11. SÁBADO 1º DE FEVEREIRO —TERÇA-FEIRA 18 DE FEVEREIRO


Aproveitando as breves horas de luz do sábado, Mikael e Erika fizeram um passeio que os levou das cabanas do porto à fazenda Östergarden. Embora estivesse na ilha havia um mês, Mikael ainda não visitara seu interior; o frio e várias tempestades de neve o dissuadiram de tais exercícios. Mas o sábado estava ensolarado e agradável, como se Erika tivesse trazido um começo de primavera ao horizonte. A temperatura era de cinco graus negativos. Às margens da estrada, elevava-se um metro de neve arrastada pelos tratores. Assim que deixaram a região das cabanas, entraram num bosque de pinheiros denso e Mikael ficou surpreso ao constatar que o monte Sul, que dominava o porto de recreio, era bem mais alto e inacessível do que diria quem o visse do povoado. Por um momento perguntou-se quantas vezes Harriet Vanger fora brincar ali quando criança, depois não pensou mais nisso. Alguns quilômetros adiante, o bosque terminava de modo brusco diante do cercado da fazenda de Östergarden. Viram uma casa branca de madeira e um imponente celeiro vermelho. Decidiram não ir até a fazenda e voltaram pelo mesmo caminho.

Passavam em frente ao acesso da casa Vanger, quando Henrik bateu palmas na janela do andar de cima e, com gestos, os convidou a subir. Mikael e Erika se olharam.

— Quer conhecer um industrial legendário? — perguntou Mikael.

— Ele morde?

— Não aos sábados.

Henrik Vanger os recebeu à porta de seu escritório com um aperto de mão.

— Acho que sei quem você é, deve ser a senhorita Berger — disse. — Mikael não comentou que viria a Hedeby.


Uma das maiores qualidades de Erika era sua capacidade de criar vínculos de amizade com as mais diversas pessoas. Mikael já a vira despejar seu charme sobre garotinhos de cinco anos que, dez minutos depois, não queriam mais saber da mãe. Velhos com mais de oitenta anos não pareciam ser exceção. Suas covinhas sorridentes eram só o aperitivo. Passados dois minutos, Erika e Henrik Vanger ignoravam totalmente Mikael e conversavam como se fossem velhos amigos de infância — digamos, da infância de Erika, considerando a diferença de idade deles.

Sem nenhum constrangimento, Erika começou censurando Henrik por ter atraído seu melhor redator para aquele buraco. O velho replicou que, segundo entendera ao ler os diversos comunicados de imprensa, ela já o havia dispensado e, se não o tivesse feito, seria um ótimo momento para aliviar a redação. Fingindo-se de interessada, Erika examinou Mikael com olhar crítico. De todo modo, uma pausa no campo seria proveitosa ao jovem Blomkvist, acrescentou Henrik Vanger. Erika estava inteiramente de acordo.

Durante cinco minutos, eles fizeram piada sobre os reveses de Mikael. Afundado na poltrona, calado, fingindo-se ofendido, ele fez cara feia quando Erika lançou alguns comentários equívocos que podiam eventualmente se aplicar aos seus defeitos como jornalista, mas também ao seu desempenho sexual. Com a cabeça para trás, Henrik gargalhava muito.

Mikael ficou estupefato; eram apenas chacotas amistosas, mas nunca tinha visto Henrik tão descontraído e à vontade. Ocorreu-lhe então que um Henrik Vanger cinquenta anos mais jovem — digamos, com trinta anos — devia ter sido um homem sedutor e atraente. Não voltara a se casar. Certamente tivera mulheres pelo caminho, mas continuara solteiro por quase meio século.

Mikael tomou um gole de café e voltou a prestar atenção na conversa, que de repente tinha ficado séria e tratava da Millennium.

— Mikael deu a entender que vocês estão com problemas na revista. Erika voltou-se para Mikael.

— Não, ele não falou de assuntos internos, mas seria preciso ser surdo e cego para não perceber que tanto a revista de vocês como as empresas Vanger estão em dificuldades.

— Acredito que podemos dar um jeito na situação — respondeu Erika com prudência.

— Duvido — replicou Henrik.

— É? Por quê?

— Vejamos: quantos funcionários vocês têm, seis? Uma tiragem de vinte e um mil exemplares com circulação mensal, custos de impressão e de distribuição, aluguel... Precisam de algo em torno de dez milhões, digamos. Metade dessa quantia é assegurada pelos anunciantes.

— E...?

— Hans-Erik Wennerström é um safado, vingativo, mesquinho que não vai esquecer de vocês tão cedo. Quantos anunciantes vocês perderam nos últimos meses?

Erika aguardou o que viria a seguir, observando Henrik Vanger. Mikael surpreendeu-se de respiração contida. Quando ele e o velho falavam da Millennium, era apenas para fazer comentários insignificantes ou para falar do quanto a situação da revista podia depender da capacidade de Mikael fazer um bom trabalho em Hedestad. Mikael e Erika eram co-fundadores e co-proprietários da Millennium, mas era evidente que naquele momento Vanger dirigia-se exclusivamente a Erika, de patrão para patrão. Uma conversa que seguia um código que Mikael não conseguia entender nem interpretar e que talvez se devesse ao fato de, no fundo, ele ser apenas um filho de operário pobre do Norrland e ela uma filha da aristocracia, dotada de uma bela árvore genealógica internacional.

