19 - QUARTA-FEIRA 30 DE MARÇO – SEXTA-FEIRA 1º DE ABRIL


Na quarta-feira, não aconteceu nada de particularmente interessante. Mikael gastou o dia passando um pente-fino no material de Dag Svensson para achar todas as referências ao nome de Zala. Como fizera Lisbeth Salander, procurou a pasta [ZALA] no computador de Dag Svensson e leu os três arquivos, [Irene P.], [Sandström] e [Zala], e, assim como Lisbeth, percebeu que Dag Svensson tivera uma fonte na polícia que atendia pelo nome de Gulbrandsen. Conseguiu localizá-lo na Criminal de Södertãlje, mas quando ligou disseram que Gulbrandsen estava viajando a trabalho e só voltaria na segunda-feira.

Observou que Dag Svensson dedicara muito tempo a Irene P. Leu o relatório da autópsia e descobriu que a mulher fora morta lentamente, de maneira brutal. O assassinato ocorrera no final de fevereiro. A polícia não tinha nenhuma pista do assassino, mas partia do princípio de que, sendo Irene uma prostituta, o assassino devia ser um de seus clientes.

Mikael se perguntou por que Dag Svensson teria guardado o arquivo sobre Irene P. na pasta [ZALA]. Isso indicava uma ligação entre Zala e Irene P., mas o texto não fazia nenhuma referência a isso. Ou seja, Dag Svensson estabelecera a ligação só na sua cabeça.

O arquivo [Zala] era tão sucinto que lembrava anotações de trabalho provisórias. Mikael concluiu que Zala (supondo que ele de fato existisse) aparecia como uma espécie de fantasma no mundo do crime. Aquilo não parecia ser muito realista e o texto não remetia a nenhuma fonte.

Fechou o arquivo e coçou a cabeça. Desvendar o assassinato de Dag e Mia era uma tarefa muito mais complicada do que ele tinha imaginado. E, sem querer, sentia-se o tempo todo com uma dúvida. O problema é que, na verdade, ele não dispunha de nenhum indício apontando claramente que Lisbeth não tinha ligação com os assassinatos. Ele apenas se fundamentava no absurdo que era ela ter ido até Enskede para matar dois amigos dele.

Sabia que recursos financeiros não lhe faltavam; ela usara seus talentos como hacker para surrupiar uma quantia fabulosa de vários bilhões de coroas. Nem Lisbeth sabia que ele sabia. Exceto ele ter sido obrigado (com a autorização de Lisbeth) a contar dos seus talentos em computação para Erika Berger, jamais revelara os segredos dela para ninguém.

Negava-se a acreditar que Lisbeth Salander fosse culpada dos assassinatos. Tinha para com ela uma dívida que jamais poderia pagar. Ela não só lhe salvara a vida quando Martin Vanger estava prestes a matá-lo, como também salvara sua carreira e, provavelmente, a revista Millennium, ao entregar a cabeça daquele financista corrupto que era o Wennerstrôm.

Essas são coisas que vinculam. Sentia uma imensa lealdade em relação a Lisbeth Salander. Fosse ela culpada ou não, pretendia fazer de tudo para ajudá-la quando, mais cedo ou mais tarde, ela fosse detida.

Mas tinha de admitir que não sabia coisa alguma a seu respeito. Os vários laudos psiquiátricos, o fato de ela ter sido internada numa das instituições mais respeitadas do país, sendo inclusive declarada incapaz, indicavam claramente que a cabeça dela não funcionava muito bem. A mídia dera muito espaço ao médico-chefe Peter Teleborian, da clínica psiquiátrica Sankt Stefan, em Uppsala. Por discrição, ele não se pronunciara especificamente sobre Lisbeth Salander, no entanto não perdera a oportunidade de bater na sua tecla da decadência do tratamento dos doentes mentais. Teleborian era uma autoridade respeitada não só na Suécia como no mundo inteiro, enquanto eminente especialista em doenças psíquicas. Tinha sido muito convincente e conseguira expressar sua simpatia pelas vítimas e por suas famílias, e ao mesmo tempo dar a entender que se preocupava imensamente com o bem-estar de Lisbeth.

Mikael se perguntou se deveria entrar em contato com Peter Teleborian para convencê-lo a colaborar de alguma maneira. Mas conteve-se. Ponderou que Peter Teleborian teria muito tempo para ajudar Lisbeth Salander depois que ela fosse detida.

