25. SÁBADO 12 DE JULHO — SEGUNDA-FEIRA 14 DE JULHO


Mikael despertou sobressaltado às cinco da manhã e levou desesperadamente as mãos ao pescoço para tirar a correia. Lisbeth foi vê-lo, segurou-lhe as mãos e o acalmou. Ele abriu os olhos e a fitou com um vago olhar. Não sabia que você jogava golfe — murmurou, voltando a fechar os olhos.

Ela permaneceu ao lado dele por alguns minutos, ate ter certeza de que ele adormecera de novo. Enquanto Mikael estivera dormindo, ela havia retornado ao porão de Martin Vanger para inspecionar o local do crime. Além dos instrumentos de tortura, havia encontrado uma coleção enorme de revistas de pornografia violenta e uma série de fotos polaróide coladas em álbuns.

Não havia um diário íntimo. No entanto ela achou duas pastas com fotos três por quatro e anotações sobre mulheres escritas à mão. Trouxe consigo essas pastas num cesto de náilon, junto com o laptop de Martin Vanger, que havia encontrado numa mesinha, no andar de cima. Depois que Mikael voltou a dormir, Lisbeth continuou a explorar o computador e as pastas de Martin. Eram mais de seis da manhã quando desligou o computador. Acendeu um cigarro e mordeu pensativamente o lábio inferior.

Ela e Mikael haviam se lançado à caça do que julgavam ser um assassino serial do passado, mas depararam com uma história bem diferente. Ela mal conseguia imaginar os horrores que haviam acontecido no porão de Martin Vanger, em meio àquele lugar idílico e bem-apresentado.

Ela tentava entender.

Martin Vanger havia matado mulheres desde os anos 1960, nos últimos quinze anos ao ritmo de uma ou duas vítimas por ano. A matança fora tão discreta e bem organizada que ninguém sequer percebera que havia um assassino serial em atividade. Como era possível?

As pastas sugeriam parte da resposta.

Suas vítimas eram mulheres anônimas, geralmente recém-imigradas, que não tinham amigos nem contatos sociais na Suécia. Havia também prostitutas e mulheres socialmente marginalizadas, com abuso de drogas, álcool e outros problemas existenciais.

Em seus estudos sobre a psicologia do sadismo sexual, Lisbeth Salander aprendera que esse tipo de assassino gostava de colecionar objetos das vítimas. Eles serviam de suvenires utilizados para recriar em parte o gozo sentido. Martin Vanger desenvolvera essa tendência redigindo uma compilação necrológica. Catalogara minuciosamente suas vítimas, com anotações que comentavam e descreviam seus sofrimentos, juntando a seus crimes filmes de vídeo e fotografias.

A violência e o assassinato eram o objetivo final, mas Lisbeth concluiu que, na realidade, a caça era o que interessava a Martin Vanger. Em seu laptop ele criara um banco de dados com o registro de centenas de mulheres. Havia empregadas do grupo Vanger, dos restaurantes onde ele fazia suas refeições, recepcionistas dos hotéis onde se hospedava, funcionárias da previdência social, secretárias de homens de negócios com quem se relacionava e uma série de outras mulheres. Era como se Martin Vanger registrasse e catalogasse praticamente todas as mulheres que encontrava.

Só uma parte ínfima delas havia sido assassinada, mas todas eram vítimas potenciais que ele anotava e examinava. Esse catálogo tinha o caráter de uma distração passional, à qual ele devia dedicar muitas horas.

Ela é casada ou solteira? Tem filhos e uma família? Onde trabalha? Onde mora? Que carro dirige? Experiência profissional? Cor dos cabelos? Cor da pele? Corpulência?

Lisbeth percebeu que a coleta de dados pessoais das possíveis vítimas devia ocupar uma parte importante das fantasias sexuais de Martin Vanger. Ele era primeiro um caçador, depois um matador.

Quando Lisbeth terminou de ler, encontrou um pequeno envelope numa das pastas. Dentro dele havia duas fotos polaróide com as pontas amassadas e amarelecidas. Na primeira via-se unia jovem morena sentada a uma meia. Vestia uma calça escura e estava com o torso nu, deixando ver pequenos seios. Ela desviava o rosto da objetiva e fazia menção de levantar um braço para se proteger, como se o fotógrafo a tivesse surpreendido com a máquina. Na segunda foto, ela também estava com o torso nu, mas deitada de bruços numa cama com uma colcha azul. O rosto também fugia da objetiva.

