19. SEXTA-FEIRA 3 DE JUNHO – SÁBADO 4 DE JUNHO
Lisbeth Salander terminou de escrever sua biografia por volta das quatro da manhã de sexta-feira, e mandou uma cópia para Mikael Blomkvist pelo grupo Yahoo [Tãvola-Biruta]. Depois ficou deitada, imóvel, contemplando o teto.
Deu-se conta que no dia 30 de abril completara vinte e sete anos, mas que não tinha se lembrado de seu aniversário. Estava no cativeiro. Tivera a mesma experiência na clínica de psiquiatria infantil de Sankt Stefan e, se os ventos não virassem a seu favor, estava arriscada a passar vários outros aniversário numa instituição qualquer.
Isso ela não pretendia aceitar.
A última vez que tinha sido trancafiada, ainda não era uma adolescente. Agora, era adulta, com outros conhecimentos e competências. Perguntou-se quanto tempo precisaria para fugir, colocar-se em segurança em algum lugar no exterior e conseguir uma nova identidade e uma nova vida.
Levantou-se da cama, foi ao banheiro e olhou-se no espelho. Não mancava mais. Apalpou o quadril no lugar onde o ferimento causado pela bala criara uma cicatriz. Girou os braços e esticou o ombro. Sentiu umas pontadas, mas ela estava praticamente restabelecida. Deu umas batidinhas na cabeça. Supunha que seu cérebro não havia sofrido grandes danos, apesar de ter sido perfurado por uma bala.
Tivera muita sorte.
Quando ainda estava sem seu computador de mão, tinha se ocupado pensando numa maneira de fugir daquele quarto trancado do hospital Sahlgrenska.
Depois, Anders Jonasson e Mikael Blomkvist haviam atropelado seus planos fornecendo-lhe o computador. Ela lera os textos de Mikael Blomkvist e refletira bastante. Tinha analisado as conseqüências, pensado no plano de Mikael e avaliado as possibilidades. E resolvera, pela primeira vez, que iria aceitar a sugestão dele. Ia testar o sistema. Mikael Blomkvist a convencera de que ela realmente não tinha nada a perder, e oferecia-lhe uma possibilidade de fuga bem diferente. Se o plano fracassasse, só lhe restaria pensar numa forma de fugir da clínica Sankt Stefan ou de algum outro hospital de doidos.
O que a convencera a aceitar o plano de Mikael fora sua sede de vingança.
Ela não perdoava.
Zalachenko, Bjõrck e Bjurman estavam mortos.
Mas Teleborian ainda estava vivo.
Assim como Ronald Niedermann, seu irmão. Mesmo que, a princípio, ele não fosse problema dela. Certo, ele estivera ali para assassiná-la e enterrá-la, mas ainda assim ela o considerava secundário. Se eu topar com ele algum dia, aí a gente vê, mas até lá ele é um problema da polícia.
Mikael tinha razão. Por trás da conspiração havia outros rostos desconhecidos que haviam contribuído para moldar a vida dela. Ela precisava saber os nomes e currículos desses rostos anônimos.
Assim, resolvera seguir o plano de Mikael e escrevera a verdade nua sobre sua vida, sem maquiagem, na forma de uma biografia fria e seca de quarenta páginas. Tomara o maior cuidado com suas afirmações. Todas as frases eram verídicas. Aceitara o raciocínio de Mikael segundo o qual a mídia sueca já havia divulgado tantas fantasias grotescas sobre ela, que uma cota verdadeira de loucura não iria prejudicar sua reputação.
Em compensação, a biografia era falsa porque ela não contava de fato toda a verdade sobre si mesma e sobre sua vida. Não tinha nenhum motivo para isso.
Voltou para a cama e se enfiou debaixo das cobertas. Sentia uma irritação que não conseguia definir. Esticou-se para apanhar o bloco de anotações que Annika Giannini lhe dera e que praticamente não usara. Abriu a primeira página, onde anotara apenas uma linha.
(x'+f=z')
No inverno anterior ela havia passado várias semanas nas Antilhas queimando neurônios até quase pirar, tentando solucionar o teorema de Fermat. Ao voltar para a Suécia, e antes de ser envolvida na caçada a Zalachenko, continuara brincando com as equações. Seu problema agora era a sensação enervante de ter vislumbrado uma solução... de ter vivenciado uma solução.
Mas não conseguia se lembrar.