Por fim, foi até a copa pegar um café na caneca com o logotipo do Partido Moderado, e entrou na sala de Erika Berger.

—Estou com uma lista imensa de clientes sexuais e cafetões para entrevistar - disse.

Ela meneou a cabeça com ar preocupado.

—Vou levar uma semana, talvez duas, para dar conta da lista toda. Eles estão espalhados entre Strängnäs e Norrköping, não muito distantes de Estocolmo. Vou precisar de um carro.

Ela abriu a bolsa e pegou as chaves da sua BMW.

Posso?

Claro que sim. Eu posso vir trabalhar tanto de carro como de trem. Qualquer coisa, eu pego o carro do Lars.

—Obrigado.

—Só tem uma condição.

—Ah, é?

—Alguns desses caras são verdadeiros trogloditas. Se você está saindo numa cruzada contra os cafetões para desvendar o assassinato do Dag e da Mia, quero que leve sempre isto no bolso.

E colocou uma bomba de gás lacrimogêneo sobre a mesa.

—Onde você arranjou isso?

—Comprei nos Estados Unidos no ano passado. Já pensou uma mulher sozinha na rua, à noite, sem arma?

—E você imagina o bafafá que vai dar se eu usar isso aí e me prenderem por porte ilegal de arma?

—Melhor do que ter de escrever o seu necrológio. Mikael... não sei se deu para perceber, mas às vezes me preocupo muito com você.

—Ah, é?

—Você assume riscos e é tão metido que não consegue recuar depois que começou uma besteira.

Ele sorriu e deixou a bomba na mesa de Erika.

—Obrigado por sua preocupação. Mas não vou precisar.

—Micke, eu insisto.

—Pode insistir. Mas já estou preparado.

Enfiou a mão no bolso do paletó e tirou o cartucho de gás lacrimogêneo que tinha achado na bolsa de Lisbeth Salander e trazia consigo desde então. Erika suspirou.

Bublanski bateu à porta da sala de Sonja Modig e sentou-se na cadeira dos visitantes em frente à sua mesa.

—O computador do Dag Svensson - disse ele.

—Também pensei nisso - ela respondeu. —Fui eu que fiz a reconstituição das últimas vinte e quatro horas de Svensson e Bergman. Ainda há umas lacunas, mas o Dag Svensson não esteve na redação da Millennium naquele dia. Em compensação, andou pela cidade e, por volta das quatro da tarde, encontrou um antigo colega de escola. Um encontro casual num café da Drottninggatan. Esse colega afirma que Dag Svensson estava realmente com um laptop na mochila. Ele viu, e os dois inclusive falaram sobre o assunto.

—E por volta das onze da noite, depois que ele foi morto, o computador não estava na casa dele.

—Isso mesmo.

—Que conclusão a gente pode tirar?

—Ele pode ter ido a algum outro lugar e, por um motivo qualquer, ter deixado ou esquecido o computador lá.

—Faz sentido?

—Não muito. Mas ele pode ter deixado para uma revisão ou no conserto. E tem também a possibilidade de ele trabalhar em outro lugar que a gente não conhece. Ele já havia alugado uma vez uma sala numa agência de frilas em Sankt Eriksplan, por exemplo.

—Sei.

—E é claro que também existe a possibilidade de o assassino ter levado o computador.

—Segundo Armanskij, a Lisbeth Salander é perita em computação.

—É - Sonja Modig assentiu com a cabeça.

—Hmm. A teoria do Blomkvist é que Dag Svensson e Mia Bergman foram assassinados por causa da pesquisa que o Svensson estava fazendo. E que devia estar no computador.

—Estamos com vários trens de atraso. Três vítimas, são tantas pistas para retraçar que nos cria um problema de tempo, mas o fato é que ainda não efetuamos uma busca em regra no local de trabalho do Dag Svensson na Millennium.

—Falei com a Erika Berger agora de manhã. Diz ela que estão surpresos de ainda não termos ido lá dar uma olhada nas coisas dele. Ficamos muito concentrados na Lisbeth Salander, para prendê-la o quanto antes, e a verdade é que sabemos muito pouco sobre o motivo. Você poderia...

—Marquei com a Berger uma visita para amanhã.

—Obrigado.

