21 - QUINTA-FEIRA SANTA 24 DE MARÇO – SEGUNDA-FEIRA 4 DE ABRIL
Lisbeth Salander passou sua primeira semana como foragida longe de qualquer acontecimento dramático. Ficou tranqüilamente em seu apartamento da Fiskaregatan, em Mosebacke. Tinha desligado o celular e retirado o cartão SIM. Não pretendia mais usar aquele telefone. Acompanhava com os olhos cada vez mais arregalados as manchetes dos jornais on-line e os telejornais.
Descobriu, muito irritada, a foto de sua carteira de identidade divulgada na internet e logo transformada em ícone dos temas do momento na tevê. Naquela foto ela estava com cara de louca.
Depois de anos de esforço para chegar ao anonimato, transformara-se na pessoa mais conhecida e pública do país. Com surpresa, percebeu que a busca, em escala nacional, de uma garota de baixa estatura suspeita de triplo assassinato era um dos fatos mais sensacionais do ano, mais ou menos da mesma dimensão dos abusos sexuais e financeiros e do crime perpetrado Pelo guru da seita de Knutby. Acompanhou os comentários e as explicações da mídia, sobrancelhas pensativamente erguidas, fascinada de ver que autos lacrados como confidenciais, relativos às suas dificuldades mentais, pareciam acessíveis a todos em todas as redações. Um título despertou velhas recordações enterradas.
INTERPELADA POR ATOS VIOLENTOS EM GAMLA STAN
Um repórter da área jurídica da agência TT passara à frente dos concorrentes ao pôr as mãos numa cópia da investigação médico-legal realizada depois que Lisbeth fora detida por enfiar o pé na cara de um passageiro na estação de metrô de Gamla Stan.
Lisbeth lembrava-se perfeitamente daquele incidente no metrô. Ela estava voltando para a casa da sua família adotiva temporária, em Hágersten. Na estação Râdmansgatan, um homem que ela nunca vira mais gordo, e que parecia absolutamente sóbrio, subira no trem e pusera-se imediatamente a espreitá-la. Mais tarde viria a descobrir que ele se chamava Karl Evert Blomgren, tinha cinquenta e dois anos e era um antigo jogador de bandy domiciliado em Gâvle. Quando o vagão ficou meio vazio, sentou-se ao lado dela e começou a assediá-la. Pusera a mão em seu joelho e tentara iniciar um papo do tipo: “Eu te dou duzentos paus se você for até a minha casa”. Como ela o ignorasse e não respondesse, ele foi ficando mais insistente e a chamara de vadia. O fato de ela não retrucar e mudar de lugar na Centralen não o desanimou.
O metrô estava chegando a Gamla Stan quando ele a abraçou por trás e enfiou as mãos debaixo de sua blusa, cochichando em seu ouvido que ela era uma puta. Lisbeth Salander não gostava de ser chamada de puta por perfeitos desconhecidos dentro do metrô. Respondeu com uma cotovelada no olho, então se segurou com firmeza numa barra de ferro e lhe enfiou o salto na base do nariz. O cara sangrou com abundância.
Ela tivera oportunidade de escapar quando o trem parou na estação, mas como estava vestida como uma punk e com o cabelo pintado de azul, um amante da ordem se jogou em cima dela e a manteve no chão até a chegada da polícia.
Ela amaldiçoou seu sexo e sua baixa estatura. Se fosse um cara, ninguém teria ousado se jogar em cima dela.
Nunca procurou explicar por que dera um chute na cara de Karl Evert Blomgren. Julgava inútil tentar explicar o que quer que fosse a uma autoridade de uniforme. Por princípio, negava-se inclusive a responder às perguntas dos psicólogos quando eles resolviam avaliar seu estado mental. Felizmente, outros passageiros tinham acompanhado os fatos, entre eles uma mulher insuportável de Hãrnõsand, que se revelou ser uma deputada centrista. A mulher ofereceu imediatamente seu testemunho, dizendo que Blomgren assediara Salander antes de ela atacar. Mais tarde, descobriu-se que Blomgren já tinha duas condenações por atentado ao pudor, e o procurador resolveu encerrar o processo. Mas nem por isso se interrompeu a investigação social, e pouco depois o tribunal de primeira instância declarou Lisbeth Salander incapaz. Com isso, ficara primeiro sob a tutela de Holger Palmgren e depois de Nils Bjurman.
E agora todos esses detalhes íntimos e protegidos por sigilo profissional estavam expostos na internet para quem quisesse ver. Sua ficha vinha acrescida de descrições fabulosas de todos os conflitos que ela tivera com as pessoas desde a escola primária, e de sua internação numa clínica de psiquiatria infantil no início da adolescência.
