28. TERÇA-FEIRA 29 DE JULHO — SEXTA-FEIRA 24 DE OUTUBRO


Fazia três dias que Mikael Blomkvist estava debruçado sobre as cópias dos fichários de Lisbeth Salander — pastas repletas de documentos. O problema é que as evidências seguiam em todas as direções. Uma negociação com títulos em Londres, outra com moedas estrangeiras em Paris através de um agente. Uma empresa-fantasma em Gibraltar. O saldo de uma conta no Chase Manhattan Bank, em Nova York, de repente multiplicado por dois.

E também vários pontos de interrogação: uma empresa comercial com duzentas mil coroas numa conta sem movimentação aberta cinco anos antes em Santiago do Chile — uma entre trinta outras semelhantes em doze países diferentes — e sem a menor indicação da atividade principal. Empresas em estado latente? A espera de quê? Biombos para ocultar outras atividades? O computador não fornecia respostas para o que Wennerström guardava na cabeça, e que certamente era muito evidente para que precisasse estar num documento eletrônico.

Salander tinha se convencido de que jamais encontrariam resposta para a maior parte dessas questões. Eles podiam ver a mensagem, mas não podiam interpretar seu sentido sem o código. O império Wennerström era como uma cebola cujas peles podiam ser retiradas uma a uma; um conjunto de empresas proprietárias umas das outras. Companhias, contas, fundos, valores. Eles constatavam que ninguém, nem mesmo Wennerström, conseguiria ter uma visão global. O império Wennerström era dotado de vida própria.

Havia uma estrutura, ou pelo menos um esboço de estrutura. Um labirinto de empresas interdependentes. O império Wennerström podia ser avaliado, de acordo com a pessoa que fizesse o cálculo e de acordo com a maneira de calcular, entre 100 bilhões e 400 bilhões de coroas. Mas, no caso de empresas proprietárias umas das outras, que valor têm, afinal, essas empresas?

Quando Lisbeth lançou a pergunta, Mikael olhou-a com um ar atormentado.

— Tudo isso é esotérico — respondeu ele antes de passar ao exame das contas bancárias.


Eles deixaram a ilha de Hedeby às pressas, de manhã, depois que Lisbeth Salander soltou a bomba que agora absorvia Mikael o tempo todo. Foram direto para a casa de Lisbeth e passaram dois dias e duas noites diante do computador dela, enquanto Mikael era conduzido ao universo de Wennerström. Ele tinha muitas perguntas a fazer. Uma delas por pura curiosidade.

— Lisbeth, como você pode pilotar o computador dele?

— E uma pequena invenção fabricada pelo meu colega Praga. Wennerström trabalha num laptop IBM, tanto em casa como no escritório. Isso quer dizer que toda a informação fica guardada num único disco rígido. O cabo de banda larga está na casa dele. Praga inventou uma espécie de tubo que se conecta ao cabo propriamente dito e que venho testando para ele; tudo o que Wennerström vê é registrado por esse tubo, que envia a informação a um servidor em algum lugar.

— Ele não tem um firewall?

— Sim, tem, mas a ideia é que o próprio tubo funcione também como uma espécie de firewall. Demora um pouco para piratear desse modo. Digamos que Wennerström receba um e-mail; ele chega primeiro ao tubo de Praga e podemos lê-lo antes mesmo que seja captado pelo firewall de Wennerström. Mas o engenhoso é que a mensagem é reescrita e injetamos alguns bytes de um código-fonte. A operação repete-se toda vez que ele faz um download em seu computador. A coisa funciona ainda melhor com imagens. Ele navega muito na internet. Sempre que baixa uma foto pornô ou abre um novo site, acrescentamos alguns sinais desse código-fonte. Depois de um certo tempo, algumas horas ou dias, conforme o uso que ele fizer do computador, Wennerström terá baixado um programa inteiro de cerca de três megabytes, em que os bits foram se somando uns aos outros.

— E?