Na quinta-feira, Mikael estava conversando com Malu Eriksson em sua sala quando ouviu o telefone da redação tocar. Avistou Henry Cortez pela fresta da porta e não prestou mais atenção. Então, no fundo de seu cérebro, registrou que era o telefone da sala de Dag Svensson que estava tocando. Interrompeu-se em meio a uma frase e levantou-se de um salto.

—Pare, não toque nesse aparelho! - gritou.

Henry Cortez acabava de pôr a mão no telefone. Mikael entrou correndo na sala. Como é que era mesmo a droga do nome que ele...

—Índigo Marketing, bom dia, quem fala é o Mikael. No que posso ajudá-lo?

—Hã... bom dia, meu nome é Gunnar Björck. Recebi uma carta dizendo que ganhei um celular.

—Meus parabéns - disse Mikael Blomkvist. —Trata-se de um Sony Ericsson, o último modelo.

—E é de graça?

—Inteiramente de graça. A única coisa é que, para receber seu prê­mio, o senhor precisa responder a uma pesquisa. Trabalhamos com análise de mercado e análises aprofundadas para diversas empresas. O senhor teria de gastar uma horinha respondendo a algumas perguntas. E, se aceitar, passa para a segunda etapa concorrendo a cem mil coroas.

—Entendi. E é possível fazer isso por telefone?

—Não, sinto muito. Parte da pesquisa inclui a identificação de diversos logotipos de empresas que precisamos lhe mostrar. Também iremos lhe perguntar que tipo de imagem publicitária lhe parece a mais atraente, mostrando-lhe várias alternativas. Um dos nossos colaboradores irá visitá-lo.

—Ah, sim... E por que eu fui escolhido?

—Realizamos esse tipo de pesquisa duas ou três vezes por ano. Neste estudo de agora, estamos dando ênfase a homens da sua idade com boa situação profissional. Depois, a escolha foi feita ao acaso, pelos registros de identidade.

Por fim, Gunnar Björck aceitou receber a visita de um colaborador da Índigo Marketing. Informou que estava em licença médica, em repouso numa casa de campo em Smädalarö. Explicou como ir até lá. Marcaram o encontro para sexta-feira de manhã.

—YES! - exclamou Mikael depois de desligar.

Deu um soco no ar. Malu Eriksson e Henry Cortez trocaram um olhar perplexo.

Paolo Roberto aterrissou em Arlanda às onze e meia da quinta-feira. Dormira a maior parte do voo procedente de Nova York e, pela primeira vez, não sentia os efeitos do fuso horário.

Tinha passado um mês nos Estados Unidos debatendo sobre boxe, assistindo a lutas amistosas e buscando idéias para uma produção que ele pretendia vender à Strix Television. Constatou nostálgico, que sua carreira agora estava definitivamente encerrada, em parte por causa de uma suave pressão da família, em parte porque estava passando da idade. Não havia muito mais que ele pudesse fazer a não ser tentar manter a forma, o que ele fazia por meio de intensas sessões de treinamento pelo menos uma vez por semana. Ainda era um nome importante no mundo do boxe e imaginou que de um jeito ou de outro continuaria trabalhando com esse esporte o resto da vida.

Apanhou sua mala na esteira. Foi detido para revista ao passar pela alfândega. Mas um dos agentes sabia das coisas e o reconheceu.

—Olá, Paolo. Imagino que só tenha luva de boxe na sua mala.

Paolo Roberto garantiu que não levava nenhum objeto contrabandeado e deixaram-no entrar no país.

Estava deixando o hall de desembarque e pegando a rampa em direção ao ônibus para Arlanda quando estacou de repente, ao deparar com o rosto de Lisbeth Salander nas manchetes dos jornais vespertinos. De início não entendeu o que estava vendo. Perguntou-se se, afinal, não estava sentindo o efeito do fuso horário. Então voltou a ler a manchete.

CAÇADA A LISBETH SALANDER

Seu olhar passou para a segunda manchete.

EXCLUSIVO! PSICOPATA PROCURADA POR TRIPLO ASSASSINATO

Indeciso, entrou na revistaria e comprou os jornais vespertinos, também os matutinos, e dirigiu-se a uma lanchonete. Leu com uma sensação de irrealidade.

