçada e saiu do campo de visão de Rosa Figuerola.

Ela desviou o olhar para o retrovisor e viu as costas do homem de macacão. Ergueu os olhos e viu que a mulher da câmera concluíra as filmagens e, indo na direção dele, chegava em frente à Casa Laurin.

Cara ou coroa? Ela já sabia quem era Gõran Mârtensson e qual sua profissão. Tanto o homem de macacão como a mulher da câmera eram cartas desconhecidas. Mas se ela saísse do carro, corria o risco de ser notada pela mulher da câmera.

Não se moveu. Pelo retrovisor, viu o homem de macacão dobrar na Brãnnkyrkagatan. Esperou que a mulher da câmera chegasse ao cruzamento à sua frente. Porém, em vez de seguir o homem de macacão, a mulher virou cento e oitenta graus e desceu em direção ao número 1 da Bellmansgatan. Rosa Figuerola viu uma mulher de uns trinta e cinco anos. Tinha cabelos castanhos curtos e usava calça jeans escura e jaqueta preta. Quando a mulher se distanciou um pouco mais, Rosa Figuerola abriu às pressas a porta do carro e correu em direção à Brãnnkyrkagatan. Não conseguia avistar o homem de macacão. Logo em seguida, uma caminhonete Toyota se afastou da calçada. Rosa Figuerola viu o homem de perfil e memorizou a placa. Mesmo que errasse número, conseguiria encontrá-lo. As laterais da caminhonete exibiam um núncio da Chaves e Ferraduras Lars Faulsson, com o número de telefone.

Não tentou correr até seu carro para seguir a Toyota. Andou calmamente chegou ao alto do morro bem a tempo de ver a mulher com a câmera desaparecendo dentro do prédio de Mikael Blomkvist.

Tornou a entrar no carro e anotou no caderninho o número da placa e do telefone de Chaves e Fechaduras Lars Faulsson. Depois, cocou a cabeça. Quanta movimentação misteriosa em torno do endereço de Mikael Blomkvist! Ergueu os olhos e avistou o telhado do prédio no número 1 da Bellmansgatan. Sabia que Blomkvist tinha um apartamento no último andar, mas, ao conferir os mapas do serviço municipal, observara que era um apartamento de fundos que dava para o lago de Riddarfjãrden e a cidade velha. Um endereço chique num antigo bairro histórico. Perguntou-se se ele se gabava disso.

Esperou nove minutos até que a mulher com a câmera saísse do prédio. Em vez de subir a ladeira em direção à Tavastgatan, a mulher continuou descendo e dobrou à direita na esquina da Pryssgrãnd. Humm. Se ela estivesse com um carro estacionado na baixada da Pryssgrãnd, Rosa Figuerola não teria como segui-la. Mas se estivesse a pé, só tinha um caminho a fazer — subir a Brànnkyrkagatan por Pustegránd, mais próximo de Slussen.

Rosa Figuerola saiu do carro e se dirigiu para os lados de Slussen na Brànnkyrkagatan. Estava quase chegando a Pustegránd quando a mulher da câmera apareceu diante dela. Bingo! Seguiu-a quando passou em frente ao Hilton, pela Praça de Sõdermalm, defronte ao Museu da Cidade de Slussen. A mulher andava a passos rápidos e decididos, sem olhar para os lados. Rosa Figuerola deu-lhe uns trinta metros de vantagem. Ela entrou no metrô de Slussen e Rosa Figuerola apressou o passo, mas se deteve ao ver que a mulher se dirigia à banca de jornal em vez de passar pelas roletas.

Rosa Figuerola ficou observando a mulher na fila. Tinha cerca de um metro e setenta de altura e, com seu tênis, um jeito mais esportivo. De repente, ao vê-la ali, com os pés firmemente plantados em frente à banca de jornal, Kosa Figuerola teve a sensação de que se tratava de uma policial. A mulher comprou algo que parecia ser uma caixa de pastilhas, em seguida voltou para a Praça de Sõdermalm e entrou à direita na Katarinavãgen.


Rosa Figuerola foi atrás dela. Estava relativamente segura de que a mulher não a notara. Desapareceu na esquina pouco depois do McDonald's com Rosa Figuerola a cerca de quarenta metros atrás dela.