— Posso tomar mais um café? — perguntou Erika. Henrik a serviu imediatamente.

— Bem, vamos admitir que o senhor seja perspicaz. A água está começando a subir nos porões da Millennium. Mas estamos sobrevivendo.

— Por quanto tempo?

— Temos seis meses pela frente para dar meia-volta. Oito, nove meses no máximo. Mas não temos liquidez suficiente para nos manter à tona por mais tempo que isso.

O rosto do velho estava insondável quando olhou pela janela. A igreja continuava em seu lugar.

— Sabem que já fui proprietário de um jornal?

Mikael e Erika balançaram negativamente a cabeça ao mesmo tempo. Henrik deu uma risada.

— Possuíamos seis jornais do Norrland. Foi nos anos 1950 e 1960. Idéia do meu pai; ele achava que podia haver vantagens políticas em participar da mídia. Ainda somos proprietários do Hedestads-Kuriren, Birger Vanger é presidente do conselho administrativo do jornal. É o filho de Harald — acrescentou, dirigindo-se a Mikael.

— Ele também é vereador — observou Mikael.

— Martin também faz parte do conselho. Procura manter Birger sob controle.

— Por que não participa mais dos jornais? — perguntou Mikael.

— Reestruturação nos anos 1960. A atividade jornalística era mais um hobby do que um interesse. Quando precisamos reduzir o orçamento, foi um dos primeiros bens que pusemos à venda nos anos 1970. Mas sei o que significa estar à frente de um periódico... Posso fazer uma pergunta pessoal?

A pergunta era dirigida a Erika, que levantou uma sobrancelha e com um gesto convidou Vanger a prosseguir.

— Não perguntei a Mikael sobre isso e, se não quiserem responder, não se sintam obrigados. Gostaria de saber por que se meteram nesse lodaçal. Havia ou não uma história?

Mikael e Erika trocaram olhares. Desta vez, Mikael é que parecia ter um ar insondável. Erika hesitou um segundo antes de falar.

— Tínhamos uma história. Mas na verdade estávamos abordando outra. Henrik Vanger balançou a cabeça, como se entendesse perfeitamente.

Mas o próprio Mikael não entendia.

— Não quero falar sobre isso — interveio Mikael. — Fiz minhas investigações e escrevi o texto. Tinha todas as fontes necessárias. E aí a coisa desandou.

— Mas tinha uma fonte para tudo o que escreveu?

Mikael assentiu com a cabeça. A voz de Henrik tornou-se incisiva de repente.

— Não vou fingir que entendo como conseguiu meter o pé em cima dessa mina. Não conheço nenhuma história similar, exceto talvez o caso Lundhall no Expressen, nos anos 1960, se é que já ouviram falar dele, pois são muito jovens. Seu informante também era um perfeito mitômano? — Ele balançou a cabeça e voltou-se para Erika, baixando a voz. — Já fui editor de periódicos e posso voltar a ser. O que acha de ter mais um sócio?

A pergunta foi como um relâmpago num céu azul, mas Erika não pareceu nem um pouco surpresa.

— O que está querendo dizer?

Henrik Vanger evitou a pergunta fazendo outra.

— Quanto tempo ficará em Hedestad?

— Até amanhã.

— O que é que você acha — você e Mikael, claro — de fazer um velho feliz e vir jantar comigo esta noite? Às sete?

— Por mim tudo bem. Viremos com prazer. Mas o senhor se esquivou da pergunta que eu fiz. Por que deseja se associar à Millennium?

— Não me esquivei da pergunta. Achei que poderíamos falar sobre isso no jantar. Preciso discutir com meu advogado, Dirch Frode, antes de propor algo mais concreto. Mas, para resumir, digamos que tenho dinheiro para investir. Se a revista sobreviver e começar a ser rentável, terei lucro. Caso contrário... bem, já sofri perdas bem maiores que essa na vida.

Mikael ia abrir a boca quando Erika pôs a mão em seu joelho.

— Mikael e eu sempre lutamos para ser inteiramente independentes.

— Bobagem. Ninguém é inteiramente independente. Mas não estou querendo me apossar da revista e não estou interessado no conteúdo. Aquele cretino do Stenbeck encheu os bolsos publicando Moderna Tider; por que não posso ajudar a Millennium, que, além do mais, é uma boa revista?

— Há alguma relação com Wennerström? — perguntou Mikael subitamente. Henrik Vanger sorriu.

— Mikael, tenho mais de oitenta anos. Há coisas que lamento não ter feito e pessoas que lamento não ter importunado um pouco mais. Mas, voltando ao assunto — e virou-se novamente para Erika —, esse investimento inclui pelo menos uma condição.

— Qual? — disse Erika.