— Depois que os últimos bits foram instalados, o programa se integra ao navegador da internet do laptop. Ele pensa que o computador travou e é obrigado a reiniciar. Ao fazer isso, está carregando um novo programa. Wennerström usa o Microsoft Explorer. Na próxima vez que abrir o Explorer, na verdade abrirá um programa diferente, invisível no seu computador e semelhante ao Explorer. Funciona como o Explorer, mas faz também um monte de outras coisas. Esse programa começa a escanear o computador e envia bits de informação sempre que Wennerström clica no mouse ao navegar. Depois de um tempo, e dependendo do período que ele passa navegando, acumulamos um espelho completo do conteúdo do disco rígido dele num outro servidor. E então que o TH intervém.

— TH?

— É como Praga chamou: Takeover hostil.

— Ah!

— O engenhoso é o que vem a seguir. Quando a estrutura está pronta, Wennerström tem dois discos rígidos completos, um em sua própria máquina e outro no nosso servidor. Na verdade, quando ele inicia o computador, está iniciando o computador-espelho. Não trabalha mais no próprio computador, e sim no nosso servidor. Seu computador vai rodar um pouco mais lento, mas nem se percebe. E, quando estou conectada ao servidor, posso acompanhar o computador dele em tempo real. Toda vez que Wennerström digita uma tecla, aparece no meu monitor.

— Vejo que o seu colega também é um hacker.

— Foi ele que montou a escuta telefônica em Londres. Socialmente falando, é um incompetente, mas na internet é legendário.

— Certo — disse Mikael com um sorriso resignado. — Pergunta número dois: por que não me falou de Wennerström antes?

— Você nunca me pediu.

— E se eu nunca tivesse pedido — digamos que não tivéssemos nos conhecido — então você teria se calado sobre as atividades ilícitas de Wennerström, enquanto a Millennium caía em desgraça?

— Ninguém nunca me pediu para denunciar Wennerström — respondeu Lisbeth com uma voz sentenciosa.

— Mas e se pedissem?

— Ora, já contei a você! — ela retrucou na defensiva. Mikael deixou o assunto de lado.

Mikael estava totalmente absorvido pelo que descobria no computador de Wennerström. Lisbeth gravara o conteúdo do disco rígido de Wennerström

— cerca de cinco gigabytes — nuns dez CDs, e tinha mais ou menos a impressão de ter se mudado para a casa de Mikael. Esperava pacientemente e respondia às perguntas que ele não parava de fazer.

— Não entendo como ele pode ser tão imbecil a ponto de guardar todas as informações dos seus negócios suspeitos num disco rígido — disse Mikael.

— Se caísse nas mãos da polícia...

— As pessoas não são racionais. Eu diria que ele nem imagina que a polícia possa querer confiscar seu computador.

— Acima de qualquer suspeita. Concordo que ele é um sujeito arrogante, mas deve estar bem cercado de consultores em segurança que lhe dizem como lidar com seu computador. Vi arquivos de 1993.

— O computador é bastante recente. Foi fabricado há um ano, mas Wennerström parece ter transferido toda a sua velha correspondência e coisas do gênero para o disco rígido, em vez de salvar em CDs. Mas ele se previne com programas de encriptação.

— Precaução totalmente inútil, já que você está dentro do computador dele e lê as senhas toda vez que ele digita.

Fazia quatro dias que eles tinham voltado a Estocolmo, quando Christer Malm ligou para o celular de Mikael e o despertou às três da manhã.

— Henry Cortez foi a uma festa com uma namorada esta noite.

— Ah, sim? — respondeu Mikael, ainda tonto de sono.

— Antes de voltarem para casa, passaram no bar da Estação central.

— Não é o melhor lugar para namorar.

— Escuta esta: Janne Dahlman está de férias e Henry o viu numa mesa junto com um homem.

— E?

— Henry reconheceu imediatamente o tal homem. Krister Söder.

— O nome me diz alguma coisa, mas...

— Trabalha no Finansmagasinet Monopol, que pertence ao grupo Wennerström — prosseguiu Malm.

Mikael ergueu-se na cama.

— Está me ouvindo?

— Sim, estou. Pode não significar nada. Söder é jornalista, talvez seja um velho colega de Dahlman.

— Talvez eu esteja sendo meio paranóico, mas há três meses a Millennium comprou a reportagem de um freelancer. Uma semana antes de nós a publicarmos, Söder publicou uma notícia quase idêntica. Era o mesmo assunto sobre um fabricante de celulares. Ele ocultava a informação de que utilizavam um componente defeituoso que pode causar curtos-circuitos.