Não se lembrar de alguma coisa era um fenômeno desconhecido para Lisbeth Salander. Ela fizera alguns testes, entrando na internet e pinçando ao acaso alguns códigos HTML, que ela lera de um jato e decorara, e depois reconstituíra corretamente.
Não tinha perdido sua memória fotográfica, que ela vivenciava como uma maldição.
Tudo estava como sempre fora na sua cabeça.
A não ser por isto: tinha a impressão de ter visto uma solução para o teorema de Fermat, mas não conseguia se lembrar onde, quando ou como.
O pior é que não sentia o menor interesse pelo enigma. O teorema de Fermat já não lhe interessava. Mau sinal. Era bem assim que ela funcionava. Ficava fascinada por um enigma, mas depois que o desvendava perdia o interesse por ele.
Era exatamente o que sentia em relação a Fermat. Ele já não era aquele diabinho saltitando em seu ombro, pedindo atenção e atiçando sua inteligência. Não passava de uma fórmula insípida, de rabiscos numa folha de papel, e ela não tinha a menor vontade de mexer nisso.
O que era preocupante. Largou o bloco de anotações.
Ela deveria ir dormir.
Em vez disso, tornou a pegar o computador de mão e conectou-se à internet. Refletiu por um momento e então entrou no disco rígido de Dragan Armanskij, que ela não visitava desde que recebera o computador. Armanskij vinha colaborando com Mikael Blomkvist, mas ela não sentira uma necessidade imediata de ver no que ele trabalhava.
Leu distraidamente sua correspondência eletrônica.
Então deparou com a análise de segurança feita por David Rosin para a residência de Erika Berger. Franziu o cenho.
Erika Berger estava com um ciberassediador na sua cola.
Encontrou o relatório de uma funcionária chamada Susanne Linder, que aparentemente pernoitara na casa de Erika Berger e enviara um relatório por e-mail à noite. Deu uma olhada no horário. O e-mail fora enviado pouco antes das três da manhã e relatava que Berger descobrira que diários íntimos, cartas e fotografias, além de um vídeo de caráter estritamente pessoal, haviam sido roubados de uma cômoda de seu quarto.
[Depois de conversarmos sobre o incidente, concluímos que o roubo deve ter ocorrido enquanto a Sra. Berger ainda se encontrava no hospital de Nacka, depois de ter pisado num caco de vidro. Por um período de mais ou menos duas horas e meia, a casa ficou sem vigilância e com o alarme incompleto da NIP fora de funcionamento. Exceto isso, ou Berger ou David Rosin estiveram o tempo todo na casa até o roubo ser descoberto.
Pode-se deduzir que o assediador da Sra. Berger devia estar nas proximidades e viu quando ela saiu de táxi, como decerto também viu que ela estava mancando e com o pé machucado. Então aproveitou a oportunidade para entrar na casa.
Lisbeth fechou o discou rígido de Armanskij e desligou, pensativa, o computador de mão. Estava tomada por sentimentos contraditórios.
Não tinha motivo nenhum para gostar de Erika Berger. Ainda se lembrava de como se sentira humilhada ao vê-la desaparecer na Hornsgatan com Mikael Blomkvist um ano e meio atrás, no dia 30 de dezembro.
Fora o momento mais idiota de toda a sua vida e ela nunca mais se permitiria sentir aquilo de novo.
Lembrava-se do ódio irracional que a invadira e do desejo de alcançá-los e de machucar Erika Berger.
Fora doloroso.
Ela estava curada.
Ótimo. Portanto, não tinha motivo nenhum para gostar de Erika BemP&er.
No instante seguinte, perguntou-se qual seria o conteúdo do vídeo de caráter estritamente pessoal de Berger. Ela também possuía um vídeo de caráter estritamente pessoal que mostrava o calhorda do Nils Bjurman violentando. O vídeo estava agora com Mikael Blomkvist. Perguntou-se como ela reagiria se alguém entrasse em sua casa e roubasse o filme. Que era o que Mikael Blomkvist, afinal, tinha feito, embora não com o objetivo de prejudicá-la.
Humm.
Complicado.
Erika Berger não conseguiu dormir na noite de sexta para sábado. Ficou andando incansavelmente pela casa, manquejando, enquanto Susanne Linder ficava de olho nela. Sua angústia pairava na casa como uma verdadeira neblina.