O diagnóstico que a mídia apresentava sobre Lisbeth Salander variava segundo as edições e os jornais. Ela era descrita ora como psicótica, ora como esquizofrênica com sérias tendências à mania de perseguição. Todos os jornais a descreviam como retardada mental - ela não conseguira assimilar o conteúdo escolar e saíra do colégio sem um boletim de avaliação. Os leitores só podiam concluir que ela era desequilibrada e inclinada à violência.
Quando a mídia descobriu que Lisbeth Salander era amiga da lésbica Miriam Wu, um linchamento em regra se desencadeou em diversos jornais. Miriam Wu se apresentara no show de Benita Costa por ocasião da Gay Pride, um show provocante em que Mimmi fora fotografada com os seios à mostra, calças de couro com suspensórios e botas de verniz com salto agulha. Além disso, escrevera artigos numa revista gay frequentemente citada na mídia e algumas vezes fora entrevistada por causa de sua participação em diferentes shows. A combinação lésbica/assassina em série/sexo sadomasô era aparentemente imbatível para aumentar as tiragens.
Vários jornais aventaram a possibilidade de que a tese de Mia Bergman, que versava sobre o comércio do sexo, pudesse ter motivado Lisbeth Salander a cometer os crimes, já que, de acordo com o Serviço Social, ela era uma prostituta.
No final da semana, a mídia descobriu que Salander também tinha vínculos com um grupo de garotas que flertavam com o satanismo. O grupo chamava-se Evil Fingers, o que incitou um jornalista cultural, homem de certa idade, a escrever um longo texto sobre a instabilidade da juventude e o perigo, oculto em toda parte, que ia desde a cultura skinhead até o hip-hop.
A essa altura, o público estava saturado de informações sobre Lisbeth Salander. Somadas as informações dos diferentes veículos, a polícia procurava uma lésbica psicótica, membro de um grupo satânico que pregava o sexo sadomasoquista e odiava a sociedade em geral e os homens em particular. Considerando-se que Salander estivera fora do país um ano antes, não estavam excluídos contatos internacionais.
Uma única vez Lisbeth Salander reagiu com uma espécie de emoção ao que era veiculado com alarde pela mídia. Uma manchete chamou sua atenção.
“A GENTE TINHA MEDO DELA”
Ela ameaçava nos matar, dizem professores e colegas.
Quem falava assim era uma antiga professora, uma certa Birgitta Miââs, que atualmente trabalhava com pinturas em seda. Ela contava que Lisbeth Salander ameaçara seus colegas de sala de aula e que até os professores tinham medo dela.
Lisbeth, de fato, havia cruzado com Miââs. E o encontro entre elas não fora dos melhores.
Ela mordeu o lábio inferior e lembrou que tinha onze anos na época. Lembrava-se de Miââs como de uma péssima professora substituta de matemática, que teimara em lhe fazer uma pergunta à qual ela já havia respondido de forma correta, só que erradamente segundo o manual. Na verdade, o manual estava errado, o que, na opinião de Lisbeth, devia estar evidente para todo mundo. Mas Miââs teimara mais e mais, e Lisbeth fora ficando cada vez menos disposta a discutir o assunto. Por fim, permaneceu imóvel, a boca formando um traço fino com o lábio inferior puxado para a frente até que Miââs, totalmente frustrada, a pegou pelo ombro e a sacudiu para chamar sua atenção. Lisbeth reagira jogando o livro na cara de Miââs, o que resultou em alguma confusão. Ela cuspia e dava pontapés enquanto seus colegas tentavam contê-la.
A matéria ocupava um bom espaço num jornal vespertino e também dava lugar a alguns depoimentos, colocados como legenda num boxe que trazia um de seus ex-colegas de sala fotografado em frente à sua escola na época. O menino chamava-se David Gustavsson e atualmente se declarava assistente financeiro. Afirmava que os alunos tinham medo de Lisbeth Salander porque um dia “ela proferiu ameaças de morte”. Lisbeth lembrava-se de David Gustavsson como um de seus maiores atormentadores na escola, um brutamonte dotado de QI mínimo que raramente perdia uma oportunidade de distribuir ofensas e cotovelado pelos corredores. Certa vez, ele a agredira atrás do ginásio no intervalo do almoço e, como sempre, ela se defendera. Fisicamente, não tinha a menor chance, mas preferia morrer a capitular. O incidente escapou do controle e uma quantidade enorme de alunos se juntou em volta deles para assistir David Gustavsson bater sem parar em Lisbeth Salander. Até certo ponto, tinham achado graça, mas a boba não cuidava de seu próprio interesse; limitou-se a ficar no chão sem sequer começar a chorar ou a implorar piedade.