Lisbeth pôs o envelope com as fotos no bolso da jaqueta. Então introduziu as pastas no aquecedor a lenha, riscou um fósforo, deixou que se consumissem e retirou as cinzas. Chovia forte quando ela saiu de casa para jogar, discretamente, o laptop de Martin Vanger nas águas sob a ponte.

Quando Dirch Frode abriu com um golpe seco a porta da frente, Lisbeth fumava um cigarro diante de seu café à mesa da cozinha. O rosto de Krode estava cor de cinza e ele parecia alguém que fora despertado brutalmente.

— Onde está Mikael? — perguntou.

— Dormindo.

Dirch Frode desabou numa cadeira. Lisbeth encheu uma xícara de café e a empurrou na direção dele.

— Martin... Acabo de saber que Martin se matou quando dirigia seu carro esta noite.

— Que triste — disse Lisbeth antes de beber um gole de café.

Dirch Frode ergueu os olhos. Primeiro olhou-a perplexo. Depois seus olhos se arregalaram.

— Como...?

— Houve um acidente. Um acidente estúpido.

— Você sabe o que aconteceu?

— Ele se atirou na frente de um caminhão. Suicidou-se. A pressão, o estresse e um império financeiro em declínio, tudo isso deve ter sido demais para ele. Em todo caso, acho que é o que dirão as manchetes.

Dirch Frode parecia a ponto de um ataque de fúria. Levantou-se vivamente e foi abrir a porta do quarto.

— Deixe-o dormir — disse Lisbeth com voz firme.

Frode olhou o corpo adormecido. Viu hematomas e ferimentos no torso de Mikael, a marca vermelha deixada pela correia no pescoço. Lisbeth tocou o braço dele e voltou a fechar a porta. Frode recuou e sentou-se devagar, prostrado, no banco.

Lisbeth Salander contou rapidamente o que se passara durante a noite. Fez uma descrição detalhada da câmara de horrores de Martin Vanger e explicou que encontrara Mikael suspenso por um nó corrediço e o diretor administrativo do grupo Vauger de pé na frente dele. Contou o que descobrira no dia anterior nos arquivos do grupo e de que maneira fizera a ligação entre o pai de Martin e pelo menos sete assassinatos de mulheres.

Dirch Frode não a interrompeu uma única vez. Quando ela terminou de falar, permaneceu mudo por um longo tempo antes de suspirar profundamente e de balançar lentamente a cabeça.

— O que vamos fazer?

— Não é problema meu — disse Lisbeth num tom inexpressivo.

— Mas...

— Quer que eu te diga? Nunca pus os pés em Hedestad.

— Não estou entendendo.

— Em hipótese alguma quero aparecer num relatório policial. Eu não existo nessa história. Se meu nome for mencionado e relacionado ao que aconteceu, negarei ter vindo aqui e não responderei a pergunta nenhuma.

Dirch Frode tentava entendê-la.

— Não entendo.

— Não precisa entender.

— Que vou fazer então?

— Você é que decide, contanto que não nos envolva nisso, nem a mim nem a Mikael.

Dirch Frode estava lívido.

— É só considerar as coisas assim: tudo o que você sabe é que Martin morreu num acidente na estrada. Desconhece completamente que ele também era um assassino psicopata e nunca ouviu falar daquele porão.

Ela pôs a chave diante dele, em cima da mesa.

— Você ainda tem tempo antes que alguém vá examinar o porão de Martin e descubra aquele cômodo. Certamente não vai acontecer agora.

— Nós temos que chamar a polícia.

— Nós, não. Chame a polícia se quiser. A decisão é sua.

— Não podemos abafar esse caso.

— Não estou propondo que o abafe, apenas que não envolva a Mikael e a mim. Quando tiver visto o porão, vai tirar suas próprias conclusões e decidir com quem quer falar.

— Se o que você diz é verdade, isso significa que Martin sequestrou e matou mulheres... portanto há famílias desesperadas que não sabem onde estão suas filhas. Não podemos simplesmente...

— É verdade. Mas há um problema: os corpos desapareceram. Talvez você encontre passaportes ou carteiras de identidade numa gaveta. Algumas vítimas poderão ser identificadas pelos vídeos. Mas você não é obrigado a tomar nua decisão hoje. Reflita um pouco mais.

Dirch Frode parecia em pânico.

— Meu Deus! Isso vai ser o tiro de misericórdia do grupo. Quantas pessoas vão ficar desempregadas se for revelado que Martin...

Frode balançava-se para a frente e para trás, pressionado por um dilema moral.

