12. QUARTA-FEIRA 19 DE FEVEREIRO


Se Lisbeth Salander fosse uma cidadã comum, ela provavelmente iria à polícia denunciar o estupro no instante em que deixava o escritório do dr. Bjurman. Os hematomas na nuca e no pescoço, bem como as manchas de esperma com o DNA de Bjurman em seu corpo e em suas roupas, teriam sido provas materiais pesadas. Mesmo que o advogado se esquivasse, alegando que ela concordou ou foi ela que me seduziu, ou foi ela que quis a felação e outras afirmações para as quais os estupradores apelam sistematicamente, ainda assim ele seria culpado de tantas infrações do código de tutelas, que lhe teriam retirado de imediato o controle que exercia sobre ela. Uma denúncia teria provavelmente permitido a Lisbeth Salander conseguir um verdadeiro advogado, bem informado a respeito dos abusos de poder sobre as mulheres, o que por sua vez poderia levar a uma discussão do problema central — sua condição de tutelada.

Desde 1989, a noção de maior de idade incapaz deixou de existir.

Há dois níveis de assistência — a curadoria e a tutela.

Um curador intervém para ajudar, com benevolência, pessoas que por diversas razões têm dificuldade de lidar com suas atividades cotidianas, pagar contas ou cuidar da saúde. O curador designado em geral é um parente ou amigo próximo. Se a pessoa não tem ninguém na vida, as autoridades sociais se encarregam de encontrar alguém que cumpra essa função. A curadoria é uma forma moderada de tutela em que a pessoa interessada conserva o controle de seus recursos e em que as decisões são tomadas em comum.

A tutela é uma forma de controle bem mais estrita. A pessoa é impedida de dispor livremente de seu dinheiro e de tomar decisões em diferentes áreas. A formulação exata declara que o tutor administra os bens e efetua todos os atos cívicos ou jurídicos da pessoa em questão. Na Suécia, cerca de quatro mil pessoas se encontram nessa situação. As causas mais frequentes que levam alguém a ser posto sob tutela são uma doença psíquica manifesta ou uma doença psíquica ligada a forte dependência de álcool ou drogas. Os dementes senis constituem uma parcela menor. Não deixa de ser surpreendente que haja, entre as pessoas colocadas sob tutela, muitas relativamente jovens, com menos de trinta e cinco anos. Uma delas era Lisbeth Salander.

Privar uma pessoa do controle de sua vida, ou seja, de sua conta bancária, é uma das medidas mais degradantes a que pode recorrer uma democracia, ainda mais quando se trata de um jovem. E degradante, mesmo que a intenção seja considerada boa e socialmente justificável. As questões de tutela, portanto, são um problema político que pode se revelar bastante delicado, cercadas de disposições rigorosas e controladas por uma comissão de tutelas. Esta depende do conselho geral, submetido por sua vez ao procurador geral.

Via de regra, a comissão de tutelas trabalha em condições difíceis. Levando em conta as questões delicadas de que se ocupa essa administração, é surpreendente que tão poucas reclamações ou escândalos tenham sido divulgados nos meios de comunicação.

De vez em quando se toma conhecimento de uma ação na Justiça contra um curador ou um tutor que desviou dinheiro ou que vendeu indevidamente o apartamento do cliente para embolsar o dinheiro. Mas são casos relativamente raros, e isso por duas possíveis razões: ou porque a administração cumpre muito bem suas tarefas, ou porque as pessoas em questão não têm a possibilidade de prestar queixa e de se fazerem ouvir de modo convincente por jornalistas e autoridades.

A comissão de tutelas é obrigada a avaliar, todos os anos, se há alguma razão para solicitar a suspensão de uma tutela. Como Lisbeth Salander persistia em sua recusa obstinada de submeter-se a exames psiquiátricos — não dirigia sequer um polido bom-dia aos médicos —, a administração nunca encontrou razões para modificar sua decisão. Mantido o statu quo, sua tutela era renovada anualmente.

O texto da lei estipula, porém, que a determinação de uma tutela deve se adaptara cada caso. Quando Holger Palmgren era o responsável, ele interpretou isso à sua maneira e deixou a Lisbeth Salander a responsabilidade de administrar seu dinheiro e sua vida. Ele cumpria meticulosamente as exigências da administração e fazia um relatório mensal e uma revisão anual. Fora isso, tratava Lisbeth Salander como qualquer jovem normal e não se imiscuía em suas escolhas de vida ou amizades. Achava que não cabia nem a ele nem à sociedade decidir se aquela jovem queria ter um piercing no nariz e uma tatuagem no pescoço. Essa atitude um tanto permissiva em relação à decisão do tribunal de instância era uma das razões pelas quais Lisbeth e ele se entendiam tão bem.