Momentos depois, os próprios alunos já não suportavam aquela cena. David era tão superior e Lisbeth tão indefesa, que David começou a contabilizar pontos negativos. Ele tinha começado uma coisa que já não sabia como encerrar. Por fim, tascou dois belos socos em Lisbeth, um dos quais lhe partiu o lábio e o outro cortou-lhe o fôlego. Os demais alunos a abandonaram num estado lamentável atrás do ginásio e, rindo, contornaram o prédio e ali desapareceram.
Lisbeth Salander fora para casa tratar dos ferimentos. Dois dias depois, voltou com um taco de beisebol. No meio do pátio, desfechou uma tacada na cabeça de David, em cima da orelha. Quando ele foi ao chão, totalmente chocado, ela apertou-lhe o taco na garganta, inclinou-se sobre ele e sussurrou que se um dia ele encostasse nela outra vez ela o mataria. Nisso, os adultos perceberam que estava acontecendo alguma coisa, levaram David para a enfermaria, ao passo que Lisbeth teve de se apresentar ao diretor para receber seu veredicto: castigo, notificação no seu histórico e uma investigação social.
Nos últimos quinze anos, Lisbeth nunca mais pensara em Miââs ou em Gustavsson. Anotou mentalmente que assim que tivesse um tempinho precisava verificar qual era a ocupação atual dos dois.
* * *
Tudo o que se escrevia sobre Lisbeth Salander a transformava numa celebridade nacional. Seu passado era examinado e esquadrinhado, publicado nos mínimos detalhes, desde as crises da escola primária até a internação na clínica de psiquiatria infantil de Sankt Stefan, perto de Uppsala, onde ficara por mais de dois anos.
Atentou o ouvido quando o médico-chefe Peter Teleborian foi entrevistado na tevê. Estava oito anos mais velho desde a última vez em que Lisbeth o vira, na época das deliberações no tribunal de instâncias que a declarara incapaz. Tinha vincos acentuados na testa e coçou o cavanhaquezinho ao virar-se para o repórter e explicar, muito preocupado, que estava preso ao sigilo profissional e não podia, portanto, falar especificamente sobre uma paciente. Só o que ele podia dizer é que Lisbeth Salander era um caso bastante complexo que exigia tratamento especializado e que o tribunal decidira, contra a sua recomendação, colocá-la sob tutela e inseri-la na sociedade em vez de oferecer-lhe o tratamento de que ela precisava numa instituição. Foi escandaloso, afirmou Teleborian. Lamentou que três pessoas tivessem morrido em virtude daquele erro de avaliação e aproveitou para denunciar de passagem os cortes no orçamento da psiquiatria que o governo aprovara à força nas últimas décadas.
Lisbeth observou que nenhum jornal revelava que a forma de tratamento mais comum, no serviço fechado de psiquiatria infantil coordenado pelo Dr. Teleborian, era colocar “os pacientes agitados e difíceis” numa sala qualificada como “destituída de estímulos”. A mobília da sala era constituída apenas de uma cama com correias. A justificativa científica era que crianças agitadas não deviam receber “estímulos” passíveis de desencadear alguma crise.
Mais velha, descobrira que existia outro termo para isso. Privação sensorial. Expor prisioneiros a uma privação sensorial era considerado desumano pela convenção de Genebra. Era um elemento recorrente das experiências de lavagem cerebral realizadas periodicamente por diferentes ditaduras. Existiam documentos demonstrando que os prisioneiros políticos que confessaram toda sorte de crimes fantasiosos nos processos de Moscou dos anos 1930 haviam recebido esse tipo de tratamento.
Quando viu o rosto de Peter Teleborian na tevê, o coração de Lisbeth virou um cubo de gelo. Perguntou-se se ele ainda usava a mesma loção pós-barba nojenta. Ele fora o responsável pelo que se definira como terapia. Ela nunca entendera o que esperavam dela, a não ser que de algum modo ela estava recebendo um tratamento e que se tornaria consciente de seus atos. Lisbeth compreendera rapidamente que uma “paciente agitada e difícil” eqüivalia a uma paciente que questionava o raciocínio e o saber de Teleborian.
Na mesma época, Lisbeth Salander descobriu que o método terapêutico mais difundido para o combate da doença mental no século XVI ainda era aplicado no Sankt Stefan no limiar do século XXI.
Passara mais ou menos metade do seu período no Sankt Stefan deitada na cama da sala “destituída de estímulos”. Ao que parecia, tinha sido uma espécie de recorde.
