EPÍLOGO: INVENTÁRIO DE SUCESSÃO: SEXTA-FEIRA 2 DE DEZEMBRO – DOMINGO 18 DE DEZEMBRO


Annika Giannini encontrou-se com Lisbeth no bar do Sõdra Teatern por volta das nove da noite. Lisbeth terminava seu segundo copo de cerveja.

— Desculpe o atraso — disse Annika, dando uma olhada no relógio. — Tive um pepino com outro cliente.

— Ah, é? — disse Lisbeth.

— O que você está comemorando?

— Nada. Apenas me deu vontade de encher a cara.

Annika observou-a com ceticismo e se sentou.

— Você tem sempre essa vontade?

— Eu tomei o maior porre quando me soltaram, mas não tenho tendência ao alcoolismo, se é isso que te preocupa. Apenas tive consciência de que, pela primeira vez na vida, desde que sou maior de idade, estou legalmente autorizada a me embebedar aqui na Suécia.

Annika pediu um Campari.

— Bem — disse ela. — Você quer beber sozinha ou quer companhia?

— Dê preferência, sozinha. Mas se você não falar muito, pode ficar comigo. Imagino que não queira ir até a minha casa dar uma trepada?

— Hein? — disse Annika Giannini.

— Não, foi o que eu pensei. Você é dessas héteros convictas. De repente, Annika Giannini pareceu achar graça.

— É a primeira vez que um cliente me propõe uma trepada.

— Está interessada?

— Nem um pouco, sinto muito. Mas obrigada pelo convite.

— Então, o que você queria comigo, senhora advogada?

— Duas coisas. Ou você começa a atender os meus telefonemas, ou eu renuncio a ser sua advogada aqui e agora. Já conversamos sobre isso quando você foi solta.

Lisbeth fitou Annika Giannini.

— Faz uma semana que estou tentando falar com você. Liguei, escrevi, mandei e-mails.

— Eu estava viajando.

— Você esteve incomunicável quase o outono todo. Não dá para ser desse jeito. Aceitei ser sua representante jurídica em tudo o que diz respeito aos seus problemas com o Estado. Isso implica formalidades e documentos. Papéis para assinar. Perguntas que devem ser respondidas. Preciso ter como te encontrar, e não acho a menor graça em ficar feito uma boba, sem saber onde você se meteu.

— Entendo. Passei duas semanas no exterior. Cheguei ontem e liguei assim que percebi que você estava tentando falar comigo.

— Não basta. Você precisa me manter informada sobre onde você está e me dar notícias pelo menos uma vez por semana até que todas as pendências de indenização e coisas desse tipo estejam resolvidas.

— Estou me lixando para a indenização. Só quero que o Estado me deixe em paz.

— Mas o Estado não vai te deixar em paz, isso não depende de você. A sua absolvição, no julgamento, trouxe uma cadeia de conseqüências. Você não é a única envolvida. O Peter Teleborian vai ser processado pelo que fez com você. Isso significa que você vai ter que testemunhar. O procurador Ekstrõm está sendo investigado por erro profissional, e também pode acabar sendo indiciado se ficar provado que ele, em sã consciência, negligenciou seu dever como funcionário a pedido da Seção.

Lisbeth ergueu as sobrancelhas. Por um segundo, pareceu quase interessada.

— Não acredito que haja indiciamento. Ele se deixou enganar e, na verdade, não tem nada a ver com a Seção. Mas, ainda na semana passada um procurador abriu um inquérito preliminar sobre a Comissão de Tutelas O ombudsman recebeu várias reclamações e o mediador, uma.

— Eu não dei queixa contra ninguém.

— Não. Mas é óbvio que erros profissionais graves foram cometidos e tudo isso terá que ser investigado. Você não é a única pessoa sob responsabilidade da comissão.

Lisbeth deu de ombros.

— Eu não me sinto envolvida. Mas prometo manter um contato mais regular com você. As duas últimas semanas foram uma exceção. Eu estava trabalhando.

Annika Giannini olhou desconfiada para sua cliente.

— Trabalhando no quê?

— Serviço de consultoria.

— Está bem — ela disse afinal. — O outro assunto é que o inventário da sucessão foi concluído.

— Que inventário?

— O inventário dos bens do seu pai. O advogado do Estado me procurou, já que ninguém sabia onde te achar. Você e sua irmã são as únicas herdeiras.

Lisbeth Salander contemplou Annika sem esboçar nenhuma reação. Depois, capturou o olhar da garçonete e apontou para o seu copo.

— Eu não quero nenhuma herança do meu pai. Pode fazer o que quiser com ela.

— Errado. Você pode fazer o que quiser com essa herança. O meu trabalho é cuidar para que você possa fazer isso.

— Eu não quero um só ore daquele porco.

— Certo. Doe o dinheiro para o Greenpeace, ou para quem você quiser.

— Estou pouco me lixando para as baleias.

De repente, a voz de Annika tornou-se autoritária.

— Lisbeth, se você quer ser maior de idade, já está na hora de se comportar como tal. Não estou nem aí para o que você faz com o seu dinheiro. Só assine aqui dizendo que recebeu e depois pode ficar bebendo à vontade.

Lisbeth olhou de esguelha para Annika, depois para a mesa. Annika supôs que aquilo fosse uma espécie de gesto arrependido, ao qual, quem sabe, se seguiria um pedido de desculpas no limitado repertório de mímicas de Lisbeth Salander.

— Certo. Qual é a quantia?

— E bastante razoável. Seu pai tinha pouco mais de trezentas mil coroas em títulos. A propriedade de Gosseberga, que inclui alguns hectares de floresta, está avaliada em cerca de um milhão e meio de coroas. Além disso, seu pai era proprietário de mais três bens imóveis.

— Bens imóveis?

— Sim. Parece que ele investiu algum dinheiro. Não são propriedades de um valor extraordinário. Ele era dono de um pequeno prédio em Uddevalla, com seis apartamentos, o que gera alguma renda de aluguéis. Mas o prédio está em mau estado, falta manutenção. O fato de ser um imóvel velho até foi mencionado na Comissão de Locações. Isso não vai te deixar rica, mas a venda vai render uma quantia razoável. Ele também tinha uma casa de campo em Smâland, avaliada em duzentas e cinqüenta mil coroas.

— Ah, é?

— E também um prédio industrial deteriorado próximo a Norrtálje.

— Por que ele juntou essa porcaria toda?

— Não faço a menor idéia. De modo geral, depois de vender tudo e descontando impostos e coisas assim, a herança poderia chegar a quatro milhões e pouco, mas...

— Sim?

— Depois, ela tem que ser dividida igualmente entre você e sua irmã. O problema é que ninguém sabe onde ela se encontra.

Lisbeth fitou Annika Giannini com um silêncio inexpressivo.

— E então?

— Então o quê?

— Onde está sua irmã?

— Não faço idéia. Faz dez anos que eu não sei dela.

— Ela detém informações protegidas como segredo de segurança nacional, mas tiveram a gentileza de me informar que nos cadastros do país ela não consta como residente.

— Ah, é? — disse Lisbeth com um interesse controlado. Annika suspirou, resignada.

— Tudo bem. Então eu sugiro que a gente liquide todos os ativos e deposite a metade do dinheiro no banco até sua irmã ser localizada. Posso dar entrada em todos os papéis, se você me autorizar.

Lisbeth deu de ombros.

— Eu não quero o dinheiro dele.