Enquanto Holger Palmgren foi seu tutor, Lisbeth Salander não se preocupou muito com seu estatuto jurídico. Mas o dr. Nils Bjurman interpretava a lei de tutela de modo radicalmente diferente.


Seja como for, Lisbeth Salander não pertencia à categoria das pessoas normais. Tinha um conhecimento rudimentar em direito — área na qual nunca se interessou em se aprofundar — e sua confiança no serviço de manutenção da ordem quase não existia. Para ela, a polícia era um poder inimigo relativamente imperfeito, cujas intervenções concretas ao longo dos anos haviam sido detê-la ou humilhá-la. A última vez que havia se defrontado com a polícia fora numa tarde de maio do ano anterior. Caminhava pela Götgatan para ir à Milton Security, quando de repente viu-se cara a cara com um policial munido de capacete com viseira, que, sem a menor provocação da parte dela, aplicou-lhe um golpe de cassetete no ombro. Seu instinto de defesa a levou imediatamente à ofensiva com a garrafa de Coca-Cola que trazia na mão. Por sorte, antes que ela tivesse tempo de reagir, o policial já virara as costas e partia para reprimir outras pessoas. Mais tarde, ficou sabendo que naquele dia a associação A Rua Nos Pertence organizara uma manifestação no bairro.

A idéia de ir ao QG dos capacetes-com-viseira ou de denunciar Nils Bjurman por abuso sexual não lhe passava pela cabeça. Aliás, denunciar o quê? Bjurman tocara-lhe os seios. Qualquer policial a examinaria com os olhos para constatar que, com seus peitinhos de menina, aquilo parecia improvável e, mesmo que houvesse acontecido, ela devia mais era se orgulhar de alguém tê-la tocado. Quanto à história de chupar — era a palavra dela contra a de Bjurman e, geralmente, a palavra dos outros contava mais que a dela. A polícia não era uma boa alternativa.

Depois de deixar o escritório de Bjurman, foi para casa, tomou um banho, devorou dois sanduíches de queijo com picles, e então instalou-se para refletir no sofá da sala com seu tecido puído e embolotado.

Qualquer indivíduo normal talvez tivesse considerado sua falta de reação como um elemento de acusação — uma prova de que, de certo modo, Lisbeth era tão anormal que mesmo um estupro não conseguia provocar nela uma resposta emocional satisfatória.

Seu círculo de amizades era bastante restrito e também não abrangia jovens de classe média protegidos por seus condomínios fechados do subúrbio. Desde a maioridade, Lisbeth Salander não conhecia uma única garota que, pelo menos uma vez, não tivesse sido forçada a realizar algum tipo de ato sexual. Eram abusos cometidos quase sempre por namorados mais velhos que, usando de alguma persuasão, davam um jeito de conseguir o que queriam. Pelo que ela sabia, tais incidentes resultavam às vezes em crises de choro e de raiva, mas jamais numa queixa levada à delegacia.

No mundo de Lisbeth Salander, era esse o estado natural das coisas. Enquanto mulher, ela era uma presa autorizada, sobretudo a partir do momento em que vestia uma jaqueta de couro preto e gasto, tinha piercings nas sobrancelhas, tatuagens e um status social nulo.

Não havia por que derramar lágrimas por isso.

Por outro lado, estava fora de questão que o dr. Bjurman pudesse obrigá-la a chupar seu pau impunemente. Lisbeth Salander nunca esquecia uma afronta e estava disposta a tudo, menos a perdoar.

Mas seu estatuto jurídico trazia um problema. Desde suas lembranças mais remotas, fora considerada uma menina obstinada e de uma violência injustificável. As primeiras anotações a seu respeito haviam sido feitas pela enfermeira da escola primária. Fora mandada para casa por ter batido num colega de classe e por tê-lo empurrado com tanta força contra um cabide que ele se machucou. Ela ainda se lembrava com irritação da vítima, um menino gordo chamado David Gustavsson que não parava de provocá-la e de atirar-lhe coisas na cabeça, e que com o passar do tempo tornou-se um perfeito algoz, embora na época ela não conhecesse a palavra. De volta à escola, David prometeu vingar-se em tom ameaçador e ela o derrubou com um soco bem dirigido e reforçado por uma bola de golfe no punho, o que resultou em mais sangue derramado e em um novo registro de mau comportamento.