— Mikael deve reassumir seu posto de editor responsável.

— Não — disse Mikael de pronto.

— Sim — disse Henrik Vanger num tom igualmente firme. — Wennerström terá um ataque se divulgarmos um comunicado à imprensa anunciando que as empresas Vanger apóiam a Millennium e que, ao mesmo tempo, você reassume como editor responsável. Será o sinal mais claro que podemos enviar. Todo mundo vai entender que não se trata de tomada de poder e que a política editorial permanecerá a mesma. E isso dará aos anunciantes que pensam em se retirar uma razão para refletir um pouco mais. Wennerström não é todo-poderoso. Ele também tem inimigos, e algumas empresas vão achar que é o momento de buscar espaço na revista.


— Afinal, que história maluca é essa? — disparou Mikael no momento em que Erika fechou a porta de entrada.

— É o que chamam de sondagem preliminar tendo em vista um acordo comercial — ela respondeu. — Você não me contou que Henrik era tão irresistível.

Mikael plantou-se bem na frente dela.

— Ricky, você já sabia exatamente qual seria o tema dessa conversa.

— Acalme-se, meu bem! São apenas três da tarde e quero que se ocupem muito bem de mim antes do jantar.

Mikael Blomkvist fervia de cólera. Mas ele nunca conseguiu ficar furioso com Erika por muito tempo.


Erika usava um vestido preto, um casaquinho e escarpins, que, por precaução, pusera na sacola de viagem. Insistiu para que Mikael vestisse paletó e gravata. Ao chegarem na hora marcada à casa de Henrik Vanger, viram que Dirch Frode e Martin Vanger também tinham sido convidados, ambos de terno e gravata, enquanto Henrik vestia gravata-borboleta e uma malha de lã marrom.

— A vantagem de ter mais de oitenta anos é que ninguém ousa criticar a sua maneira de vestir — ele observou.

Erika mostrou excelente humor durante todo o jantar.

A discussão só começou de fato quando passaram a uma sala com lareira e o conhaque foi servido em todos os copos. Falaram durante cerca de duas horas, até o rascunho de um acordo ser esboçado.

Dirch Frode criaria uma sociedade em nome de Henrik Vanger, cujo conselho administrativo seria formado por ele mesmo, Frode e Martin Vanger. Durante quatro anos, a sociedade investiria uma soma de dinheiro que cobriria a diferença entre as receitas e as despesas da Millennium. O dinheiro viria dos recursos pessoais de Henrik Vanger. Em contrapartida, ele teria uma posição determinante no conselho administrativo da revista. O acordo seria válido por quatro anos, mas poderia ser rescindido pela Millennium depois de dois. Tal rescisão, porém, custaria caro, pois a parte de Henrik só poderia ser resgatada adquirindo-se a totalidade da soma investida.

Em caso da morte súbita de Henrik Vanger, Martin Vanger o substituiria no conselho administrativo durante o período de vigência do contrato. Martin decidiria, chegado o momento, se estenderia ou não o acordo além desse prazo. Martin parecia tentado pela possibilidade de dar o troco a Hans-Erik Wennerström, e Mikael se perguntou em que realmente consistia a disputa entre eles.

Estabelecido o acordo preliminar, Martin encheu novamente os copos com conhaque. Henrik aproveitou para se inclinar em direção a Mikael e explicar em voz baixa que o acordo não afetava de maneira nenhuma o contrato entre os dois.

Também ficou decidido que para que essa reorganização tivesse o máximo de repercussão na imprensa ela seria anunciada em meados de março, no mesmo dia em que Mikael Blomkvist fosse para a prisão. Associar um acontecimento necessariamente negativo com uma reestruturação era tão estranho do ponto de vista da comunicação, que só poderia confundir os detratores de Mikael e dar o máximo de audiência à chegada de Henrik Vanger à Millennium. O sinal seria claramente percebido deste modo: retirava-se a bandeira amarela da peste que pairava sobre a redação e a revista tinha protetores que não estavam dispostos a ceder. Por mais que as empresas Vanger estivessem em crise, elas continuavam sendo um grupo industrial de peso e capaz de ter atuação pública se necessário.

Toda a conversa foi uma discussão entre Erika, de um lado, e Henrik e Martin, de outro. Ninguém pediu a opinião de Mikael.

Mais tarde, à noite, Mikael estava apoiado sobre o peito de Erika e a fitava com olhos inquiridores.

— Há quanto tempo você e Henrik vinham discutindo esse acordo? — perguntou.

— Há cerca de uma semana — ela respondeu sorrindo.

— Christer está sabendo?

— Claro.

— Por que não me disse nada?

— E por que eu deveria dizer? Você foi demitido, abandonou a redação e veio se instalar neste fim de mundo.

Mikael refletiu um momento sobre o que ela tinha dito.

— Está querendo me dizer que mereço ser tratado como um cretino?

— Isso mesmo — ela disse, marcando as palavras.

— Você ficou mesmo muito zangada comigo?

