23. SEXTA-FEIRA 11 DE JULHO


Mikael despertou às seis da manhã com o sol batendo direto no rosto porque a cortina não fora bem fechada. A cabeça estava vagamente dolorida e ele sentiu uma dor aguda ao tocar o curativo. Lisbeth Salander dormia de bruços, com um braço em cima dele. Ele olhou o dragão que se estendia em suas costas, do ombro direito às nádegas.

Contou as tatuagens. Além do dragão nas costas e de uma vespa no pescoço, havia uma tira em volta do tornozelo, outra em volta do bíceps esquerdo, um macaco chinês no quadril e uma rosa na panturrilha. Afora o dragão, todas as tatuagens eram pequenas e discretas.

Mikael saiu lentamente da cama e puxou a cortina. Foi ao banheiro e voltou para a cama sem fazer ruído, para não despertar Lisbeth.

Algumas horas depois, tomavam o café-da-manhã no jardim. Lisbeth olhou para Mikael.

— Temos um mistério para resolver. Como faremos?

— Vamos fazer um balanço das informações que já temos e tentar descobrir outras.

— Uma das informações é que alguém da vizinhança está tentando te acertar.

— A questão é saber por quê. É porque estamos prestes a resolver o mistério de Harriet ou porque descobrimos um assassino serial até então desconhecido?

— Deve haver uma ligação. Mikael concordou com a cabeça.

— Se Harriet descobriu um assassino serial, era, necessariamente, alguém do seu meio. Se examinarmos a galeria dos personagens dos anos 1960, havia pelo menos duas dúzias de candidatos possíveis. Hoje não resta praticamente ninguém, com exceção de Harald Vanger, e não dá para acreditar que ele, com quase noventa e cinco anos, anda pelos bosques com um rifle. Não teria força sequer para levantar uma espingarda de caça. Hoje todos são ou muito velhos para ser perigosos, ou muito jovens para terem agido nos anos 1950. O que nos leva de volta ao ponto de partida.

— A menos que dois colaborem um com o outro. Um velho e um jovem.

— Harald e Cecilia. Não creio. Acho que ela disse a verdade quando afirmou que não estava na janela.

— Quem seria então?

Abriram o notebook de Mikael e passaram a hora seguinte examinando com atenção todas as pessoas que apareciam nas fotos do acidente.

— Imagino que a aldeia inteira veio ver o acidente. Era setembro. A maioria está de casaco ou pulôver. Só uma pessoa tem cabelos louros compridos e vestido claro.

— Cecilia Vanger aparece em muitas fotos. Dá a impressão de estar o tempo todo em movimento, entre as casas e as pessoas que observam o acidente. Aqui ela está falando com Isabella. Aqui está com o pastor Falk. Aqui com Greger, o irmão de Henrik.

— Espere! — interrompeu Mikael. — O que é isso na mão dele, Greger?

— Uma coisa quadrada. Parece uma caixinha.

— É uma Hasselblad! Ele também estava com uma máquina fotográfica.

Repassaram as fotos mais uma vez. Greger era visto em várias, mas em geral encoberto. Numa das fotos, via-se claramente que ele tinha uma caixa quadrada na mão.

— Acho que você está certo. É uma máquina fotográfica.

— O que significa que podemos nos lançar a uma outra caça às fotos.

— Vamos deixar isso pra lá por enquanto — disse Lisbeth Salander. — Posso levantar uma hipótese?

— Diga.

— O que acha disto: alguém da jovem geração descobre que alguém da velha geração era um assassino serial, mas não quer que ninguém saiba. A honra da família, et cetera e tal. Isso significaria que existem duas pessoas envolvidas na história, mas que não agem juntas. O assassino pode estar morto há muito tempo, enquanto o nosso perseguidor quer simplesmente que a gente abandone o caso e saia daqui.

— Também pensei nisso — disse Mikael. — Mas, nesse caso, por que pôr um gato esquartejado na nossa porta? É uma referência direta aos assassinatos. — Mikael tocou a Bíblia de Harriet. — Mais uma paródia das leis sobre os sacrifícios por imolação.

Lisbeth Salander inclinou-se para trás e olhou a igreja enquanto citava a Bíblia com ar pensativo. Parecia falar sozinha.

"Depois imolará o novilho diante do Senhor, e os sacerdotes, filhos de Aarão, oferecerão o sangue e o derramarão ao redor sobre o altar que está à entrada da Tenda da Reunião. Depois esfolará a vítima e a cortará em pedaços."

Ela se calou e de repente percebeu que Mikael a olhava com o rosto tenso. Ele abriu a Bíblia no início do Levítico.

— Conhece o versículo 12 também? Lisbeth permaneceu calada.

— A seguir... — começou Mikael, balançando a cabeça para estimulá-la a continuar.

— "A seguir a vítima será cortada em pedaços, com a cabeça e a gordura, que o sacerdote disporá sobre a lenha colocada no fogo do altar." A voz dela estava gelada.

— E o seguinte?

Ela se levantou de repente.

— Lisbeth, você tem memória fotográfica! — exclamou Mikael, estupefato. — É por isso que lê as páginas do inquérito em segundos.

A reação dela foi quase explosiva. Fulminou Mikael com tanta raiva no olhar que ele ficou perplexo. Depois, os olhos de Lisbeth se encheram de desespero; virou-se e saiu correndo em direção ao portão do jardim.

— Lisbeth! — chamou Mikael, completamente atônito.