— Entendo. Mas essas coisas acontecem. Comentou isso com Erika?

— Não, ela está viajando, só volta a semana que vem.

— Não faz mal. Volto a te ligar — disse Mikael e desligou o celular.

— Problemas? — perguntou Lisbeth Salander.

— A Millennium — disse Mikael. — Preciso dar uma saída. Quer vir comigo?


A redação estava deserta às quatro da manhã. Lisbeth precisou de três minutos para descobrir o código de acesso do computador de Janne Dahlman e mais dois para transferir seu conteúdo para o notebook de Mikael.

A maior parte dos e-mails, porém, achava-se no laptop pessoal de Dahlman, ao qual não tinham acesso. Mas no computador dele na Millennium Lisbeth encontrou um endereço hotmail de Dahlman, e ela levou seis minutos para entrar na conta dele e transferir toda a sua correspondência do ano anterior. Cinco minutos depois, Mikael tinha provas de que Janne Dahlman deixara vazar informações sobre a situação da Millennium e de que informara o redator do Finansmagasinet Monopol sobre as reportagens que Erika programava publicar nos próximos números. A espionagem prosseguira pelo menos até o outono anterior.

Eles desligaram os computadores e voltaram ao apartamento de Mikael para dormir mais algumas horas. Ele chamou Christer Malm por volta das dez da manhã.

— Tenho provas de que Dahlman trabalha para Wennerström.

— Eu tinha certeza disso. Certo, vou despedir esse canalha ainda hoje.

— Não faça isso. Não faça absolutamente nada. — Nada?

— Christer, confie em mim. Até quando Dahlman estará de férias?

— Ele volta na segunda-feira de manhã.

— Há quantas pessoas na redação hoje?

— Mais ou menos a metade.

— Será que pode anunciar uma reunião para as duas da tarde? Não diga qual o assunto. Estarei aí.

Seis pessoas estavam sentadas em volta da mesa de reunião diante de Mikael. Christer Malm tinha um ar cansado. Henry Cortez exibia aquela felicidade que só os jovens apaixonados de vinte e quatro anos conseguem sentir. Monika Nilsson parecia ansiosa, à espera de revelações bombásticas; Christer Malm não dissera uma palavra sobre o tema da reunião, mas ela já trabalhava na redação havia bastante tempo para entender que algo incomum estava sendo tramado, e não saber de nada a deixava aborrecida. A única que exibia um comportamento normal era Ingela Oskarsson, funcionária de tempo parcial encarregada da administração, das assinaturas e de outras tarefas que lhe ocupavam dois dias da sua semana, embora ela não parecesse muito folgada desde que se tornara mãe dois anos antes. A outra funcionária de tempo parcial era a jornalista freelancer Lotta Karim, com um contrato semelhante ao de Henry Cortez e que acabava de voltar de férias. Christer também conseguira trazer para a reunião Sonny Magnusson, embora ele ainda estivesse de férias.

Mikael começou cumprimentando a todos e desculpando-se por ter estado fora durante o ano.

— Nem Christer nem eu tivemos tempo de informar Erika sobre o que nos preocupa hoje, mas posso garantir que nesse assunto falo também em nome dela. Hoje vamos decidir o futuro da Millennium.

Fez uma pausa e deixou as palavras produzirem efeito. Ninguém fez perguntas.

— Este ano foi pesado. Estou surpreso de que nenhum de vocês tenha ido procurar emprego em outro lugar. Só posso concluir que vocês são ou completamente loucos ou excepcionalmente leais e que gostam de trabalhar na revista. Por isso vou botar as cartas na mesa e pedir uma última contribuição.

— Ultima contribuição? — espantou-se Monika Nilsson. — É como se você tivesse a intenção de fechar a Millennium.

— Isso mesmo — respondeu Mikael. — Quando voltar das férias, Erika convocará nós todos para uma triste reunião, na qual anunciará que a Millennium vai deixar de circular no Natal e que todos serão dispensados.

Desta vez, uma certa inquietação se espalhou no ar. Mesmo Christer Malm acreditou, por um segundo, que Mikael falava sério, antes de notar seu sorriso satisfeito.