— Esse é um dos aspectos. Se Isabella Vanger assumir o cargo de Martin, não seria bom que ela fosse a primeira a saber do passatempo do filho.

— Preciso ir ver...

— Na minha opinião, você deveria se manter longe daquele porão hoje — disse Lisbeth com autoridade.

— Há muitas providências a tomar. Você precisa avisar Henrik, precisa convocar a diretoria para uma reunião extraordinária e fazer o que fariam se o diretor administrativo tivesse falecido em circunstâncias normais.

Dirch Frode ponderou sobre as palavras dela. Seu coração deixou-se levar. Ele, o velho advogado que resolvia problemas e de quem se esperava um plano pronto diante de qualquer obstáculo, sentia-se totalmente paralisado. De repente se deu conta de que estava aceitando orientações de uma jovem. De um modo ou de outro, ela assumira o comando da situação e traçava as linhas de ação que ele não conseguia formular.

— E Harriet...?

— Mikael e eu ainda não terminamos. Mas pode dizer a Henrik Vanger que acho que vamos resolver isso também.

O desaparecimento inesperado de Martin Vanger era o destaque do noticiário das nove da manhã, quando Mikael despertou. Nada foi mencionado sobre os acontecimentos da noite, a não ser que o industrial deixara a pista da direita de forma inexplicável, em alta velocidade.

Ele estava sozinho no carro. A emissora de rádio local demorava-se mais sobre as inquietações quanto ao futuro do grupo Vanger e quanto às consequências financeiras que essa morte traria ao grupo.

Ao meio-dia, um despacho da TT, redigido às pressas, anunciava na tevê "Uma região em estado de choque" e resumia as repercussões imediatas para o grupo Vanger. Não escapava a ninguém que, só em Hedestad, três mil vinte e quatro mil habitantes eram empregados do grupo Vanger ou dependiam indiretamente da saúde financeira do grupo. O atual diretor morrera e o ex-diretor era um velho tentando se recuperar de um infarto recente. Faltava um herdeiro natural. Tudo isso num período considerado como o mais crítico da história da empresa.

Mikael Blomkvist tinha a possibilidade de ir à delegacia de polícia para explicar o que acontecera durante a noite, mas Lisbeth Salander já havia traçado o caminho. Uma vez que ele não chamara a polícia imediatamente, tornava-se cada vez mais difícil fazer isso a cada hora que passava. Durante a manhã, ele ficou afundado no banco da cozinha, num silêncio mal-humorado, enquanto contemplava a chuva e as grossas nuvens que cobriam o céu. Por volta das dez, desabou uma nova tempestade, mas ao meio-dia a chuva parou e o vento acalmou um pouco. Ele saiu, enxugou as cadeiras do jardim e sentou-se com uma xícara de café. Teve o cuidado de levantar a gola da camisa.

Como era de se esperar, a morte de Martin estendeu uma sombra sobre o cotidiano do povoado. Carros começaram a estacionar diante da casa de Isabella Vanger, indicando que o clã se reunia. Pessoas apresentavam suas condolências. Lisbeth contemplava o desfile com indiferença. Mikael permanecia mudo.

— Como está se sentindo? — ela perguntou enfim.

Mikael refletiu um momento antes de responder.

— Acho que ainda estou em estado de choque — disse. — Fiquei totalmente indefeso por várias horas. Achei que ia morrer. A angústia de morrer me revolvia as tripas e eu me sentia totalmente impotente.

Estendeu a mão e a pousou sobre o joelho de Lisbeth.

— Obrigado — disse. — Se você não tivesse chegado, ele teria me matado.

Lisbeth retribuiu com um sorriso enviesado. Mikael prosseguiu:

— Só que... eu não consigo entender como pôde ser tão louca de enfrentá-lo sozinha. Eu estava ali, no chão, rezando para que você visse a foto, fizesse a ligação e chamasse a polícia.

— Se eu esperasse a polícia chegar, você não teria sobrevivido. Eu não


podia deixar aquele canalha te trucidar.

— Por que você não quer ver a polícia?

— Não falo com as autoridades.

— Por que não?

— Problema meu. Mas, no que diz respeito a você, não acho que seria muito interessante para a sua carreira te apresentarem como o jornalista violentado por Martin Vanger, o conhecido assassino serial. Se já não gosta do Super-Blomkvist, imagine os novos apelidos que viriam.

Mikael olhou-a intensamente, depois abandonou o assunto.

— Temos um problema — disse Lisbeth.

Mikael assentiu com a cabeça, sabia a que ela estava se referindo.

— O que aconteceu a Harriet?