— Dá para entender. Mas, seja como for, temos que apresentar um balanço. Faz parte das suas responsabilidades como maior de idade.

— Então venda essa porcaria toda. Deposite a metade do dinheiro no banco e o resto você doa para quem quiser.

Annika Giannini ergueu uma sobrancelha. Já percebera que Lisbeth Salander tinha dinheiro guardado, mas não havia se dado conta de que sua cliente era rica o suficiente para se permitir desprezar uma herança de quase dois milhões de coroas, talvez mais. Não fazia a menor idéia de como Lisbeth tinha tanto dinheiro, nem de quanto era exatamente. No entanto, gostaria de encerrar todos aqueles trâmites administrativos.

— Por favor, Lisbeth... Leia o inventário da sucessão e me dê sinal verde para pormos um ponto final nesse assunto.

Lisbeth resmungou um pouco, mas acabou cedendo e enfiou a pasta na bolsa. Prometeu que iria ler o inventário e dar instruções para que Annika Giannini pudesse agir em seu nome. A seguir, concentrou-se em sua cerveja. Annika lhe fez companhia por mais uma hora, atendo-se à água mineral.

Somente muitos dias depois, quando Annika Giannini ligou e insistiu no assunto do inventário, é que Lisbeth Salander tirou da bolsa os papéis amassados e os ajeitou. Sentou-se à mesa da cozinha de seu apartamento da Fiskargatan e leu os documentos.

O inventário da sucessão era composto por várias páginas e continha informações das mais variadas — o aparelho de jantar que havia no armário da cozinha de Gosseberga, roupas, o valor de câmeras fotográficas e de outros objetos pessoais. Alexander Zalachenko não deixara muita coisa valiosa, e nenhum daqueles objetos tinha qualquer significado afetivo para Lisbeth Salander. Ela pensou um pouco e concluiu que sua atitude não mudara desde que se encontrara com Annika no bar. Venda essa porcaria toda e queime o dinheiro. Algo do gênero. Estava absolutamente segura de que não queria um único ore de seu pai, mas também tinha bons motivos para desconfiar que as verdadeiras posses de Zalachenko estavam enterradas em algum lugar onde oficial de justiça nenhum teria ido procurar.

Em seguida, abriu o descritivo do prédio industrial de Norrtãlje.

Tratava-se de uma propriedade de vinte mil metros quadrados, dividida em três construções, situada nas proximidades de Skederid entre Norrtãlje e Rimbo.

O oficial de justiça incumbido do inventário fizera uma rápida visita ao local só para constatar que se tratava de uma antiga olaria, mais ou menos abandonada desde que encerrara as atividades nos anos 1970. Ele observara que o local estava em péssimo estado e que não poderia ser reformado para que abrigasse outra atividade. Com péssimo estado ele queria dizer, entre outras coisas, que o chamado "edifício norte" tinha sido devastado pelo fogo e desabara. Alguns consertos, no entanto, haviam sido feitos no "edifício principal".

O que intrigou Lisbeth Salander foi o histórico. Alexander Zalachenko tinha adquirido esse bem imóvel por uma ninharia em 12 de março de 1984, mas Agneta Sofia Salander é que aparecia como compradora.

A mãe de Lisbeth Salander tinha, portanto, sido a proprietária do imóvel. Sua participação, contudo, cessara em 1987. Zalachenko comprara os prédios por duas mil coroas. A partir daí, eles tinham aparentemente ficado abandonados por mais de quinze anos. O inventário da sucessão registrava que, em 17 de setembro de 2004, a empresa KAB contratara a empresa de engenharia NorrBygg S. A. para realizar uma reforma que incluía reparo de pisos e telhado, além de melhorias nas redes de água e energia elétrica. As obras tinham se estendido por quase dois meses, até 30 de novembro de 2004, quando foram interrompidas. NorrBygg enviara uma fatura, que havia sido paga.

Essa propriedade deixada por seu pai era intrigante. Lisbeth Salander franziu o cenho. Seria compreensível seu pai possuir um prédio industrial para ele mostrar que sua empresa legal, a KAB, tinha uma atividade qualquer ou alguns bens. Era compreensível ele ter usado a mãe de Lisbeth Salander como laranja, ou nome de fachada, na ocasião da compra, para em seguida se apoderar do contrato de compra e venda.

Mas por que diabos ele gastara, em 2004, quase 440 mil coroas para reformar um prédio caindo aos pedaços que, de acordo com o inventariante, continuava sem ser usado em 2005?

Lisbeth Salander estava desconcertada mas não muito interessada. Fechou a pasta e ligou para Annika Giannini.

— Eu li o inventário. Minha decisão permanece igual. Venda essa porcaria toda e faça o que quiser com o dinheiro. Não quero ficar com nada que era dele.

— Certo. Vou cuidar para que metade do valor seja depositada em uma conta para sua irmã. Depois, vou sugerir a você algumas possibilidades de doação.

— Ahã — disse Lisbeth, e desligou sem dizer mais nada.

Sentou-se no recanto da janela, acendeu um cigarro e ficou contemplando a bacia de Saltsjõn.

Lisbeth Salander passou a semana seguinte dando assistência a Dragan Armanskij num caso urgente. Tratava-se de seguir a pista e identificar uma pessoa suspeita de ter sido contratada para seqüestrar uma criança cuja guarda era motivo de conflito no divórcio de uma sueca e um cidadão libanês. A contribuição de Lisbeth Salander se limitava a controlar os e-mails da pessoa suspeita de ser o mandante. O serviço terminou quando as duas partes, reconciliadas, aceitaram um acordo diante do juiz.

Dia 18 de dezembro era o domingo anterior ao Natal. Lisbeth acordou às seis e meia e pensou que deveria comprar um presente de Natal para Hol-ger Palmgren. Refletiu por um instante na possibilidade de comprar outros presentes — quem sabe para Annika Giannini. Sem pressa, levantou-se, tomou banho e desfrutou calmamente seu café da manhã, composto por café, torradas com queijo e geleia de laranja.

Não tinha nenhum plano específico para aquele dia e passou algum tempo tirando um monte de papéis e jornais de seu escritório. Nisso, seu olhar bateu na pasta do inventário. Abriu-o e releu a página com a descrição do prédio industrial de Norrtãlje. Por fim, deu um suspiro. Tudo bem. Preciso descobrir o que ele estava aprontando.

Vestiu uma roupa quente e botas de cano alto. Eram oito e meia quando saiu com seu Honda cor de vinho da garagem do subsolo do prédio da Fiskar-gatan, n- 9. Fazia um frio intenso, mas o dia estava ensolarado e o céu, azul-pastel. Passou por Slussen e pela perimetral da Klaraberg e ziguezagueou pela E18 em direção a Norrtãlje. Não tinha pressa. Eram quase dez horas quando parou num posto de gasolina a poucos quilômetros de Skederid para perguntar o caminho da antiga olaria. Quando estava estacionando, percebeu que não seria necessário perguntar.

Encontrava-se num morro que dava para um pequeno vale do outro lado da estrada. À esquerda, na estrada de Norrtãlje, havia uma indústria de tintas e material de construção e um terreno de estacionamento para maquinado de terraplanagem. À direita, beirando a zona industrial, a cerca de quatrocentos metros da estrada principal, erguia-se um prédio sombrio de tijolo aparente com uma chaminé em ruínas. A fábrica tinha o aspecto de uma última sentinela da zona industrial, meio isolada por uma estrada e pequeno riacho. Ela contemplou o prédio, pensativa, e se perguntou o que a levara a reservar o dia para fazer uma visita à cidade de Norrtãlje.