Teleborian nunca a tocara sexualmente. Nunca a tocara senão em contextos absolutamente inocentes. Só uma vez pusera a mão em seu ombro para repreendê-la quando ela se encontrava amarrada no isolamento.
Ela se perguntou se as marcas de seus dentes ainda estariam visíveis na falange do dedo mínimo de Teleborian.
A situação assumira ares de um duelo no qual Teleborian detinha todas as cartas. A estratégia de Lisbeth fora entrincheirar-se e desconhecer totalmente sua presença na sala.
Tinha doze anos quando duas policiais femininas a levaram para Sankt Stefan. Fora poucas semanas depois que Todo o Mal acontecera. Lembrava-se de tudo nos mínimos detalhes. Primeiro, pensara que as coisas iam se acertar de um jeito ou de outro. Tentara explicar sua versão aos policiais, aos assistentes sociais, aos funcionários do hospital, enfermeiras, médicos, psicólogos, e até a um pastor que queria que ela rezasse com ele. Quando ia sentada na traseira da viatura policial e passaram pelo Wenner-Gren Center a caminho de Uppsala, ainda não sabia para onde a levavam. Ninguém tinha lhe informado. Foi então que começou a desconfiar que nada ia se ajeitar.
Tinha tentado explicar a Peter Teleborian.
O resultado de tanto esforço foi que na noite de seus treze anos ela se achava amarrada em cima de uma cama.
Peter Teleborian era sem dúvida o sádico mais nojento e mais abjeto que Lisbeth Salander tinha conhecido na vida. A seu ver, ele superava Bjurman em vários aspectos. Bjurman era um perverso brutal que ela conseguira controlar. Já Peter Teleborian se protegia atrás de uma cortina de documentos, avaliações, méritos universitários e jargões psiquiátricos. Absolutamente nenhum de seus atos jamais podia ser denunciado e contestado.
O Estado o incumbira da missão de amarrar menininhas desobedientes com correias.
E toda vez que Lisbeth Salander era amarrada de costas e ele apertava o arreio e cruzava o olhar com o seu, ela podia ver sua excitação. Ela sabia. Ele sabia que ela sabia. A mensagem tinha sido dada.
Na noite de seus treze anos, ela resolveu nunca mais trocar uma palavra sequer com Peter Teleborian nem com nenhum outro psiquiatra ou médico da cabeça. Era o presente que ela se dava de aniversário. E mantivera a promessa. Sabia que isso frustrara Peter Teleborian, e decerto contribuíra mais que qualquer outra coisa para que noite após noite ela fosse amarrada com o arreio. Ela estava disposta a pagar o preço.
Aprendeu tudo sobre autocontrole. Não tinha mais crises e não jogava mais objetos à sua volta nos dias em que a tiravam do isolamento.
Mas não falava com os médicos.
Em compensação, falava educadamente e sem restrições com as enfermeiras, funcionários da cantina e faxineiras. Isso não passou despercebido. Uma enfermeira simpática chamada Carolina, a quem Lisbeth se afeiçoara até certo ponto, perguntou-lhe um dia por que ela agia daquele modo.
Por que você não fala com os médicos?
Porque eles não escutam o que eu digo.
Essa resposta não era nada impulsiva. Era sua maneira de se comunicar com os médicos apesar dos pesares. Sabia perfeitamente que todo comentário seu era registrado em seu dossiê, e assim ela atestava que seu silêncio era fruto de uma decisão racional.
No último ano em Sankt Stefan, Lisbeth fora deixada com cada vez menos freqüência na cela de isolamento. E quando isso acontecia era sempre porque de algum modo ela havia irritado Peter Teleborian, o que ela sempre conseguia fazer assim que ele punha os olhos nela. Ele tentava constantemente romper o silêncio obstinado de Lisbeth e forçada a reconhecer a existência dele.
Um dia, Teleborin resolveu lhe administrar um tipo de tranqüilizante que a deixava com dificuldade para respirar e para pensar, o que, por sua vez, lhe causava angústia. Ela então se negara a tomar o remédio, donde a decisão de obrigá-la a engolir os comprimidos à força três vezes ao dia.
Sua resistência fora tão violenta que os funcionários tiveram de segurada, abrir sua boca e forçá-la a engolir. Na primeira vez, Lisbeth enfiou imediatamente os dedos na garganta e vomitou o almoço na enfermeira mais próxima. 0 resultado foi que passaram a amarrá-la para que tomasse os comprimidos. A resposta de Lisbeth foi aprender a vomitar sem precisar enfiar os dedos na garganta. A violência de sua recusa e o trabalho extra que isso implicava para os funcionários resultaram na interrupção do experimento.