As regras da vida em comum na escola sempre a deixaram perplexa. Ela se ocupava de seus afazeres e não se intrometia na vida dos outros. Mas havia sempre alguém disposto a jamais deixá-la em paz.

No ensino primário, foi mandada várias vezes para casa em virtude de violentas disputas com colegas. Os garotos de sua classe, bem mais fortes que ela, logo descobriram que podia ser desagradável implicar com aquela menina franzina — ao contrário das outras meninas, ela nunca batia em retirada e não hesitava um segundo em usar os punhos ou instrumentos diversos para se defender. Sua atitude significava que ela preferia ser maltratada até a morte a aceitar qualquer abuso.

Além disso, vingava-se.

No ginásio, Lisbeth Salander desentendeu-se com um rapaz bem mais alto e mais forte que ela. Do ponto de vista puramente físico, ela não representava um grande obstáculo para ele. Várias vezes o rapaz divertiu-se em fazê-la cair, para depois esbofeteá-la quando ela tentava reagir. Mas, apesar dessa superioridade, a idiota insistia em reagir e, depois de algum tempo, mesmo os outros alunos começaram a achar que a coisa estava indo longe demais. Ela era tão visivelmente indefesa que dava pena. O rapaz acabou por acertar-lhe um soco magistral que cortou seu lábio e a fez ver estrelas. Ficou caída no pátio do ginásio. Passou dois dias em casa. Na manhã do terceiro dia, esperou seu algoz com um taco de beisebol e o desferiu contra sua orelha. Isso lhe valeu uma convocação do diretor, que decidiu apresentar queixa contra ela por agressão física, o que resultou num inquérito social.

Seus colegas de classe diziam que ela era maluca e a tratavam como tal. Ela também despertava pouca simpatia entre os professores, que em alguns momentos achavam-na insuportável. Nunca fora especialmente loquaz e era considerada a aluna que nunca levantava a mão e que em geral não respondia quando o professor lhe fazia uma pergunta. Ninguém sabia se era porque ela não conhecia a resposta ou se a razão era outra, mas suas notas refletiam uma situação de fato. Com certeza ela tinha problemas, porém, curiosamente, ninguém quis se encarregar dessa menina difícil, embora seu caso fosse discutido várias vezes entre os professores. Assim, mesmo eles a deixavam de lado, enclausurada num silêncio intratável.

Certo dia, um substituto que não conhecia seu comportamento peculiar a intimou a responder a uma questão de matemática; ela teve uma crise histérica e atacou o professor com socos e pontapés. Ao terminar o ginásio, foi cursar o colegial em outra escola sem ter um único colega a quem dizer adeus. Uma menina de comportamento desviante que ninguém amava.

Depois, quando estava no auge da adolescência, aconteceu-lhe todo o Mal no qual não queria pensar, a última crise que veio completar o quadro e que fez com que reabrissem os arquivos do ginásio. Desde então foi considerada, do ponto de vista jurídico... enfim, maluca. Uma doente mental. Lisbeth Salander nunca teve necessidade de documentos para saber que era diferente. No entanto, ninguém a aborreceu enquanto seu tutor foi Holger Palmgren, um homem que ela podia conduzir à vontade, se necessário.

Com a chegada de Bjurman, a tutela corria o risco de virar um peso dramático em sua vida. Não importa para quem se voltasse, haveria armadilhas potenciais em seu caminho, e o que aconteceria se perdesse o combate? Seria levada a uma instituição? Encerrada num asilo de loucos? Bela alternativa!


Mais tarde na noite, quando Cecilia Vanger e Mikael se aquietaram, pernas entrelaçadas, Cecilia repousando a cabeça no peito de Mikael, ela levantou os olhos para ele.

— Obrigada. Fazia muito tempo. Você não é ruim de cama.

Mikael sorriu. Esse tipo de elogio sempre lhe causava uma satisfação pueril.

— Foi bom — disse Mikael. — Inesperado, mas gostoso.

— Gostaria que se repetisse — disse Cecilia. — Se isso lhe agrada.