Virou a cabeça e olhou na direção do posto de gasolina, aonde acabava de chegar um caminhão peso pesado ostentando placas TIR.* De súbito, deu--se conta de que estava na artéria principal do porto mercante de Kapellskãr, por onde passava boa parte das mercadorias que transitavam entre a Suécia e os Estados bálticos.

Voltou a ligar o carro e retomou a estrada, virando logo em seguida na entrada para a olaria abandonada. Estacionou no meio do pátio e desceu do carro. A temperatura estava abaixo de zero, ela enfiou um boné preto e luvas de couro pretas.

O prédio principal tinha dois andares. No térreo, as janelas estavam todas condenadas, cobertas com chapas de compensado. No andar de cima, ela notou um bom número de vidros quebrados. A olaria era muito maior do que ela imaginara, e parecia tremendamente deteriorada. Lisbeth não conseguia distinguir um vestígio sequer de reforma. Não viu nenhum sinal de vida, mas reparou numa camisinha usada jogada no meio do pátio e que parte da fachada tinha sido alvo de artistas grafiteiros.

Por que o Zalachenko fazia tanta questão de ser dono desse prédio?

Contornou a olaria e, nos fundos, deparou com a ala demolida. Constatou que todas as portas do prédio principal estavam fechadas com correntes e cadeados. Por fim, examinou, frustrada, uma porta lateral. Em todas as outras, os cadeados estavam fixados com parafusos firmes e placas antirroubo O cadeado da porta lateral parecia mais frágil e estava preso apenas por um prego grande. Ora, dane-se, afinal eu sou a proprietária. Deu uma olhada ao redor, encontrou um cano de metal em cima de um monte de tralha e o usou como alavanca para quebrar a presilha do cadeado.

Entrou numa escada que se abria para o céu. Com as janelas tapadas, reinava uma escuridão quase total, exceção feita a algumas esparsas estrias de luz que se esgueiravam pela beirada das placas de aglomerado. Ela ficou parada por alguns minutos, até seus olhos se habituarem à escuridão. Aos poucos foi distinguindo um amontoado de velharias, banquinhos abandonados, peças usadas de maquinaria e madeira de construção, numa sala que devia medir uns quarenta e cinco metros de comprimento por vinte de largura, com o teto sustentado por pilares maciços. Os antigos fornos da olaria tinham virado tanques cheios de água e havia bolor e poças enormes no piso. Daquela bagunça se desprendia um cheiro de mofo e podridão. Ela franziu as narinas.

Lisbeth deu meia-volta e subiu a escada. O andar de cima estava seco e compunha-se de duas salas, uma seguida à outra, de pouco mais de vinte metros por vinte, com pelo menos oito metros de pé-direito. Janelas altas junto ao telhado eram inacessíveis. Não permitiam, portanto, que se visse o lado de fora, mas traziam uma luz agradável. Ali também reinava a mais incrível miscelânea. Ela passou em frente a dúzias de caixotes de embalagem de um metro de altura empilhadas. Tentou erguer um deles. O caixote nem se moveu. Leu Máquina partes 0-A77 escrito na madeira. Abaixo, o mesmo texto em russo. Ela reparou num monta-cargas a meio caminho da primeira sala.

Uma espécie de depósito de máquinas que não poderiam gerar fortuna alguma enquanto ficassem enferrujando naquela antiga olaria.

Ela foi até a sala dos fundos e percebeu que era ali que a reforma tinha sido feita. A sala estava repleta de velharias, caixotes e móveis de escritório organizados de uma forma labiríntica. Uma parte do piso fora desocupada e recebera um laminado novo. Lisbeth observou que a reforma parecia ter sido interrompida de forma abrupta. As ferramentas, uma serra circular e uma serra de fita, uma pregadora automática, um pé de cabra, uma barra de ferro, assim como caixas de ferramentas, continuavam ali. Ela fez uma careta. Mesmo que as obras tenham sido interrompidas, a empresa responsável deveria ter levado o material. Mas também essa pergunta foi respondida quando ela pegou uma chave de fenda e constatou que a inscrição no cabo estava em russo. Zalachenko tinha importado as ferramentas e também, quem sabe, os operários.

Ela se aproximou da serra circular e girou o botão. Uma lâmpada verde se acendeu. Havia energia elétrica. Desligou a máquina.

No fundo da sala, havia três portas que davam para peças menores, talvez os antigos escritórios. Ela experimentou a maçaneta da porta que ficava mais ao norte. Trancada. Olhou em torno e foi até onde estavam as ferramentas para pegar um pé de cabra. Levou algum tempo para conseguir abrir a porta.

A peça estava na mais completa escuridão e cheirava a mofo. Tateou com a mão e achou um interruptor que acendeu uma lâmpada simples no teto. Lisbeth ficou estarrecida.

A mobília consistia em três camas com colchões sujos e outros três colchões colocados no chão. Lençóis sujos por toda parte. A direita, uma chapa elétrica e algumas panelas ao lado de uma torneira enferrujada. A um canto, um balde de metal e um rolo de papel higiênico.

Alguém havia morado ali* Várias pessoas.

Então, reparou que a porta não tinha maçaneta do lado de dentro do quarto. Um arrepio gelado percorreu suas costas.

No fundo da peça, havia um guarda-roupa grande. Abriu-o e deparou com duas malas. Pegou a que estava em cima. Havia roupas dentro. Vasculhou a mala e tirou de lá uma saia cuja etiqueta estava escrita em russo. Achou uma bolsa e esvaziou seu conteúdo no chão. Dentre a maquiagem e outras miudezas, achou um passaporte emitido para uma mulher morena de mais ou menos vinte anos. O texto estava em russo. Ela decifrou o nome: Valentina.

Lisbeth Salander saiu lentamente da peça com uma sensação de déjà-vu. Examinara um cenário de crime muito similar num porão de Hedestad, dois anos e meio antes. Roupas de mulher. Uma prisão. Ficou um bom tempo parada, refletindo. Preocupava-a que o passaporte e as roupas ainda estivessem ali. Um mau presságio.

Então voltou até onde estavam as ferramentas e revirou tudo ali até encontrar uma lanterna potente. Verificou as pilhas e em seguida voltou ao térreo e entrou na sala grande. A água das poças penetrou em suas botas.

Quanto mais ela avançava pela sala, mais o cheiro de putrefação se tornava insuportável. O fedor parecia atingir seu ponto máximo no meio do cômodo. Deteve-se diante da base de um dos antigos fornos para tijolos. Estava com água quase até a borda. Iluminou a água escura com a lanterna, mas não conseguiu ver nada. A superfície estava parcialmente coberta de algas que formavam um magma verde. Olhou em volta e encontrou uma barra de concreto armado de três metros de comprimento. Enfiou-a dentro do tanque e mexeu. A profundidade da água era de apenas uns cinqüenta centímetros. Quase de imediato, deparou com uma resistência. Fez força durante alguns segundos até que o corpo subisse à superfície, a começar pelo rosto, uma máscara contorcida de morte e decomposição. Respirou pela boca, contemplou o rosto à luz da lanterna e constatou que se tratava de uma mulher, talvez a mulher do passaporte do piso superior. Não entendia sobre a velocidade de decomposição em água fria e estagnada, mas o corpo parecia estar naquele tanque fazia algum tempo.