Ela acabava de completar quinze anos quando a trouxeram de volta a Estocolmo, para uma família adotiva. A mudança a pegou de surpresa. Nessa época, Peter Teleborian ainda não era o médico-chefe de Sankt Stefan e Lisbeth Salander estava convencida de que esse era o único motivo de sua súbita libertação. Se Teleborian pudesse decidir sozinho, ela ainda estaria amarrada na cama do isolamento.
E eis que agora ela tornava a vê-lo na tevê. Perguntou-se se ele ainda esperava tê-la de novo como paciente, ou se ela agora já estava muito velha para satisfazer os seus fantasmas. Sua contestação à decisão do tribunal de não interná-la mostrou-se eficaz e despertou a indignação também da repórter que o entrevistava, que aparentemente não tinha a menor idéia do que deveria estar lhe perguntando. Ninguém podia se permitir contradizer Peter Teleborian. O médico-chefe anterior de Sankt Stefan já havia morrido. O juiz do tribunal de instâncias que presidira o caso Salander, e que agora deveria, em parte, assumir o papel do malvado da tragédia, estava aposentado. Negava-se a prestar declarações à imprensa.
Lisbeth descobriu um dos textos mais desnorteantes no site de um jornal local do centro da Suécia. Leu-o três vezes antes de desligar o computador e acender um cigarro. Sentou-se na almofada do vão da janela e contemplou a iluminação pública noturna com um sentimento de resignação.
“ELA É BISSEXUAL”, DIZ UMA AMIGA DE INFÂNCIA
A mulher de vinte e seis anos que está sendo procurada por três assassinatos é descrita como uma pessoa solitária e fechada, com grandes dificuldades de adaptação escolar. Apesar das várias tentativas no sentido de socializá-la, sempre se manteve à margem.
“Ela manifestamente tinha algum problema grande de identidade sexual, recorda Johanna, uma de suas raras amigas na escola. Desde cedo ficou muito claro que ela era diferente e bissexual. Estamos preocupados com ela.”
O texto continuava descrevendo alguns episódios de que Johanna se recordava. Lisbeth franziu o cenho. Não se lembrava daqueles episódios nem de que tinha tido uma amiga próxima chamada Johanna. Aliás, não conseguia se lembrar de ter tido alguma vez alguém que se pudesse qualificar de amigo próximo e tivesse tentado integrá-la à sociedade nos tempos de escola.
O texto era vago em relação à época em que os episódios teriam ocorrido, mas, concretamente, ela saíra da escola aos doze anos. Isso significava que sua preocupada colega de infância teria descoberto a bissexualidade de Lisbeth no primeiro ano do ginásio!
Em meio ao tsunami enlouquecido de textos delirantes durante a semana, a entrevista de Johanna foi a que mais a atingiu. Tinha obviamente sido forjada. Ou o repórter topara com uma completa mitômana, ou ele próprio inventara tudo aquilo. Memorizou o nome dele e o acrescentou à lista de objetos futuros de pesquisa.
Nem mesmo as reportagens mais compassivas, temperadas com uma pontinha de crítica ao sistema, que exibiam manchetes como “Uma falha da sociedade” ou “Ela nunca recebeu a ajuda de que precisava”, conseguiam minorar seu papel de inimigo público número um - uma assassina que, num acesso de loucura, executara três respeitáveis cidadãos.
Lisbeth leu as interpretações de sua vida com certo fascínio e observou uma evidente lacuna naquilo que o público estava conhecendo. Apesar do acesso aparentemente ilimitado aos detalhes mais íntimos de sua vida lacrados com o selo confidencial, a mídia passara totalmente ao largo de Todo o Mal, que ocorrera pouco antes de seus treze anos. O que sabiam de sua vida ia da pré-escola até por volta dos onze anos e, depois, a partir dos quinze anos, quando tivera alta da clínica de psiquiatria infantil e fora encaminhada para uma família adotiva.
Aparentemente, alguém da investigação policial estava fornecendo informações à mídia mas, por razões que Lisbeth Salander ignorava, resolvera omitir Todo o Mal. Isso a intrigava. Se a polícia fazia tanta questão de enfatizar sua tendência à violência extrema, essa investigação constituiria a acusação mais pesada de seu dossiê, sendo muito mais séria que todas as bobagens do recreio da escola. Estava na origem de sua transferência para Uppsala e da internação no Sankt Stefan.
No domingo de Páscoa, Lisbeth começou a ter um panorama razoável da investigação policial. As informações da imprensa lhe proporcionaram uma boa visão dos participantes. Notou que o procurador Ekström coordenava o inquérito preliminar e era, em geral, quem se pronunciava nas coletivas de imprensa. A investigação de campo estava sendo chefiada pelo inspetor criminal Jan Bublanski, homem dotado de ligeiro excesso de peso, que usava um paletó mal cortado e assistia Ekström em algumas coletivas.