Por volta das duas e meia, Susanne Linder conseguiu convencer Berger a pelo menos se deitar para descansar um pouco, mesmo sem dormir. Deu um suspiro de alívio quando Berger fechou a porta do quarto. Abriu seu lap-top e resumiu o que se passara num e-mail para Dragan Armanskij. Mal tinha tido tempo de enviar o e-mail, quando voltou a ouvir Erika Berger de pé, se movimentando.
Por volta das sete da manhã, conseguira convencer Erika Berger a ligar para o SMP dizendo que estava doente e que não iria ao jornal naquele dia. A contragosto, Erika admitira que não trabalharia com muita eficiência com os olhos se fechando de sono. Em seguida, dormira no sofá da sala, diante da janela vedada com a chapa de compensado. Susanne Linder fora pegar um cobertor. Depois fizera um café e ligara para Dragan Armanskij, a fim de explicar sua presença no local e como fora chamada por David Rosin.
— Eu também não preguei o olho esta noite — disse Susanne Linder.
— Certo. Fique aí com a Berger. Vá se deitar e durma algumas horas — disse Armanskij.
— Não sei como vou faturar isso...
— Depois a gente dá um jeito.
Erika Berger dormiu até as duas e meia da tarde. Quando acordou, deu com Susanne Linder dormindo numa poltrona do outro lado da sala.
Rosa Figuerola perdeu a hora na sexta-feira de manhã e não teve tempo de fazer sua corrida matinal antes de ir trabalhar. Pôs a culpa em Mikael, tomou um banho e o fez sair da cama rapidinho.
Mikael Blomkvist foi até a Millennium, e todos se surpreenderam ao vê-lo chegar tão cedo. Ele resmungou uma explicação qualquer, foi pegar um café e chamou Malu Eriksson e Henry Cortez à sua sala. Passaram três horas revisando os textos para a edição temática que estava para sair e conferiram o andamento da produção de livros.
— O livro do Dag Svensson foi para a gráfica ontem — disse Malu. — Vai sair em formato de bolso.
— Certo.
— A revista vai sair com o título The Lisbeth Salander Story — disse Henry Cortez. — Estão alterando a data, mas o julgamento está marcado para a quarta-feira 13 de julho. A revista já vai estar impressa, porém vamos esperar até o meio da semana para começar a distribuição. Você é que decide a data em que ela deve estar nas bancas.
— Ótimo. Então só falta o livro do Zalachenko, que no momento está um verdadeiro pesadelo. Título: A Seção. A primeira parte, na verdade, é o que vamos publicar na Millennium. O ponto de partida é o assassinato de Dag Svensson e Mia Bergman, depois temos a caçada a Lisbeth Salander, Zalachenko e Niedermann. A segunda parte do livro vai falar do que sabemos sobre a Seção.
— Mikael, mesmo que a gráfica faça todo o possível, temos que entregar os originais definitivos, prontos para imprimir, no máximo em 30 de junho — disse Malu. — O Christer precisa de uns dois, três dias para diagramar. lemos pouco mais de duas semanas. Não vejo como a gente vai conseguir.
— Não vamos ter tempo de levantar a história toda — admitiu Mikael. — Mas acho que não conseguiríamos nem que tivéssemos um ano pela frente. O que vamos fazer nesse livro é expor o que aconteceu. Se não conseguirmos nenhuma fonte para dar uma declaração, eu mesmo escrevo e dou a minha declaração. Se ficarmos só especulando, isso vai transparecer. De um lado, a gente escreve o que aconteceu e não podemos provar; de outro, o que a gente acha que aconteceu.
— Ou seja, uma coisa capenga — disse Henry Cortez. Mikael balançou a cabeça.
— Se eu disser que alguém da Sapo entrou no meu apartamento e provo isso com um vídeo, então está provado. Se eu disser que quem mandou fazer isso foi a Seção, é especulação, mas, diante de todas as revelações que vamos fazer, é uma especulação plausível. Entende?
— É...
— Não vou ter tempo de escrever todos os textos sozinho. Henry, estou com uma lista de textos para você rever. São umas cinqüenta páginas do livro. Malu, você dá assistência ao Henry, como quando a gente fez o livro do Dag Svensson? Nós três vamos assinar o livro. Tudo bem para vocês?
— Claro — disse Malu. — Só que temos outros problemas.
— Quais?
— Enquanto você enlouquecia com o caso Zalachenko, a gente aqui ficou com um puta trabalho para fazer...
— Você quer dizer que eu não ando disponível? Malu Eriksson fez que sim com a cabeça.
— Tem razão. Desculpe.
