12 - QUINTA-FEIRA SANTA 24 DE MARÇO


Annika Giannini também estava visivelmente cansada, e Mikael conseguiu convencê-la a desistir do longo desvio de quase uma hora pelo promontório de Lánnersta e deixá-lo no centro de Nacka. Deu-lhe um beijo no rosto, agradeceu sua ajuda naquela noite e esperou ela dar a volta no carro e desaparecer pela rua antes de chamar um táxi.

Fazia mais de dois anos que Mikael Blomkvist não vinha a Saltsjöbaden. Antes disso, só em raras oportunidades tinha visitado Erika e o marido. Sinal de imaturidade, sem dúvida, pensava ele.

Mikael ignorava totalmente a maneira como o casal Erika e Lars funcionava. Conhecia Erika desde o início dos anos 1980 e pretendia manter a relação com ela até ficar velho demais para sair de uma cadeira de rodas. Essa relação só fora interrompida durante um curto período no final dos anos 1980, depois que os dois se casaram. A interrupção durara mais de um ano, até ambos se tornarem infiéis.

Pelo lado de Mikael, a situação acabara em divórcio. Pelo de Erika, Lars Beckman concluiu que uma paixão assim era provavelmente um presente da natureza. Imaginar que as convenções ou a moral social poderiam manter aqueles dois longe da cama um do outro era pura ilusão. Ele também explicou que não queria se arriscar a perder Erika como Mikael tinha perdido a mulher.

Quando Erika confessou sua infidelidade, Lars Beckman fora bater à porta de Mikael Blomkvist. Mikael estivera aguardando e temendo essa visita - sentia-se um lixo. Mas Lars Beckman não quebrara a sua cara, e sim lhe propusera uma turnê pelos bares. Três pubs do Södermalm depois, suficientemente bêbados para terem uma conversa séria, tinham se explicado, sentados num banco público do Mariatorget ao raiar do dia.

Mikael mal acreditou quando Lars Beckman lhe explicou, de saída, que se ele tentasse sabotar seu casamento com Erika Berger ele voltaria sóbrio e armado de uma clava, mas que se a questão era apenas desejo da carne e incapacidade da alma para a moderação e a contenção, para ele estava tudo bem.

Mikael e Erika tinham, portanto, mantido seu relacionamento com a aprovação de Lars Beckman e sem tentar lhe esconder o que quer que fosse. Até onde Mikael sabia, o casamento de Lars e Erika continuava feliz. Contentava-se em saber que Lars aceitava o relacionamento deles sem protestar, a ponto de Erika só precisar pegar o telefone, ligar para ele e comunicar que pretendia passar a noite com Mikael quando lhe dava vontade, o que era regularmente o caso.

Lars Beckman nunca expressara a mínima crítica em relação a Mikael. Pelo contrário, parecia achar que a relação de Erica com Mikael tinha um lado bom e que seu próprio amor por Erika se fortalecia pelo fato de ele nunca ter como certa a presença da mulher.

Em contrapartida, Mikael nunca se sentira à vontade na companhia de Lars, duro lembrete de que até os relacionamentos mais livres tinham um preço. De modo que só aparecera no Saltsjöbaden em raras ocasiões, quando Erika dava alguma festa grande em que a ausência de Mikael soaria como provocação.

Ele parou em frente à casa deles, de duzentos e cinquenta metros quadrados. Apesar da sua repulsa em trazer notícias tão ruins, apertou resolutamente o dedo na campainha e o manteve ali por quase quarenta segundos, até que escutou passos. Lars Beckman veio abrir, uma toalha de banho amarrada na cintura e o rosto dormido cheio de uma raiva que se transformou em perplexidade mal desperta quando deu com o amante da mulher na soleira da porta.

—Oi, Lars - disse Mikael.

—Oi, Blomkvist. Que horas são?

Lars Beckman era loiro e magro. Tinha uma quantidade enorme de pelos no peito e nenhum cabelo na cabeça. Tinha uma barba de uma semana e uma enorme cicatriz acima da sobrancelha direita, recordação de um acidente de veleiro que por pouco não acabara mal, muitos anos antes.

—Um pouco mais de cinco horas - disse Mikael. —Você poderia acordar a Erika? Preciso falar com ela.