— Durante este outono, vocês vão desempenhar um duplo papel. Devo dizer que o nosso caro secretário de redação, Janne Dahlman, andou passando informações nossas para Hans-Erik Wennerström. O que significa que o inimigo está sempre muito bem informado do que se passa aqui, e isso explica muitos dos reveses que sofremos neste ano. Sobretudo você, Sonny, pois alguns anunciantes que pareciam firmes se retiraram subitamente.

— Dahlman, aquele merda! Não me surpreende — disse Monika Nilsson.

Janne Dahlman nunca fora muito popular na redação e a revelação não chegou a chocar ninguém. Mikael interrompeu os murmúrios.

— Só estou contando isso porque tenho inteira confiança em vocês. Trabalhamos juntos há vários anos e sei que vocês têm a cabeça no lugar, por isso sei também que aceitarão participar desse jogo, não importa o que acontecer neste outono. E fundamental que Wennerström seja levado a acreditar que a Millennium está afundando. E o trabalho de vocês será fazê-lo acreditar nisso.

— Qual é a nossa verdadeira situação? — perguntou Henry Cortez.

— Resumindo: foi um período difícil para todos e ainda não estamos livres das dificuldades. Tudo levava a crer que a Millennium ia acabar. Mas garanto que isso não vai acontecer. A Millennium hoje está mais forte do que há um ano. Depois desta reunião, vou desaparecer novamente por dois meses. Lá pelo fim de outubro estarei de volta. Então cortaremos as asas de Hans-Erik Wennerström.

— De que maneira? — quis saber Cortez.

— Sinto muito, mas não posso revelar detalhes. Vou escrever uma nova história sobre Wennerström, só que desta vez faremos tudo direitinho. Então começaremos a preparar a festa de Natal da revista. Espero ter como prato principal do cardápio Wennerström assado e diversos críticos como sobremesa.

A descontração logo tomou conta do ambiente. Mikael se perguntou como estaria se sentindo se estivesse ali, sentado, escutando a si mesmo naquela mesa de reunião. Cético? Provavelmente. Mas parecia que ele contava com um capital de confiança entre os colaboradores da Millennium. Levantou a mão outra vez.

— Para que isso aconteça, é importante que Wennerström acredite que a Millennium está afundando. Não quero que ele monte uma campanha defensiva ou que elimine provas no último minuto. Por isso vamos traçar um roteiro para os próximos meses. Em primeiro lugar, é fundamental que nada do que discutimos aqui hoje seja registrado por escrito em e-mails ou comunicado a alguém fora desta sala. Não sabemos até que ponto Dahlman tem acesso aos nossos computadores, e descobri que é bastante fácil ler os e-mails particulares dos colaboradores. Portanto, faremos tudo verbalmente. Se nas próximas semanas quiserem discutir alguma coisa, falem com Christer na casa dele. Com extrema discrição.

Mikael escreveu numa lousa: nenhuma mensagem eletrônica.

— Em segundo lugar, vocês farão fofocas. Quero que comecem a me denegrir toda vez que Janne Dahlman estiver por perto. Não exagerem. Apenas dêem vazão ao ego naturalmente avacalhador de vocês. Christer, gostaria que você e Erika tivessem uma discussão séria. Usem a imaginação e guardem mistério sobre as razões, mas dêem a impressão de que a revista está rachando e que todos estão se indispondo uns contra os outros.

Ele escreveu Avacalhem na lousa.

— Em terceiro lugar: quando Erika voltar, você, Christer, a informará sobre a trama. Caberá a ela, em seguida, fazer Janne Dahlman acreditar que nosso acordo com o grupo Vanger, que nos mantém à tona no momento, afundou porque Henrik Vanger está gravemente doente e porque Martin Vanger morreu num acidente de carro.

Escreveu a palavra Desinformação.

— Então isso significa que o acordo é sólido? — perguntou Monika Nilsson.

— Pode acreditar em mim — disse Mikael sério. — O grupo Vanger está empenhado em que a Millennium sobreviva. Daqui a algumas semanas, digamos, no final de agosto, Erika convocará uma reunião para avisar das dispensas. E importante que todos entendam que é uma isca e que o único a desaparecer daqui será Janne Dahlman. Mas vocês precisam continuar fingindo. Comecem a dizer que estão procurando emprego e falem da referência ruim que a Millennium representa no currículo.