Dias depois, identificou Sonja Modig, a única mulher da equipe, que descobrira o corpo de Bjurman. Anotou o nome de Hans Faste e de Curt Bolinder, mas deixou passar o de Jerker Holmberg, que não aparecia em nenhuma reportagem. Criou uma pasta no computador para cada um deles e começou a alimentá-las com dados.
As informações sobre o andamento da investigação policial encontravam-se, evidentemente, nos computadores dos investigadores, cuja base de dados achava-se armazenada no servidor da delegacia. Lisbeth Salander sabia que era extremamente difícil piratear a rede interna da polícia, mas não impossível. Já fizera isso uma vez.
Por ocasião de um trabalho para Dragan Armanskij, quatro anos antes, ela mapeara a estrutura da rede da polícia e avaliara as possibilidades de entrar no registro das fichas criminais para efetuar suas próprias pesquisas. Lamentavelmente, fracassara em suas tentativas de invasão ilegal - os firewall da polícia eram demasiado sofisticados, e minados por todo tipo de armadilhas capazes de dar o alerta.
A rede interna da polícia era estruturada conforme as regras da arte, com cabos próprios, separados de qualquer cabeamento externo e de internet. Ou seja, para fazer uma pesquisa através dela, Lisbeth precisaria de um tira autorizado a usar a rede ou, segunda possibilidade, que a rede interna da polícia pensasse que ela era uma pessoa autorizada. Nesse aspecto, os especialistas em segurança da polícia felizmente haviam deixado aberta uma imensa porta dos fundos. Inúmeras delegacias do país estavam conectadas à rede central, sendo que muitas não passavam de pequenas unidades locais que fechavam à noite e não contavam com alarme ou vigilância. A delegacia próxima a Lângvik, nos arredores de Vàsterâs, era uma delas. Ocupava cento e trinta metros quadrados no mesmo prédio da biblioteca municipal e da Previdência Social e, durante o dia, o plantão era feito por três policiais.
Na época, Lisbeth Salander não conseguira entrar na rede para a investigação que estava realizando, mas pensou que valia a pena dedicar algum tempo e energia procurando um acesso, visando investigações futuras. Examinara as possibilidades que se ofereciam e então entrara com um pedido de emprego temporário de verão como faxineira na biblioteca de Lángvik. Paralelamente ao manejo de baldes e esfregões, gastou cerca de dez minutos nas dependências do Urbanismo Municipal para obter as plantas detalhadas do local. Pegara as chaves do prédio, mas não das dependências da polícia. Em compensação, descobrira que podia, sem muita dificuldade, penetrar no local por uma janela de banheiro do primeiro andar, que ficava entreaberta à noite no verão, por causa do calor. A delegacia era vigiada apenas por um guarda da Securitas que passava por ali duas ou três vezes por noite. Ridículo.
Demorou uns cinco minutos para descobrir o login e a senha, escondidos no risque-rabisque do oficial de polícia local, e levou cerca de uma noite fazendo experimentos a fim de entender a estrutura da rede e identificar que tipo de acesso essa pessoa dispunha e que tipo de acesso era proibido àquela equipe. De quebra, obteve também os login e as senhas de mais dois policiais. Um deles era Maria Ottosson, de trinta e dois anos. Em seu computador. Lisbeth descobriu que ela solicitara, e obtivera um cargo de investigadora na brigada de fraudes da polícia de Estocolmo. Lisbeth tirou a sorte grande com Ottosson: a inocente Maria deixara seu computador portátil, um Dell, numa gaveta destrancada! Maria Ottosson era, portanto, uma policial que usava seu computador pessoal no trabalho. Sublime! Lisbeth iniciou o computador e inseriu seu CD com o programa Asphyxia 1.0, a primeiríssima versão do seu programa de espionagem. Instalou-o em dois lugares: como parte ativa e integrada do Microsoft Explorer e como backup do caderno de endereços de Maria Ottosson. Lisbeth imaginou que se Ottosson comprasse um computador novo, iria transferir seu caderno de endereços, e também era grande a possibilidade de transferi-lo para seu computador de trabalho na brigada de fraudes de Estocolmo, quando assumisse seu cargo dali a algumas semanas.