Mikael olhou para ela.

— Está dizendo que gostaria de ter um amante?

— Um amante ocasional, como você disse. Mas quero que vá dormir em sua casa. Não quero acordar de manhã com você aqui, antes de eu poder recompor meus músculos e meu rosto. E também não seria bom você sair espalhando pelo povoado o que fazemos juntos.

— Acha que eu faria isso? — disse Mikael.

— Sobretudo não quero que Isabella saiba. É uma mulher muito maldosa.

— E sua vizinha mais próxima... eu sei, já nos encontramos.

— Ainda bem que da casa dela não se vê minha porta de entrada. Seja discreto, Mikael, por favor.

— Serei.

— Obrigada. Você bebe?

— Às vezes.

— Estou com vontade de beber um gim-tônica. Que tal?

— Ótimo.

Ela se envolveu no lençol e desceu a escada. Mikael aproveitou para ir ao banheiro e lavar o rosto. Nu, ele observava os livros na estante quando ela voltou com uma garrafa de água gelada e dois gins-tônicas com limão. Fizeram um brinde.

— Por que veio à minha casa? — ela perguntou.

— Por nada de especial. Simplesmente eu...

— Estava na sua casa lendo o inquérito de Henrik e depois vem me ver. Não é preciso ser muito inteligente para perceber o que o atormenta.

— Você leu o inquérito?

— Em parte. Passei toda a minha vida adulta às voltas com esse inquérito. Não se pode conviver com Henrik sem ser contaminado pelo mistério Harriet.

— A verdade é que é um problema fascinante. Quero dizer, é a versão insular do mistério do quarto fechado. E nada no inquérito me parece seguir a lógica normal. Todas as questões continuam sem resposta, todos os indícios levam a um beco sem saída.

— Humm, essas coisas tornam as pessoas obsessivas.

— Você estava na ilha naquele dia.

— Sim. Estava aqui e presenciei os acontecimentos. Na época eu estudava em Estocolmo. Preferia ter ficado em casa naquele fim de semana.

— Como era Harriet de fato? As pessoas parecem tê-la interpretado de tantas maneiras diferentes.

— É off the record ou...?

Off the record.

— Não faço a menor idéia do que se passava na cabeça de Harriet. Suponho que você queira falar do último ano. Num dia era uma crente, no dia seguinte maquiava-se como uma puta e ia à escola com a blusa mais colante que encontrava. Não é preciso ser psicólogo para perceber que estava profundamente infeliz. Mas eu não vivia aqui, como eu disse; apenas ouvia as histórias.

— O que desencadeou esses problemas?

— Gottfried e Isabella, sem dúvida. Que desgraça de casamento! Levianos e sempre dispostos a brigar. Não fisicamente. Gottfried não era do tipo que bate em mulher, e ele até tinha medo de Isabella. No começo dos anos 1960, instalou-se de modo mais ou menos definitivo em sua cabana na extremidade da ilha, onde Isabella nunca punha os pés. De tempos em tempos surgia aqui na aldeia parecendo um mendigo. Depois voltava ao normal e vestia-se com cuidado, tentando retomar seu trabalho.

— Não havia ninguém disposto a ajudar Harriet?

— Henrik, claro. Ela acabou vindo morar na casa dele. Mas não esqueça que ele andava ocupado em desempenhar seu papel de grande industrial. Geralmente estava viajando a negócios para algum lugar e não tinha muito tempo de se dedicar a Harriet e a Martin. Não acompanhei bem essa história, pois morei primeiro em Uppsala e depois em Estocolmo — e também não tive uma juventude muito fácil com Harald como pai, posso lhe assegurar. Mas aos poucos entendi que o problema vinha do fato de Harriet nunca se abrir com ninguém. Ao contrário, ela procurava manter as aparências e fingir que eles eram uma família feliz.

— Negação sistemática.

— Exatamente. Mas ela mudou depois que o pai se afogou. Não podia mais fingir que estava tudo bem. Até então ela fora... não sei como dizer, superdotada e precoce, mas de modo geral uma adolescente bem comum. No último ano, continuou sendo de uma inteligência brilhante, tirava as melhores notas do colégio, mas era como se não tivesse uma verdadeira personalidade.

— Como seu pai se afogou?

— Gottfried? Da maneira mais banal possível. Caiu de um barco que estava próximo da sua cabana. A braguilha estava aberta e verificou-se uma taxa de álcool extremamente alta no sangue, dá pra imaginar o que aconteceu. Martin foi quem o encontrou.