Lars Beckman imaginou que, se Mikael Blomkvist vencera sua resistência a vir a Saltsjöbaden e encontrar com ele, algo fora do comum estava acontecendo. Além disso, Mikael parecia muito necessitado de um drinque, ou pelo menos de uma cama para recuperar o sono atrasado. Portanto abriu a porta e o fez entrar.

—O que aconteceu? - perguntou.

Antes que Mikael tivesse tempo de responder, Erika Berger desceu a escada, atando o cinto de um roupão atoalhado branco. Estacou a meio caminho quando viu Mikael no hall de entrada.

—Mikael! O que aconteceu?

—Dag Svensson e Mia Bergman - disse Mikael.

Sua fisionomia revelou imediatamente que notícia ele vinha trazer.

—Não!

Ela tapou a boca com a mão.

—Estou vindo da delegacia. Dag e Mia foram assassinados esta noite.

—Assassinados?! - exclamaram Erika e Lars a uma só voz. Erika lançou um olhar cético para Mikael.

—Você quer dizer assassinados mesmo? Mikael meneou a cabeça pesadamente.

—Alguém entrou no apartamento de Enskede e deu um tiro na cabeça deles. Fui eu que encontrei os dois.

Erika sentou-se num degrau da escada.

—Eu não queria que você ficasse sabendo pelo noticiário da manhã - disse Mikael.

Faltava um minuto para as sete, na manhã daquela quinta-feira, quando Mikael e Erika chegaram à redação da Millennium. Erika ligara para Christer Malm a fim de acordá-lo, assim como para a assistente de redação Malu Eriksson, comunicando que Dag e Mia haviam sido mortos naquela noite. Ambos moravam perto, já tinham chegado na redação e ligado a cafeteira elétrica na copa.

—Mas afinal que história é essa? - perguntou Christer Malm. Malu Eriksson agitou a mão para que se calassem e aumentou o volume do noticiário das sete.

Duas pessoas, um homem e uma mulher, foram mortos a tiros tarde da noite de ontem num apartamento em Enskede. A polícia confirma tratar-se de um duplo assassinato. Nenhuma das vítimas era conhecida da polícia. Ignora-se totalmente o motivo. Nossa repórter Hanna Olofsson está no local.

Pouco antes da meia-noite, a polícia foi alertada sobre disparos ocorridos num prédio da Björneborgsvagen, aqui em Enskede. De acordo com um vizinho, houve vários tiros no apartamento. Não foi dado nenhum tipo de explicação e até agora ninguém foi preso. A polícia interditou o apartamento e o exame técnico está em andamento.

—Bem conciso - disse Malu, baixando o volume.

E então desatou em prantos. Erika pôs um braço em volta dos seus ombros.

—Puta merda, que horror! - disse Christer Malm, dirigindo-se a ninguém em particular.

—Sentem-se - disse Erika Berger com voz firme. —Mikael... Mikael contou uma vez mais o que acontecera durante a noite. Com voz monocórdia e na prosa neutra de jornalista, descreveu a descoberta dos corpos de Dag e Mia.

—Puta merda, que horror - repetiu Christer Malm. —Isso é uma loucura.

Malu se deixou novamente dominar por seus sentimentos. Recomeçou a chorar sem procurar esconder as lágrimas.

—Desculpem - disse ela.

—Sabe, eu também estou com vontade de chorar - disse Christer. Mikael se perguntou por que não conseguia chorar. Sentia apenas um imenso vazio, mais ou menos como se estivesse anestesiado.

—Por enquanto não sabemos muito - disse Erika Berger. —Precisamos discutir duas coisas. Primeiro, estamos para imprimir o trabalho do Dag Svensson daqui a três semanas. Seguimos com isso? Podemos publicar? Primeira questão. Sobre a segunda, Mikael e eu já começamos a conversar no caminho para cá.

—Não sabemos o porquê desses assassinatos - disse Mikael. - Pode ser alguma coisa na vida particular do Dag e da Mia ou obra de um demente. Mas não podemos excluir que talvez tenha alguma relação com o trabalho deles.

Fez-se um silêncio em volta da mesa. Por fim, Mikael clareou a garganta.

—Estamos, portanto, prestes a publicar um assunto superindigesto, revelando o nome de pessoas que fazem questão de não serem ligadas a essa história. Dag começou a entrevistá-las duas semanas atrás. A minha idéia é que uma dessas...