— Mikael, eu nunca me senti tão furiosa, abandonada e traída como no momento em que você deixou a redação. Nunca tive tanta raiva de você. — E o pegou firmemente pelos cabelos e o empurrou mais para baixo na cama.


Quando Erika deixou a aldeia no domingo, Mikael estava tão zangado com Henrik Vanger que não queria correr o risco de topar com ele ou com outro membro do clã. Partiu então para Hedestad e passou a tarde dando voltas pela cidade, foi à biblioteca, tomou café numa confeitaria... A noite foi ao cinema assistir a O senhor dos anéis, que ainda não tinha visto, embora o filme já estivesse há um ano em cartaz. Disse a si mesmo que os orcos, diferentemente dos humanos, eram criaturas simples, nada complicadas.

Encerrou a noitada no McDonald's de Hedestad e voltou à ilha à meia-noite, no último ônibus. Preparou café e instalou-se à mesa da cozinha para examinar um arquivo. Ficou lendo até as quatro da manhã.


Alguns pontos de interrogação no inquérito sobre Harriet Vanger revelavam-se cada vez mais estranhos à medida que Mikael avançava na leitura da documentação. Não se tratava de nenhuma descoberta revolucionária que acabara de fazer, mas de problemas que haviam mantido o inspetor Gustav Morell ocupado por longos períodos, sobretudo em seu tempo livre.

No último ano de sua vida, Harriet Vanger havia sofrido uma transformação. Mudança explicável, em certa medida, pela metamorfose que todos os jovens passam na adolescência. Harriet começava, certamente, a se tornar adulta, mas várias pessoas, tanto colegas de classe quanto professores e membros da família, afirmaram que ela se tornara mais fechada e reservada.

A menina que dois anos antes era uma adolescente perfeitamente normal e brincalhona parecia ter se distanciado de seu meio. Na escola, continuou a estar com os amigos, mas de um modo definido como "impessoal" por uma das colegas. Um termo bastante incomum para que Morell o registrasse e fizesse outras perguntas. A explicação que lhe deram é que Harriet deixara de falar de si mesma, de comentar as últimas fofocas ou de fazer confidências.

Na juventude, Harriet Vanger fora cristã como a maioria das crianças — culto aos domingos, orações à noite etc. No último ano, pareceu ter virado crente. Lia a Bíblia e ia regularmente à igreja. No entanto não se confiou ao pastor Otto Falk, amigo da família Vanger, e na primavera passou a frequentar uma congregação de pentecostais de Hedestad. Sua ligação com a Igreja pentecostal não durou muito. Dois meses depois, deixou a congregação e passou a ler livros sobre catolicismo.

Exaltação religiosa da adolescência? Talvez, mas ninguém na família Vanger havia sido crente, e era difícil saber que impulsos guiaram seus pensamentos. Uma explicação do interesse por Deus podia ser, evidentemente, a morte do pai, afogado num acidente um ano antes. Em todo caso, Gustav Morell concluiu que algo ocorrera na vida de Harriet que a oprimira e a influenciara, mas ele não sabia determinar o quê. Assim como Henrik Vanger, Morell dedicou muito tempo a conversar com as amigas de Harriet, na esperança de encontrar alguém a quem ela pudesse ter feito confidências.

Havia muita expectativa a respeito de Anita Vanger, a filha de Harald Vanger que passou o verão de 1966 na ilha, que se dizia amiga íntima de Harriet e era dois anos mais velha que ela. Mas tampouco Anita tinha alguma informação pessoal a dar. As duas se viram durante o verão, tomaram banho juntas, passearam, falaram de filmes, grupos de rock e livros. Harriet várias vezes acompanhou Anita em suas aulas de habilitação de motorista. Um dia, se embriagaram levemente com uma garrafa de vinho surrupiada da adega. Também passaram várias semanas sozinhas na pequena casa de Gottfried na extremidade da ilha, uma cabana rústica construída pelo pai de Harriet no começo dos anos 1950.

As questões sobre os pensamentos íntimos e os sentimentos de Harriet permaneciam sem resposta. Mikael notou, porém, uma discordância nas opiniões sobre ela: aqueles que achavam seu caráter fechado eram em grande parte colegas de classe e, em certa medida, membros da família, mas Anita Vanger não a achara de modo algum retraída. Ele anotou esse ponto para discuti-lo eventualmente com Henrik Vanger.


Um problema mais concreto, que levara Morell a se fazer muitas perguntas, era uma página misteriosa da agenda finamente encadernada de Harriet Vanger, um presente de Natal recebido um ano antes de seu desaparecimento. A primeira metade da agenda continha anotações diárias com horários de encontros, datas de provas no colégio, deveres de casa e coisas do gênero. Havia espaço para anotações pessoais, mas só muito esporadicamente Harriet escrevia um diário íntimo. Começou em janeiro com muita ambição, com observações sobre pessoas encontradas durante as férias de Natal e alguns comentários sobre os filmes que tinha visto. Depois, não escreveu mais nada de pessoal até o fim do ano escolar, quando parece — é assim que se pode interpretar as anotações — ter se interessado de longe por um rapaz cujo nome não revelou.