— Eu não sabia.

— É engraçado. Martin evoluiu, tornou-se uma pessoa saudável. Se me perguntassem isto trinta e cinco anos atrás, eu teria dito que, de todos na família, ele é que precisava de um psicólogo.

— Por quê?

— Harriet não era a única a sofrer com a situação. Durante anos Martin foi tão taciturno e fechado que podia ter sido apelidado de urso. As duas crianças viviam momentos penosos. Mas não era muito diferente com todos nós. Eu tinha problemas com meu pai, você deve ter percebido que ele é louco de dar nó. Minha irmã Anita tinha os mesmos problemas, assim como Alexander, meu primo. Era duro ser jovem na família Vanger.

— O que aconteceu com sua irmã?

— Anita mora em Londres. Foi para lá nos anos 1970, a fim de trabalhar numa agência de viagens sueca, e lá ficou. Viveu com um sujeito que ela nunca quis apresentar à família e de quem depois se separou. Hoje é chefe de escala na British Airways. Nos damos bem, eu e ela, mas temos muito pouco contato, nos vemos mais ou menos de dois em dois anos. Ela nunca vem a Hedestad.

— Por quê?

— Nosso pai é louco. Basta como explicação?

— Mas você ficou aqui.

— Eu e Birger, meu irmão.

— O político.

— Está tirando um sarro? Birger é mais velho que Anita e eu. Nunca nos entendemos muito bem. Ele se considera um político muito importante com um futuro no Parlamento e talvez um cargo de ministro, se os conservadores ganharem. Na realidade, é um vereador medíocre num povoado perdido, o que deveria representar ao mesmo tempo o auge e o fim de sua carreira.

— Uma coisa que me fascina na família Vanger é o ódio recíproco de todos os lados.

— Não é bem assim. Gosto muito de Martin e de Henrik. E sempre me dei bem com minha irmã, mesmo nos vendo pouco. Detesto Isabella, não tenho muita simpatia por Alexander. E não falo com meu pai. Eu diria que é mais ou menos meio a meio na família. Mas sei o que você quer dizer. Entenda assim: quando se é da família Vanger, aprende-se muito cedo a falar às claras. Costumamos dizer o que pensamos.

— Sim, percebi que você foi muito franca. — Mikael estendeu a mão e tocou os seios dela. — Bastaram quinze minutos na sua casa para você pular em cima de mim.

— Para ser bem franca, já na primeira vez que o vi eu me perguntei como você seria na cama. E me pareceu muito normal eu querer fazer o teste.

Pela primeira vez na vida, Lisbeth Salander sentiu uma necessidade premente de pedir um conselho. No entanto havia um problema: para se aconselhar com alguém, ela seria obrigada a confiar na pessoa, o que significava ser obrigada a se entregar e a contar seus segredos. Com quem poderia falar? Não era muito boa em se relacionar com as pessoas.

Quando passou mentalmente em revista seu caderninho de endereços, Lisbeth Salander contou não mais que dez pessoas que, de um modo ou de outro, pertenciam a seu círculo de conhecidos. Uma estimativa generosa, ela mesma admitiu.

Podia falar com Praga, um ponto mais ou menos fixo em sua existência. Mas não se tratava de um amigo, e ele seria o último a poder ajudá-la a resolver seus problemas. Não era uma boa solução.

Na verdade, a vida sexual de Lisbeth Salander não era tão modesta como dera a entender ao dr. Bjurman. E, na maioria das vezes, seus relacionamentos se desenrolaram de acordo com suas condições e por iniciativa sua. Desde os quinze anos, teve uns cinquenta parceiros, ou seja, algo como cinco por ano, o que era normal para uma mulher solteira da idade dela que considerava o sexo como um passatempo.

Mas ela conheceu a maioria desses parceiros ocasionais num período de dois anos, na época tumultuosa do fim da adolescência. Lisbeth Salander viu-se então numa encruzilhada, sem controle real sobre sua vida, e seu futuro poderia ter se transformado numa nova série de ocorrências relacionadas com drogas, álcool e internação em diferentes instituições. Depois dos vinte anos e de seu início na Milton Security, ela se acalmara consideravelmente e julgava estar no comando de sua vida.