— Não se desculpe. Todos nós sabemos que quando você fica obcecado com um caso, o resto deixa de existir. Mas com a gente não funciona assim. Não funciona comigo. A Erika Berger podia contar comigo. Eu tenho o Henry, e ele é bárbaro, mas está trabalhando na sua matéria tanto quanto você. Mesmo contando com você, ainda faltam duas pessoas na redação.
— Certo.
— E eu não sou a Erika Berger. Ela tinha uma quilometragem que eu não tenho. Ainda estou aprendendo. A Monika Nilsson está se matando de trabalhar. E a Lottie Karim também. Só que ninguém tem tempo nem de parar para pensar.
— Tudo isso é passageiro. Assim que o julgamento começar...
— Não, Mikael. Não vai passar. Quando o julgamento começar, vai ser um inferno. Lembre-se do caso Wennerstrõm. O que vai acontecer é que não vamos te ver por uns dois meses, enquanto você estiver se exibindo no horário nobre da tevê.
Mikael suspirou. Balançou a cabeça devagar.
— O que você sugere?
— Se quisermos dar conta da Millennium desse outono, vamos precisar contratar pelo menos duas pessoas, talvez mais. Não temos condições de fazer o que estamos pretendendo e...
— E?
— E nem tenho certeza se quero mesmo fazer isso.
— Entendo.
— Estou falando sério. Eu sou uma ótima assistente editorial, e as coisas rolavam numa boa com a Erika na chefia. Combinamos de fazer um teste no verão... Bem, a gente tentou. Não sou uma boa redatora-chefe.
— Isso é bobagem — disse Henry Cortez. Malu meneou a cabeça.
— Certo — disse Mikael. — Estou entendendo. Mas considere que estamos passando por uma situação atípica.
Malu sorriu para ele.
— Você deve encarar isso como a reclamação de uma funcionária — disse ela.
A unidade de intervenção da Brigada de Proteção à Constituição passou a sexta-feira tentando elucidar a informação fornecida por Mikael Blomkvist. Dois colaboradores se instalaram num escritório provisório na Fridhemsplan, e ali ficou centralizada toda a documentação. Era pouco prático, já que todo o sistema de computação ficava no Palácio da Polícia e os colaboradores, portanto, tinham de ir e vir todos os dias. Mesmo sendo um trajeto de apenas minutos, era incômodo. Ao meio-dia, já dispunham de uma ampla documentação mostrando que tanto Fredrik Clinton como Hans von Rottinger tinham sido ligados à Sapo nos anos 1960 e início dos 1970.
Rottinger era originário do serviço de informações militares e trabalhara vários anos na agência coordenando Defesa e Segurança. Fredrik Clinton tinha passado pela Força Aérea e começara a trabalhar no controle de pessoal da Sapo em 1967.
Ambos, porém, haviam saído da Sapo no início dos anos 1970; Clinton em 1971 e Rottinger em 1973. Clinton voltara para a vida civil como consultor e Rottinger tinha sido contratado para fazer investigações pela Agência Internacional de Energia Atômica. Fora baseado em Londres.
A tarde já ia longe quando Rosa Figuerola foi bater à porta de Edklinth para contar que tudo indicava que as carreiras de Clinton e Rottinger, desde que haviam deixado a Sapo, tinham sido forjadas. A carreira de Clinton era difícil de rastrear. Trabalhar como consultor para o setor industrial pode significar praticamente qualquer coisa. A pessoa não tem obrigação de prestar contas de suas atividades ao Estado. As declarações de renda de Clinton mostravam que ele ganhava muito dinheiro; infelizmente, sua clientela parecia ser formada, sobretudo, por empresas anônimas sediadas na Suíça e em países similares. Portanto, não era muito fácil provar que tudo aquilo não passava de fachada.
Rottinger, em compensação, nunca pusera os pés no escritório de Londres onde supostamente trabalhava. Em 1973, na verdade o prédio onde ficava o tal escritório havia sido demolido e substituído por uma extensão da King's Cross Station. Era óbvio que alguém se enganara redondamente ao criar aquela lenda. Durante o dia, a equipe de Figuerola conversou com vários colaboradores aposentados da Agência Internacional de Energia Atômica. Nenhum deles sequer ouvira falar em Rottinger.
— Já temos as informações — disse Edklinth. — Agora só nos resta descobrir quais as reais atividades desses senhores.
Rosa Figuerola concordou com a cabeça.