Ao chegar a seu apartamento da Bellmansgatan por volta das onze da noite, na quinta-feira, Mikael Blomkvist estava cansado e deprimido. Planejava ir dormir cedo e tentar recuperar um pouco do sono atrasado, mas não resistiu à tentação de se conectar a internet e dar uma olhada na sua caixa postal.

Não recebera nada de muito interessante, mas por desencargo de consciência abriu a pasta [LISBETH SALANDER]. Seu coração disparou quando encontrou um arquivo novo, intitulado [MB2]. Clicou duas vezes.

[O procurador E. está despejando informações na mídia. Pergunte a ele por que não repassou o antigo relatório policial.]

Mikael contemplou estupefato, a misteriosa mensagem. O que ela queria dizer com isso? Que antigo relatório policial? Não entendia o que ela estava sugerindo. Que menina danada de complicada! Por que ela sempre tinha que redigir as mensagens em forma de charada? Um instante depois, ele criou um novo documento, que chamou de [Críptica].

[Olá, Sally. Estou supercansado, não parei quieto desde os assassinatos. Estou sem ânimo para brincar de adivinha. Pode ser que você não esteja nem aí, ou que não leve a situação a sério, mas eu quero saber quem matou os meus amigos. M]

Esperou em frente à tela. A resposta [Críptica 2] chegou no minuto seguinte.

[O que você faria no meu lugar?] Ele respondeu com [Críptica 3].

[Lisbeth, se você pirou de vez, só o Peter Teleborian, na certa, pode te ajudar. Mas não acredito que você tenha matado o Dag e a Mia. Espero não estar enganado.

O Dag e a Mia pretendiam denunciar o comércio do sexo. Minha hipótese é que isso de alguma forma motivou os crimes. Mas não tenho nada para fundamentar essa hipótese.

Não sei o que deu errado entre nós, mas um dia conversamos sobre amizade. Eu te disse que a amizade se baseia em duas coisas - respeito e confiança. Mesmo que você não goste de mim, pode confiar em mim totalmente. Nunca revelei seus segredos. Nem mesmo o que aconteceu com os bilhões de Wennerström. Confie em mim. Não sou seu inimigo. M.]

A resposta demorou tanto que Mikael já tinha perdido a esperança. Mas uns cinquenta minutos depois apareceu, de repente, o [Críptica 4].

[Vou pensar no assunto.]

Mikael enfim respirou aliviado. Vislumbrou, de súbito, um pequeno clarão de esperança. A resposta significava exatamente isso. Ela ia pensar no assunto. Era a primeira vez, desde que sumira repentinamente da sua vida, que ela aceitava se comunicar com ele. Ela estar disposta a pensar no assunto significava que ia pesar os prós e os contras antes de falar com ele. Ele escreveu [Críptica 5].

[Está bem, eu espero. Mas não demore demais.]

O inspetor Hans Faste atendeu a ligação no celular quando rodava pela Lângholmsgatan em direção à ponte de Vãsterbron para ir trabalhar na sexta-feira de manhã. A polícia não tinha verba suficiente para vigiar ininterruptamente o apartamento da Lundagatan. Tinham combinado com um vizinho de porta, um policial aposentado, que ficasse de olho no apartamento.

—A china acabou de chegar - disse o vizinho.

Hans Faste não poderia estar num lugar mais propício. Fez um retorno proibido diante do ponto de ônibus da Heleneborgsgatan, em frente à ponte, e dirigiu-se para a Lundagatan via Högalidsgatan. Estacionou menos de dois minutos depois do telefonema, atravessou a rua a passo acelerado e entrou no prédio pela entrada dos carros.

Miriam Wu ainda estava em frente à porta do apartamento, olhando para a fechadura arrombada e as fitas adesivas, quando ouviu passos na escada. Virou-se e viu um homem forte, de porte atlético e olhar intenso se aproximar. Sentiu-o como alguém hostil, largou a mala no chão e preparou-se para uma demonstração de boxe tailandês, se necessário.

—Miriam Wu? - ele perguntou.

Para sua imensa surpresa, o homem apresentou uma insígnia policial.

—Sim - respondeu Mimmi. —Do que se trata?

—Onde você esteve na semana passada?

—Viajando. O que aconteceu? Fui assaltada? Faste olhou para ela.

—Vou ter de lhe pedir que me acompanhe até Kungsholmen - disse, pondo uma mão no ombro de Miriam Wu.

Bublanski e Modig viram uma Miriam Wu razoavelmente irritada sendo escoltada por Faste até a sala de interrogatório.