— E você acha que essa comédia vai salvar a Millennium? — perguntou Sonny Magnusson.

— Tenho certeza que sim. Sonny, quero que faça um relatório mensal fictício mostrando que a tendência dos anunciantes se inverteu nos últimos meses e que o número de assinantes caiu outra vez.

— Vai ser divertido — disse Monika. — Isso vai ficar só dentro da redação ou deixaremos vazar para outras mídias?

— Só dentro da redação. Se a história vazar, saberemos quem é o responsável. Se daqui a alguns meses alguém nos pedir explicações, poderemos simplesmente dizer: Não, meu velho, você ouviu boatos sem fundamento; de modo nenhum, nunca se falou em fechar a Millennium. O melhor que pode acontecer é Dahlman ventilar a informação para outras mídias. Então, ele é que passará por imbecil. Se puderem soprar a Dahlman uma história plausível mas completamente idiota, têm carta branca.

Passaram duas horas montando um roteiro e distribuindo o papel de cada um.

Depois da reunião, Mikael foi tomar um café com Christer Malm no Java, no centro da cidade.

— Christer, é muito importante que vá esperar Erika no aeroporto, para colocá-la a par da situação. Terá que convencê-la a jogar o jogo. Se eu bem a conheço, ela vai querer se confrontar com Dahlman imediatamente, mas isso não pode acontecer. Não quero que Wennerström suspeite de alguma coisa e dê sumiço nas provas.

— Certo.

— E diga a Erika que se mantenha longe do correio eletrônico até ter instalado o encriptador PGP e ter aprendido a utilizá-lo. E provável que, através de Dahlman, Wennerström esteja lendo todos os nossos e-mails internos. Quero que usem o PGP, você e todo mundo na redação. Como se fosse a coisa mais natural. Darei o nome de um técnico de informática, você vai chamá-lo e ele virá dar uma olhada na rede interna e nos computadores da redação. Deixe-o instalar o programa como se fosse um serviço normal.

— Farei o melhor possível. Mas diga, Mikael, o que você está tramando exatamente?

— Vou acabar com a carreira de Wennerström.

— De que maneira?

— Sinto muito, por enquanto é segredo. Só posso dizer que tenho informações sobre ele que farão nossa denúncia anterior parecer uma coisa à-toa.

Christer Malm pareceu incomodado.

— Sempre confiei em você, Mikael. Você não confia em mim? Mikael riu.

— Claro que confio. Mas neste momento estou envolvido numa atividade criminosa muito séria, que pode me valer uns dois anos de prisão. É que os procedimentos da minha pesquisa são, por assim dizer, um pouco duvidosos... Utilizo métodos tão ilícitos quanto os de Wennerström. Não quero que nem você nem Erika nem ninguém da Millennium se envolva nisso.

— Você tem o dom de me deixar preocupado.

— Fique tranquilo. E pode dizer a Erika que essa história vai repercutir. Muito.

— Erika vai querer saber o que você está tramando... Mikael refletiu um segundo, depois sorriu.

— Diga a ela que, na última primavera, ela deixou muito claro para mim, quando assinou o contrato com Henrik Vanger à minha revelia, que eu não passava de um reles e mortal freelancer, sem lugar no conselho administrativo da revista e sem nenhuma influência na linha seguida pela Millennium. Isso também significa que não sou obrigado a informá-la de nada. Mas prometo que, se ela se comportar direitinho, vai ser a primeira a saber da história.

Christer deu uma risada.

— Ela vai ficar furiosa — comentou, divertido.


* * *

Mikael sabia muito bem que não dissera a verdade a Christer Malm: ele estava evitando Erika propositalmente. O normal teria sido avisá-la de imediato das informações de que dispunha. Mas Mikael não queria falar com ela. Chegou a digitar seu número uma dezena de vezes no celular. Sempre desistia.

Sabia qual era o problema: não podia olhá-la nos olhos.

Ter concordado em abafar o caso de Hedestad era jornalisticamente imperdoável. Ele não sabia como explicar isso sem mentir, e se havia uma coisa que nunca queria fazer era mentir para Erika Berger.

Além do mais, não tinha coragem de enfrentar esse problema e ao mesmo tempo atacar Wennerström. Assim adiou o confronto, desligou o celular e poupou-se de falar com ela. Sabia que era um descanso de curta duração.