De repente, viu algo se mexendo na superfície da água. Algum tipo de larva.

Deixou o corpo voltar para o fundo da água e continuou procurando com a barra. Na borda do tanque, encostou no que parecia ser outro corpo. Recolheu a barra da água, deixou-a no chão e ficou parada em frente ao tanque, mergulhada em pensamentos.

Lisbeth Salander retornou ao andar de cima. Usou o pé de cabra para abrir a porta do meio. O cômodo estava vazio e não parecia ter sido usado.

Aproximou-se da última porta e posicionou o pé de cabra, mas, antes mesmo que começasse a forçá-la, a porta se entreabriu. Não estava trancada. Abriu-a de par em par empurrando com o pé de cabra e olhou em torno.

A sala tinha uns trinta metros quadrados. As janelas ficavam a uma altura normal e davam para o pátio em frente à olaria. Avistou o posto de gasolina no morro acima da estrada. Havia ali uma cama, uma mesa e uma bancada com louça em cima. Então viu uma sacola aberta no chão. Cédulas de dinheiro. Perplexa, deu dois passos à frente antes de perceber que fazia calor ali dentro. Seu olhar foi atraído por uma estufa elétrica no meio da sala. Avistou uma cafeteira elétrica. A luz vermelha estava acesa.

Tem alguém morando aqui. Não estou sozinha.

Deteve-se e logo em seguida saiu correndo. Passou pela sala do fundo, pelas portas intermediárias e se precipitou para a saída na primeira sala. Freou a cinco passos da escada, ao ver que a porta tinha sido fechada com um cadeado. Estava presa. Virou-se lentamente e olhou em volta. Não viu nada.

— Oi, mana — disse uma voz clara, vindo da lateral.

Virou a cabeça e deu com a estatura imensa de Ronald Niedermann se materializando junto a uns caixotes. Ele tinha uma baioneta na mão.

— Eu tinha esperança de voltar a te ver — disse Niedermann. — Na primeira vez foi tudo muito rápido.

Lisbeth olhou em volta.

— Não adianta — disse Niedermann. — Só estamos nós dois aqui, e a única saída é essa porta trancada atrás de você.

Lisbeth voltou o olhar para seu meio-irmão.

— Como está a sua mão? — perguntou.

Niedermann continuava sorrindo para ela. Ergueu a mão direita para lhe mostrar. Estava sem o dedo mínimo.

— Infeccionou. Fui obrigado a amputar.

Ronald Niedermann sofria de analgesia congênita e era incapaz de sentir qualquer tipo de dor. Lisbeth acertara a mão dele com uma pazada, em Gosseberga, poucos segundos antes de Zalachenko disparar uma bala na cabeça dela.

— Eu deveria ter mirado na sua cabeça — disse Lisbeth Salander com uma voz sem expressão. — O que você está fazendo aqui? Achei que tinha se mandado há meses para o exterior.

Ele sorriu para ela.

Mesmo que quisesse, não poderia responder à pergunta de Lisbeth Salander. Nem ele próprio sabia o que estava fazendo naquela olaria abandonada.

Ele deixara Gosseberga para trás com um sentimento de libertação. Achava que Zalachenko estava morto e que ele iria assumir a empresa. Sabia que era um excelente organizador.


Trocara de carro em Alingsâs, enfiara no porta-malas Anita Kaspersson, a assistente de odontologia apavorada, e rumara para Borâs. Ele não tinha um plano, ia improvisando. Não dedicara um só pensamento à sorte de Anita Kaspersson. Para ele tanto fazia ela viver ou morrer, e achava que precisaria se livrar de uma testemunha incômoda. Em algum lugar nos arredores de Borâs percebeu de repente que poderia usá-la de outra maneira. Continuara em direção ao sul e descobrira uma área florestal isolada perto de Seglora. Amarrara a mulher numa granja e a abandonara lá. Calculava que em algumas horas ela conseguiria se soltar e então direcionaria as buscas policiais para o sul. E se ela não conseguisse se soltar e morresse ali de fome ou de frio, não era problema dele.

Na verdade, ele voltara a Borâs e seguira em direção ao leste e a Estocolmo. Fora direto ao MC Svavelsjõ, embora tomando o cuidado de evitar as instalações do clube. Era uma chateação Magge Lundin estar na cadeia. Então fora procurar o sergeant at arms do clube, Hans-Âke Waltari, na casa dele. Pedira ajuda e um lugar para se esconder, e Waltari então o mandou procurar o tesoureiro e responsável pela área financeira do clube, Viktor Gõransson. No entanto, ficara com ele apenas por algumas horas.

Teoricamente, Ronald Niedermann não tinha por que se preocupar com dinheiro. Sem dúvida, fora obrigado a deixar em Gosseberga quase duzentas mil coroas em dinheiro, mas possuía quantias muito maiores aplicadas no exterior. Seu problema era que lhe faltava dinheiro vivo. Gõransson administrava as finanças do MC Svavelsjõ, e Niedermann percebeu que havia ali uma bela oportunidade. Fora brincadeira de criança convencer Gõransson a lhe mostrar onde ficava o cofre-forte, na granja, e se abastecer de oitocentas mil coroas em dinheiro.

Niedermann lembrava vagamente de que havia também uma mulher na casa, mas não tinha muita certeza do que havia feito com ela.

Gõransson também tinha um carro, que ainda não estava sendo procurado pela polícia. Niedermann rumou para o norte. Planejava pegar uma das balsas para Tallínn que saíam de Kapellskár.

Ao chegar a Kapellskár, parará num estacionamento. Desligara o motor e ficara trinta minutos observando os arredores. Estava fervilhando de tiras.

Tornara a ligar o carro e continuou rodando ao acaso. Precisava de um esconderijo onde pudesse se entocar por algum tempo. Passando nas proximidades de Norrtalje, lembrara da antiga olaria. Fazia mais de um ano que não pensava nela, desde a reforma. Os irmãos Harry e Atho Ranta usavam o local como depósito intermediário de mercadorias provenientes ou destinadas aos países bálticos, mas eles estavam no exterior havia várias semanas, desde que o jornalista Dag Svensson, da Míllenníum, começara a bisbilhotar o comércio das putas. A olaria estava vazia.

Escondera o Saab de Gõransson num hangar atrás da fábrica e entrara. Tinha sido obrigado a arrombar uma porta do térreo, e uma de suas primeiras iniciativas, depois, fora providenciar uma saída de emergência, uma chapa de compensado removível na lateral menor do térreo. Mais tarde, substituíra o cadeado quebrado. Então se acomodara no quartinho confortável do piso superior.

Uma tarde inteira se passou antes de ele ouvir o ruído nas paredes. No começo pensou que fossem seus fantasmas habituais. Ficou escutando por uma hora, extremamente tenso, e então se levantou e foi escutar na sala grande. Não ouviu nada, mas esperou, até perceber o som de algo raspando.

Encontrou a chave na bancada.

Raramente Ronald Niedermann tinha ficado tão surpreso quanto ficou ao abrir a porta e deparar com as duas putas russas. Até onde entendeu, elas estavam descarnadas daquele jeito por falta de comida, depois que o último pacote de arroz acabou. Tinham sobrevivido à base de chá e água.

Uma das putas estava tão esgotada que não teve energia para se erguer na cama. A outra estava em melhores condições. Só falava russo, mas ele conhecia suficientemente o idioma para entender que ela agradecia a Deus e a ele por salvá-las. Ele a rechaçara, estupefato, recuara e trancara a porta.