O verdadeiro mistério, porém, estava na lista de endereços e telefones. Minuciosamente caligrafados em ordem alfabética, apareciam os nomes de alguns de seus familiares, colegas de classe, professores, membros da Igreja pentecostal e outras pessoas de seu meio facilmente identificáveis. Na última página da lista, depois de um espaço em branco e fora de ordem alfabética, havia cinco nomes associados a números telefônicos. Três nomes de mulheres e duas iniciais.

Os números de cinco algarismos que começavam por 32 correspondiam a telefones de Hedestad nos anos 1960. A exceção iniciada por 30 era de Norrbyn, perto de Hedestad. O único problema, depois que o inspetor Morell contatou sistematicamente todo o círculo de conhecidos de Harriet, era que ninguém tinha a menor idéia de a quem pertenciam esses números de telefone.

O primeiro, "Magda", parecia promissor. Levou a uma loja de retrós na rua do Parque, número 12. O telefone estava em nome de uma Margot Lundmark, cuja mãe chamava-se Magda e que de vez em quando trabalhava na loja. No entanto Magda tinha sessenta e nove anos e não fazia idéia de quem era Harriet Vanger. Nada indicava também que Harriet tivesse ido lá fazer compras. A costura não fazia parte de suas atividades.

O segundo número, "Sara", levou a uma família com filhos pequenos, os Toresson, que moravam em Väststan, do outro lado da ferrovia. A família era formada por Anders, Monica e seus filhos Jonas e Peter, que na época ainda não tinham idade de ir à escola. Não havia nenhuma Sara na família e eles tampouco sabiam quem era Harriet Vanger, a não ser pelo que tinham lido nos jornais sobre seu desaparecimento. A única ligação muito vaga entre Harriet e a família Toresson era que Anders, pedreiro, trabalhara durante algumas semanas, um ano antes, na reforma do telhado da escola em que Harriet cursava o último ano do colegial. Teoricamente, portanto, havia uma possibilidade de que tivessem se encontrado, ainda que isso fosse bastante improvável.

Os três outros números telefônicos conduziam a becos sem saída idênticos. O número 32027 pertencera de fato a uma Sosemaroe Larsson, mas ela falecera havia muitos anos.

Durante o inverno de 1966-1967, o inspetor Morell dedicou grande parte de suas investigações a tentar explicar por que Harriet anotara esses nomes e números.

Uma primeira suposição era que os números telefônicos seguiam uma espécie de código pessoal — e Morell se esforçou para raciocinar como uma adolescente. Como a série iniciada por 32 se aplicava claramente a Hedestad, ele tentou inverter os outros três algarismos. Mas nem tentando 32601, nem 32160, conseguiu chegar a alguma Magda. Obstinado em resolver o mistério dos números, descobriu que, se modificasse bastante os algarismos, cedo ou tarde acabaria encontrando alguma ligação com Harriet. Por exemplo, se somasse 1 a cada um dos três últimos algarismos de 32016, obteria o número 32127, que era o do escritório do advogado Frode em Hedestad. O problema era que tal ligação não significava absolutamente nada. Além do mais, ele nunca descobriu um código que pudesse explicar os cinco números ao mesmo tempo.

Morell ampliou seu raciocínio. Será que os algarismos podiam significar outra coisa? Os números das placas dos veículos nos anos 1960 tinham uma letra associada a uma região, e cinco algarismos — novo impasse.

Depois o inspetor abandonou os algarismos para se concentrar nos nomes. Chegou a fazer uma lista de todas as pessoas de Hedestad chamadas Mari, Magda e Sara e outras com nomes iniciados pelas letras RL e RJ. Obteve um repertório de trezentas e sete pessoas. Entre elas, vinte e nove tinham alguma conexão com Harriet; por exemplo, um colega de classe do colégio chamava-se Roland Jacobsson, RJ. Mas eles não eram particularmente próximos e haviam deixado de ter contato desde que Harriet fora para o colegial. Além disso, não existia nenhuma ligação com o número de telefone.

O mistério da agenda telefônica continuou sem solução.


O quarto encontro com o dr. Bjurman não fora marcado com antecedência. Ela é que foi obrigada a entrar em contato com ele.

Na segunda semana de fevereiro, o computador portátil de Lisbeth Salander sofreu um acidente tão estúpido que ela esteve a ponto de assassinar o planeta Terra inteiro. Ao chegar de bicicleta para uma reunião na Milton Security, estacionou atrás de um pilar e pôs a mochila no chão para pegar o cadeado. Um Saab vermelho-escuro escolheu bem esse momento para dar marcha a ré. Ela estava virada de costas e ouviu o estalo. O motorista não se deu conta de nada e tranquilamente subiu a rampa para desaparecer pela saída da garagem.

A mochila continha seu iBook Apple 600, branco, com um disco rígido de 25 gigas e memória RAM de 420 megas, fabricado em janeiro de 2002 e com tela de 14 polegadas. Quando o adquiriu, era o que havia de melhor na Apple. Os computadores de Lisbeth Salander dispunham das configurações mais recentes e às vezes bastante caras — seu equipamento de informática era o único item extravagante de suas despesas.