—Sente-se. Sou o inspetor criminal Jan Bublanski e essa é minha colega Sonja Modig. Lamento termos sido obrigados a trazê-la aqui desta maneira, mas temos umas perguntas para lhe fazer.

—Ah, é? Por quê? O seu colega ali não é de falar muito. Mimmi apontou o polegar na direção de Faste.

—Faz mais de uma semana que estamos procurando você. Pode me dizer por onde andava?

—Sim, claro. Mas não estou com vontade e, até onde eu sei, isso não lhe diz respeito.

Bublanski ergueu uma sobrancelha.

—Chego em casa, dou com a porta arrombada e lacrada pela polícia, e aí um macho entupido de anabolizantes me arrasta até aqui. Não tenho direito a alguma explicação?

—Você não gosta de machos? - perguntou Hans Faste.

Miriam Wu olhou para ele chocada. Bublanski e Modig o fitaram com olhos severos.

—Devo deduzir que você não leu os jornais na semana passada? Estava fora do país?

Abalada, Miriam Wu começava a se sentir insegura.

—Não, não li os jornais. Passei quinze dias em Paris, visitando meus pais. Acabo de chegar da estação.

—Veio de trem?

—Não gosto de avião.

—E não leu as manchetes dos jornais?

—Acabo de descer do trem noturno, fui para casa de metrô.

O inspetor Bubolha refletiu. Nem todos os jornais da manhã davam Lisbeth Salander nas manchetes. Levantou-se, saiu da sala e voltou um minuto depois com a edição de Páscoa do Aftonbladet, cuja primeira página estava tomada pela foto de Lisbeth Salander.

Miriam Wu por pouco não desmaiou.

Mikael Blomkvist seguiu as instruções fornecidas por Gunnar Björck, sessenta e dois anos, para chegar à casa de campo de Smàdalarõ. Estacionou o carro e constatou que a “casinha” era uma casa moderna e muito confortável, da qual se avistava um pedaço da angra de Jungfrufjãrden. Subiu uma trilha de cascalhos e tocou a campainha. Gunnar Björck era exatamente igual à sua foto da identidade que Dag Svensson tinha conseguido.

—Bom dia - disse Mikael.

—Bom dia, foi fácil de achar?

—Foi, sim.

—Entre. Vamos ficar na cozinha.

—Parece ótimo.

Gunnar Björck parecia estar bem de saúde, mas mancava ligeiramente.

—Estou de licença médica - disse ele.

—Nada grave, espero - disse Mikael.

—Estou aguardando uma cirurgia de hérnia de disco. Aceita um café?

—Não, obrigado - disse Mikael.

Sentou-se à mesa, abriu a sacola e tirou de dentro uma pasta. Björck sentou-se à sua frente.

—Tenho a impressão de que já o conheço. Já nos vimos em algum lugar?

—Não - disse Mikael.

—Seu rosto me parece realmente familiar.

—Talvez tenha me visto no jornal.

—Como é mesmo o seu nome?

—Mikael Blomkvist. Sou jornalista, trabalho na revista Millennium. Gunnar Björck pareceu intrigado. Então as peças do quebra-cabeça se encaixaram. Super-Blomkvist. O caso Wennerstróm. Mas ainda não entendia as implicações.

—Millennium. Não sabia que vocês faziam pesquisa de mercado.

—Só excepcionalmente. Eu queria que o senhor desse uma olhada nessas três fotos e me dissesse que modelo prefere.

Mikael espalhou sobre a mesa as fotos de três mulheres. Uma das fotos tinha sido baixada de um site pornô da internet e impressa na impressora. As outras duas eram ampliações de fotos coloridas de carteira de identidade.

Gunnar Björck ficou lívido.

—Não estou entendendo.

—Não? Esta é Lidia Komarova, dezesseis anos, de Minsk, na Bielo-Rússia. Ao lado dela, Myang So Chin, também conhecida como Jo-Jo, da Tailândia. Vinte e cinco anos. Por fim, Yelena Barasowa, dezenove anos, de Tallinn. Você comprou serviços sexuais dessas três mulheres e eu gostaria de saber de qual gostou mais. Pode considerar como uma pesquisa de mercado.

Bublanski encarou Miriam Wu com um olhar cético e ela devolveu-lhe o olhar.