Logo depois da reunião da redação, Mikael foi se instalar em sua cabana em Sandhamn, onde não punha os pés havia mais de um ano. Na bagagem, levou duas caixas de folhas impressas e os CDs que Lisbeth lhe dera. Fez provisões, trancou-se ali, abriu o notebook e pôs-se a escrever. Todos os dias saía para passear e aproveitava para comprar jornais e mantimentos. Ainda havia muitos veleiros no porto, e vários daqueles jovens que tinham pedido emprestado o barco do papai estavam, como sempre, enchendo a cara no Bar do Mergulhador. Alheio a tudo a sua volta, Mikael passava os dias na frente do computador, desde o momento em que abria os olhos até cair de cansaço à noite.

Mensagem eletrônica encriptada da diretora de publicação erika.berger@millennium.se ao editor licenciado mikael.blomkvist@millennium.se:

[Mikael. Preciso saber o que está acontecendo — entenda, voltei de férias e caí em pleno caos. Primeiro fico sabendo o que Janne Dahlman andou fazendo, depois o jogo duplo que você bolou. Martin Vanger está morto. Harriet Vanger está viva. O que está havendo em Hedeby? Onde você está? Temos uma história para publicar? Por que não atende o celular? E.

P. S. Entendi a sua alfinetada que Christer divertiu-se muito em me transmitir. Você me paga. Está zangado comigo de verdade?]


De mikael.blomkvist@millennium.se

A erika.berger@millennium.se:

[Oi, Ricky. Não, fique tranquila, não estou zangado. Perdoe-me por não ter tido tempo de esclarecer as coisas para você, é que nos últimos meses minha vida virou uma montanha-russa. Contarei tudo quando nos virmos, mas não por e-mail. Agora estou em Sandhamn. Há uma história para ser publicada, mas não se trata de Harriet Vanger. Vou ficar aqui enfurnado por algum tempo. Até terminar, confie em mim. Bjs. M.]


De erika.berger@millennium.se

A mikael.blomkvist@ millennium.se:

[Sandhamn? Vou aí te ver assim que eu puder.]


De mikael.blomkvist@millennium.se

A erika.berger@ millennium.se:

[Não venha já. Espere algumas semanas, pelo menos até eu ter um texto consistente. Além disso, estou esperando uma visita.]


De erika.berger@millennium.se

A mikael.blomkvist@millennium.se:

[Certo, não vou impor a minha presença, claro. Mas tenho o direito de saber o que está acontecendo. Henrik Vanger tornou-se membro do conselho, mas ele não responde quando chamo. Se o acordo com Vanger deu em nada, você precisa me dizer. Não sei o que fazer. Preciso saber se a revista vai continuar ou não. Ricky.

P. S. Como ela se chama?]


De mikael.blomkvist@millennium.se

A erika.berger@millennium.se:

[Primeiro: fique tranquila, Henrik não vai sair. Mas ele teve um infarto sério e só tem trabalhado poucas horas por dia, e suponho que o impacto causado pela morte de Martin e a ressurreição de Harriet absorveu todas as suas forças.

Segundo: a Millennium vai continuar. Estou trabalhando na reportagem mais importante da nossa vida e, quando a publicarmos, liquidaremos Wennerström de uma vez por todas.

Terceiro: minha vida está de pernas para o ar neste momento, mas entre mim, você e a Millennium nada mudou. Confie em mim. Bjs. Mikael.

P. S. Te apresentarei a ela assim que der. Você vai se surpreender.]


Quando Lisbeth Salander chegou a Sandhamn, foi recebida por um Mikael de olheiras e com uma barba de alguns dias. Ele a abraçou rapidamente e pediu que preparasse um café enquanto terminava uma passagem do texto.

Lisbeth deu uma olhada na cabana e percebeu quase imediatamente que se sentia bem ali. O chalezinho ficava junto a um pontão, com o mar a dois metros da porta. Media apenas seis metros por cinco, mas a construção tinha altura suficiente para um mezanino, ao qual se chegava por uma escada em caracol. Lisbeth podia ficar de pé ali, porém Mikael era obrigado a baixar um pouco a cabeça. Ela inspecionou a cama e constatou que era suficientemente larga para os dois.