Ela abriu a mochila e constatou que a tampa do computador estava quebrada. Tentou fazê-lo funcionar, mas ele não emitiu sequer um último suspiro. Levou os restos à MacJesus Shop de Timmy, na Brännkyrkagatan, na esperança de que pelo menos uma parte do disco rígido pudesse ser recuperada. Após um breve exame do aparelho, Timmy balançou a cabeça.

— Sinto muito, não há o que fazer — anunciou. — Pode encomendar o enterro.

A perda do computador era um golpe moral, mas não uma catástrofe. Lisbeth Salander se entendera perfeitamente bem com ele ao longo de um ano de convivência. Fizera cópias de todos os documentos e ainda possuía um velho computador de mesa Mac G3 e outro Toshiba portátil que poderia usar. Mas ela precisava de uma máquina rápida e moderna.

Optou, como era de se esperar, pela melhor escolha possível: o novo Apple Powerbook G4 de 1 Ghz, com tampa de alumínio e dotado de um processador PowerPC 7451, AltiVec Velocity Engine, memória RAM de 960 megas e disco rígido de 60 gigas. Tinha Bluetooth e um gravador de CD e DVD integrado.

Mais que isso, era o primeiro notebook do mundo com tela de 17 polegadas, uma placa Nvidia e resolução de 1440 por 900 pixels que deixavam embasbacados adeptos dos PC e faziam esquecer tudo o que havia de novo no mercado.

Era o Rolls-Royce dos computadores portáteis, mas o que mais aguçou a vontade de Lisbeth Salander de possuí-lo foi um teclado esperto provido de retro-iluminação, que permitia enxergar as letras das teclas mesmo na escuridão total. Simples, não? Por que ninguém pensara nisso antes?

Foi um caso de amor à primeira vista.

Custava trinta e oito mil coroas, mais as taxas.

Aí havia um problema sério.

Mesmo assim fez a encomenda na MacJesus, onde sempre comprava seus equipamentos de informática e que lhe concedia um desconto razoável. Alguns dias depois, Lisbeth Salander fez as contas. O seguro do computador acidentado cobriria boa parte da compra, mas, considerando a franquia e o preço elevado da nova aquisição, faltava-lhe ainda um pouco mais de dezoito mil coroas. Em casa, ela guardava dez mil coroas num pote de café para ter sempre dinheiro líquido à mão, mas isso não cobria toda a soma. Mesmo amaldiçoando-o, decidiu telefonar para o dr. Bjurman e explicar que precisava de dinheiro para uma despesa imprevista. Bjurman respondeu que não tinha tempo de recebê-la naquele dia. Salander explicou que ele não demoraria mais de vinte segundos para passar um cheque de dez mil coroas. Ele retrucou que não podia fazer um cheque com tão poucos elementos, mas depois acabou cedendo e, após um instante de reflexão, marcou um encontro com ela após o expediente, às sete e meia.


Mikael admitia não ter competência para avaliar um inquérito criminal, mas ainda assim concluiu que o inspetor Morell fora excepcionalmente consciencioso e movera céus e terras muito além do que seu trabalho exigia. Deixando de lado o inquérito policial, Mikael via Morell retornar às anotações de Henrik; uma amizade desenvolvera-se entre os dois e Mikael se perguntou se Morell se tornara tão obsessivo quanto o empresário. Mas concluiu que nada de importante escapara a Morell. A solução do mistério Harriet Vanger não podia estar num inquérito policial praticamente perfeito. Todas as questões imagináveis haviam sido levantadas e todos os indícios verificados, mesmo os mais absurdos.

Ele ainda não lera todo o inquérito, mas, quanto mais avançava, mais os indícios e as pistas exploradas se tornavam obscuros. Não esperava descobrir algo que seu predecessor não tivesse percebido, e não via sob que novo ângulo atacar o problema. Uma conclusão se impunha aos poucos: o único caminho possível era tentar descobrir as motivações psicológicas das pessoas implicadas.

O ponto de interrogação mais evidente dizia respeito à própria Harriet. Quem era ela afinal?

Da janela de sua casa, Mikael viu acender-se, por volta das cinco da tarde, a luz no andar de cima da casa de Cecilia Vanger. Bateu à sua porta às sete e meia, no momento em que o noticiário começava na tevê. Ela vestia um penhoar quando abriu a porta, e tinha os cabelos molhados sob uma toalha amarela. Assim que a viu, Mikael desculpou-se por incomodá-la e já se preparava para partir quando ela o convidou a entrar na cozinha. Ligou a cafeteira elétrica e desapareceu no alto da escada durante alguns minutos, para depois descer vestindo um jeans e uma camisa de flanela xadrez.

— Eu já estava começando a achar que você não teria coragem de vir. Podemos nos tratar por você?

— Claro. Sim, eu deveria ter telefonado antes, mas, quando passei e vi a luz acesa, me deu uma vontade repentina.