Também instalou programas nos computadores fixos dos policiais, o que lhe permitiria buscar informações externas. Apropriando-se simplesmente das identidades deles, poderia pesquisar no registro dos arquivos judiciários. Em compensação, tinha de avançar pé ante pé para que as invasões não fossem notadas. O departamento de segurança da polícia, por exemplo, acionava um alarme automático caso um policial local se conectasse fora do serviço, e se o fato se repetisse, ou se o número de buscas aumentasse consideravelmente. E caso ela colhesse dados sobre investigações em que a polícia local não tinha nenhum envolvimento plausível, o alarme disparava igualmente.
Ao longo do ano seguinte, ela tinha trabalhado com seu colega hacker Praga para assumir o controle da rede da polícia. A tarefa apresentara dificuldades tão insuperáveis que eles acabaram abandonando o projeto. Durante a tentativa, porém, tinham armazenado perto de cem identidades de policiais existentes, que podiam tomar emprestadas se necessário.
Praga vencera uma etapa importante ao conseguir piratear o computador pessoal do chefe do departamento de segurança de informática da polícia. 0 sujeito era um consultor em economia sem grandes conhecimentos de informática, mas dispunha de uma profusão de informações em seu laptop. Embora não pudessem piratear toda a rede da polícia, Lisbeth e Praga estavam pelo menos em condições de infestá-la com vírus malignos de diversos tipos - o que não tinham o menor interesse em fazer. Eram hackers, e não sabotadores. Queriam ter acesso às redes, e não destruí-las.
Lisbeth Salander conferiu sua lista e constatou que nenhuma das pessoas de quem roubara a identidade trabalhava na investigação do triplo assassinato - seria pedir demais. Em compensação, podia, sem grandes dificuldades, entrar e ler os detalhes do alerta de busca nacional, inclusive atualizações a seu respeito. Descobriu que havia sido vista e caçada em Uppsala, Norrkõping, Göteborg, Malmõ, Hássleholm e Kalmar, entre outros, e que fora divulgada uma atualização sigilosa com o morphing, dando uma idéia melhor de sua aparência física.
Uma das raras vantagens de Lisbeth, considerando-se a atenção que a mídia vinha lhe dedicando, era que dispunham de pouquíssimas fotos suas. Com exceção da foto do pasSäporte e da carteira de habilitação, de quatro anos atrás, e de uma foto dos arquivos da polícia de quando tinha dezoito anos (totalmente irreconhecível), só havia umas poucas fotografias esparsas colhidas em álbuns antigos ou tiradas por um professor durante uma excursão à reserva natural de Nacka, quando ela tinha doze anos. As fotos da excursão mostravam uma figura desfocada, sentada sozinha longe dos demais.
Na foto do passaporte ela aparecia com olhos fixos e arregalados, a boca como um traço mínimo e a cabeça levemente inclinada, o que confirmava a idéia de uma assassina antissocial retardada, mensagem que a mídia reproduzia até dizer chega. A única coisa positiva naquela foto é que estava tão irreconhecível que poucas pessoas a identificariam na vida real.
Acompanhou com interesse os perfis que haviam sido traçados das três vítimas. Na terça-feira, a mídia começou a patinar e, na falta de novas revelações sensacionais na busca a Lisbeth Salander, o interesse voltou a se centrar nas vítimas. Dag Svensson, Mia Bergman e Nils Bjurman eram descritos num longo artigo de fundo de um jornal vespertino. O que ressaía é que três cidadãos honrados haviam sido abatidos por motivos incompreensíveis.
Nils Bjurman aparecia como um advogado respeitado e socialmente engajado, membro do Greenpeace e ostentando “um autêntico compromisso com os jovens”. Uma coluna foi ocupada por um amigo próximo e colega de Bjurman, Rune Hâkansson, que tinha um escritório no mesmo prédio que ele. Hâkansson confirmou a imagem de Bjurman como um homem afeito à defesa dos direitos das pessoas simples. Um funcionário da Comissão de Tutelas mencionava “seu autêntico engajamento com sua protegida Lisbeth Salander”.
Lisbeth Salander esboçou seu primeiro sorriso enviesado do dia.
Era grande o interesse em torno de Mia Bergman, a vítima feminina da tragédia. Era descrita como uma mulher jovem e bonita, dotada de rara inteligência, com um currículo já impressionante, e diante da qual se abria uma brilhante carreira. Amigos chocados, colegas de curso e seu orientador eram citados. A pergunta que se repetia era “por quê?”. Fotos mostravam buquês de flores e velas acesas em frente a seu prédio em Enskede.
Em comparação, era pouco o espaço dedicado a Dag Svensson. Ele era descrito como um repórter perspicaz e corajoso, mas sua companheira roubava a cena.
Lisbeth observou ligeiramente surpresa, que foi preciso esperar até o domingo de Páscoa para alguém descobrir que Dag Svensson vinha trabalhando numa grande reportagem para a revista Millennium. Sua surpresa aumentou ao perceber que não se mencionava a natureza exata desse trabalho.