A cabana tinha uma janela ampla que dava para o mar, bem ao lado da porta de entrada. A mesa da cozinha também servia como mesa de trabalho para Mikael. Na parede ao lado dela, havia uma pequena prateleira com um aparelho de CD e alguns discos de Elvis Presley e de hard rock, dois gêneros que ela não teria posto no topo da sua lista.

Num canto havia um aquecedor a lenha. O resto da mobília resumia-se a um grande armário embutido, para guardar roupas, lençóis e toalhas, e uma bancada de cozinha que prosseguia, separada por uma cortina, até uma pia e um chuveiro. Acima da bancada abria-se uma pequena janela. Sob a escada em caracol, Mikael montara um banheiro com vaso sanitário. Toda a cabana lembrava a cabine de um barco, com arranjos e compartimentos engenhosos.

Na sua investigação particular sobre Mikael Blomkvist, ela dissera que ele mesmo havia reformado a cabana e cuidado da decoração — dedução baseada no e-mail que um amigo de Mikael, impressionado com sua habilidade, lhe enviara após uma visita a Sandhamn. Tudo era limpo, modesto e simples, quase espartano. Ela entendeu por que gostava tanto daquela cabana.

Depois de duas horas, ela conseguiu distrair a atenção de Mikael do trabalho. Ele deixou o computador com ar frustrado, barbeou-se c levou-a para conhecer Sandhamn. O tempo estava chuvoso e ventava, e eles logo foram para o albergue. Mikael contou o que havia escrito, e Lisbeth lhe entregou um CD com informações atualizadas do PC de Wennerström.

Depois voltaram para a cabana, e no mezanino ela conseguiu despi-lo e distraí-lo ainda mais. Lisbeth despertou tarde da noite sozinha na cama e, ao dar uma espiada para baixo, o viu debruçado sobre o teclado. Ficou um bom tempo com a cabeça apoiada na mão, olhando-o. Ele parecia feliz e ela, por sua vez, sentiu-se estranhamente satisfeita com a vida.

Lisbeth só ficou cinco dias. Depois voltou a Estocolmo, atendendo a um chamado de Dragan Armanskij ao telefone, que, desesperado, a convocava para um novo trabalho. Dedicou a esse trabalho onze dias, fez seu relatório e regressou a Sandhamn. A pilha de folhas impressas ao lado do notebook de Mikael crescera.

Desta vez ficou quatro semanas. Eles acabaram criando uma espécie de rotina. Levantavam-se às oito e tomavam o café-da-manhã juntos por uma hora. A seguir, Mikael trabalhava intensamente até depois do meio-dia quando, então, saíam para passear e conversar. Lisbeth passava a maior parte do dia na cama lendo livros ou navegando na internet pelo modem ADSL de Mikael. Evitava perturbá-lo durante o dia. Jantavam bem tarde e somente então Lisbeth tomava a iniciativa e o forçava a subir até o mezanino, onde queria todo tipo de atenção dele.

Lisbeth tinha a impressão de viver as primeiras férias de sua vida.

Mensagem eletrônica encriptada de erika.berger@millennium.se a mikael.blomkvist@millennium.se:

[Oi, Mikael. E oficial agora, Janne Dahlinan pediu demissão e começa a trabalhar no Finansmagasinet Monopol dentro de três semanas. Segui suas instruções, não disse nada e todos estão representando a farsa. E.

P. S. De qualquer maneira, todos estão se divertindo um bocado. Outro dia, Henry e Lotta trocaram injúrias a ponto de quase se agredir. Levaram a brincadeira tão longe com Dahlman que me espanta ele não ter sacado que era um blefe.]


De mikael.blomkvist@millennium.se

A erika.berger@millennium.se:

[Deseje-lhe boa sorte e deixe-o ir embora. Mas guarde a prataria num armário fechado a chave. Bjs. M.]


De erika.berger@millennium.se

A mikael.blomkvist@millennium.se:

[Estou sem secretário de redação a duas semanas de sair o próximo número e meu repórter investigativo está recolhido em Sandhamn e se recusa a falar comigo. Micke, ponho-me de joelhos. Será que pode nos ajudar? Erika.]