Não se sentia mais obrigada a retribuir favores a quem lhe tivesse pago três cervejas num bar, nem a menor obrigação de acompanhar um bêbado, cujo nome mal lembrava, até a casa dele. No último ano, teve um único parceiro regular, o que dificilmente se podia qualificar de atitude desavergonhada, como insinuavam os documentos médicos do final de sua adolescência.

Fora isso, para ela o sexo estava ligado ao fato de pertencer a um grupo de garotas do qual na realidade não fazia parte, mas que a aceitara por ser amiga de Cilla Norén. Ela conhecera Cilia no final da adolescência, quando, a pedido insistente de Holger Palmgren, tentou obter o certificado de conclusão do segundo grau em um curso supletivo. Cilla tinha cabelos vermelhos com mechas escuras, vestia calça de couro preto, tinha um piercing no nariz e um cinto com rebites, como Lisbeth. Elas se olharam com desconfiança na primeira aula.

Por uma razão que Lisbeth não conseguia entender, começaram a se ver. Lisbeth não era das que logo faziam amizade, sobretudo naquela época, mas Cilla ignorou seu silêncio e a levou a um bar. Por intermédio dela, Lisbeth tornou-se membro das Evil Fingers, originalmente um grupo da periferia composto de quatro adolescentes de Enskede que gostavam de hard rock e que, dez anos depois, formavam um grupo considerável de amigas que se reuniam no Moulin, terças-feiras à noite, para falar mal dos rapazes, conversar sobre feminismo, ciências ocultas, música e política, e beber quantidades enormes de cerveja. Elas, de fato, faziam jus ao nome.

Salander gravitava na periferia desse grupo e raramente dava sua contribuição às discussões, mas era aceita do jeito que era, podia ir e vir à vontade e ficar a noite toda com um copo de chope na mão sem dizer nada. Também era convidada para os aniversários de uma ou outra, Natal e festas do gênero, embora quase nunca comparecesse.

Durante os cinco anos em que frequentou as Evil Fingers, as meninas sofreram transformações. As cores dos cabelos foram voltando ao normal e as roupas agora provinham mais das lojas H&M que dos brechós do Exército da Salvação. Todas ou estudavam ou trabalhavam, e uma deu à luz um menino. Lisbeth tinha a impressão de ser a única que não mudara em nada, o que talvez significasse que patinava no mesmo lugar.

Mas elas se divertiam sempre que se encontravam. Se havia um lugar ao qual sentia uma espécie de pertencimento, era na companhia das Evil Fingers e, por extensão, na companhia dos rapazes que constituíam o círculo de amigos do grupo.

As Evil Fingers a escutariam e se mobilizariam a seu favor. Mas elas ignoravam que Lisbeth Salander estava submetida a uma decisão da Justiça que a declarava juridicamente irresponsável. Não queria que elas também passassem a olhá-la torto. Não era uma boa alternativa.

Quanto ao resto, nem um único colega de classe de antigamente figurava no seu caderninho de endereços. Ela não dispunha de nenhuma rede de apoio ou de contatos políticos. Haveria alguém a quem pudesse contar seus problemas com Nils Bjurman?

Sim, talvez houvesse alguém. Ela refletiu demoradamente sobre a idéia de se abrir com Dragan Armanskij, de procurá-lo para expor sua situação. Ele dissera que se ela precisasse de qualquer tipo de ajuda não devia hesitar em procurá-lo. Ela estava convencida de sua sinceridade.

Armanskij também a tocara uma vez, mas fora um gesto gentil, sem más intenções, não tivera nada de demonstração de força. No entanto ela relutava em lhe pedir ajuda. Ele era seu chefe, e isso a tornaria devedora. Lisbeth Salander sorriu ao pensar em como seria sua vida se tivesse Armanskij como tutor em vez de Bjurman. A idéia não era desagradável, mas Armanskij certamente levaria tão a sério a missão que a sufocaria com sua solicitude. Era... humm... uma alternativa possível.

Embora estivesse perfeitamente a par do papel do SOS-Mulheres, nunca lhe passou pela cabeça utilizar esse recurso. Para ela, esses centros de apoio destinavam-se às vítimas e ela nunca tinha se considerada como tal. Portanto, a única boa alternativa que lhe restava era agir como sempre agira — resolver ela mesma seus problemas. Essa, sim, era a boa solução.

E uma solução que nada de bom prometia ao dr. Nils Bjurman.


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