Ao virar a esquina, não viu mais sinal da mulher. Droga! Passou devagar em frente às várias entradas. Então seu olhar bateu numa placa. Milton Security.

Rosa Figuerola meneou a cabeça e retornou a pé para a Bellmansgatan.

Dirigiu até a Gõtgatan, onde ficava a redação da Millennium, e passou a meia hora seguinte percorrendo as ruas nas proximidades da redação. Não viu o carro de Mârtensson. Por volta do meio-dia, voltou para o Palácio da Polícia em Kungsholmen e foi puxar ferro na academia por uma hora.

— Estamos com um problema — disse Henry Cortez.

Malu Eriksson e Mikael Blomkvist levantaram os olhos do manuscrito do futuro livro sobre Zalachenko. Era uma e meia da tarde.

— Sente-se — disse Malu.

— Trata-se da Vitavara S.A., a empresa que fabrica vasos sanitários no Vietnã para vender jx>r mil e setecentas coroas a peça.

— Hum. E qual é o problema? — perguntou Mikael.

— A Vitavara S.A. pertence quase integralmente a uma empresa-mãe, a SveaBygg S.A.

— Ahã. É uma firma grande.

— É. O presidente do conselho administrativo se chama Magnus Borgsjõ. É um profissional em conselhos administrativos. Entre outros, é presidente do conselho administrativo do Svenska Morgon-Posten e detém quase dez por cento do jornal.

Mikael lançou um olhar penetrante para Henry Cortez.

— Tem certeza?

— Tenho. O chefe da Erika Berger é um puta de um safado que explora criancinhas no Vietnã.

— Merda! — fez Malu Eriksson.


O assistente de redação Peter Fredriksson parecia pouco à vontade quando bateu suavemente à porta do aquário de Erika Berger por volta das duas da tarde.

— Sim?

- Bem, é um assunto meio delicado. Mas alguém aqui na redação recebeu um e-mail seu.

— Meu?

— Sim. — Suspiro.

— Do que se trata?

Ele lhe passou umas folhas A4 com e-mails endereçados a Eva Carlsson, uma substituta de vinte e seis anos da editoria de Cultura. O remetente, de acordo com o cabeçalho, era erika.berger@smpost.se

[Minha Eva adorada. Tenho vontade de acariciar e beijar teus seios. Estou ardendo de tesão e mal consigo me controlar. Eu te suplico, corresponda aos meus sentimentos. A gente poderia se encontrar? Erika.]

Eva Carlsson não respondera a essa abordagem, o que resultará em mais dois e-mails nos dias seguintes.

[Eva, minha amada adorada. Eu te suplico, não me rejeite. Estou louca de desejo. Quero você nua. Quero, custe o que custar. Você vai ficar bem comigo. Não vai se arrepender. Vou beijar cada centímetro da sua pele nua, seus seios magníficos e sua doce gruta. Erika.]

[Eva. Por que não me responde? Não tenha medo de mim. Não me rejeite. Você não é nenhuma sonsa. Sabe do que eu estou falando. Quero fazer amor com você e você será ricamente recompensada. Se for boazinha comigo, serei boazinha com você. Você pediu para estender seu contrato de substituta. Está em meu poder atendê-la, e inclusive transformá-lo num contrato permanente. Venha encontrar-se comigo às 21 horas no meu carro, na garagem. Sua Erika.]

— Ah, sim — disse Erika Berger. — E agora ela está se perguntando se sou mesmo eu quem está mandando essas propostas obscenas.

— Não é bem isso... quer dizer... hã.

— Peter, não fale escondido atrás da barba.

— Ela talvez tenha mais ou menos acreditado no primeiro e-mail pelo menos ficou bastante surpresa. Mas depois ela entendeu que era um loucura total, nada a ver com seu estilo, e aí...

— E aí?

— Bem, ela acha constrangedor e não sabe direito o que fazer. Devo dizer que ela tem muita admiração por você, gosta de você... quero dizer, corno chefe. Então ela veio se aconselhar comigo.

— Entendo. E o que você disse a ela?