Lisbeth pôs as duas fotos polaróide em cima da mesa diante dele. Explicou onde as encontrara. Mikael examinou as fotos com atenção antes de levantar os olhos.

— Pode ser ela — disse por fim. — Não posso jurar, mas a corpulência e os cabelos lembram todas as fotos que vi dela.

Mikael e Lisbeth ficaram no jardim por uma hora, encaixando as peças do quebra-cabeça. Descobriram que ambos, cada um de seu lado, haviam identificado Martin Vanger como o elo perdido.


Lisbeth não chegara a ver a foto que Mikael havia deixado em cima da mesa da cozinha. Na noite anterior, depois de examinar as imagens das câmeras de segurança, ela concluíra que Mikael fizera algo estúpido e fora até a casa de Martin pelo caminho que margeava a água. Observou todas as janelas e não viu ninguém. Muito discretamente, verificou todas as portas e janelas do térreo e então foi escalando a parede até alcançar uma sacada aberta no andar de cima. Levou tempo, e ela agiu com a maior prudência, examinando cômodo por cômodo da casa. Por fim, descobriu a escada que levava ao porão. Martin fora negligente: deixara entreaberta a porta de sua câmara de torturas e ela logo entendeu tudo.

— Você ficou escutando por algum tempo o que ele dizia?

— Não muito. Cheguei quando ele estava te interrogando sobre o que havia acontecido a Harriet, pouco antes de te suspender como um porco. Me afastei só por um minuto e subi para buscar uma arma. Encontrei o taco golfe num armário.

— Martin Vanger não tinha a menor ideia do que aconteceu a Harriet.

— E você acredita?

— Sim — disse Mikael sem hesitar. — Martin estava mais enlouquecido do que uma doninha furiosa... não sei de onde me veio essa imagem... mas ele admitiu todos os crimes que cometeu. Falava à vontade. Tive até a impressão de que queria me impressionar. Mas, no que se refere a Harriet, estava tão desesperadamente em busca da verdade quanto Henrik Vanger.

— E então... isso nos leva aonde?

— Sabemos que Gottfried estava por trás da primeira série de assassinatos, entre 1949 e 1965.

— Certo. E que ele iniciou Martin.

— Estamos falando de uma família com problemas — disse Mikael. — Na verdade, Martin não tinha chance nenhuma.

Lisbeth Salander lançou um olhar estranho a Mikael.

— O que Martin me contou, embora aos pedaços, é que o pai começou a iniciá-lo na época da puberdade. Ele assistiu ao assassinato de Lea em Uddevalla, em 1962. Na época tinha catorze anos. Assistiu ao assassinato de Sara, em 1964. Dessa vez participou ativamente. Tinha dezesseis anos.

— E?

— Ele me disse que não era homossexual e que nunca havia tocado um homem, exceto o pai. Isso me faz pensar... bem, a única conclusão que se pode tirar é que o pai o violentava. Os abusos sexuais devem ter prosseguido por muito tempo. Ele foi iniciado, por assim dizer, pelo pai.

— Você está dizendo bobagem — falou Lisbeth Salander.

Sua voz de repente ficou dura como pedra. Mikael olhou para ela surpreso. Havia algo de inflexível no olhar dela, sem a menor compaixão.

— Martin poderia resistir como qualquer outra pessoa. Ele fez sua escolha. Matava e violentava porque gostava disso.

— Concordo. Mas Martin era um menino maltratado, influenciado pelo pai, assim como Gottfried foi maltratado pelo seu pai nazista.

— Ah, sei, você parte do princípio de que Martin não tinha vontade própria e que as pessoas se tornam aquilo para o qual foram educadas.

Mikael sorriu prudentemente.

— E um ponto sensível para você?

Os olhos de Lisbeth flamejaram numa súbita cólera contida. Mikael prosseguiu rápido.

— Não estou afirmando que as pessoas são influenciadas apenas pela educação que recebem, mas acho que ela desempenha um papel importante. O pai de Gottfried o espancou, e seriamente, por anos e anos. Isso deixa marcas.

— Você está dizendo bobagem — repetiu Lisbeth. — Gottfried não foi o único coitado no mundo a ter sido surrado. O que também não lhe dava carta branca para assassinar mulheres. Foi uma escolha que ele mesmo fez. E isso também vale para Martin.

Mikael ergueu uma mão.

— Não vamos discutir.

— Não estou discutindo. Simplesmente acho patético que sempre concedam circunstâncias atenuantes aos canalhas.