— E quanto ao Blomkvist, o que a gente faz?
— Como assim?
— Nós prometemos mantê-lo informado do que descobríssemos sobre Clinton e Rottinger.
Edklinth refletiu.
— Está certo. E ele mesmo vai acabar descobrindo se continuar vasculhando. Mais vale mantermos boas relações com ele. Você conta para o Blomkvist. Mas use a cabeça.
Rosa Figuerola prometeu. Conversaram alguns minutos sobre a agenda do fim de semana. Dois colaboradores de Rosa iam continuar trabalhando. Ela estaria de folga.
Ela bateu seu ponto e foi até a academia da Praça Sankt Erik, onde passou duas horas se recuperando desenfreadamente do treino que havia perdido. Ao voltar para casa por volta das sete da noite, tomou um banho, preparou uma refeição leve e ligou a tevê para ver o noticiário. Por voltas das sete e meia, já estava zanzando à toa e calçou o tênis de corrida. Deteve-se à porta de casa e pensou um pouco. Maldito Blomkvist! Pegou o celular e ligou para o de Mikael.
— Descobrimos umas duas, três coisas sobre o Rottinger e o Clinton.
— Fale — disse Mikael.
— Se você vier me visitar eu te conto.
— Humm — fez Mikael.
— Acabei de pôr o tênis de corrida para ir gastar meu excesso de energia — disse Rosa Figuerola. — Saio ou te espero?
— Está bem para você se eu chegar depois das nove?
— Está ótimo.
Por volta das oito da noite de sexta-feira, o Dr. Anders Jonasson foi ver Lisbeth Salander. Ele se sentou na poltrona dos visitantes e recostou-se.
— Vai me examinar? — perguntou Lisbeth Salander.
— Não. Hoje não.
— Que maravilha!
— Fizemos uma avaliação do seu estado hoje e informamos o procurador de que estamos prontos para lhe dar alta.
— Entendo.
— Eles queriam transferir você para a casa de detenção de Gõteborg esta noite mesmo.
— Tão rápido?
Ele assentiu com a cabeça.
— Parece que Estocolmo está pressionando. Eu disse que ainda tinha uns testes para fazer com você amanhã e que não ia liberá-la antes de domingo.
— Por quê?
— Não sei. A pressa deles me irritou.
Lisbeth Salander sorriu de verdade. Ela sem dúvida conseguiria transformar o Dr. Anders Jonasson num bom anarquista, se lhe dessem alguns anos. Pelo menos tendências à desobediência civil ele tinha.
— Fredrik Clinton — disse Mikael Blomkvist, olhos fixos no teto acima da cama de Rosa Figuerola.
— Acenda esse cigarro e eu apago ele no seu umbigo — disse Rosa. Mikael olhou, surpreso, para o cigarro que acabava de tirar do bolso do paletó.
— Desculpe — disse ele. — Você me empresta a sua sacada?
— Só se você escovar os dentes depois.
Ele concordou balançando a cabeça e se enrolou num lençol. Ela o seguiu até a cozinha e encheu um copo grande com água fria. Apoiou-se no vão da porta da sacada.
— Fredrik Clinton?
— Ele ainda está vivo. É o elo com o passado.
— Ele está morrendo. Precisa de um rim, e passa a maior parte do tempo fazendo diálise ou algum outro tratamento.
— Mas está vivo. Poderíamos entrar em contato com ele e perguntar diretamente. Ele talvez queira falar.
— Não — disse Rosa. — Em primeiro lugar, trata-se de um inquérito preliminar e a polícia é que está investigando. Nós não existimos nessa história. Em segundo lugar, como foi combinado com Edklinth, você está recebendo as informações, mas se comprometeu a não atrapalhar a investigação.
Mikael olhou para ela e sorriu. Apagou o cigarro.
— Epa — disse ele. — Olha a Sapo puxando a coleira... De repente, ela pareceu preocupada.
— Mikael, eu não estou brincando.
Quando Erika Berger foi para o Svenska Morgon-Posten no sábado de manhã, estava com um nó no estômago. Sentia que começava a dominar o modo de fazer o jornal e na verdade planejara tirar folga no fim de semana — pela primeira vez desde que entrara no SMP—, porém ter descoberto que suas lembranças mais pessoais e íntimas haviam sumido junto com o relatório sobre Borgsjõ a impedia de relaxar totalmente.