— Disse que alguém falsificou o seu endereço para assediá-la. Ou assediar vocês duas. E prometi que ia falar com você.

— Obrigada. Você poderia pedir para ela vir falar comigo daqui a uns dez minutos?

Erika aproveitou esse tempo para escrever um e-mail realmente seu.

[Vejo-me na obrigação de informar a todos que uma de nossas colegas recebeu mensagens eletrônicas aparentemente enviadas por mim. Esses e-mails contêm alusões sexuais extremamente grosseiras. Quanto a mim, recebi mensagens de conteúdo chulo de um remetente que se diz "centralred" no SMP. Como sabem, esse endereço não existe no SMP.

Consultei o diretor de tecnologia, e ele me afirmou ser muito fácil forjar um endereço de remetente falso. Não sei como se faz, mas aparentemente existem sites na internet que oferecem esses serviços. Chego à triste conclusão de que existe um doente entre nós que se compraz com esse tipo de coisa.

Gostaria de saber se outros funcionários receberam e-mails estranhos. Caso positivo, gostaria que entrassem imediatamente em contato com o assistente de redação Peter Fredriksson. Se essa coisa vergonhosa persistir, teremos de pensar em registrar queixa na polícia.

Erika Berger, redatora-chefe.]

Imprimiu uma cópia do e-mail e em seguida clicou em Enviar, para que a mensagem fosse para todos os funcionários do SMP. Nisso, Eva Carlsson bateu à porta.

— Bom dia, sente-se — disse Erika. — Soube que você recebeu e-mails em meu nome.

- Ora, não pensei um segundo sequer que pudessem ser mesmo seus.

- Em todo caso, no instante em que você entrou aqui você estava recebendo um e-mail meu. Um e-mail que eu de fato escrevi e que mandei para todos os funcionários.

Mostrou para Eva Carlsson a cópia impressa.

- Certo. Compreendo — disse Eva Carlsson.

- Lamento que tenham usado você como alvo nessa campanha desagradável.

__Você não tem culpa se um maluco inventa esse tipo de coisa.

- Eu só queria estar segura de que você não guarda nenhuma suspeita em relação a mim nessa história.

— Jamais pensei que isso tivesse partido de você.

— Perfeito, obrigada — disse Erika, e sorriu.

Rosa Figuerola passou a tarde levantando informações. Primeiro, pediu uma foto de Lars Faulsson, para conferir se era a mesma pessoa que ela vira em companhia de Góran Mártensson. Depois, digitou o nome dele no cadastro das fichas policiais e obteve imediatamente um resultado.

Lars Faulsson, de quarenta e sete anos e conhecido pelo apelido de Fa-lun, iniciara sua carreira aos dezessete anos com roubos de carro. Nos anos 1970 e 1980, fora interrogado duas vezes e acusado de arrombamento, roubo agravado e receptação. Fora condenado uma primeira vez a uma pena moderada, e na segunda, a três anos de prisão. Na época, era considerado um indivíduo com um futuro promissor no meio da delinqüência, e fora interrogado como suspeito de pelo menos mais três assaltos, um deles envolvendo a quebra de um cofre bastante complexo e intrincado numa loja de departamentos de Vàsteras. Depois de cumprir a pena, mantivera-se na unha — ou, pelo menos, não cometera nenhuma infração que o levasse a ser detido e julgado. Em compensação, convertera-se — por coincidência — em chaveiro e, em 1987, abrira seu próprio negócio, o Chaves e Fechaduras Lars Faulsson, situado em Norrtull.

Identificar a mulher desconhecida que filmara Mártensson e Faulsson se revelou mais fácil do que Rosa imaginara. Ela simplesmente ligou para a recepção da Milton Security e alegou que estava procurando uma de suas funcionárias, que conhecera algum tempo atrás mas cujo nome esquecera Podia, no entanto, fornecer uma boa descrição da mulher. A recepção lhe in formou que parecia se tratar de Susanne Linder, e passou a ligação. Quando Susanne Linder atendeu, Rosa Figuerola se desculpou dizendo que discara o número errado.