—Resumindo, você afirma que conhece Lisbeth Salander há pouco mais de três anos. Sem nenhuma contrapartida, ela a incluiu no contrato do apartamento agora na primavera, e foi morar em outro lugar. Vocês se encontram na cama uma vez ou outra, quando ela dá sinal de vida, mas você não sabe onde ela mora nem no que ela trabalha ou como ganha a vida. E quer que eu acredite nisso?

—Estou me lixando se acredita ou não. Não cometi nenhum crime, e minha opção de vida e parceiros sexuais não lhe dizem respeito, nem a mais ninguém.

Bublanski suspirou. Tinha recebido a notícia do aparecimento de Miriam Wu com uma sensação de libertação. Enfim, uma abertura. As respostas que ela lhe oferecia, porém, eram tudo menos esclarecedoras. Para dizer a verdade, eram até mesmo estranhas. O problema é que ele acreditava nela. Miriam Wu respondia com precisão e sem hesitar. Sabia dizer com precisão em que lugares e em que ocasiões tinha encontrado com Lisbeth Salander, e descreveu com tantos detalhes as circunstâncias que a fizeram se mudar para a Lundagatan que tanto Bublanski como Modig concluíram que uma história tão esquisita só podia ser verídica.

Hans Faste assistira ao interrogatório de Miriam Wu com uma crescente sensação de irritação, mas conseguira manter a boca fechada. Achava que Bublanski estava sendo mole demais com a china. Aquela cachorra arrogante ficava aumentando as explicações para evitar responder à única pergunta que interessava, ou seja, onde, porra, a puta safada da Lisbeth Salander estava escondida.

Mas Miriam Wu não sabia onde Lisbeth Salander estava. Não tinha a menor idéia de qual era o trabalho de Lisbeth Salander. Nunca ouvira falar na Milton Security. Nunca ouvira falar em Dag Svensson ou em Mia Bergman, e tampouco sabia responder a uma única pergunta interessante. Ignorava totalmente que Salander estava sob tutela, que havia sido internada na adolescência e que tinha laudos psiquiátricos eloquentes no currículo.

Em compensação, confirmou que ela e Lisbeth tinham estado no Moulin, que haviam se beijado, voltado em seguida para a Lundagatan, e se despedido na manhã seguinte. Poucos dias depois, Miriam Wu pegara o trem para Paris e deixara de ver todas as manchetes dos jornais suecos. A não ser por uma rápida aparição de Lisbeth para deixar as chaves do carro, não a via desde a noite no Moulin.

—Chaves do carro? - perguntou Bublanski. — Salander não tem carro.

Miram Wu explicou que ela tinha comprado um Honda cor de vinho que estava estacionado na frente do prédio. Bublanski se levantou e olhou para Sonja Modig.

—Você pode continuar o interrogatório? - perguntou, saindo da sala. Precisava encontrar Jerker Holmberg e pedir um exame técnico no Honda cor de vinho. Precisava, antes de mais nada, ficar sozinho para pensar.

Na sua cozinha com uma bela vista para o mar, Gunnar Björck, em licença médica, chefe-adjunto da Brigada dos Estrangeiros na Säpo, tinha adquirido a cor de um fantasma. Mikael o contemplava com olhos neutros e pacientes. Agora estava convencido de que Björck nada tinha a ver com os assassinatos de Enskede. Dag Svensson não tinha tido tempo de se encontrar com ele, Björck ignorava totalmente que em breve seu nome e sua foto estariam numa reportagem que revelaria muita coisa sobre os clientes do comércio do sexo.

A contribuição de Björck limitava-se a um único detalhe interessante. Ele era amigo pessoal do dr. Nils Bjurman. Tinham se conhecido no clube de tiro da polícia, do qual Björck era membro ativo há vinte e seis anos. Em certa época, inclusive, participara da diretoria do conselho administrativo junto com Bjurman. Não era uma amizade profunda, mas haviam saído duas ou três vezes para jantar.

Não, fazia vários meses que não via Bjurman. Até onde era capaz de lembrar, a última vez remontava ao verão anterior, quando tinham tomado uma cerveja na esplanada de um café. Lamentava que Bjurman tivesse sido morto por aquela psicopata, mas não pretendia ir ao enterro.