Durante sua noite em claro, passada em boa parte na cozinha com Su-sanne Linder, Erika esperara que Pena Podre atacasse outra vez e que imagens suas, que podiam ser tudo menos lisonjeiras, fossem rapidamente divulgadas. A internet era uma arma perfeita para os canalhas. Meu Deus, um vídeo em que eu apareço trepando com meu marido e outro homem, e eu vou sair nos jornais sensacionalistas do mundo inteiro. Não poderia haver coisa mais íntima.
Durante toda a noite, fora torturada pelo pânico e pela angústia.
Por fim, Susanne Linder a obrigara a ir se deitar.
Levantou-se às oito horas e foi para o SMP. Não conseguia ficar longe por muito tempo. Se havia uma tempestade esperando por ela, queria ser a primeira a enfrentá-la.
Mas na equipe de redação, reduzida por ser sábado, estava tudo normal. As pessoas a cumprimentaram cordialmente quando ela passou pelo pólo central. Lukas Holm não estava trabalhando. Peter Fredriksson chefiava Atualidades.
— Oi, achei que você não vinha trabalhar hoje.
— Eu também. Mas ontem eu não estava bem, e tenho umas pendências. Alguma novidade?
— Não, o noticiário está fraco. O que temos de mais excitante é a divulgação de uma melhora na situação do setor madeireiro na Dalecarlia e um assalto em Norrkõping com um ferido.
— Certo. Vou trabalhar um pouco na primeira página.
Sentou-se, apoiou as muletas na estante de livros e se conectou à internet. Primeiro, abriu os e-mails. Tinha recebido vários, mas nada do Pena Podre. Franziu o cenho. Já haviam se passado dois dias desde o assalto a sua casa e ele ainda não reagira ao que deveria representar um autêntico tesouro de possibilidades. Por quê? Será que está pretendendo mudar de tática? Quer me deixar em suspense?
Como ela não tinha nenhum trabalho especial para fazer, abriu o arquivo da estratégia para o SMP que estava escrevendo. Ficou olhando para a tela por uns quinze minutos, sem nem ver as letras.
Tinha tentado falar com Lars, sem sucesso. Nem sabia se o celular dele funcionava em outro país. Claro que poderia localizá-lo se fizesse um esforço, mas sentia-se completamente apática. Ou melhor, sentia-se desesperada e paralisada.
Tentou ligar para Mikael Blomkvist no intuito de avisar que o dossiê Borgsjõ havia sido roubado. Ele não atendia.
Às dez da manhã, ainda não tinha feito nada de importante e resolveu voltar para casa. Estava estendendo a mão para desligar o computador quando seu ICQ tilintou. Atônita, fitou o menu. Sabia o que era o ICQ, mas raramente entrava em chats e nunca usara aquele programa desde que começara no SMP.
Hesitante, clicou em Responder.
[Oi, Erika.]
[Oi. Quem é?]
[É particular. Você está sozinha?]
Uma armadilha? Pena Podre?
[Estou. Quem é você?]
[A gente se conheceu no apartamento do Super-Blomkvist quando ele voltou de Sandhamn.]
Erika contemplou a tela. Levou alguns segundos até entender. Lisbeth Salander, isso é impossível.
[Você está aí?] [Estou.]
[Sem citar nomes. Você sabe quem eu sou?] [Como posso saber que não é uma armadilha?] [Eu sei como o Milcael adquiriu aquela cicatriz no pescoço.]
Erika engoliu em seco. Apenas quatro pessoas no mundo sabiam como ele adquirira aquela cicatriz. Lisbeth Salander era uma delas.
[Certo. Mas como você está conseguindo falar comigo?] [Eu costumo me sair bem em computação.]
A Lisbeth Salander é fera em computação. Mas queria que alguém me explicasse como ela consegue se comunicar estando em Sahlgrenska e isolada desde abril.
[Certo.]
[Posso confiar em você?]
[Em que sentido?]
[Esta conversa tem que ficar entre nós.]
Ela não quer que a polícia saiba que ela tem acesso à internet. Claro. Por isso é que ela está batendo papo com a redatora-chefe de um dos maiores jornais da Suécia.
[Não tem problema. O que você quer?] [Ressarcir.] [Como assim?] [A Millennium me apoiou.] [Fizemos o nosso trabalho.] [Ao contrário de outros veículos.]
[Você não é culpada das acusações que estão lhe fazendo.] [Tem um canalha assediando você.]
O coração de Erika disparou. Hesitou por um bom tempo.