— Concordo. Eles têm mesmo uma responsabilidade pessoal. Passaremos isso a limpo depois. O fato é que Gottfried morreu quando Martin tinha dezessete anos e ele ficou sem ninguém para guiá-lo. Tentou prosseguir nas pegadas do pai. Fevereiro de 1966, Uppsala.

Mikael inclinou-se para pegar um dos cigarros de Lisbeth.

— Não vou nem começar a especular sobre que pulsões Gottfried estava tentando satisfazer, nem de que maneira interpretava seus atos. Ele se apoiou numa algaravia bíblica que um psiquiatra, talvez, pudesse esclarecer que fala de castigos e de purificação num sentido ou noutro. Não importa. Ele era um assassino serial.

Refletiu um segundo antes de continuar.

— Gottfried queria matar mulheres e revestia os crimes numa espécie de raciocínio pseudo-religioso. Mas Martin nem sequer fingia ter uma desculpa. Era organizado e matava de maneira sistemática. Além disso, tinha dinheiro para se dedicar a seu hobby. E era mais astuto que o pai. Toda vez que Gottfried deixava para trás um cadáver, isso significava um inquérito policial e o risco de alguém chegar até ele, ou pelo menos de fazer a ligação entre os diferentes assassinatos.

— Martin Vanger mandou construir sua casa nos anos 1970 — disse Lisbeth pensativamente.

— Acho que Henrik disse 1978. Ele provavelmente encomendou um porão de segurança para arquivos importantes ou algo do gênero. Obteve uma peça à prova de som, sem janelas e com uma porta blindada.

— Usou esse lugar por vinte e cinco anos.

Calaram-se por alguns momentos e Mikael pensou que atrocidades não teriam se passado naquela idílica ilha de Hedeby durante um quarto de século. Lisbeth não precisou imaginar; tinha visto a coleção de vídeos. Ela percebeu que Mikael tocava involuntariamente o próprio pescoço.

— Gottfried odiava as mulheres e ensinou o filho a também odiar as mulheres, enquanto o violentava. Mas havia algo mais... acho que Gottfried imaginava que os filhos deviam compartilhar sua visão pervertida do mundo, para dizer o mínimo. Quando perguntei a Martin sobre Harriet, sua própria irmã, ele disse: Tentamos convencê-la. Mas ela não passava de uma putinha ordinária. Estava planejando avisar Henrik.

Lisbeth assentiu com a cabeça.

— Eu ouvi. Foi mais ou menos nesse momento que eu cheguei ao porão. Isso significa que agora conhecemos o motivo da misteriosa conversa que ela queria ter com Henrik.

Mikael franziu a testa.

— Não exatamente. Pense na cronologia dos fatos. Não sabemos quando Gottfried violentou o filho pela primeira vez, mas ele levou Martin a Uddevalla para matar Lea Persson em 1962. Gottfried afogou-se em 1965. Antes disso, ele e Martin haviam tentado convencer Harriet. O que se pode deduzir daí?

— Que Gottfried não violentou apenas Martin. Ele atacou também Harriet.

Mikael assentiu com a cabeça.

— Gottfried era o professor, Martin o aluno. E Harriet era o joguete dos dois, digamos assim.

— Gottfried ensinou Martin a ter intimidades com a irmã. — Lisbeth mostrou as fotos polaróide. — É difícil determinar a atitude dela por essas duas fotos, pois só vemos seu rosto tentando se esconder da objetiva.

— Digamos que tudo começou quando ela tinha catorze anos, em 1964. Ela se defendeu — não conseguia aceitar —, segundo Martin. Era isso que ela ameaçava contar. Martin certamente não tinha grande experiência na época, ele consultava o pai, mas Gottfried e ele firmaram uma espécie de pacto através do qual tentavam iniciar Harriet.

Lisbeth assentiu com a cabeça.

— Você escreveu, nas suas anotações, que Henrik Vanger insistiu para que Harriet fosse morar na casa dele no inverno de 1964.

— Henrik percebeu que algo não ia bem naquela família. Para ele, a causa eram discussões e desavenças entre Gottfried e Isabella, por isso acolheu Harriet em sua casa para que ela pudesse ficar tranquila e se dedicar aos estudos.

— Um contratempo para Gottfried e Martin. Eles não podiam mais dispor dela facilmente, nem controlar sua vida. Mas de tempo em tempo... Onde aconteciam esses abusos?

— Provavelmente na cabana de Gottfried. Tenho quase certeza que as fotos foram tiradas lá. Vai ser fácil verificar. A casa tem uma localização perfeita, é isolada e longe do povoado. Até que um dia Gottfried bebeu demais e acabou se afogando como um imbecil.