Ela desapareceu na estrada.


* * *

Mikael levou o computador para dentro de casa, ativou o alarme e trancou a porta antes de sair atrás de Lisbeth. Encontrou-a vinte minutos depois sentada num pontão do porto de recreio molhando os pés na água e fumando um cigarro. Lisbeth o ouviu chegar e ele percebeu os ombros dela se enrijecerem um pouco. Deteve-se a dois metros de onde ela estava.

— Não sei o que fiz de mal, mas não tive a intenção de deixá-la nesse estado.

Ela não respondeu.

Ele se aproximou, sentou-se ao lado dela e pôs docemente a mão sobre o seu ombro.

— Por favor, Lisbeth, fale comigo. Ela virou a cabeça e olhou para ele.

— Não há nada a dizer. Sou um monstro, só isso.

— Eu ficaria feliz se tivesse a metade da sua memória. Ela jogou o toco de cigarro na água.

Mikael permaneceu um bom tempo em silêncio. Que devo dizer? Você é uma menina perfeitamente normal. E qual é o problema se for um pouco diferente? Por que essa auto-imagem te perturba?

— Percebi que você é diferente das outras mulheres desde o primeiro instante em que eu te vi — ele falou. — E vou dizer uma coisa: fazia muito tempo que eu não gostava naturalmente de alguém assim desde o primeiro instante.

Crianças saíram de uma cabana em frente ao porto e se atiraram na água. Eugen Norman, o artista pintor com quem Mikael ainda não trocara uma só palavra, estava sentado numa cadeira diante de sua casa, fumando um cachimbo e observando Mikael e Lisbeth.

— Tenho vontade de ser seu amigo, se me quiser como amigo — disse Mikael. — Mas cabe a você decidir. Vou para casa preparar um café. Volte quando tiver vontade.

Levantou-se e a deixou tranquila. Estava na metade do caminho, na subida, quando ouviu os passos dela às suas costas. Voltaram juntos em silêncio.

Ela se deteve no momento em que chegavam em frente à casa.

— Eu estava pensando... dissemos que tudo é uma paródia da Bíblia. Certo. Ele cortou em pedaços um gato, mas imagino que não era fácil achar um novilho. De todo modo, está seguindo o enredo básico. Eu me pergunto...

Ela levantou os olhos para a igreja.

"...os sacerdotes oferecerão o sangue e o derramarão ao redor sobre o altar que está à entrada da Tenda da Reunião..."

Atravessaram a ponte e subiram em direção à igreja, olhando ao redor. Mikael verificou a porta da igreja: trancada. Continuaram andando mais um pouco, olhando ao acaso os túmulos do cemitério, até chegar à capela situada à beira d'agua. Mikael arregalou os olhos. Não era uma capela, era um jazigo. Acima da porta podia-se ler gravado na pedra o nome Vanger, seguido de uma frase em latim que ele não soube decifrar.

"Para repousar até o fim dos tempos" — disse Lisbeth. Mikael olhou-a admirado. Ela encolheu os ombros.

— Já li essa frase em algum lugar — disse.

Mikael deu uma risada. Ela ficou rígida e a princípio pareceu furiosa, mas logo relaxou ao perceber que ele não tinha zombado dela. A situação é que era cômica.

Mikael verificou a porta. Trancada. Ele refletiu um instante e disse a Lisbeth para sentar-se ali e esperar. Foi bater à porta de Henrik, e Anna Nygren veio abrir. Explicou que queria conhecer a capela mortuária da família Vanger e perguntou onde Henrik guardava a chave. Anna pareceu hesitar, mas cedeu quando Mikael lembrou a ela que trabalhava diretamente para Henrik. Ela foi buscar a chave no gabinete.

No momento em que Mikael e Lisbeth abriram a porta, viram que estavam certos. O fedor de cadáver queimado e de restos carbonizados pairava, pesado, no ar. Mas o torturador do gato não acendera o fogo. Num canto havia um maçarico semelhante ao usado pelos esquiadores para derreter a cera dos esquis. Lisbeth pegou a máquina digital do bolso da saia jeans e tirou algumas fotos. Pegou também o maçarico.

— Pode ser uma prova. Talvez tenha deixado impressões digitais — ela disse.

— Claro, podemos pedir a todos os membros da família Vanger que nos forneçam suas impressões digitais — ironizou Mikael. — Gostaria de vê-la tentando obter as de Isabella.

— Existem meios — retrucou Lisbeth.

No chão havia sangue em abundância e uma tesoura de latoeiro que eles deduziram ter servido para cortar a cabeça do gato.

Mikael olhou ao redor. Um túmulo principal, mais elevado, era certamente o de Alexander Vangeersad; outros quatro, no chão, abrigavam os ancestrais da família. Depois deles, a família Vanger optara, aparentemente, pela cremação. Uns trinta pequenos nichos de parede traziam nomes de membros do clã. Mikael seguiu a história familiar na ordem cronológica e perguntou-se onde estariam enterrados os membros que não tinham lugar na capela — os que talvez não fossem considerados suficientemente importantes.

— Agora temos certeza — disse Mikael, quando atravessaram de volta a ponte. — Estamos atrás de um louco furioso.

— Explique.

Mikael parou no meio da ponte e se apoiou na amurada.