[O que você sabe?]
[Vídeo roubado. Arrombamento.] [Sim. Você pode fazer alguma coisa?]
Erika Berger custou a acreditar que ela mesma tinha feito aquela pergunta. Era uma loucura absoluta. Lisbeth Salander estava hospitalizada em Sahlgrenska e já estava mais que saturada de problemas. Era a pessoa menos provável para Erika pedir ajuda.
[Não sei. Deixe eu tentar.] [Como?]
[Pergunta. Você acha que esse cretino é do SMP?] [Não tenho como provar.] [Por que você acha que ele é do SMP?]
Erika ponderou por algum tempo antes de responder.
[É uma sensação. Começou quando eu entrei no SMP. Outras pessoas do jornal também receberam e-mails desagradáveis do Pena Podre como se tivessem sido mandados por mim.]
[Pena Podre?]
[E assim que eu chamo esse canalha.]
[Certo. Por que o Pena Podre estaria mirando em você e não em outra pessoa?]
[Não sei.]
[Há alguma coisa que indique que é pessoal?]
[Como assim?]
[Quantos funcionários tem no SMP?]
[Cerca de 230, incluindo a editora.]
[Quantos você conhece pessoalmente?]
[Não sei dizer ao certo. Conheci vários jornalistas e colaboradores ao longo dos anos, em diferentes situações.]
[Você já se indispôs com algum deles?]
[Não. Nada especial.]
[Alguém pode estar querendo se vingar?]
[Se vingar? Do quê?]
[A vingança é um motivo poderoso.]
Erika olhou para a tela tentando entender a que Lisbeth Salander estaria referindo.
[Você está aí?]
[Estou. Por que você falou em vingança?]
[Eu li a lista do Rosin com todos os incidentes que você associa ao Pena Podre.]
Por que é que eu não estou surpresa?
[Certo???]
[Ele não tem jeito de assediador.]
[O que você quer dizer?]
[Um assediador é alguém dominado pela obsessão sexual. Esse parece que está imitando o tipo assediador. Chave de fenda na bunda... imagina, isso é pura paródia.]
[Ah, é?]
[Já vi assediadores de verdade. São muito mais perversos, vulgares e grotescos. Expressam amor e ódio ao mesmo tempo. Essa história não está batendo direito.]
[Você acha que não está suficientemente vulgar.]
[Não. O e-mail para a Eva Carlsson não tem nada a ver. Isso é alguém querendo te perturbar.]
[Sei. Eu não estava vendo as coisas por esse ângulo.]
[Não é um maníaco sexual. E algo contra você, pessoal.]
[Bem, e o que você sugere?]
[Você confia em mim?]
[Talvez.]
[Preciso acessar a rede do SMP.]
[Ei, calma lá!]
[Não demora, eu vou ser transferida e vou ficar sem internet.]
Erika hesitou por uns dez segundos. Entregar o SMP a... a quem? A uma verdadeira maluca? Claro, Lisbeth era inocente dos assassinatos de que fora acusada, porém, definitivamente, não era uma pessoa normal.
Mas o que ela tinha a perder?
[Como?]
[Preciso instalar um programa no seu computador.]
[A gente tem firewall.]
[Você vai me ajudar. Entre na internet.]
[Isso eu já estou.]
[Explorer?]
[Sim.]
[Vou escrever um endereço. Copie e cole no Explorer.]
[Pronto.]
[Você está vendo uma lista com uma quantidade de programas. Clique em Asphyxia Server e carregue.]
Erika seguiu as instruções.
[Pronto.]
[Inicie o Asphyxia. Clique em Instalar e escolha o Explorer.]
A operação levou três minutos.
[Pronto. Certo. Agora você tem que reiniciar o computador. Vamos perder o contato por um momento.]
[Certo.]
[Quando nos reconectarmos, vou transferir o seu disco rígido para um servidor da internet.]
[Certo.]
[Pode reiniciar. Até daqui a pouco.]
Erika Berger olhou fascinada para a tela enquanto seu computador reiniciava devagar. Perguntava-se se estava totalmente bem da cabeça. Então seu ICQ tilintou.
[Olá de novo.]
[Olá.]
[Vai ser mais rápido se você fizer. Conecte-se à internet e copie o endereço que vou lhe passar por e-mail.]
[Certo.]
[Você vai ver uma pergunta. Clique em Start.]
[Certo.]
[Agora estão pedindo que você dê um nome ao disco rígido. Ponha SMP-2.]