— E eu tenho visto que a luz fica acesa a noite toda na sua casa. E que geralmente você sai para passear depois da meia-noite. Você é uma ave noturna?

Mikael encolheu os ombros.

— Foi o ritmo que adotei aqui. — Seus olhos dirigiram-se a alguns livros escolares empilhados na beira da mesa. — Continua dando aulas, senhora diretora?

— Não, como diretora não tenho mais tempo. Mas já dei aulas de história, religião e de educação cívica. E só me restam uns poucos anos.

— Poucos? Ela sorriu.

— Estou com cinquenta e seis. Em breve me aposento.

— Sinceramente, eu lhe dava uns quarenta.

— Bondade sua. E você, que idade tem?

— Um pouco mais de quarenta — sorriu Mikael.

— E ainda ontem você tinha apenas vinte. Como passa depressa... a vida, eu quero dizer.

Cecilia Vanger serviu o café e perguntou se Mikael estava com fome. Ele respondeu que já tinha comido; o que era verdade, a não ser por um detalhe: ele andava se alimentando de sanduíches em vez de preparar refeições de verdade. Mas não estava com fome.

— Então, o que o traz aqui? Chegou a hora de me fazer as famosas perguntas?

— Para falar a verdade... não vim fazer perguntas. Acho que estava simplesmente com vontade de vê-la.

Cecilia Vanger sorriu, surpresa.

— Você foi condenado à prisão, trocou Estocolmo por Hedeby, anda mergulhado nos arquivos favoritos de Henrik, não dorme à noite, faz longas caminhadas noturnas debaixo de um frio de rachar... esqueci alguma coisa?

— Minha vida é um trem fora dos trilhos. — Mikael retribuiu o sorriso.

— Quem é a mulher que veio vê-lo no fim de semana?

— Erika... a dona da Millennium.

— Sua namorada?

— Não exatamente. Ela é casada. Sou mais um amigo e um amante ocasional.

Cecilia Vanger deu uma gargalhada.

— O que é tão engraçado?

— O modo como você disse isso. Amante ocasional. Adorei a expressão. Mikael riu. Essa Cecilia Vanger decididamente lhe agradava.

— Gostaria muito de ter um amante ocasional — ela disse.

Descalçou as pantufas e pôs o pé sobre o joelho de Mikael. Maquinalmente ele pegou o pé dela e acariciou sua pele. Hesitou um segundo — sentiu que navegava em águas inesperadas e incertas. Mas com o polegar começou a massagear com suavidade a planta do pé de Cecilia Vanger.

— Também sou casada — disse ela.

— Eu sei. Ninguém se divorcia no clã Vanger.

— Não vejo meu marido há quase vinte anos.

— O que aconteceu?

— Não te interessa. Não faço amor há... humm... digamos, há uns três anos.

— Você me surpreende.

— Por quê? É uma questão de oferta e procura. Não estou nem um pouco interessada em ter um namorado, um marido legítimo ou um companheiro. Sinto-me bem comigo mesma. Com quem eu faria amor? Com um dos professores da escola? Duvido. Com um aluno? Seria um assunto delicioso para as fofocas da cidade. Todos vigiam de perto os Vanger. E aqui em Hedebyön moram apenas membros da família ou pessoas já casadas.

Ela se inclinou para a frente e enlaçou os braços no pescoço dele.

— Estou chocando você?

— Não. Mas não sei se é uma boa idéia. Trabalho para o seu tio.

— E eu seria certamente a última pessoa a contar para ele. Mas é bem provável que Henrik não tivesse nada contra.

Ela sentou de pernas abertas sobre os joelhos de Mikael e o beijou na boca. Os cabelos ainda estavam úmidos e cheiravam a xampu. Ele demorou um pouco para abrir os botões da camisa de flanela, descobrindo-lhe os ombros. Ela não se dera o trabalho de pôr sutiã. Quando ele tocou seus seios, ela estreitou o corpo contra o dele.


O advogado Bjurman contornou a mesa e mostrou-lhe o extrato da conta, cujo saldo ela conhecia até o último centavo, mas do qual não podia mais dispor livremente. Ele se mantinha de pé às suas costas. Súbito, começou a acariciar a nuca de Lisbeth, deslizando a mão sobre o ombro esquerdo e o seio dela. Pôs a outra mão sobre o seio direito e a deixou ali. Como ela não protestou, ele apertou o seio. Lisbeth Salander não se mexia. Sentiu o hálito dele em sua nuca e olhou para o cortador de papel em cima da mesa; poderia facilmente atingi-lo com a mão livre.

Mas não fez nada. Uma coisa que Holger Palmgren lhe ensinara ao longo dos anos era que atos impulsivos traziam problemas, e problemas podiam trazer consequências desagradáveis. Ela nunca fazia nada sem antes pesar as consequências.