Entrou nos arquivos do registro civil e constatou que existiam dezoito Susanne Linder na região de Estocolmo. Três tinham em torno de trinta e cinco anos. Uma residia em Norrtálje, a outra em Estocolmo, a terceira em Nacka. Pediu as fotos e identificou de imediato a mulher que ela seguira naquela manhã como sendo a Susanne Linder que residia em Nacka.

Resumiu as atividades do dia num relatório e foi até a sala de Torsten Edklinth.

Por volta das cinco da tarde, Mikael Blomkvist fechou o arquivo da pesquisa de Henry Cortez. Christer Malm largou o texto, que ele já lera quatro vezes. Henry Cortez estava sentado no sofá da sala de Malu Eriksson, aparentando um ar de culpa.

— Café? — perguntou Malu, levantando-se. Voltou com quatro canecas e a cafeteira.

Mikael suspirou.

— É uma puta de uma história — disse. — Pesquisa impecável. Documentada do início ao fim. Muito bem narrada, com um calhorda que extorque os suecos utilizando o sistema — o que é absolutamente legal —, mas que é suficientemente ganancioso e maléfico para recorrer a uma empresa que explora crianças no Vietnã.

— E ainda por cima está muito bem escrita — disse Christer Malm. — No dia seguinte à publicação, o Borgsjõ será persona non grata na vida econômica do país. A tevê vai reagir a esse texto. Ele vai ficar na mesma situação que os diretores da Skandia e outros tubarões. Um verdadeiro furo da Millennium. Boa, Henry.

Mikael assentiu com a cabeça.

— Só tem esse problema com a Erika para estragar a festa — disse ele. Christer Malm meneou a cabeça.

— E por que isso seria um problema? — perguntou Malu. — A escroque é a Erika. A gente tem o direito de investigar qualquer presidente de conselho administrativo, mesmo que, por acaso, ele seja o chefe da Erika.

- Mesmo assim, é um problema e tanto — disse Mikael.

- A Erika Berger não foi embora totalmente — disse Christer Malm.

- Ela ainda detém trinta por cento da Millennium e faz parte do nosso conselho administrativo. É inclusive presidente do conselho administrativo, até a gente poder eleger a Harriet Vanger na próxima assembléia, que vai ser em agosto. E a Erika trabalha para o SMP, também participa do conselho de lá, e nós vamos denunciar o presidente dela.

Silêncio morno.

— Bem, o que a gente faz? — perguntou Henry Cortez. — Esquecemos o texto?

Mikael fitou Henry Cortez, olho no olho.

— Não, Henry. Não vamos esquecer o texto. Não é assim que a gente trabalha aqui na Millennium. Mas isso vai nos custar um bocado de tarefas ingratas. Não dá simplesmente para jogar isso em cima da Erika sem falar com ela antes.

Christer Malm fez um gesto de concordância com a cabeça e balançou um dedo.

— Vamos colocar a Erika numa encrenca daquelas. A única saída para ela vai ser vender a sua parte e se demitir de imediato do conselho administrativo da Millennium, ou, no pior dos casos, ser demitida do SMP. Seja como for, ela vai ficar num tremendo conflito de interesses. Francamente, Henry... concordo com o Mikael sobre publicar o artigo, mas talvez a gente tenha que adiar por um mês.

Mikael meneou a cabeça.

— Pois a gente também está com um conflito de lealdades — disse.

— Quer que eu ligue para ela? — perguntou Christer Malm.

— Não — disse Mikael. — Eu ligo e marco um encontro. Tipo hoje à noite.

Torsten Edklinth escutou com atenção Rosa Figuerola resumir todo o Clrco armado em torno do prédio de Mikael Blomkvist no número 1 da Bell-niansgatan. Sentiu o chão balançar ligeiramente.


— Com que então um funcionário da Sapo entrou no prédio do Mikael Blomkvist acompanhado de um ex-arrombador de cofres-fortes reconvertido em chaveiro.

— Exato.

— Na sua opinião, o que eles fizeram depois que atravessaram a porta?

— Não sei. Mas ficaram lá dentro quarenta e nove minutos. E de se supor que o Faulsson abriu a porta e o Mârtensson entrou no apartamento de Blomkvist.