Mikael achou curiosa essa coincidência, mas acabou deixando para lá. Bjurman devia ter conhecido centenas de pessoas na sua vida profissional e associativa. Não era improvável nem estatisticamente estranho ele conhecer uma pessoa que constava nos registros de Dag Svensson. Mikael descobrira que ele próprio conhecia um jornalista que também constava.

Precisava acabar com aquilo. Björck já tinha passado por todas as etapas de praxe. Primeiro a negação, depois - quando Mikael mostrara parte da documentação - raiva, ameaças, tentativa de suborno e, por fim, súplicas. Mikael ignorara pacientemente todos as investidas.

—Percebe que vai destruir a minha vida se publicar isso? — disse Björck afinal.

—Percebo - respondeu Mikael.

—Mas vai publicar assim mesmo.

—Sem pensar duas vezes.

—Por quê? Podia ter um pouco de compaixão. Estou doente.

—Interessante você evocar a compaixão como argumento.

—O que custa ter um pouco de humanidade?

—Também acho, meu chapa. Você está aí se lamentando porque estou destruindo a sua vida, mas não hesitou em destruir a vida de muitas garotas, e transgredindo a lei. Temos provas no caso de três meninas. Sabe lá quantas outras passaram pelas suas mãos. Onde estava a sua caridade humana nessa hora?

Ele se levantou, juntou os documentos e guardou-os na bolsa do computador.

—Sei onde é a saída.

Encaminhou-se para a porta, então deteve-se e virou-se novamente para Björck.

—A propósito, você por acaso já ouviu falar num indivíduo chamado Zala? — perguntou.

Björck olhou fixamente para ele. Ainda estava tão abalado que mal ouviu as palavras de Mikael. O nome Zala pouco lhe importava. Então, seus olhos se arregalaram. Zala!

Não é possível.

Bjurman!

Será mesmo possível?

Mikael percebeu a alteração e se reaproximou da mesa da cozinha.

—Por que está me falando em Zala? - perguntou Björck. Ele parecia ter tomado um choque.

—Porque esse cara me interessa - disse Mikael.

Um silêncio denso tomou conta da cozinha. Mikael podia ver, literalmente, as engrenagens girando na cabeça de Björck. Por fim, Björck pegou um maço de cigarros no peitoril da janela. Era o primeiro cigarro que ele acendia desde a chegada de Mikael.

—Se eu sei alguma coisa sobre Zala... quanto vale isso para você? - perguntou, de repente mais seguro.

—Depende do que você sabe.

Björck refletiu. Os pensamentos se atropelavam em sua cabeça. Como é que o Blomkvíst pode saber sobre o Zalachenko?

—Fazia muito tempo que eu não escutava esse nome - disse Björck por fim.

—Então você sabe quem ele é - disse Mikael.

—Eu não disse isso. O que está procurando? Mikael hesitou um instante.

—É um dos nomes da minha lista de pessoas que estavam na mira de Dag Svensson.

—Quanto vale?

—Quanto vale o quê?

—Se eu te levar até o Zala... você consideraria esquecer de mim nessa reportagem?

Mikael sentou-se devagar. Depois de Hedestad, ele tinha decidido nunca mais negociar uma matéria jornalística. Não pretendia negociar com Björck e, o que quer que acontecesse, iria denunciá-lo. Por outro lado, Mikael sabia que era suficientemente desprovido de escrúpulos para fazer jogo duplo e fazer um acordo com Björck. Não sentia nenhuma dor na consciência. Björck era um canalha. Se ele sabia o nome de um possível assassino, sua obrigação era intervir - e não usar a informação para negociar em proveito próprio. Mikael não tinha o menor problema em deixar Björck na esperança de que se safaria numa troca de informações sobre um outro canalha. Pôs a mão no bolso do paletó e ligou o ditafone que havia desligado ao se levantar da mesa.

—Pode falar - disse.

Sonja Modig estava furiosa com Hans Faste, mas nada em seu semblante revelava o que pensava dele. O interrogatório de Miriam Wu, depois que Bublanski deixara a sala, estava sendo tudo menos rigoroso, e Faste ignorava solenemente todos os seus olhares enfurecidos.

Modig também estava surpresa. Nunca gostara de Hans Faste e do seu lado machão, mas considerava-o um policial competente. Hoje, não se via nada dessa competência. Era óbvio que Faste se sentia provocado por uma mulher bonita, inteligente e assumidamente lésbica. Também era óbvio que Miriam Wu percebia a irritação de Faste e a alimentava sem dó nem piedade.