— Se fosse um doido comum que quisesse nos amedrontar, teria matado o gato na sua garagem ou no bosque. Mas ele foi à capela da família. Há algo de compulsivo nisso. Imagine o risco que correu. É verão e as pessoas andam por aí até tarde. O caminho do cemitério é um atalho muito usado pelos habitantes de Hedeby. Mesmo que o sujeito tenha fechado a porta, não é fácil calar um gato e evitar o cheiro de queimado.

— Quem?

— Não consigo imaginar Cecilia indo lá à noite com um maçarico. Lisbeth encolheu os ombros.

— Não confio em nenhum desses doidos, nem mesmo em Frode e no seu amigo Henrik. Toda essa gente é capaz de enrolar você. Que vamos fazer agora?

Houve um momento de silêncio. Mikael disse então:

— Consegui descobrir muitos segredos a seu respeito. Quantas pessoas sabem que você é uma hacker?

— Ninguém.

— Exceto eu, quer dizer.

— Aonde você quer chegar?

— Quero saber se está comigo. Se confia em mim.

Ela o olhou por um bom tempo. Acabou encolhendo novamente os ombros.

— Não sei o que responder.

— Confia em mim? — insistiu Mikael.

— Até agora, sim — ela respondeu.

— Bem. Vamos fazer um pequeno passeio até a casa de Dirch Frode.


Sorrindo educadamente, a mulher do advogado Frode, que não conhecia Lisbeth Salander, arregalou os olhos quando a viu. Indicou-lhes o jardim nos fundos da casa. O rosto de Frode iluminou-se ao ver Lisbeth. Ele se levantou e a saudou com cortesia.

— Estou feliz de vê-la — disse. — Estava me sentindo culpado de não ter expressado suficientemente minha gratidão pelo trabalho extraordinário que fez para nós. Tanto no último inverno quanto agora.

Lisbeth o encarou desconfiada.

— Fui paga para isso — disse.

— Não foi isso que eu quis dizer. Julguei-a mal quando a vi pela primeira vez. Gostaria de me desculpar.

Mikael ficou surpreso. Dirch Frode era capaz de pedir desculpas a uma jovem de vinte e cinco anos coberta de piercings e tatuagens, por algo de que nem precisava se desculpar. O advogado subiu alguns pontos na estima de Mikael. Lisbeth Salander olhava para a frente e o ignorava.

Frode voltou-se para Mikael.

— O que aconteceu na sua testa?

Sentaram-se. Mikael resumiu os acontecimentos dos últimos dias. Quando contou que alguém havia disparado três tiros contra ele, Frode ergueu-se bruscamente. Sua indignação parecia incontestável.

— Mas isso é uma loucura! — Fez uma pausa e olhou fixamente para Mikael. — Sinto muito, mas temos que parar. Não posso colocar a vida de vocês em perigo. Preciso falar com Henrik e anular o contrato.

— Sente-se — disse Mikael.

— Você não entende...

— O que eu entendo é que Lisbeth e eu chegamos tão perto do alvo que quem está por trás de tudo isso entrou em pânico e começou a agir de maneira irracional. Lisbeth e eu gostaríamos de lhe fazer algumas perguntas. Em primeiro lugar: quantas chaves existem da capela funerária da família Vanger e quem possui uma?

Frode refletiu um instante.

— Na verdade, não sei. Eu diria que vários membros da família têm acesso à capela. Sei que Henrik possui uma chave e que Isabella vai até lá às vezes, mas desconheço se ela tem sua própria chave ou se usa a de Henrik.

— Certo. Você continua fazendo parte do conselho administrativo do grupo Vanger. Existem arquivos da empresa? Uma biblioteca ou algo semelhante, onde haja recortes de imprensa e informações sobre o grupo de ano em ano?

— Sim. Na sede da empresa em Hedestad.

— Precisamos ter acesso a tudo isso. Há também velhos boletins do grupo diretivo, esse tipo de material?

— Mais uma vez sou obrigado a responder que não sei. Há trinta anos não ponho os pés no departamento de arquivos. Mas eu o porei em contato com Bodil Lindgren. Ela é a responsável pelo arquivamento de todos os documentos do grupo.

— Pode telefonar para ela e conseguir que Lisbeth comece a percorrer os arquivos já a partir de hoje à tarde? Ela quer ler todos os velhos recortes de imprensa sobre o grupo Vanger. Eu disse todos, e caberá a ela julgar o que pode ter interesse.

— Não há problema. Algo mais?

— Sim. Greger Vanger estava com uma Hasselblad na mão no dia do acidente da ponte. Isso significa que também pode ter tirado fotos. Onde elas foram guardadas depois da morte dele?

— O mais provável é que estejam com a viúva.

— Será que você poderia...

— Vou telefonar para Alexander e perguntar.

— E você quer que eu procure o quê? — perguntou Lisbeth quando eles deixaram Frode e atravessaram a ponte para voltar à ilha.

— Recortes de imprensa e publicações do tipo boletim do grupo empresarial. Quero que leia tudo que se relacione com as datas em que os assassinatos foram cometidos nos anos 1950 e 1960. Anote tudo o que lhe parecer um pouco estranho. Acho melhor você se encarregar dessa pesquisa. Pelo que percebi, sua memória é melhor do que a minha.

Ela desferiu-lhe um soco muito profissional nas costelas. Cinco minutos depois, sua Kawasaki atravessava a ponte.


Mikael apertou a mão de Alexander Vanger. Ele estivera viajando na maior parte do tempo da estadia de Mikael em Hedeby, que só o avistara rapidamente. Ele tinha vinte anos quando Harriet desapareceu.