— Para fazer o quê?

— Dificilmente seria só para instalar material de escuta, pois isso não leva mais que um minuto. O Mârtensson deve ter vasculhado os papéis do Blomkvist, ou o que quer que ele guarde em casa.

— Mas o Blomkvist está escaldado... já roubaram o relatório do Bjõrck da casa dele.

— Isso mesmo. Ele sabe que está sendo vigiado, e está vigiando os que o vigiam. Ele está impassível.

— Como assim?

— Ele tem um plano. Está reunindo provas e pretende denunciar o Gõran Mârtensson. É a única explicação.

— E aí aparece essa mulher, a tal Linder.

— Susanne Linder, trinta e quatro anos, que mora em Nacka. E uma ex-policial.

— Policial?

— Ela cursou a Escola de Polícia e trabalhou seis anos nas Brigadas de Intervenção em Sõdermalm. Então, de repente, pediu demissão. Nada na ficha dela explica por quê. Ficou alguns meses desempregada até ser contratada pela Milton Security.

— Dragan Armanskij — disse Edklinth, pensativo. — Quanto tempo ela ficou no prédio?

— Nove minutos.

— Que ela ocupou de que maneira?

— Eu diria, já que ela estava filmando o Mârtensson e o Faulsson na rua, que ela está reunindo provas das atividades deles. Isso quer dizer que a Milton Security está trabalhando com o Blomkvist e instalou câmeras de vigilância apartamento ou na escada. Ela provavelmente foi até lá recolher as informações das câmeras.

Edklinth suspirou. Aquele caso Zalachenko estava começando a ficar altamente complicado.

- Bem. Obrigado. Vá para casa. Preciso pensar sobre tudo isso.

Rosa Figuerola foi até a academia da Praça Sankt Erik e fez uma aula de spinning.

Mikael Blomkvist usou seu telefone extra Ericsson TIO azul para ligar para Erika Berger no SMP. Interrompeu-a em meio a uma discussão com os redatores sobre a orientação a ser dada a um texto sobre terrorismo internacional.

— Que surpresa! Oi... espere um pouquinho.

Erika tapou o aparelho com a mão e olhou em redor.

— Acho que terminamos — disse, e passou umas últimas instruções. Quando ficou sozinha no aquário, voltou ao telefone.

— Oi, Mikael. Lamento não ter dado notícias. Estou abarrotada de trabalho e com mil coisas para assimilar.

— Eu também não ando muito parado — disse Mikael.

— Como vai o caso Salander?

— Vai bem. Mas não é por isso que estou ligando. Preciso ver você. Hoje à noite.

— Eu adoraria, mas vou ficar aqui até as oito horas. E estou exausta. Estou trabalhando desde as seis.

— Ricky... não estou falando em alimentar sua vida sexual. Preciso falar com você. É importante.

Erika ficou um instante calada.

— É sobre o quê?

— Eu falo quando a gente se encontrar. Mas o assunto não tem a menor graça.

— Tudo bem. Passo na sua casa lá pelas oito e meia.

— Não, na minha casa não. E uma longa história, mas o meu apartamento está interditado por um tempo. A gente se encontra no Samirs Gryta e toma uma bela cerveja.

— Estou-dirigindo.

— Então a gente toma cerveja sem álcool.

Erika Berger estava levemente irritada quando chegou ao Samirs Gryta por volta das oito e meia. Sentia-se culpada de não ter dado sinal de vida a Mikael desde que pusera os pés no SMP. Mas ela nunca trabalhara tanto como agora.

Mikael Blomkvist fez um sinal com a mão lá da mesa do canto em frente à janela. Ela se demorou à porta. Por um instante, Mikael lhe pareceu uma pessoa totalmente estranha e sentiu que olhava para ele de um jeito diferente. Quem é esse? Meu Deus, estou cansada. Então ele se levantou e lhe deu um beijo, e ela se deu conta, consternada, que não pensava nele havia semanas e que ele lhe fazia uma falta tremenda. Era como se o tempo passado no SMP tivesse sido um sonho e que, de repente, ela fosse acordar no sofá da sede da Millennium. Parecia irreal.

— Olá, Mikael.