Não sabia o que fazer com elas. Preparou uma sopa com os enlatados encontrados na cozinha e serviu a elas enquanto refletia. A mulher mais esgotada que estava de cama parecia recobrar as forças. Ele passara a noite interrogando as duas. Levou algum tempo para entender que elas não eram putas, e sim estudantes que haviam pago aos irmãos Ranta para que as fizessem entrar na Suécia. Eles tinham lhes prometido visto de permanência e um trabalho. Chegaram a Kapellskár em fevereiro e foram levadas diretamente para aquele depósito, onde foram trancafiadas.

Niedermann se aborrecera. Então aqueles malditos irmãos Ranta tinham mantido uma atividade paralela sem que Zalachenko soubesse. Depois, haviam simplesmente esquecido as mulheres, ou talvez as tivessem abandonado de propósito à própria sorte quando deixaram a Suécia às pressas.

A questão era o que fazer com elas. Ele não tinha motivo algum para lhes fazer mal. Mas também não podia se dar ao luxo de libertá-las, pois elas muito provavelmente conduziriam a polícia até a olaria. Simples assim. Não podia mandá-las de volta para a Rússia, pois nesse caso teria de ir com elas até Kapellskar. Parecia arriscado demais. A morena, que se chamava Valentina, oferecera seu corpo em troca de ajuda. Ele não tinha a menor vontade de transar com ela, nem com a outra, mas a proposta transformara a garota em puta. Todas as mulheres eram putas. Simples assim.

Ao fim de três dias, cansara-se de suas súplicas incessantes, apelos e golpes na parede. Não via outra saída. De sua parte, tudo que mais desejava era tranqüilidade. De modo que abrira a porta pela última vez e, rapidamente, dera um fim ao problema. Pedira perdão a Valentina antes de estender as mãos e, num só gesto, quebrar-lhe o pescoço entre a segunda e a terceira vértebra. Depois cuidara da loira, deitada na cama, cujo nome ignorava. Ela ficara deitada, passiva e sem resistir. Levara os corpos para o térreo e os escondera num tanque cheio de água. Finalmente pudera experimentar uma espécie de paz.

Não tinha a intenção de permanecer na olaria. Só pretendia esperar até grande parte da mobilização policial diminuir. Raspou a cabeça e deixou a barba crescer um centímetro. Isso mudou sua fisionomia. Encontrou um macacão que pertencera a um dos operários da NorrBygg e que era quase do seu tamanho. Vestiu o macacão, pôs um boné esquecido da Beckers Fãrg, enfiou uma trena de marceneiro no bolso e foi fazer compras no posto de gasolina no morro do outro lado da estrada. Tinha bastante dinheiro vivo, roubado do MC Svavelsjõ. Foi no final do dia. Parecia um operário comum parando ali antes de voltar para casa. Ninguém pareceu reparar nele. Habituou-se a fazer compras uma ou duas vezes por semana. No posto de gasolina, o reconheciam logo e o cumprimentavam cordialmente.

Desde o início, dedicara um bom tempo protegendo-se dos seres que povoavam o local. Entocavam-se nas paredes e saíam durante a noite. Ele os ouvia andando pela sala.

Entrincheirou-se no quarto. Depois de alguns dias, se cansou daquilo. Armou-se de uma baioneta encontrada numa gaveta da cozinha e saiu para enfrentar seus monstros. Chegara a hora de acertar as contas com eles.

De repente, percebeu que as criaturas recuavam. Pela primeira vez na vida, a presença delas dependia da vontade dele. Elas fugiam quando ele se aproximava. Podia ver suas caudas e seus corpos deformados atrás dos caixotes e armários. Berrou com elas. Elas fugiram.

Atônito, voltou ao seu quartinho confortável e passou a noite toda acordado, esperando os monstros voltarem. Eles repetiram o ataque ao amanhecer, e mais uma vez foi preciso enfrentá-los. E eles fugiram novamente.

Ele oscilava entre o pânico e a euforia.

A vida inteira tinha sido perseguido por essas criaturas das trevas e, pela primeira vez, sentia que dominava a situação. Não fazia nada. Comia. Dormia. Pensava. Uma vida tranqüila.

Os dias se transformaram em semanas, o verão chegou. Pelo rádio e pelos jornais vespertinos, acompanhou o declínio da caçada a Ronald Niedermann. Observou com interesse os relatos do assassinato de Alexander Zalachenko. Chega a ser engraçado! Um maluco vai e põe um ponto final na vida do Zalachenko. Em julho, seu interesse se reavivou com o julgamento de Lisbeth Salander. Ficou atônito ao ver que ela tinha sido absolvida. Alguma coisa estava errada. Ela estava livre, enquanto ele era obrigado a se esconder.

Comprou a Millennium no posto de gasolina e leu a edição sobre Lisbeth Salander, Alexander Zalachenko e Ronald Niedermann. Um jornalista chamado Mikael Blomkvist descrevia Ronald Niedermann como um assassino e doente mental, um psicopata. Niedermann fez uma careta.

De repente, chegou o outono e ele ainda não tinha ido embora. Quando veio o frio, comprou uma estufa elétrica no posto de gasolina. Não sabia explicar a si mesmo por que não deixava a fábrica.

As vezes apareciam alguns jovens de carro, eles estacionavam no pátio em frente à olaria, mas ninguém nunca fora perturbá-lo nem tentara entrar no prédio. Em setembro, um carro estacionara no pátio e um homem de parca azul mexera na maçaneta das portas e dera uma volta pelo terreno, olhando tudo por ali. Niedermann o observara da janela do andar de cima.


De tempos em tempos, o homem tomava notas num caderninho. Ficara uns vinte minutos, então dera uma última olhada em volta, entrara no carro e deixara o local. Niedermann respirou aliviado. Não tinha idéia de quem era aquele homem nem do que ele procurava, mas ele parecera estar fazendo uma espécie de avaliação dos prédios. Niedermann não relacionou a morte de Zalachenko com o conseqüente inventário de sucessão.

Ele pensava muito em Lisbeth Salander. Não esperava, nunca mais, cruzar com ela, porém ela o fascinava e o assustava. Ronald Niedermann não tinha medo dos vivos. Mas sua irmã — sua meia-irmã — causara-lhe uma impressão extraordinária. Ninguém o tinha vencido como ela vencera. Ela havia ressurgido apesar de ele a ter enterrado. Ela havia ressurgido e o perseguira. Sonhava com ela todas as noites. Acordava encharcado de um suor frio e percebia que ela substituíra seus fantasmas habituais.

Em outubro, tomou uma decisão. Não deixaria a Suécia antes de encontrar sua irmã e acabar com ela. Não tinha nenhum plano, mas sua vida ganhara um objetivo. Não sabia onde ela estava nem como poderia seguir seu rastro. Ficava sentado na sala do andar de cima da olaria, olhando pela janela, dia após dia, mês após mês.

Até que o Honda cor de vinho estacionou um dia em frente ao prédio e, para sua imensa surpresa, ele viu Lisbeth Salander descer do carro. Deus é misericordioso, pensou. Lisbeth Salander ia ter o mesmo destino que as duas mulheres ali no térreo, cujos nomes esquecera. Sua espera chegara ao fim e agora ele finalmente poderia seguir sua vida.