— Dirch Frode disse que você queria ver umas fotografias antigas.

— Seu pai possuía uma Hasselblad.

— Exato. Ela ainda existe, mas ninguém a usa mais.

— Você deve estar sabendo que estou pesquisando o que aconteceu a Harriet, a pedido de Henrik.

— Foi o que entendi. Há muita gente que não está gostando disso.

— É bem possível. Evidentemente, não é obrigado a me mostrar nada.

— Ora, não há problema! O que deseja ver?

— Fotos que seu pai possa ter tirado no dia do desaparecimento de Harriet.

Subiram até o sótão. Alexander precisou de alguns minutos para localizar uma caixa com um monte de fotografias soltas e misturadas.

— Pode levar a caixa — disse. — Se existir alguma das que procura, deve estar aí dentro.


Mikael passou uma hora selecionando as fotos da caixa que Alexander lhe entregara. Para ilustrar a crônica familiar, a caixa continha algumas verdadeiras preciosidades, entre as quais um grande número de fotografias de Greger Vanger na companhia do grande líder nazista sueco dos anos 1940, Sven Olof Lindholm. Mikael as separou.

Encontrou vários envelopes com fotos que o próprio Greger certamente tirara e que mostravam diferentes pessoas e reuniões de família, bem como fotos típicas de férias, pesca em torrentes nas montanhas e uma viagem à Itália com a família. Entre outros lugares, haviam visitado a torre de Pisa.

Acabou encontrando quatro fotografias do acidente do caminhão-tanque. Embora a máquina fosse de excelente qualidade, Greger era um péssimo fotógrafo. As fotos mostravam ou apenas o caminhão, ou pessoas de costas. Somente numa delas via-se Cecilia Vanger de perfil.

Mikael escaneou as fotos, mesmo sabendo que nada de novo ofereciam. Pôs tudo de volta na caixa e comeu um sanduíche enquanto refletia. Por volta das três da tarde, foi ver Anna Nygren.

— Eu gostaria de saber se Henrik tem outros álbuns de fotografias além dos que fazem parte das investigações dele sobre Harriet.

— Sim, Henrik sempre gostou de fotografia, desde jovem, que eu saiba. Há muitos álbuns no escritório dele.

— Eu poderia vê-los?

Anna Nygren hesitou. Uma coisa era dar a chave da capela funerária — lá quem reinava era Deus —, outra permitir que Mikael entrasse no gabinete de Henrik Vanger — o domínio de Deus não chegava até lá. Mikael sugeriu que Anna telefonasse a Dirch Frode, se tinha dúvidas. Por fim, a contragosto, ela deixou Mikael entrar. Um metro da prateleira de baixo, junto ao chão, continha unicamente pastas com fotografias. Mikael sentou-se na mesa de Henrik e abriu o primeiro álbum.

Henrik Vanger guardava todo tipo de fotografia de família. Muitas datavam de seus antepassados. As mais antigas remontavam aos anos 1870 e mostravam homens austeros e mulheres rígidas. Havia fotos dos pais de Henrik e de outros membros da família. Numa, o pai de Henrik festejava o Dia de São João com amigos em Sandhamn, em 1906. Uma outra de Sandhamn mostrava Fredrik Vanger e sua mulher Ulrika na companhia do pintor Anders Zorn e do escritor Albert Engström, em volta de uma mesa. Viu um Henrik Vanger adolescente, de terno, numa bicicleta. Viu o capitão Oskar Granath que, no auge da guerra, transportara com segurança Henrik e sua bem-amada Edith Lobach a Karlskrona.

Anna subiu para servir-lhe uma xícara de chá. Ele agradeceu. Chegou aos tempos modernos e passou rapidamente por algumas fotos que mostravam Henrik na flor da idade, inaugurando fábricas ou apertando a mão de Tage Erlander. Uma foto do início dos anos 1960 mostrava Henrik e o grande industrial e financista Marcus Wallenberg. Os dois capitalistas olhavam-se com ar carrancudo; visivelmente não havia uma relação cordial entre eles.

Seguiu folheando um pouco mais e deteve-se numa página que Henrik rotulara de Conselho de família 1966, escrito a lápis. Duas fotos coloridas mostravam homens discutindo e fumando charuto. Mikael reconheceu Henrik, Harald, Greger e os genros de Johan Vanger. Duas fotos do jantar, em que cerca de quarenta homens e mulheres estavam à mesa e olhavam para a máquina fotográfica. Mikael se deu conta de que essas fotos tinham sido tiradas após o drama na ponte, mas antes que soubessem do desaparecimento de Harriet. Examinou as fisionomias. Era desse jantar que ela deveria ter participado. Um daqueles homens já sabia que ela desaparecera? As fotos, claro, não forneciam nenhuma resposta.

De repente, Mikael viu algo que o fez engasgar-se com o chá. Tossiu e endireitou-se na cadeira.

Sentada num canto da mesa com um vestido claro, Cecilia Vanger sorria para a câmera. Ao lado dela estava sentada outra mulher loura de cabelos compridos e com um vestido claro idêntico. Eram tão parecidas que poderiam passar por gêmeas. E então a peça do quebra-cabeça se encaixou. Não era Cecilia Vanger na janela de Harriet — era sua irmã Anita, dois anos mais jovem e que hoje morava em Londres.