— Olá, senhora redatora-chefe. Já comeu?

— São oito e meia. Não tenho seus detestáveis horários de refeições.

Em seguida percebeu que estava com uma fome de leoa. Samir apareceu com o cardápio e ela pediu uma cerveja sem álcool e uma porção pequena de lula e batata frita. Mikael pediu um cuscuz e uma cerveja.

— Como você está? — ela perguntou.

— Estamos vivendo um momento interessante. Ando ocupado.

— Como vai a Salander?

— Ela faz parte das coisas interessantes.

— Micke, eu não tenho a intenção de me apropriar da sua matéria.

— Desculpe... eu não estou evitando responder. Nesse momento, as coisas estão meio enroladas. Posso até te contar, mas vai levar metade da noite. Como é ser chefe no SMP?

— Não é exatamente como na Millennium. Ela ficou um instante em silêncio.

— Quando chego em casa, caio no sono e apago como uma vela sopra" da, e acordo com cálculos de orçamento colados na retina. Você me fez falta. Eu queria que a gente fosse para a sua casa dormir. Estou cansada demais para fazer amor, mas gostaria de te abraçar e dormir do seu lado.

- Sinto muito, Ricky. O meu apartamento não é o melhor lugar neste momento.

- Por que não? Aconteceu alguma coisa?

- Bem... Uns engraçadinhos andaram instalando microfones no apartamento e escutam cada palavra que eu digo. Da minha parte, instalei umas câmeras de segurança que mostram o que acontece ali quando eu não estou. Acho que podemos poupar o mundo da visão da sua bunda nua.

— Você está falando sério? Ele balançou a cabeça.

— Estou. Mas não é por isso que eu precisava te ver sem falta.

— O que aconteceu? Você está estranho.

— Bem... você foi para o SMP. E nós, na Millennium, topamos com uma história que vai detonar o presidente do seu conselho administrativo. Ele está envolvido num caso de exploração de menores e prisioneiros políticos no Vietnã. Parece que estamos entrando num conflito de interesses.

Erika largou o garfo e olhou para Mikael. Percebeu imediatamente que ele não estava brincando.

— Vou resumir — disse ele. — O Borgsjõ é presidente do conselho administrativo e acionista majoritário de uma empresa chamada SveaBygg, que por sua vez tem uma filial chamada Vitavara S.A. Eles mandam fabricar vasos sanitários numa empresa vietnamita que está fichada na ONU por exploração de trabalho infantil.

— Você poderia repetir?

Mikael contou os detalhes da história reconstituída por Henry Cortez. Abriu sua pasta e tirou uma cópia dos documentos. Erika leu, devagar, o artigo de Cortez. Por fim, ergueu os olhos e cruzou o olhar com Mikael. Sentiu um pânico irracional mesclado de desconfiança.

— Como se explica que a primeira medida da Millennium depois que eu saí foi passar pelo crivo os membros do conselho administrativo do SMP?

— Não foi assim que aconteceu, Ricky.

Ele contou de que modo o artigo fora se encorpando.

— E desde quando você sabe disso?

— Desde hoje à tarde. Não gosto nem um pouco do rumo que as coisa estão tomando.

— O que vocês pretendem fazer?

— Não sei. A gente tem que publicar. Não dá para abrir uma exceção só porque se trata do seu chefe. Mas nenhum de nós quer te prejudicar.

Fez um gesto com a mão. — Estamos meio desesperados. Principalmente o Henry.

— Eu continuo fazendo parte do conselho administrativo da Millennium. Sou acionista... É claro que as pessoas vão pensar que...

— Sei exatamente o que as pessoas vão pensar. Você vai ficar encrencada no SMP.

Erika sentiu-se invadida pelo cansaço. Cerrou os dentes e resistiu ao impulso de pedir a Mikael que abafasse o caso.

— Puta merda — disse ela. — E vocês têm certeza de que está tudo fundamentado...?

Mikael assentiu devagar com a cabeça.

— Passei o final da tarde repassando toda a documentação do Henry. Estamos com o Borgsjõ prontinho para o matadouro.

— O que vocês vão fazer?