—Espere - disse Malu Eriksson. —Estamos denunciando três tiras, sendo que um deles trabalha na Säpo e outro na Polícia de Costumes, vários advogados, um procurador e um juiz, e alguns jornalistas nojentos conhecidos. Você está querendo dizer que um deles teria cometido um duplo assassinato para impedir a publicação do livro?

—Sim, não, não sei - disse Mikael, pensativo. —Eles têm um bocado a perder, mas num primeiro impulso eu diria não ser muito esperto da parte deles achar que podem abafar uma história como essa matando um jornalista. Mas a gente também está denunciando um bom número de cafetões e, mesmo usando nomes fictícios, não é muito difícil perceber quem são eles. Alguns já foram condenados por violência.

—Certo - disse Christer. —Mas você descreveu esses assassinatos como verdadeiras execuções. Se entendi bem o que o Dag Svensson tentava mostrar em seu livro é que se trata de um pessoal que não prima pela inteligência. Seriam capazes de cometer um duplo assassinato e se safarem?

—Tem que ser inteligente para usar um berrante? - perguntou Malu.

—Estamos especulando sobre algo que não sabemos - interrompeu Erika Berger. —Mas temos que nos colocar essa pergunta. Se os artigos do Dag - ou, por outra, a tese da Mia - foram o motivo desses assassinatos, precisamos reforçar a segurança aqui da redação.

—E há uma terceira questão - disse Malu. —Será que temos de informar esses nomes à polícia? O que você contou para eles esta noite?

—Respondi a todas as perguntas que me fizeram. Contei sobre o trabalho do Dag, mas não me pediram detalhes e eu não citei nenhum nome.

—É, sem dúvida, o que a gente deveria fazer - disse Erika Berger.

—Não é tão simples - respondeu Mikael. —A rigor, podemos fornecer uma lista de nomes, mas o que a gente vai fazer se a polícia perguntar como chegamos a eles? Não temos o direito de revelar fontes que desejam permanecer anônimas. Isso envolve várias garotas com as quais a Mia conversou.

—Que confusão!- disse Erika. —Voltamos à primeira pergunta - publicamos ou não publicamos?

Mikael levantou a mão.

—Esperem. Podemos até votar, mas acontece que eu sou o editor responsável pela publicação e pela primeira vez na vida estou pretendendo tomar uma decisão sozinho. A resposta é não. Não podemos publicar esse número. É absolutamente impossível se ater ao que estava planejado.

Um silêncio caiu em volta da mesa. Ele prosseguiu:

—Ou, para ser mais exato, tenho muita vontade de publicar, mas na certa, vamos ter que alterar um bocado de coisas. O Dag e a Mia é que respondiam pela maior parte da documentação, e o tema se baseava no fato de que Mia pretendia dar queixa contra as pessoas que iríamos citar. Ela era a especialista na matéria. E nós?

A porta de entrada bateu e Henry Cortez apareceu à porta da sala.

—São o Dag e a Mia? - ele perguntou, ofegante. Todos menearam a cabeça.

—Puta merda. É uma loucura total!

—Como você ficou sabendo? - perguntou Mikael.

—Saí ontem à noite com a minha namorada, e a gente estava voltando para casa quando escutou no rádio do táxi. Os tiras queriam saber se algum motorista tinha pego um cliente naquela região. Reconheci o endereço. Eu tinha que vir.

Henry Cortez parecia tão abalado que Erika se levantou e o abraçou antes de mandá-lo sentar-se. Ela retomou a palavra.

—Acho que o Dag teria gostado que a gente publicasse a história dele.

—E eu acho que a gente deve publicar. O livro, sem nem pensar duas vezes. Mas na atual situação, vamos ter que adiar a publicação.

—E o que a gente vai fazer? - perguntou Malu. —Não é só um artigo que vai ter que ser alterado; é um número temático, vamos precisar refazer toda a revista.

Erika ficou um instante em silêncio. Então sorriu. Seu primeiro sorriso exausto do dia.

—Você estava contando com uns dias feriados na Páscoa, Malu? - ela perguntou. —Pode esquecer. Vamos fazer o seguinte... Você, Malu, eu e o Christer vamos pensar num número totalmente novo, sem Dag Svensson. Quem sabe conseguimos pegar alguns textos que estavam previstos para o número de junho. Mikael... Quantos capítulos prontos do livro do Dag Svensson você tem em mãos?