O que foi mesmo que Lisbeth dissera? Cecilia Vanger aparece em muitas fotos. Dá a impressão de estar o tempo todo andando entre as pessoas. Não. Eram duas mulheres diferentes e o acaso quis que nunca aparecessem juntas na mesma foto. Nas fotos em preto-e-branco tiradas de longe, pareciam idênticas. Henrik provavelmente sempre distinguiu as irmãs, mas para Mikael e Lisbeth elas eram tão semelhantes que pensaram numa única pessoa. E ninguém lhes apontou o erro, pois nunca ocorreu a eles perguntar nada.

Mikael virou as páginas e sentiu os cabelos se arrepiarem na nuca. Como se uma corrente de ar gelado tivesse entrado no escritório.

Eram fotografias tiradas no dia seguinte, quando as buscas de Harriet começaram. Um jovem inspetor de polícia, Gustav Morell, dava instruções a um grupo com dois policiais uniformizados e uns dez homens de botas, reunidos para a batida. Henrik Vanger vestia uma capa de chuva que descia até os joelhos e um chapéu inglês de aba longa.

Bem à esquerda havia um jovem um pouco gordo, de cabelos louros não muito curtos. Vestia uma jaqueta escura com um tom vermelho nos ombros. A foto estava bem nítida. Mikael reconheceu-o imediatamente — e a jaqueta —, mas, para ter certeza, pegou a foto e desceu para perguntar a Anna Nygren se ela sabia quem era.

— Sim, claro, é Martin. Devia ter uns dezoito anos nessa foto.


Lisbeth Salander percorreu, por ordem cronológica, as diversas notícias divulgadas na imprensa sobre o grupo Vanger, ano após ano. Começou em 1949 e foi avançando metodicamente. O problema era a imensidão de arquivos de recortes. O grupo era mencionado na imprensa quase todos os dias durante esse período — na imprensa nacional e sobretudo na local. Havia análises econômicas, comentários dos sindicatos, notícias de negociações e ameaças de greve, inaugurações e fechamentos de fábricas, balanços anuais, mudanças de diretoria, lançamentos de novos produtos no mercado... uma quantidade enorme de informações. Clique. Clique. Clique. Seu cérebro trabalhava a pleno vapor quando focalizava e absorvia a informação de um recorte antigo.

Esfalfava-se havia já uma hora, quando teve uma idéia. Dirigiu-se à responsável pelos arquivos, Bodil Lindgren, e perguntou se havia um quadro das implantações das fábricas das empresas Vanger nos anos 1950 e 1960.

Bodil Lindgren olhou Lisbeth Salander com uma desconfiança e uma frieza evidentes. Não apreciava de modo algum que uma pessoa estranha tivesse sido autorizada a introduzir-se nos arquivos sagrados do grupo para examinar o que bem entendesse — ainda mais uma moça com aquela aparência de uma anarquista de quinze anos de idade, completamente doida. Mas Dirch Frode lhe dera instruções bem claras. Lisbeth Salander podia examinar o que quisesse. E era urgente. Bodil Lindgren foi buscar os balanços anuais do período solicitado por Lisbeth; cada balanço trazia um mapa com os tentáculos do grupo por toda a Suécia.

Lisbeth olhou o mapa e observou que o grupo tinha inúmeras fábricas, escritórios e pontos de venda. Constatou que em cada localidade onde um assassinato fora cometido havia igualmente um ponto vermelho, ou vários, indicando a presença do grupo Vanger.

Encontrou a primeira ligação em 1957. Rakel Lunde, em Landskrona, fora encontrada morta um dia depois de a sociedade V. & C. Construções arrebatar uma grande encomenda de vários milhões de coroas para a construção de um novo centro comercial na região. V. & C. significava Vanger & Carlen Construções e fazia parte do grupo Vanger. O jornal local havia entrevistado Gottfried Vanger, que fora assinar o contrato.

Lisbeth lembrou-se de uma coisa que lera no inquérito policial nos arquivos do condado de Landskrona. Rakel Lunde, cartomante nas horas vagas, era faxineira. Havia trabalhado na V. & C. Construções.


Às sete da noite, Mikael chamou Lisbeth umas dez vezes e constatou que seu celular estava desligado. Ela não queria ser interrompida enquanto vasculhava os arquivos.

Ele andava de um lado para o outro na casa. Havia retornado às anotações de Henrik sobre o que Martin Vanger fazia na época do desaparecimento de Harriet.

Martin Vanger cursava o último ano do colegial em Uppsala, em 1966. Uppsala. Lena Andersson, colegial de dezessete anos. A cabeça separada da gordura.

Henrik mencionara a certa altura — mas Mikael precisou consultar suas anotações para encontrar a passagem — que Martin fora um rapaz fechado. As pessoas preocupavam-se com ele. Quando o pai morreu afogado, sua mãe, Isabella, decidiu enviá-lo a Uppsala — uma mudança de ambiente, e ele foi acolhido por Harald Vanger. Harald e Martin? Não combinava.

Não havia lugar no carro para Martin Vanger ir à reunião de família em Hedestad. Ele perdeu o trem e só chegou à tarde; foi um dos que estavam retidos no outro lado da ponte na hora do acidente. Só conseguiu chegar à ilha por volta das seis, de barco. Foi recebido, entre outros, pelo próprio Henrik Vanger. Por causa disso, Henrik colocou-o bem embaixo na lista dos que podiam ter alguma relação com o desaparecimento de Harriet.