Lisbeth Salander avaliou a situação e achou que ela estava longe de estar sob controle. Seu cérebro trabalhava sob pressão. Clique, clique, clique. Ainda tinha o pé de cabra na mão, mas percebeu que era uma arma demasiado frágil contra um homem que não sentia dor alguma. Estava trancada numa área de aproximadamente mil metros quadrados junto com um robô assassino saído direto do inferno.

Quando Niedermann de repente se moveu em sua direção, ela jogou o pé de cabra em cima dele. Ele se esquivou com tranqüilidade. Lisbeth Salander pôs o pé num banquinho, tomou impulso e se ergueu sobre um caixote de embalagem, continuando a escalar feito uma aranha os dois caixotes seguintes. Deteve-se e olhou para Niedermann, a pouco mais de quatro metros abaixo.

— Desça — disse ele com calma. — Você não tem como fugir. O fim é inevitável.

Ela se perguntou se ele tinha uma arma de fogo. Isso, sem dúvida, seria um problema.

Ele se inclinou à frente, levantou uma cadeira e jogou-a em cima dela. Ela se abaixou.

De repente, Niedermann pareceu irritado. Pôs o pé no banquinho e começou a subir em sua direção. Ela esperou ele chegar quase no alto antes de tomar impulso em duas passadas rápidas, pular por cima do vão central e aterrissar sobre um caixote alguns metros adiante. Desceu até o chão para pegar o pé de cabra.

Niedermann não era desajeitado, mas sabia que não podia saltar sobre os caixotes, arriscando-se a torcer o pé. Teria de descer devagarinho, até tocar o pé no chão. Era obrigado a se mexer lenta e metodicamente; passara a vida inteira dominando seu corpo. Já estava quase lá embaixo quando ouviu passos atrás de si e mal teve tempo de virar o corpo para aparar o golpe de pé de cabra com o ombro. Perdeu a baioneta.

Lisbeth largou o pé de cabra no instante em que desfechou o golpe. Não teve tempo de pegar a baioneta, mas empurrou-a com o pé para perto dos banquinhos. Em seguida, desviou-se de um tapa da mão imensa de Niedermann e escapou para cima dos caixotes do outro lado do vão central. Com o rabo do olho, viu Niedermann se esticar para agarrá-la. Rápida como um raio, levantou as pernas. Os caixotes de embalagem formavam duas fileiras, empilhados em três níveis de um lado a outro do vão central e em dois níveis do lado externo. Desceu ao segundo nível e, arqueando as costas, usou toda a força das pernas. O caixote devia pesar pelo menos duzentos quilos. Sentiu que ele se moveu, e então caiu no vão central.

Niedermann viu o caixote caindo e mal teve tempo de se jogar para o lado. Um canto do caixote bateu em seu peito, porém ele se safou sem grandes danos. Deteve-se. Mas não é que ela está mesmo resistindo! Subiu na direção de Lisbeth. A cabeça dele estava alcançando a altura do terceiro nível quando ela desfechou-lhe um pontapé. Sua bota pesada atingiu a testa de Niedermann. Ele resmungou e se ergueu para cima dos caixotes. Lisbeth

Salander fugiu saltando mais uma vez sobre os caixotes do outro lado do vão central. Deixou-se cair atrás deles e sumiu de vista. Ele escutou seus passos e viu quando ela passou pela porta da sala do fundo.

Lisbeth Salander lançou um olhar avaliador à sua volta. Clique. Clique. Sabia que não tinha nenhuma chance. Podia sobreviver enquanto conseguisse se desviar das patas enormes de Niedermann e mantê-lo à distância, mas assim que cometesse um erro — o que aconteceria cedo ou tarde —, seria a morte. Tinha de evitá-lo a qualquer custo. Se ele encostasse a mão nela, seria uma vez só e o combate estaria terminado.

Precisava de uma arma.

Uma pistola. Uma metralhadora. Um obus perfurador e explosivo. Uma mina antipessoal.

Qualquer arma de merda, droga!

Mas não havia armas ali.

Olhou ao redor.

Nenhuma arma.

Só ferramentas. Clique, clique. Seu olhar bateu numa serra de fita, mas teria de ser muito persuasiva para fazê-lo se deitar na bancada. Clique. Avistou uma barra de ferro que poderia servir de lança, mas era pesada demais para ser manejada de forma eficaz. Clique. Deu uma olhada para a porta e viu que Niedermann descera dos caixotes, a uns quinze metros dali. Vinha novamente em sua direção. Ela começou a se afastar da porta. Restavam-lhe uns cinco segundos, talvez, antes que Niedermann a alcançasse. Deu uma última olhada nas ferramentas.

Uma arma... ou um esconderijo. Ela estacou de repente.

Niedermann não tinha pressa. Sabia que não havia saída e que, mais cedo ou mais tarde, pegaria sua irmã. Mas não havia como negar que ela era perigosa. Afinal, era filha de Zalachenko. E ele não queria sair ferido. Era melhor deixar que ela esgotasse suas forças.

Ele parou junto à porta que dava para a sala dos fundos e examinou o monte de ferramentas, lâminas de assoalho semi-instaladas e móveis. Ela não estava visível.

— Sei que você está aí. Vou te encontrar.

Ronald Niedermann parou de se mexer e escutou. A única coisa que ouviu foi a própria respiração. Ela tinha se escondido. Ele sorriu. Ela o desafiava. Sua visita se transformara, de repente, num jogo entre irmãos.

Nisso, ouviu um farfalhar descuidado em algum lugar no meio da sala. Virou a cabeça, sem conseguir identificar de onde vinha o ruído. Então sorriu outra vez. No meio da sala, meio distante do resto de toda aquela tralha, havia uma bancada de trabalho de cinco metros de comprimento, de madeira, com uma fileira de gavetas e portas corrediças na parte inferior.

Aproximou-se do móvel pela lateral e olhou atrás dele para ter certeza de que ela não estava tentando enganá-lo. Nada.

Ela está escondida dentro do móvel. Que imbecilidade.

Arrancou a primeira porta da parte esquerda do armário.

Ouviu imediatamente o barulho de alguém se movimentando dentro do móvel. O ruído vinha da parte central. Deu dois passos rápidos e abriu a porta com ar triunfante.

Nada.

Então ouviu uma série de detonações secas parecidas com tiros de pistola. O som chegou tão rápido que de início custou a entender de onde vinha. Virou a cabeça. Em seguida sentiu uma pressão esquisita no pé esquerdo. Não sentiu nenhuma dor. Olhou para baixo, a tempo de ver a mão de Lisbeth Salander deslocar a pregadora para o seu pé direito.

Ela está embaixo do armário!

Ficou paralisado durante os segundos de que Lisbeth precisava para mirar a ponta do seu sapato e disparar mais cinco pregos de construção em seu pé.

Ele tentou se mover.

Levou preciosos segundos para entender que seus pés estavam pregados no piso recém-reformado. A mão de Lisbeth Salander deslocou a pregadora para o pé esquerdo. Parecia uma arma automática cuspindo projéteis um atrás do outro. Ela ainda teve tempo de disparar mais quatro pregos de construção antes que ele tivesse presença de espírito para reagir.

Ele começou a se inclinar para a frente com a intenção de segurar a mão de Lisbeth Salander, mas logo perdeu o equilíbrio. Conseguiu se estabilizar apoiando-se no armário, enquanto escutava a pregadora cuspindo pregos cla-blam, cla-blam, cla-blam. Ela voltara ao pé direito. Viu que ela disparava os pregos de viés, pelo calcanhar, para dentro do assoalho.