— O que você teria feito se topássemos com essa história há dois meses? Erika Berger observou com atenção seu amigo e amante de mais de vinte anos. Então, baixou os olhos.

— Você sabe o que eu teria feito.

— Isso tudo é um acaso infeliz. Não é nada contra você. Eu sinto muito mesmo. Por isso insisti em te ver imediatamente. A gente precisa decidir que atitude tomar.

— A gente?

— Digamos... que esse artigo era para a edição de junho. Eu adiei. Vai ser publicado no mínimo em agosto, e pode ser adiado um pouco mais se você precisar.

— Entendo.

Sua voz adquirira um tom amargo.

— Proponho que a gente não decida nada hoje. Você pega a documentação e vai para casa pensar. Não faça nada antes de a gente elaborar uma estratégia conjunta. Temos tempo.

- Estratégia conjunta?

- Ou você tem que se demitir do conselho administrativo da Millennium muito antes de a gente publicar, ou tem que se demitir do SMP. Você não pode ficar em cima do muro.

Ela concordou com a cabeça.

- As pessoas me identificam tanto com a Millennium que ninguém vai acreditar que eu não tenho nada a ver com isso, mesmo que eu me demita.

- Há uma alternativa. Você pega o artigo para o SMP, põe o Borgsjõ contra a parede e exige a saída dele. Tenho certeza que o Henry Cortez concordaria. Mas, por favor, não faça nada sem estarmos todos de acordo.

— E eu começo na minha nova função dando um jeito para que a pessoa que me contratou seja demitida.

— Sinto muito.

— Ele não é má pessoa.

Mikael fez que sim com a cabeça.

— Acredito. Mas é um ganancioso.

— Vou para casa.

— Ricky, eu...

Ela o interrompeu.

— Eu estou esgotada, só isso. Obrigada por ter me avisado. Preciso pensar nas conseqüências disso tudo.

Mikael meneou a cabeça.

Ela foi embora sem lhe dar um beijo e deixando-lhe a conta.

Erika Berger estacionara o carro a duzentos metros do Samirs Gryta, e estava a meio caminho dele quando sentiu o coração bater tão depressa que precisou parar e se apoiar na parede. Estava com náuseas.

Ficou um bom tempo assim, respirando o frescor da noite de maio. De repente, se deu conta de que vinha trabalhando uma média de quinze horas Por dia desde 1- de maio. Quase três semanas. Como estaria se sentindo dali a três anos? Como se sentia Morander quando desabara, morto, na redação?

Passados dez minutos, ela voltou para o restaurante e encontrou Mikael, que estava deixando o local. Ele estacou, surpreso.

— Erika...

— Não fale nada, Mikael. A gente é amigo há tanto tempo que nada poderia estragar isso. Você é o meu melhor amigo e o que está acontecendo agora é exatamente igual a quando você foi se enfurnar em Hedestad dois anos atrás, só que ao contrário. Estou me sentindo estressada e infeliz.

Ele assentiu com a cabeça e a abraçou. Ela sentiu seus olhos se encherem de lágrimas.

— Três semanas no SMP já acabaram comigo — disse, com um sorriso amargo.

— Calma. Acho que é preciso mais que isso para acabar com Erika Berger.

— O seu apartamento é inviável. Estou cansada demais para ir até minha casa em Saltsjòbaden. Vou acabar dormindo na direção e me matando. Acabei de tomar uma decisão. Vou caminhar até o Scandic Crown e pedir um quarto. Venha comigo.

Ele meneou a cabeça.

— O nome agora é Hilton.

— E o que é que tem?

Fizeram o breve trajeto a pé. Nenhum dos dois falava. Mikael estava com o braço no ombro de Erika. Ela o olhou de lado e percebeu que ele estava tão cansado quanto ela.

Foram direto para a recepção, pediram um quarto duplo e pagaram com o cartão de crédito de Erika. Subiram até o quarto, se despiram e se deitaram na cama. Erika estava com dores musculares, como se acabasse de correr na maratona de Estocolmo. Trocaram dois ou três beijos e caíram num sono profundo.

Nenhum dos dois percebera que estavam sendo vigiados. Não viram o homem que os observava à entrada do hotel.


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