Martin Vanger afirmou não ter encontrado Harriet naquele dia. Ele mentia. Chegou a Hedestad mais cedo e foi visto pela irmã na rua da Estação. Mikael podia refutar sua mentira com fotos que haviam ficado enterradas durante quase quarenta anos.

Harriet Vanger viu o irmão e isso a chocou. Ela voltou à ilha e tentou falar com Henrik Vanger, porém desapareceu antes que a conversa ocorresse. O que pretendia contar? Uppsala? Mas Lena Andersson, Uppsala, não estava na sua lista. Você não estava sabendo.

A história ainda não fazia sentido para Mikael. Harriet desapareceu por volta das três da tarde. Havia provas de que Martin estava do outro lado da ponte nessa hora. Ele é visto em fotografias tiradas do pátio da igreja. Era impossível que pudesse ter feito mal a Harriet na ilha. Faltava ainda uma peça do quebra-cabeça. Um cúmplice então? Anita Vanger?


Os arquivos permitiram a Lisbeth constatar que a posição de Gottfried Vanger no grupo havia mudado ao longo dos anos. Ele nascera em 1927. Aos vinte anos, conheceu Isabella e logo a engravidou. Martin Vanger nasceu em 1948 e os dois jovens não tiveram outra saída senão casar.

Gottfried tinha vinte e dois anos quando Henrik o introduziu no escritório central do grupo. Era muito talentoso e começavam a considerá-lo um futuro líder. Aos vinte e cinco anos, assegurou um lugar na direção, como diretor adjunto da área de desenvolvimento de empresas. Uma estrela em ascensão.

Em determinado momento, em meados dos anos 1950, sua carreira se interrompeu. Passou a beber. O casamento com Isabella se deteriorava. Os filhos, Martin e Harriet, padeciam com isso. Henrik deu um basta. A carreira de Gottfried atingira seu ponto culminante. Em 1956, outro cargo de diretor adjunto de desenvolvimento foi criado. Dois diretores adjuntos — um que trabalhava e outro que bebia e permanecia ausente por longos períodos.

Mas Gottfried continuava sendo um Vanger, além disso charmoso e bem-falante. De 1957 em diante, sua missão parecia ter sido percorrer o país para inaugurar fábricas, resolver conflitos locais e mostrar a todos que a direção do grupo levava a sério os problemas e se preocupava. Enviamos um de nossos filhos para escutar as queixas de vocês.

Ela descobriu a segunda ligação por volta das seis e meia da tarde. Gottfried havia participado de negociações em Karlstad, onde o grupo Vanger adquirira uma empresa de madeiras para construção. No dia seguinte, a proprietária rural Magda Lovisa Sjöberg foi encontrada assassinada.

A terceira ligação foi descoberta quinze minutos depois. Uddevalla, 1962. No mesmo dia em que Lea Persson desapareceu, o jornal local entrevistava Gottfried acerca de uma possível extensão do porto.

Três horas depois, Lisbeth Salander constatava que Gottfried Vanger, pelo menos em cinco dos oito crimes, estivera nas localidades nos dias que antecediam ou sucediam ao acontecimento. Não obteve nenhuma informação sobre os assassinatos de 1949 e 1954. Examinou uma foto dele num recorte de imprensa. Um homem magro de cabelos castanhos; lembrava um pouco Clark Gable em ...E o vento levou.

Em 1949, Gottfried tinha vinte e dois anos. O primeiro crime ocorreu em terreno conhecido, Hedestad. Rebecka Jacobsson, empregada de escritório do grupo Vanger. Onde se encontraram? O que teria prometido a ela?

Quando Bodil Lindgren quis fechar o local e voltar para casa às sete, Lisbeth lhe respondeu secamente que não havia terminado. Que fosse embora e deixasse uma chave; ela fecharia tudo ao sair. A responsável pelos arquivos ficou tão irritada com o fato de uma moça se achar no direito de lhe dar ordens, que telefonou a Dirch Frode para pedir instruções. Frode decidiu prontamente que Lisbeth podia ficar a noite toda, se julgasse necessário. A srta. Lindgren poderia fazer a gentileza de avisar o guarda do escritório para que a acompanhasse no momento em que ela quisesse sair?

Lisbeth Salander mordeu o lábio inferior. O problema, evidentemente, era que Gottfried se afogara numa noite de bebedeira em 1965, enquanto o último crime ocorrera em Uppsala em fevereiro de 1966. Teria cometido um engano ao incluir a colegial de dezessete anos, Lena Andersson, na lista? Não. A assinatura não era exatamente a mesma, porém a paródia bíblica era idêntica. Havia com certeza uma ligação.


Nove da noite, anoitecia. O ar estava mais fresco e uma chuva miúda começou a cair. Mikael estava sentado na cozinha, tamborilando na mesa com os dedos, quando o Volvo de Martin Vanger atravessou a ponte e desapareceu em direção ao promontório. De certo modo, as coisas estavam caminhando rápido.

Mikael não sabia como agir. Todo o seu corpo ardia de vontade de fazer perguntas — de confrontar. Uma atitude certamente pouco razoável, se suspeitava que Martin Vanger era um louco que assassinara a irmã e uma jovem em Uppsala, além de haver tentado matar o próprio Mikael. Mas Martin Vanger funcionava também como um ímã. E ele não sabia que Mikael sabia. Mikael podia perfeitamente passar na casa dele com um pretexto... digamos, devolver a chave da cabana de Gottfried? Mikael trancou a porta e dirigiu-se ao promontório.