Ronald Niedermann urrou, repentinamente louco de raiva. Esticou-se uma vez mais em direção à mão de Lisbeth Salander.

De onde estava, embaixo do móvel, Lisbeth Salander viu a perna de sua calça subir, indicando que ele estava se inclinando para a frente. Largou a pregadora. Ronald Niedermann viu sua mão sumir debaixo do armário com a rapidez de um réptil antes que ele pudesse alcançá-la.

Ele avançou a mão para pegar a pregadora, mas, assim que a tocou com a ponta do dedo, Lisbeth Salander puxou-a pelo fio para baixo do móvel.

O espaço entre o chão e o móvel era de pouco mais de vinte centímetros. Ele derrubou o armário, usando toda a força de que era capaz. Lisbeth Salander fitou-o com olhos arregalados e uma expressão ofendida. Deu um giro na máquina e descarregou-a a uma distância de cinqüenta centímetros. O prego se cravou no meio da tíbia.

No instante seguinte, ela largou a pregadora e, rolando, se afastou rapidamente, tornando a se levantar fora do alcance dele. Recuou dois metros e parou.

Ronald Niedermann tentava se mover, perdeu novamente o equilíbrio, balançava para a frente e para trás, os braços se agitando em círculos amplos. Recuperou o equilíbrio e se inclinou para a frente, louco de raiva.

Dessa vez, conseguiu apanhar a pregadora. Ergueu-a e apontou-a para Lisbeth Salander. Pressionou o botão.

Mas nada aconteceu. Confuso, olhou para o aparelho. Depois ergueu os olhos para Lisbeth Salander. Com expressão vaga, ela indicou a tomada. Ele, com raiva, jogou a pregadora em cima dela. Ela se esquivou rapidamente.

Então ela reconectou o plugue e puxou a pregadora para si.

O olhar dele cruzou com o olhar inexpressivo de Lisbeth Salander e de repente ele se sentiu surpreso. Já sabia que ela havia vencido. Ela é sobrenatural. Tentou instintivamente soltar o pé do chão. Ela é um monstro. Teve força suficiente para levantá-lo alguns milímetros, até ele ser travado pela cabeça dos pregos. Estes tinham se cravado em diferentes ângulos e, para se soltar, Niedermann seria literalmente obrigado a estraçalhar os pés. Nem mesmo mobilizando sua força quase sobre-humana conseguiu soltar-se do chão. Ficou alguns segundos cambaleando como se estivesse prestes a desmaiar. Continuava pregado. Viu uma poça de sangue se formando devagar entre seus sapatos.

Lisbeth Salander sentou-se diante dele numa cadeira sem encosto, tentando captar sinais de que ele teria força para arrancar os pés do chão. Como ele não sentia dor, passar a cabeça dos pregos pelos pés era só uma questão de força. Permaneceu parada, sem mover um músculo, por dez minutos, contemplando a luta dele. O tempo todo, seus olhos se mantiveram totalmente inexpressivos.

Acabou se levantando e se posicionando atrás dele, e então apontou a pregadora para sua coluna vertebral, logo abaixo da nuca.

Lisbeth Salander refletiu muito. Aquele homem diante dela tinha importado, drogado, maltratado e vendido mulheres no atacado e no varejo. Matara pelo menos oito pessoas, inclusive um policial de Gosseberga e um membro do MC Svavelsjõ. Não fazia idéia de quantas outras mortes seu meio-irmão tinha na consciência, mas, por causa dele, ela própria fora caçada por todo o país como um cão raivoso, acusada de três homicídios cometidos por ele.

Seu dedo pesava sobre o botão.

Ele matara Dag Svensson e Mia Bergman.

Com Zalachenko, também matara a ela, Lisbeth, e a enterrara, em Gosseberga. E agora, de novo, quisera matá-la.

Motivos para se irritar não faltavam.

Não via razão alguma para deixá-lo viver. Ele a odiava com uma intensidade que ela não entendia. O que aconteceria se ela o entregasse à polícia? Um processo? Prisão perpétua? Quando poderia sair? Quando iria fugir? E agora que finalmente já não havia seu pai, por quantos anos ela ainda teria que ficar olhando atrás de si, à espera do dia que seu irmão ressurgisse? Sentiu o peso da pregadora. Podia dar um fim definitivo àquilo tudo.

Análise das conseqüências.

Mordeu o lábio inferior.

Lisbeth Salander não tinha medo nem dos seres humanos nem de coisa nenhuma. Sabia que carecia da imaginação necessária para tanto — mais uma prova de que seu cérebro era absolutamente normal.

Ronald Niedermann a odiava e ela retribuía com um ódio também desmedido. Ele era daqueles homens do tipo Magge Lundin, Martin Vanger Alexander Zalachenko e dezenas de outros canalhas que, a seu ver não tinham por que permanecer entre os vivos. Se pudesse juntar todos numa ilha deserta e jogar uma bomba nuclear em cima deles, ficaria satisfeita.

Mas um assassinato? Será que valia a pena? O que aconteceria com ela se o matasse? Quais eram as chances de ela não ser pega? O que ela estaria pronta a sacrificar em troca da satisfação de acionar a pregadora uma última vez?

Ela poderia alegar legítima defesa... não muito, com os pés dele pregados no chão.

Lembrou-se de repente de Harriet Vanger, que também havia sido assediada pelo pai e pelo irmão. Lembrou-se da discussão que tivera com Mikael Blomkvist, quando ela condenara Harriet Vanger com palavras duras. Era culpa de Harriet Vanger se seu irmão Martin continuara a matar por anos a fio.

— O que você faria? — Mikael tinha perguntado.

— Eu acabaria com aquele traste — ela respondera com uma convicção vinda do mais fundo da sua alma gelada.

E não é que agora ali estava ela exatamente na mesma situação de Harriet Vanger? Quantas mulheres Ronald Niedermann ainda não iria matar se ela o deixasse livre? Ela era maior de idade e socialmente responsável por seus atos. Quantos anos de sua vida estaria pronta a sacrificar? Quantos anos Harriet Vanger aceitara sacrificar?

Então a pregadora foi ficando muito pesada para que ela conseguisse mantê-la apontada para a nuca, mesmo com ambas as mãos.

Abaixou a arma e teve a impressão de estar retornando à realidade. Viu que Ronald Niedermann resmungava palavras incoerentes em alemão. Falava sobre um diabo que tinha vindo buscá-lo.

Percebeu, de repente, que ele não falava com ela. Niedermann parecia enxergar alguém do outro lado da sala. Virou a cabeça e acompanhou seu olhar. Não havia nada. Sentiu o cabelo se arrepiar.

Deu meia-volta, pegou a barra de ferro e foi até a sala da frente onde estava sua bolsa. Ao se abaixar para pegá-la, viu a baioneta no chão. Ainda estava usando as luvas, e agarrou a arma.


Hesitou por um instante, e então colocou-a bem à vista no vão central, entre os caixotes. Usando a barra de ferro, trabalhou uns três minutos no cadeado que trancava a saída.

Ficou um bom tempo dentro do carro, refletindo. Por fim, pegou o celular. Levou dois minutos para achar o número de telefone da sede do MC Svavelsjõ.

— Sim — disse uma voz do outro lado da linha.

— Nieminen — pediu ela.

— Um momento.

Aguardou três minutos até que Benny Nieminen, presidente em exercício do MC Svavelsjõ, atendesse.