Não chegou a ler as declarações de Mikael Blomkvist na edição on-line do Aftonbladet. Só na terça-feira, quando foram reproduzidas num telejornal, foi que se deu conta de que Blomkvist repassara informações totalmente erradas. Segundo Mikael, Dag Svensson tinha sido contratado para escrever uma reportagem sobre “segurança e invasão ilegal em computação”.
Lisbeth franziu o cenho. Sabia que a afirmação era falsa e se perguntou qual era o jogo da Millennium. Então compreendeu a mensagem e esboçou seu segundo sorriso enviesado do dia. Conectou-se ao servidor holandês e clicou duas vezes no ícone Mik-Blom/laptop. Deparou com a pasta [LISBETH SALANDER] e com o arquivo [Para Sally] bem à vista na área de trabalho. Clicou duas vezes e leu.
Então, ficou um longo tempo parada diante da carta de Mikael. Dentro dela, enfrentavam-se sentimentos contraditórios. Até o momento, tivera a Suécia inteira contra si, o que, por sua simplicidade, era uma equação relativamente clara e compreensível. Agora, via-se de repente com um aliado, ou pelo menos um aliado potencial que afirmava acreditar em sua inocência. E é claro que tinha de ser justamente o único homem da Suécia que ela não queria ver de jeito nenhum. Suspirou. Mikael Blomkvist era, como sempre, uma alma danada de boa repleta de ingenuidade. Lisbeth Salander não era inocente desde os dez anos de idade.
Inocentes não existem. Em compensação, existem diferentes níveis de responsabilidade.
Nils Bjurman morrera porque escolhera não jogar de acordo com as regras que ela havia decretado. Tivera todas as chances e, no entanto tinha contratado um maldito macho anabolizado para lhe fazer mal. Ela não tinha culpa.
Mas não dava para subestimar a entrada em cena do Super-Blomkvist. Ele poderia ser útil.
Ele era bom em adivinhações e dono de uma teimosia incomparável. Ela descobrira isso em Hedestad. Quando encasquetava com alguma coisa, aguentava firme, mesmo levando um tombo. Quanta ingenuidade! Só que ele tinha liberdade de movimentos, enquanto ela era obrigada a permanecer invisível. Poderia usá-lo até que pudesse deixar o país tranqüilamente. E imaginava que muito em breve seria obrigada a fazê-lo.
Infelizmente, Mikael Blomkvist era ingovernável. Ele próprio tinha de querer. E precisava de um pretexto moral para agir.
Em outras palavras, era bastante previsível. Refletiu alguns instantes e então criou um novo arquivo, que chamou [Para MikBlom], e escreveu uma única palavra.
[Zala.]
Já lhe daria no que pensar.
Ela ainda estava matutando quando percebeu que Mikael Blomkvist acabava de ligar o computador. A resposta veio pouco depois de ele ler a resposta dela.
[Lisbeth,
Que diacho de menina complicada você está me saindo... Quem é esse Zala? Ele é que é o elo? Você sabe quem matou Dag & Mia? Se sabe, me diga, para a gente conseguir desfazer este nó e ir para casa dormir. Mikael]
O.k. Hora de fisgá-lo.
Criou mais um documento e o intitulou [Super-Blomkvist]. Sabia que isso iria irritá-lo. E escreveu uma mensagem breve.
[O jornalista é você. Trate de descobrir.]
Como previsto, ele respondeu no ato pedindo-lhe para ser mais conciliadora, e mais explícita. Ela sorriu e fechou o disco rígido de Mikael.
* * *
Já que havia chegado a esse ponto em suas invasões, resolveu continuar e abriu o disco rígido de Dragan Armanskij. Leu pensativa o relatório que ele fizera sobre ela na segunda-feira após a Páscoa. O destinatário do relatório - pra mencionado, mas ela refletiu que a única possibilidade era Armanskij estar colaborando com os tiras para prendê-la.
Passou algum tempo percorrendo a correspondência eletrônica de Armanskij, sem encontrar, porém, nada de interessante. Estava prestes a sair do disco rígido quando deparou com o e-mail endereçado ao responsável técnico da Milton Security. Armanskij solicitava a instalação de uma câmera de vigilância oculta em sua sala.
Epa! Epa!
Conferiu a data e percebeu que o e-mail tinha sido enviado apenas uma hora depois de sua visita de cortesia no final de janeiro.
Isso significava que ela precisaria reajustar certos processos do sistema automático de vigilância antes de empreender novas visitas à sala de Armanskij.