Lisbeth balançou pensativamente a cabeça.

— O pai de Harriet tinha ou tentava ter relações sexuais com ela, mas aposto que não a iniciou nos assassinatos.

Mikael entendeu que esse era um ponto a ser esclarecido. Harriet anotara os nomes das vítimas de Gottfried e os associara a citações bíblicas, mas seu interesse pela Bíblia só havia se manifestado no último ano, quando Gottfried já havia morrido. Refletiu um momento, tentando encontrar uma explicação lógica.

— E então, um dia, Harriet descobre que Gottfried não é apenas um pai incestuoso como também um assassino serial furioso — disse.

— Não sabemos quando ela descobriu os assassinatos. Talvez um pouco antes de Gottfried se afogar, talvez depois, se ele tinha um diário ou se guardou recortes de jornal sobre os assassinatos. Alguma coisa a colocou na pista.

— Mas não era isso que ela ameaçava contar a Henrik — insistiu Mikael.

— Era sobre Martin — disse Lisbeth. — O pai havia morrido, mas Martin continuava a assediá-la.

— Exatamente — disse Mikael balançando a cabeça.

— Mas ela levou um ano para se decidir.

— O que você faria se descobrisse que seu pai é um assassino serial que estupra o seu irmão?

— Eu massacraria um lixo desses — disse Lisbeth com uma voz tão fria que Mikael percebeu que ela não estava brincando. De repente se lembrou do rosto de Lisbeth quando ela saltou sobre Martin Vanger. Esboçou um sorriso não muito alegre.

— Certo. Mas Harriet não é você. Gottfried morreu em 1965, antes que ela tivesse tempo de fazer o que quer que fosse. Faz sentido. Com a morte de Gottfried, Isabella enviou Martin a Uppsala. Ele talvez voltasse para casa no Natal e nas férias, mas no ano seguinte não encontrou muito Harriet. Ela pôde se distanciar um pouco dele.

— E passou a estudar a Bíblia.

— E, pelo que sabemos hoje, não necessariamente por razões religiosas. Talvez quisesse apenas tentar entender o que o pai fizera. Ela ficou remoen-do isso até a Festa das Crianças em 1966. E aí, de repente, vê o irmão surgir na rua da Estação e se dá conta de que a coisa vai recomeçar. Não sabemos se eles se falaram e se ele disse algo a ela. Seja como for, Harriet voltou depressa para casa querendo falar com urgência com Henrik.

— E em seguida desapareceu.


Reconstituída assim a sequência dos acontecimentos, a solução do quebra-cabeça parecia próxima. Mikael e Lisbeth fizeram as malas. Antes de partir, Mikael ligou para Dirch Frode e explicou que Lisbeth e ele precisavam deixar Hedeby por algum tempo, mas que fazia questão de se despedir de Henrik Vanger antes de ir embora.

Mikael quis saber o que Frode contara a Henrik. Pela voz, o advogado parecia tão estressado que Mikael se preocupou com ele. Frode demorou um momento para dizer que somente contara que Martin havia morrido num acidente de carro.

Quando estacionou na frente do hospital, Mikael ouviu novas trovoadas num céu carregado de nuvens que anunciavam chuva. Apressou o passo no estacionamento ao sentir as primeiras gotas.

Henrik Vanger estava sentado em frente à janela do quarto, vestindo um robe. A doença certamente o marcara, mas ele readquiria alguma cor nas faces e parecia a caminho da recuperação. Apertaram-se as mãos. Mikael pediu que a enfermeira particular os deixasse a sós por alguns minutos.

— Você não veio me ver — disse Henrik Vanger.

— Não pude. Sua família não quer me ver aqui no hospital, mas hoje estão todos com Isabella.

— Pobre Martin — disse Henrik.

— Henrik, você me pediu para descobrir a verdade sobre o que aconteceu a Harriet. Esperava que a verdade não doesse?

O velho olhou para ele. Depois abriu bem os olhos.

— Martin?

— Ele faz parte da história. Henrik fechou os olhos.

— Agora preciso lhe fazer uma pergunta.

— Qual?

— Você ainda quer saber o que aconteceu? Mesmo que doa e mesmo que a verdade seja pior do que você sempre imaginou?

Henrik Vanger olhou Mikael demoradamente. Depois balançou a cabeça.

— Quero saber. É o objetivo do seu trabalho.

— Certo. Acho que sei o que aconteceu a Harriet. Mas ainda falta uma última peça do quebra-cabeça.