— Quem está falando?

— Não interessa — disse Lisbeth, com uma voz tão baixa que ele mal conseguiu distinguir as palavras. Não saberia sequer dizer se quem estava ligando era um homem ou uma mulher.

— Ahã. E o que você quer?

— Acho que você gostaria de ter uma pista do Ronald Niedermann.

— Ah,é?

— Larga de besteira. Você quer ou não saber onde ele está?

— Estou ouvindo.

Lisbeth descreveu o caminho para chegar à olaria abandonada perto de Norrtãlje. Informou que Niedermann estaria ali tempo suficiente para Nieminen ir até lá, desde que fosse logo.

Desligou o celular, ligou o carro e foi até o posto de gasolina do outro lado da estrada. Estacionou de modo a poder ver a olaria bem na sua frente.

Esperou mais de duas horas. Já passava da uma e meia quando avistou uma caminhonete rodando devagar mais abaixo na estrada. O veículo parou num estacionamento. Ficou ali por cinco minutos, depois deu meia-volta e entrou na estrada de acesso à olaria. Já começava a escurecer. O céu cinzento de dezembro não ajudava a melhorar os dias.

Ela abriu o porta-luvas, pegou um binóculo Minolta 2 X 8 e viu a caminhonete estacionando. Viu Benny Nieminen, Hans-Áke Waltari e mais três pessoas que ela não conhecia. Reestruturação. Eles estão tendo que substituir o pessoal.

Assim que Benny Nieminen e seus ajudantes encontraram a entrada lateral do prédio, ela pegou de novo o celular. Escreveu uma mensagem e a enviou por e-mail para o centro de operações da polícia de Norrtâlje.

[R. NIEDERMANN, QUE ASSASSINOU UM POLICIAL, SE ENCONTRA NA ANTIGA OLARIA PRÓXIMA AO POSTO DE GASOLINA DE SKEDERID. NO MOMENTO, ESTÁ SENDO MORTO POR B. NIEMINEN & MEMBROS DO MC SVAVELSJÕ. MULHER MORTA NO TANQUE DO TÉRREO.]

Não viu nenhum movimento na direção da fábrica.

Aguardou pacientemente.

Enquanto esperava, pegou o cartão SIM do telefone e o destruiu, cortando-o em pedaços com uma tesourinha de unhas. Abriu o vidro e jogou os pedaços fora. Depois tirou um cartão SIM novinho da carteira e o inseriu no celular. Ela usava cartões recarregáveis Comviq, praticamente impossíveis de localizar. Ligou para a Comviq e carregou quinhentas coroas no novo cartão.

Onze minutos haviam se passado quando um camburão da polícia, sem sirene mas com a luz giratória ligada, chegou à olaria vindo de Norrtâlje. O camburão estacionou na estrada de acesso, seguido, um minuto depois, por duas viaturas. Os policiais trocaram algumas palavras e em seguida avançaram em grupo até a olaria, estacionando ao lado da caminhonete de Nieminen. Ela ergueu o binóculo. Viu um dos policiais falando em um radiofone enquanto olhava para a placa da caminhonete. Os policiais olharam em volta, mas não se moveram. Dois minutos depois, ela avistou mais um camburão aproximando-se em alta velocidade.

Compreendeu, então, que estava tudo acabado.

A história que começara no dia em que ela nasceu acabava de chegar ao fim dentro daquela olaria.

Ela estava livre.

Quando os policiais retiraram um arsenal respeitável de dentro do camburão, vestiram coletes à prova de balas e começaram a se posicionar em volta da olaria, Lisbeth Salander entrou no posto de gasolina e comprou um café para viagem e um sanduíche. Comeu em pé diante de uma mesa alta da loja.

Já estava escuro quando voltou para o carro. Ao abrir a porta, ouviu dois disparos distantes, na certa tiros de pistola, do outro lado da estrada. Avistou vultos escuros, policiais à espreita bem junto à fachada, perto da entrada lateral. Escutou as sirenes de mais um carro de intervenção da polícia chegando de Uppsala como reforço. Alguns carros particulares estavam parados à beira da estrada tentando ver o que estava acontecendo.

Ela deu partida no Honda cor de vinho, entrou na E18 e voltou para casa, em Estocolmo.

Eram sete da noite quando Lisbeth Salander, irritadíssima, ouviu a campainha tocando. Estava na banheira, numa água ainda fumegante. Pensando bem, só uma pessoa teria motivo para vir bater à sua porta.

De início, pensou em ignorar a campainha, mas, ao terceiro toque, suspirou, se enrolou numa toalha e foi respingando gotas d'água no chão do hall de entrada.

— Oi — disse Mikael Blomkvist, quando ela abriu a porta. Ela não respondeu.

— Você viu o noticiário?

Ela fez que não com a cabeça.

—Achei que você talvez gostasse de saber que o Ronald Niedermann está morto. Foi assassinado hoje por um pessoal do MC Svavelsjõ em Norrtálje.

— Olha só... — disse Lisbeth Salander com voz controlada.

— Falei com um policial de plantão em Norrtãlje. Parece ter sido um acerto de contas. Ao que consta, o Niedermann foi torturado e retalhado com uma baioneta. Encontraram no local uma sacola com várias centenas de milhares de coras.

— Ah, é?

— A gangue de Svavelsjõ foi pega em flagrante. E eles ainda resistiram. Houve um tiroteio e a polícia teve de pedir reforço para a polícia nacional de Estocolmo. Svavelsjõ se rendeu por volta das seis da tarde.

— Ahá.


— O seu velho amigo Benny Nieminen, de Stallarholmen, já era. Ele se apavorou, ficou atirando feito um louco para se safar.

— Que bom.

Mikael Blomkvist ficou em silêncio por alguns segundos. Os dois se olharam através da porta entreaberta.

— Estou incomodando? — ele perguntou. Ela deu de ombros.

— Eu estava no banho.

— Estou vendo. Quer companhia? Ela lançou-lhe um olhar penetrante.

— Eu não quis dizer na banheira. Eu trouxe uns bagels — disse ele, mostrando um pacote. — Também comprei café para fazer um expresso. Considerando-se que você tem uma Jura Impressa X7 na sua cozinha, devia pelo menos aprender a usá-la.

Ela ergueu as sobrancelhas. Não sabia se ficava decepcionada ou aliviada.

— Só companhia? — ela perguntou.

— Só companhia — ele confirmou. — Sou um bom amigo visitando uma boa amiga. Quer dizer, isso se eu for bem-vindo.

Ela hesitou por alguns segundos. Durante dois anos, mantivera-se o mais longe possível de Mikael Blomkvist. No entanto, ele parecia sempre acabar grudado na sua vida feito chiclete na sola do sapato, tanto na internet como na vida real. Na internet, até podia ser. Ali ele não passava de elétrons e letras. Na vida real, em frente à sua porta, continuava sendo aquele puta homem atraente. E ele conhecia todos os seus segredos, assim como ela conhecia os dele.

Ela observou-o e constatou que não sentia mais nada por ele. Ou pelo menos não aquele tipo de sentimento.

Ele havia de fato sido seu amigo ao longo de todo aquele ano.

Confiava nele. Talvez. Era chato que uma das raras pessoas em quem ela confiava fosse um homem que ela passava o tempo todo evitando.

Ela de repente se decidiu. Bobagem fazer de conta que ele não existia. Vê-lo já não doía mais.

Abriu a porta e tornou a acolhê-lo em sua vida.

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