A casa de Harald Vanger estava, como de hábito, mergulhada na mais completa escuridão. Também não havia luzes na casa de Henrik, com exceção de um quarto que dava para o pátio. Anna fora deitar-se. A casa de Isabella, às escuras. Cecilia não estava em casa. Havia luzes no primeiro andar da casa de Alexander Vanger, mas elas estavam apagadas nas duas casas habitadas por pessoas que não pertenciam à família Vanger. Ele não avistou ninguém.

Hesitante, deteve-se diante da casa de Martin Vanger, pegou o celular e digitou o número de Lisbeth Salander. Continuava não atendendo. Desligou o celular para evitar que tocasse.

Luzes estavam acesas no andar de baixo. Mikael atravessou a relva e parou a alguns metros da janela da cozinha, porém não viu nenhum movimento. Contornou a casa detendo-se diante de cada janela, mas não via Martin Vanger. Contudo, percebeu que a porta lateral da garagem estava entreaberta. Não vá fazer uma besteira agora. Mas não resistiu à tentação de dar uma espiada rápida.

A primeira coisa que viu, numa bancada de marceneiro, foi uma caixa aberta com munição para rifle de caça. A seguir, viu dois galões de gasolina no chão, embaixo da bancada. Está preparando outra visita noturna, Martin?

— Entre, Mikael. Vi você na estrada.

O coração de Mikael parou. Ele virou lentamente a cabeça e viu Martin Vanger na penumbra de uma porta que levava ao interior da casa.

— Não conseguiu se conter, precisava vir até aqui, não é mesmo? A voz era calma, quase amistosa.

— Oi, Martin — respondeu Mikael.

— Entre — repetiu Martin. — Por aqui.

Deu um passo para o lado e estendeu a mão esquerda num gesto convidativo. Levantou a mão direita e Mikael viu um reflexo de metal fosco.

— Para a sua informação, é uma Glock. Não faça besteira. A essa distância eu não costumo errar o alvo.

Mikael se aproximou devagar. Quando estava bem perto de Martin Vanger, parou e o olhou nos olhos.

— Eu precisava vir. Tenho uma porção de perguntas a lhe fazer.

— Entendo. Pela porta, venha.

Mikael entrou lentamente na casa. A passagem conduzia ao vestíbulo e depois à cozinha, mas antes de chegar lá Martin o deteve pondo de leve a mão em seu ombro.

— Não, na cozinha não. Entre à direita. Abra a porta ao lado.

O porão. Mikael havia descido metade da escada quando Martin girou um interruptor e as luzes se acenderam. A direita ficava a caldeira. A sua frente, sentiu o cheiro da lavanderia. Martin Vanger o conduziu à esquerda, a um pequeno quarto com velhos móveis e pastas. Bem ao fundo havia outra porta. Uma porta blindada de aço com uma fechadura de segurança.

— Tome — disse Martin, jogando um molho de chaves para Mikael. — Abra.

Mikael abriu a porta.

— Há um interruptor à esquerda. Mikael acabava de abrir a porta do inferno.


Por volta das nove da noite, Lisbeth foi buscar um café e um sanduíche numa máquina automática que havia no corredor dos arquivos. Continuou a folhear velhos documentos, tentando encontrar algum sinal de Gottfried Vanger em Kalmar, em 1954. Não encontrou nada.

Pensou em ligar para Mikael, mas antes de ir embora decidiu dar uma olhada também nos boletins de diretoria; então seria o suficiente para essa noite.


A peça media cerca de cinco metros por dez. Mikael calculou que, geograficamente, ela ficava no lado norte da casa.

Martin Vanger montara com capricho sua câmara de tortura particular. A esquerda, correntes, argolas de metal no teto e no chão, uma mesa com correias de couro onde podia amarrar suas vítimas. Havia também um equipamento de vídeo. E um estúdio de gravação. No fundo da peça via-se uma jaula de aço onde seus hóspedes podiam ficar aprisionados por longos períodos. A direita da porta, uma cama e um aparelho de tevê. Numa prateleira, Mikael viu uma grande quantidade de videocassetes.

Assim que entraram, Martin Vanger apontou a pistola para Mikael e ordenou que se deitasse de bruços no chão. Mikael se recusou.

— Como quiser — disse Martin. — Nesse caso, vou dar um tiro no seu joelho.

Apontou a arma. Mikael capitulou, não tinha escolha.

Ele havia esperado que Martin se descuidasse por um décimo de segundo — sabia que numa luta corporal o venceria. Houvera uma pequena oportunidade no corredor, no momento em que Martin pôs a mão em seu ombro, mas ele hesitou. Depois Martin não voltou a se aproximar. Sem rótula, ele não teria a menor chance. Assim, estendeu-se no chão.

Martin aproximou-se por trás e mandou Mikael pôr as mãos nas costas. Imobilizou-as com algemas. Começou então a lhe dar pontapés na virilha e a lhe desferir socos violentos.

O que se passou a seguir foi como um pesadelo. Martin Vanger oscilava entre a racionalidade e a loucura. Em alguns momentos parecia calmo. No instante seguinte, começava a andar de um lado para o outro do porão como uma fera enjaulada, voltando a chutar Mikael. Tudo que ele conseguiu fazer foi tentar proteger a cabeça e receber os golpes em outras partes do corpo, que, depois de alguns minutos, apresentavam diversos ferimentos.