— Me conte tudo.

— Não, hoje não. Agora quero que continue repousando. O médico disse que o alerta já deixou de soar e que logo você estará curado.

— Não me trate como uma criança.

— Ainda não terminei minha investigação. Só tenho suposições por enquanto, mas vou tentar achar essa última peça do quebra-cabeça. Da próxima vez contarei a história toda. Pode demorar um pouco, mas quero que saiba que eu voltarei e que você saberá a verdade.


Lisbeth cobriu a moto com uma lona, deixou-a do lado da casa oposto ao sol e instalou-se com Mikael no carro emprestado. A chuva aumentou e, ao sul de Gävle, enfrentaram um aguaceiro tão forte que Mikael mal via a estrada à frente. Por cautela, resolveu parar num posto de gasolina. Tomaram um café enquanto esperavam a chuva acalmar e só chegaram a Estocolmo por volta das sete da noite. Mikael deu a Lisbeth o código do seu prédio e a deixou numa estação de metrô. O apartamento pareceu-lhe estranho quando entrou.

Passou o aspirador e um pano de pó, enquanto Lisbeth ia ver Praga em Sundbyberg. Ela chegou à casa de Mikael cerca de meia-noite e passou dez minutos examinando cada detalhe do apartamento. Depois ficou um longo tempo diante da janela, olhando a vista do Slussen.

Armários e estantes comprados na Ikea serviam de divisória entre a sala e o quarto do loft. Eles se despiram e dormiram algumas horas.


Quando no dia seguinte aterrissaram em Gatwick por volta do meio-dia, foram recebidos pela chuva. Mikael havia reservado um quarto no hotel James perto do Hyde Park, um excelente hotel comparado às espeluncas de Bayswater onde sempre se hospedava em suas visitas a Londres. As despesas corriam por conta de Dirch Frode.

Às cinco da tarde, um homem de uns trinta anos encontrou-se com eles no bar do hotel. Era quase calvo, tinha uma barba loura, vestia um casaco muito largo, jeans e dockside.

— Wasp? — ele perguntou.

— Trinity? — ela rebateu. Cumprimentaram-se com um aceno de cabeça. Ele não perguntou o nome de Mikael.

O parceiro de Trinity foi apresentado como Bob the Dog. Ele esperava numa velha kombi estacionada na esquina. Entraram pela porta lateral e sentaram-se em bancos dobráveis. Enquanto Bob ziguezagueava pelo trânsito londrino, Wasp e Trinity conversavam.

— Praga me disse que se trata de um crash-bang job.

— Escuta telefônica e controle de e-mails num computador. Pode ser coisa rápida ou levar alguns dias, depende da pressão dele. — Lisbeth apontou para Mikael com o polegar. — Vocês conseguem?

— Os cachorros têm pulgas? — respondeu Trinity.


Anita Vanger morava numa das pequenas casas alinhadas em fila e de aspecto asseado do subúrbio de St. Albans, ao norte de Londres, um trajeto de pouco mais de uma hora de carro. Da kombi, viram-na chegar e abrir a porta às sete da noite. Esperaram uni pouco para que ela tomasse banho, comesse alguma coisa e se instalasse na frente da tevê, antes de Mikael tocar a campainha.

Uma cópia quase idêntica de Cecília Vanger abriu a porta, o rosto formando um cortês ponto de interrogação.

Boa noite, Anita. Meu nome é Mikael Blomkvist. Henrik Vanger pediu-me que viesse vê-la. Suponho que soube de Martin.

O rosto dela passou da surpresa à vigilância. Assim que ouviu o nome Mikael Blomkvist, ela soube exatamente quem ele era. Estava em contato com Cecília Vanger, que talvez tivesse manifestado uma certa irritação com Mikael. Mas mencionar Henrik Vanger a obrigou a abrir a porta. Convidou Mikael a se instalar na sala. Ele olhou ao redor. A decoração da casa, embora bastante discreta, indicava uma pessoa com dinheiro e unia vida profissional. Observou uma litografia assinada por Auders Zorn acima de uma lareira transformada em aquecedor a gás.

— Desculpe eu ter vindo sem avisar, eu estava em Londres c tentei telefonar durante o dia.

— Entendo. Do que se trata? — A voz estava na defensiva.

— Está pretendendo ir ao funeral?

— Não. Martin e eu não éramos muito próximos e não posso me afastar do trabalho.

Mikael assentiu com a cabeça. Anita Vanger fizera o possível para se manter distante de Hedestad durante trinta anos. Desde que o pai voltara à ilha de Hedeby, ela praticamente não pusera mais os pés lá.