—Quer dizer que você achou o pênis artificial na minha cômoda? Que tipo de fantasia ele te despertou? - perguntou Miriam Wu com um sorrisinho de curiosidade.

Faste quase explodiu.

—Cala a boca e responde minha pergunta - disse.

—Você perguntou se eu uso esse pênis para trepar com a Lisbeth Salander. E eu respondo que não lhe interessa.

Sonja Modig levantou a mão.

—Pausa no interrogatório de Miriam Wu para um rápido intervalo às llhl2.

Modig desligou o gravador.

—Miriam, fique aqui, por favor, quero trocar uma palavrinha com você.

Miriam Wu sorriu com ar inocente quando Faste lhe desfechou um olhar furibundo e seguiu Modig até o corredor. Modig se virou e pôs o nariz a dois centímetros do nariz de Faste.

—Bublanski me pediu para continuar o interrogatório. A sua contribuição é zero.

—Qual é? Essa vadia é pior que uma enguia.

—Essa metáfora é algum tipo de simbologia freudiana?

—O quê?

- Nada. Vá procurar o Curt Bolinder e lance um desafio bem macho para ele, ou então vá gastar energia no estande de tiro, ou seja, lá o que for. Mas fique longe desse interrogatório.

—Modig, por que você está desse jeito?

—Você está sabotando o meu interrogatório.

—Ela te deixa tão excitada que você quer interrogá-la a sós?

A mão de Sonja Modig foi tão rápida que ela não teve tempo de se conter. Tascou uma bofetada em Hans Faste. No mesmo instante, arrependeu-se do gesto, mas já era tarde. Olhou de relance para os dois lados do corredor e constatou que, felizmente, não havia testemunhas.

Hans Faste de início pareceu surpreso. Depois deu uma risadinha de escárnio, jogou a jaqueta no ombro e saiu. Sonja Modig ia chamá-lo para se desculpar, mas resolveu ficar quieta. Esperou um minuto até se acalmar, e então foi pegar dois cafés na máquina e voltou para junto de Miriam Wu.

Não disseram nada durante algum tempo. Por fim, Modig encarou Miriam Wu.

—Me desculpe. Este provavelmente é um dos piores interrogatórios da história desta delegacia.

—Esse cara deve ser uma simpatia de colega. Se eu entendi bem, ele é um hétero divorciado que fica contando piada de bicha perto da máquina de café.

—Ele é... uma espécie de relíquia de algum lugar. É só o que posso dizer.

—E não é o seu caso?

—Digamos que não sou homofóbica.

—Certo.

—Miriam, eu... faz dez dias que estamos todos esgotados, vinte e quatro horas por dia. Estamos cansados e tensos. Estamos tentando solucionar um duplo assassinato assustador em Enskede e um assassinato igualmente assustador num apartamento de Odenplan. A sua amiga está ligada aos dois locais do crime. Temos provas técnicas disso, e ela está sendo procurada em todo o território nacional. Você precisa entender que queremos encontrá-la a qualquer custo antes que ela faça mal a alguém ou a si mesma.

—Eu conheço a Lisbeth Salander... Não consigo acreditar que ela tenha matado alguém.

—Você não consegue ou não quer acreditar? Miriam, a gente não lança um alerta de busca nacional sem bons motivos para isso. Mas posso te dizer que o meu chefe, o inspetor Bublanski, também não está totalmente convencido da culpa dela. Estamos cogitando a possibilidade de ela ter um cúmplice ou de ter sido envolvida nisso tudo de outra maneira. Mesmo assim precisamos encontrá-la. Você acha que ela é inocente, Miriam, mas o que vai acontecer se estiver enganada? Você mesma diz que não sabe quase nada sobre a Lisbeth Salander.

—Não sei no que acreditar.

—Então ajude a gente a descobrir a verdade.

—Eu estou sendo acusada de alguma coisa?

—Não.

—Então posso sair daqui quando eu quiser?

—Teoricamente, sim.

—E sem ser teoricamente?

—Para nós, você vai ficar sendo um ponto de interrogação. Miriam Wu refletiu sobre essas palavras.

—Está bem. Vá lá, faça as perguntas. Se elas me incomodarem, não vou responder.

Sonja Modig tornou a ligar o gravador.

Загрузка...