[Certo.]
[Pode ir buscar um café. Vai demorar um tempinho.]
Rosa Figuerola acordou, no sábado, por volta das oito da manhã, quase duas horas depois de seu horário habitual. Sentou-se na cama e contemplou Mikael Blomkvist. Ele roncava. Bem, ninguém é perfeito.
Perguntou-se aonde aquela história com Mikael Blomkvist iria levá-la. Ele não era do tipo fiel, com quem se podia investir num relacionamento a longo prazo — isso ela logo viu ao analisar a biografia dele. Por outro lado, ela não tinha realmente certeza de estar buscando um relacionamento estável, com noivo, geladeira e crianças. Depois de uma dúzia de tentativas fracassadas desde a adolescência, achava cada vez mais que o mito do relacionamento estável era superestimado. Seu relacionamento mais duradouro se mantivera por dois anos, com um colega de Uppsala.
Ela tampouco era o tipo de mulher que se envolvia em aventuras sexuais de uma só noite, mesmo achando que muitas pessoas se esqueciam do valor inestimável do sexo como um remédio para praticamente tudo. E o sexo com Mikael Blomkvist era muito legal. Mais que legal, aliás. Ele era um cara bacana. Dava vontade de repetir.
Aventura de férias? Namorico? Estaria apaixonada?
Foi até o banheiro, passou uma água no rosto, escovou os dentes, enfiou um short e uma camiseta de corrida e saiu do apartamento pé ante pé. Fez um alongamento e trotou quarenta e cinco minutos em volta do hospital de Râlambshov, via Fredhàll, retornando por Smedsudden. Voltou para casa às nove horas e viu que Blomkvist ainda dormia. Inclinou-se e mordiscou-lhe a orelha até ele abrir uns olhos enevoados.
— Bom dia, meu querido. Estou precisando de alguém para esfregar as minhas costas.
Ele a olhou fixamente e resmungou alguma coisa.
— O que você disse?
— Você não precisa tomar banho. Já está hiper molhada.
— Eu fui correr. Você deveria ir comigo.
— Se eu tentar acompanhar o seu ritmo, você vai ter que chamar uma ambulância. Parada cardíaca na Norr Málastrand.
— Não diga bobagem. Vamos lá. Você precisa acordar.
Ele esfregou-lhe as costas e ensaboou seus ombros. E quadris. E barriga. E seios. Momentos depois, Rosa Figuerola perdera totalmente o interesse pelo banho e o arrastou de volta para a cama. Só saíram por volta das onze horas, para tomar um café no Norr Malastrand.
— Você tem tudo para virar um mau hábito — disse Rosa. — Faz só alguns dias que a gente se conhece.
— Tenho um tesão louco por você. Mas acho que isso você já sabe. Ela fez que sim com a cabeça.
— Por quê?
— Ah, eu não sei dizer. Nunca entendi por que uma mulher de repente me atrai enquanto outra não me interessa nem um pouco.
Ela sorriu, pensativa.
— Hoje eu não trabalho — disse.
— E eu sim. Tenho um monte de coisas para fazer antes do início do julgamento, e passei as três últimas noites na sua casa em vez de trabalhar.
— Que pena.
Ele se levantou e deu-lhe um beijo no rosto. Ela o segurou pela manga da camisa.
— Blomkvist, tenho muita vontade de continuar vendo você.
— Eu também — disse ele. — Mas vai haver altos e baixos até que a gente consiga levar essa, história para um final feliz.
Ele desapareceu na direção de Hantverkargatan.
Erika Berger retornara com seu café e observava a tela. Não havia acontecido nada durante quarenta e cinco minutos, a não ser o protetor de tela entrando de tempos em tempos. Por fim seu ICQ tilintou novamente.
[Pronto. Tem um monte de porcaria no seu disco rígido, inclusive dois vírus.] [Sinto muito. E o que vem agora?] [Quem é o administrador da rede do SMP?]
[Não sei. Provavelmente o Peter Fleming, que é o diretor de tecnologia.] [Certo.]
[O que eu devo fazer?] [Nada. Volte para casa.] [Assim, simplesmente?]
[Eu dou notícias.]
[Tenho que deixar o computador ligado?]
Mas Lisbeth Salander já tinha saído do ICQ. Erika Berger olhou para a tela, frustrada. Por fim, desligou o computador e saiu, buscando uma cafeteria onde pudesse refletir sem ser interrompida.