Durante a primeira meia hora, Martin não disse uma só palavra e permaneceu insensível a tudo o que Mikael dissesse. Depois pareceu se acalmar. Foi buscar uma corrente, passou-a em volta do pescoço de Mikael, fixou-a a uma argola no chão e depois fechou com um cadeado. Deixou Mikael sozinho por quinze minutos. Ao retornar, trazia uma garrafa plástica com água. Sentou-se numa cadeira e contemplou Mikael enquanto bebia.

— Posso beber um pouco de água? — perguntou Mikael.

Martin Vanger inclinou-se e pôs a garrafa na boca de Mikael. Ele bebeu sofregamente.

— Obrigado.

— Sempre bem-educado, Super-Blomkvist.

— Por que todos esses chutes? — perguntou Mikael.

— Porque me deixou muito zangado e merece ser punido. Por que simplesmente não voltou para a sua casa? Precisavam de você na Millennium. Falo sério, poderíamos ter feito dela uma grande revista. Poderíamos ter trabalhado juntos por muitos anos.

Mikael fez uma careta e procurou acomodar o corpo numa posição confortável. Estava sem defesa. Só lhe restava a voz.

— Imagino que esteja querendo dizer que a ocasião já passou — disse Mikael.

Martin Vanger riu.

— Sinto muito, Mikael. Sim, você entendeu bem: você não vai sair vivo daqui.

Mikael assentiu com a cabeça.

— Mas como fizeram para me desmascarar, você e aquela múmia anoréxica que se envolveu na história?

— Você mentiu sobre o que fez no dia em que Harriet desapareceu. Posso provar que estava em Hedestad no desfile da Festa das Crianças. Foi fotografado olhando para Harriet.

— Por isso você foi a Norsjö?

— Sim, para buscar essa foto. Foi tirada por um casal que estava por acaso em Hedestad. Apenas de passagem.

Martin Vanger balançou a cabeça.

— Não, você está tentando me enganar — disse.

Mikael refletia intensamente no que poderia dizer para impedir, ou ao menos retardar, sua morte.

— Onde está essa foto agora?

— O negativo? No meu cofre no Handelsbank, aqui em Hedestad... Não sabia que tenho um cofre no banco? — Ele mentia com desenvoltura. — As cópias estão em vários lugares: no meu computador e no de Lisbeth, no servidor de imagens da Millennium e no da Milton Security, onde Lisbeth trabalha.

Martin Vanger calou-se por um momento, tentando descobrir se Mikael blefava ou não.

— O que ela sabe, a múmia Salander?

Mikael hesitou. Por enquanto, Lisbeth era sua única esperança de salvação. O que ela faria ao voltar para casa e descobrir que ele não estava? Ele deixara a foto de Martin vestido com sua jaqueta na mesa da cozinha. Ela faria a ligação? Dispararia o alarme? Ela não é do tipo que chama a polícia. O pesadelo seria se ela fosse à casa de Martin e batesse à porta para tentar saber onde Mikael estava.

— Responda — disse Martin com uma voz gelada.

— Acho que Lisbeth sabe o mesmo que eu, talvez até mais. Eu diria que ela sabe mais que eu, é muito esperta. Foi ela quem fez a ligação com Lena Andersson.

— Lena Andersson? — Martin Vanger pareceu perplexo.

— A adolescente que você torturou até a morte em Uppsala, em fevereiro de 1966. Não me diga que se esqueceu dela.

Pela primeira vez o olhar de Martin Vanger deixou transparecer o quanto ele estava perturbado. Ele não imaginava que alguém pudesse fazer essa ligação — Lena Andersson não constava na agenda telefônica de Harriet.

— Martin — disse Mikael com a voz mais calma possível. — Acabou, Martin. Você pode me matar, mas acabou. Muita gente está sabendo, e desta vez você será pego.

Martin Vanger ergueu-se rapidamente e começou a andar de um lado para o outro. De repente desferiu um murro na parede.

Preciso me lembrar de que ele é irracional. O gato. Poderia ter trucidado o gato aqui, mas o levou à capela da família. Ele não age de maneira racional.

Martin Vanger deteve-se.

— Acho que você está mentindo. Só você e Salander estão sabendo. Não falaram para mais ninguém. Senão a polícia já teria aparecido. Um bom incêndio na casa dos convidados e as provas vão virar fumaça.

— E se você estiver enganado? Ele sorriu.

— Se eu estiver enganado, então de fato acabou. Mas não acredito nisso. Aposto que você está blefando. Que outra escolha me resta? — Ele refletiu. — É essa putinha anoréxica que está me atrapalhando. Preciso encontrá-la.

— Ela foi para Estocolmo ao meio-dia. Martin Vanger deu uma risada.

— É mesmo? Então por que passou a tarde nos arquivos do grupo Vanger?

O coração de Mikael saltou no peito. Ele sabia. Sabia desde o início.

— É verdade. Ela primeiro ia passar nos arquivos e depois seguir para Estocolmo — respondeu Mikael o mais calmamente que pôde. — Eu não sabia que ia ficar tanto tempo lá.

— Cale-se. A responsável pelos arquivos me contou que Dirch Frode a autorizou a deixar Salander ficar lá até tarde, se ela quisesse. Isso significa que ela voltará a qualquer momento esta noite. O guarda me avisará assim que ela deixar o escritório.


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