—Estou com a versão final de nove capítulos, de um total de doze. Estou com a penúltima versão dos capítulos dez e onze. Dag estava para me mandar por e-mail as versões finais, vou ver na minha caixa postal, mas só tenho fragmentos do capítulo doze, que é o último. É onde ele ia fazer uma síntese e apresentar suas conclusões.

—Mas você e o Dag tinham discutido todos os capítulos.

—Eu sei o que ele pretendia escrever, se é o que você quer dizer.

—Bem, você vai cuidar dos textos - do livro e do artigo. Quero saber o quanto falta e se temos como reconstituir o que Dag não teve tempo de entregar. Será que você consegue me dar uma estimativa ainda hoje?

Mikael meneou a cabeça.

—Também quero que você pense sobre o que a gente vai dizer à polícia. Defina o que é inofensivo e a partir de que ponto começamos a ferir a proteção das fontes. Ninguém aqui da revista está autorizado a falar enquanto você não der o seu aval.

—Acho que está bem assim - disse Mikael.

—Você acredita mesmo que o trabalho do Dag pode ter motivado o assassinato dos dois?

—Ou a tese da Mia... não sei. Mas não dá para descartar essa possibilidade.

Erika Berger refletiu um instante.

—Não, não dá para descartar. Você assume as rédeas.

—Que rédeas?

—Da investigação.

—Que investigação?

—A nossa, a nossa investigação, porra! - De repente, Erika Berger ergueu a voz. —O Dag Svensson era jornalista e trabalhava para a Millennium. Se ele foi morto por causa do trabalho, quero saber. Vamos tentar descobrir o que aconteceu. Você se encarrega disso. Para começar, revise todo o material que Dag Svensson nos passou e procure ver se o motivo do crime pode estar ali.

Virou-se para Malu Eriksson.

—Malu, se você me ajudar a esboçar um número novo a partir de hoje, Christer e eu faremos o grosso do trabalho. Mas você trabalhou bastante com o Dag Svensson e nos demais textos do número monográfico. Quero que acompanhe o andamento da investigação policial com o Mikael.

Malu Eriksson meneou a cabeça.

—Henry... você poderia trabalhar hoje?

—É claro.

—Para começar, ligue para os outros colaboradores da Millennium e dê a notícia a eles. Depois ligue para a polícia para tentar descobrir em que pé estão as coisas. Tente descobrir se está prevista uma coletiva de imprensa. A gente tem que se manter a par dos acontecimentos.

—Certo. Primeiro vou ligar para o nosso pessoal, depois dou um pulo até em casa para tomar um banho e comer alguma coisa. Volto em quarenta e cinco minutos, a menos que de lá eu vá direto para a delegacia de Kungsholmen.

—Ficamos em contato durante o dia. Fez-se um breve silêncio em volta da mesa.

—Bem disse Mikael por fim. —Terminamos?

—Acho que sim - disse Erika. —Você está com pressa?

—Estou. Preciso dar um telefonema.


Harriet Vanger estava tomando um café da manhã composto de café e torradas com queijo e geleia de laranja na varanda envidraçada da casa de Henrik Vanger, em Hedeby, quando seu celular tocou. Ela atendeu sem olhar para a tela.

—Bom dia, Harriet - disse Mikael Blomkvist.

—Ora essa. Achei que você era dessas pessoas que nunca se levantam antes das oito.

Exato, desde que eu tenha ido dormir. O que não é o caso hoje. Aconteceu alguma coisa? Você não viu o noticiário? Mikael fez um breve resumo dos acontecimentos daquela noite. Que horror - disse Harriet Vanger. —Como é que você está? Obrigado por perguntar. Já estive melhor. Mas estou te ligando porque afinal você integra o conselho administrativo da Millennium e é justo que você seja informada do que está acontecendo. Aposto que logo algum jornalista vai descobrir que fui eu que encontrei os corpos, o que vai gerar especulações, e quando souberem que o Dag vinha trabalhando para a gente numa revelação de peso, vão chover perguntas.

—Você quer dizer que eu preciso estar preparada. O que eu estou autorizada a falar?

—A verdade. Você foi informada do que aconteceu. Esses assassinatos brutais te deixaram chocada, claro, mas como você não está por dentro do trabalho da redação não pode comentar sobre essas especulações. Cabe à polícia solucionar o crime, não à Millennium.

—Obrigada por me avisar. Posso ajudar em alguma coisa?

—Por enquanto não. Qualquer coisa eu te digo.

—Está bem, Mikael... me mantenha informada, por favor.

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