Esse primeiro abuso sexual — em termos jurídicos podia ser qualificado como abuso sexual e de poder sobre uma pessoa dependente, e teoricamente podia significar até dois anos de prisão para Bjurman — durou apenas alguns segundos. O suficiente, porém, para transpor, sem volta, uma fronteira. Lisbeth Salander entendeu isso como a demonstração de força de uma tropa inimiga — um modo de deixar claro que, para além da relação jurídica cuidadosamente estabelecida, ela estava à mercê da boa vontade dele, e desarmada. Quando seus olhos se cruzaram alguns segundos depois, a boca de Bjurman estava entreaberta e ela viu desejo em seu rosto. O rosto de Salander não traía o menor sentimento.

Bjurman contornou novamente a mesa e sentou-se em sua confortável cadeira de couro.

— Não posso te passar cheques assim, sem mais — disse abruptamente. — Por que você precisa de um computador tão caro? Há equipamentos bem mais baratos nos quais você pode instalar seus jogos.

— Quero dispor do meu dinheiro como antes. Bjurman lançou-lhe um olhar cheio de piedade.

— Veremos isso mais tarde. Primeiro você precisa aprender a ser sociável e a se entender com as pessoas.

O sorriso do dr. Bjurman certamente teria se contraído um pouco se ele pudesse ler os pensamentos de Lisbeth por trás de seus olhos inexpressivos.

— Acho que podemos ser bons amigos — disse Bjurman. — Precisamos confiar um no outro.

Como ela não respondeu, ele foi mais explícito.

— Você agora é uma mulher adulta, Lisbeth.

Ela fez que sim com a cabeça.

— Venha cá — disse ele, estendendo-lhe uma mão.

Lisbeth Salander pôs novamente os olhos no cortador de papel por alguns segundos antes de se levantar e ir até lá. Consequências. Ele pegou a mão dela e a pôs em seu púbis. Ela sentiu o membro através da calça de gabardine escura.

— Se for gentil comigo, serei gentil com você — ele disse.

Ela estava rígida como um tronco quando ele pôs a outra mão atrás de sua nuca e forçou-a a ajoelhar-se, o rosto diante do púbis.

— Já fez esse tipo de coisa, não fez? — ele perguntou, abrindo a braguilha. Ela percebeu que ele se lavara com água e sabonete.

Lisbeth Salander virou o rosto para o lado e tentou se levantar, mas ele a reteve com firmeza. Na força pura, não podia medir-se com ele; pesava quarenta e dois quilos contra os noventa e cinco dele. Ele pegou a cabeça de Lisbeth com as mãos e virou-lhe o rosto para vê-la bem nos olhos.

— Se você for gentil comigo, serei gentil com você — repetiu. — Se me criar problemas, posso fazê-la ficar internada com os loucos o resto da sua vida. Gostaria disso?

Ela não respondeu.

— Gostaria disso? — ele repetiu.

Ela balançou negativamente a cabeça.

Bjurman esperou até que ela abaixasse o olhar, submissa, ele pensou. Depois a puxou para junto de si. Lisbeth Salander descerrou os lábios e pôs o membro na boca. Em momento nenhum ele deixou de segurá-la pela nuca e de pressioná-la violentamente. Ela se sentiu como que amordaçada ao longo dos dez minutos em que ele se agitou até finalmente ejacular; ele a segurara com tanta força que ela mal pôde respirar.

Bjurman deixou-a usar um pequeno banheiro anexo ao gabinete. O corpo inteiro de Lisbeth Salander tremia quando ela lavou o rosto e tentou limpar as manchas do pulôver. Usou o dentifrício dele para tirar o gosto da boca. Ao voltar ao gabinete, encontrou-o instalado à mesa, folheando papéis, como se nada tivesse acontecido.

— Sente-se, Lisbeth — ele disse, sem olhar para ela. Ela sentou-se. Finalmente ele olhou para ela e sorriu.

— Você agora é adulta, não é, Lisbeth?

Ela assentiu com a cabeça.

— Então deve ser capaz de jogar jogos de adultos — ele disse, como se falasse com uma criança.

Lisbeth não respondeu. Uma pequena ruga se formou na testa de Bjurman.

— Acho que não seria uma boa idéia falar dos nossos jogos a outra pessoa. Pense bem: quem acreditaria em você? Há papéis que comprovam sua irresponsabilidade. — Como ela não respondeu, ele prosseguiu: — Seria a sua palavra contra a minha. Qual delas você acha que pesaria mais?

Ele suspirou diante da obstinação dela em não responder. De repente ficou irritado de vê-la sentada ali, muda, com os olhos fixos nele. Mas controlou-se.

— Seremos bons amigos, você e eu. Foi muito sensata em vir me procurar. Conte sempre comigo.

— Preciso de dez mil coroas para o meu computador — ela falou de repente, em voz baixa, como se retomasse a conversa iniciada antes da interrupção.

O dr. Bjurman ergueu as sobrancelhas. Que puta mais dura de roer! É totalmente retardada. Estendeu-lhe o cheque que havia preparado enquanto ela estava no banheiro. É mais que uma puta; ela se paga com o próprio dinheiro! Dirigiu-lhe um sorriso superior. Lisbeth Salander pegou o cheque e foi embora.


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