— Quero saber o que aconteceu a Harriet Vanger. A hora da verdade chegou.

— Harriet? O que está querendo dizer?

Mikael fez um trejeito, dando a entender que não estava disposto a se deixar enganar.

— Você era a amiga mais próxima de Harriet na família e foi a pessoa que ela procurou para contar sua terrível história.

— Você está completamente doido — disse Anita Vanger.

— Talvez você esteja certa — disse Mikael com a voz tranquila. — Anita, você esteve no quarto de Harriet naquele dia. Tenho fotos provando isso. Daqui a alguns dias farei um relatório a Henrik e depois ele assumirá o meu lugar. Por que não me conta o que aconteceu?

Anita Vanger levantou-se.

— Saia imediatamente da minha casa.

Mikael levantou-se.

— Tudo bem, mas cedo ou tarde será obrigada a me contar.

— Não tenho nada a lhe dizer.

— Martin está morto — disse Mikael com firmeza. —— Você nunca gostou dele. Acredito que veio morar em Londres não apenas para ficar longe de seu pai mas também para não ser obrigada a encontrar Martin. Isso significa que você também estava sabendo, e a única que pode ter lhe contado Harriet. A questão é saber o que você fez depois de ficar sabendo.

Anita Vanger bateu a porta na cara de Mikael.


Lisbeth Salander dirigiu um sorriso de satisfação a Mikael enquanto retirava o microfone que ele trazia sob a camisa.

— Ela deu um telefonema trinta segundos depois de ter batido a porta na sua cara — disse Lisbeth.

— A indicação do país é Austrália — acrescentou Trinity, repondo o aparelho de escuta em cima da mesinha dentro da kombi. Preciso verificar qual é o código da área.

Digitou alguma coisa no teclado de seu laptop.

— Aqui está, ela chamou este número: é um telefone numa localidade chamada Tennant Creek, ao norte de Alice Springs, no Território do Norte. Quer escutar a conversa?

Mikael fez que sim com a cabeça.

— Que horas são na Austrália agora?

— Mais ou menos cinco da manhã. — Trinity acionou a gravação digital e um alto-falante. Mikael contou oito chamadas antes de uma voz atender. Conversavam em inglês.

— Oi, sou eu.

— Humm, está certo que eu sou madrugador, mas...

— Eu quis te ligar ontem... Martin morreu. Matou-se num acidente de carro anteontem.

Silêncio. Depois, algo semelhante a uma ligeira tosse, mas que podia ser interpretado como "melhor assim".

— Só há um problema. Um jornalista detestável que Henrik contratou acabou de sair aqui de casa. Fez perguntas sobre o que aconteceu em 1966. Ele sabe de alguma coisa.

Silêncio outra vez. Depois, uma voz de comando.

— Anita, desligue agora. Devemos evitar qualquer contato por algum tempo.

— Mas...

— Escreva cartas. Mantenha-me informado do que se passa. — E a conversa foi interrompida.

— Cara esperto! — disse Lisbeth Salander com admiração na voz. Voltaram ao hotel um pouco antes das onze. A recepção encarregou-se de reservar lugares no primeiro voo disponível para a Austrália. Em quinze minutos, conseguiram lugar num avião que sairia às 19h05 no dia seguinte, com destino a Canberra, Nova Gales do Sul.

Resolvidos todos os detalhes, deitaram-se na cama, exaustos.


Era a primeira visita de Lisbeth Salander a Londres e eles saíram para passear de manhã, da Tottenham Court Road ao Soho. Pararam para beber um caffe latte na Old Compton Street. Por volta das três, voltaram ao hotel para pegar as malas. Enquanto Mikael fechava a conta, Lisbeth viu que havia uma mensagem de texto urgente no seu celular.

— Dragan Armanskij precisa falar com você.

Ela usou um telefone da recepção para falar com seu chefe. Mikael estava a seu lado e de repente viu Lisbeth virar-se para ele com o rosto paralisado.

— O que aconteceu?

— Minha mãe morreu. Preciso voltar.

Lisbeth parecia tão desesperada que Mikael abraçou-a. Ela o afastou. Beberam um café no bar. Quando Mikael disse que mudaria as reservas para a Austrália e a acompanharia a Estocolmo, ela balançou a cabeça.

— Não — disse secamente. — Não podemos abandonar o trabalho agora. Você irá sozinho à Austrália.

Separaram-se em frente ao hotel e cada um tomou o seu ônibus, com destino a aeroportos diferentes.


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