De mikael.blomkvist@millennium.se

A erika.berger@millennium.se:

[Aguente mais algumas semanas, e aí chegaremos a um porto tranquilo. E comece a preparar o número de dezembro, que será diferente de tudo o que já publicamos. Meu texto ocupará cerca de quarenta páginas da revista. M.]


De erika.berger@millennium.se

A mikael.blomkvist@millennium.se:

[Quarenta páginas!!! Você ficou louco?]


De mikael.blomkvist@millennium.se

A erika.berger@millennium.se:

[Será uma edição temática. Preciso de mais três semanas. Será que você pode: (1) criar uma estrutura editorial em nome da Millennium, (2) conseguir um número ISBN, (3) pedir a Clirister a criação de um belo logotipo para nossa nova editora e (4) encontrar uma boa gráfica que possa lançar um livro de bolso rápido e barato? Aliás, precisaremos de dinheiro para os custos de impressão do nosso primeiro livro. Bjs. Mikael.]


De erika.berger@millennium.se

A mikael.blomkvist@ millennium.se:

[Edição temática. Editora. Custos de impressão. As suas ordens, meu comandante. Que mais quer que eu taça? Dançar nua na Slussplan? E.

P. S. Suponho que saiba o que está fazendo. Mas o que eu faço com Dahl-man?]


De mikael.blomkvist@millennium.se

A erika.berger@millennium.se:

[Não faça nada com Dahlman. Deixe-o ir embora. O Monopol não sobreviverá por muito tempo. Arranje substitutos para esse número. E contrate uni novo secretário de redação, pelo amor de Deus! M.

P. S. Gostaria muito de te ver dançar nua na Slussplan,]


De erika.berger@millennium.se

A mikael.blomkvist@millennium.se:

[Para o strip-tease em público, não conte comigo. Mas sempre fizemos as contratações juntos. Ricky.]


De mikael.blomkvist@millennium.se

A erika.berger@millennium.se:

[Sempre estivemos de acordo sobre a pessoa a contratar. E continuaremos de acordo, seja quem for que você contrate. Vamos encurralar Wennerström. A história toda é essa. Mas deixe-me terminá-la em paz. M.)


No começo de outubro, Lisbeth Salander leu um pequeno artigo que encontrou no site do Hedestads-Kuriren, e informou Mikael. Isabella Vanger havia falecido após uma breve doença. Sua morte era lamentada pela filha, Harriet Vanger, que recentemente voltara da Austrália.


Mensagem eletrônica encriptada de erika.berger@millennium.se a mikael.blomkvist@millennium.se.


[Oi, Mikael.

Harriet Vanger passou hoje na redação para me ver. Telefonou cinco minutos antes de chegar e me pegou totalmente desprevenida. Uma bela mulher, muito elegante e de olhar frio.

Veio anunciar que participaria do conselho administrativo no lugar de Martin Vanger, que estava substituindo Henrik. Mostrou-se cortês, amável, e me garantiu que o grupo Vanger não tem nenhuma intenção de abandonar nosso acordo; ao contrário, a família apoia os compromissos de Henrik com a revista. Pediu para ver a redação e quis saber como estavam as coisas.

Eu disse a verdade. Que tenho a impressão de estar andando sobre areia movediça, que você me proibiu de ir a Sandhamn e que eu não sei sobre o que você está escrevendo, a não ser que espera encurralar Wennerström. (Acho que eu podia dizer isso. Afinal, ela faz parte do conselho.) Ela levantou uma sobrancelha, sorriu e perguntou se eu tinha dúvidas sobre o seu êxito. Como responder a essa pergunta? Eu disse que estaria bem mais calma se soubesse o que você está tramando. E que evidentemente confio em você, mas que você me deixa louca!

Perguntei se ela sabia o que você está escrevendo. Ela respondeu que não, mas acrescentou que o achava muito perspicaz, com uma maneira de refletir inovadora (palavras dela).

Eu também disse ter concluído que algo de dramático havia acontecido em Hedestad no passado, e que estava muito curiosa para saber mais. Ela respondeu que eu e você parecíamos ter uma relação especial e que você me contaria tudo assim que tivesse tempo. Depois me perguntou se podia confiar em mim. O que eu podia dizer? Ela faz parte do conselho da Millennium e você não me deu nenhuma informação para que eu pudesse estabelecer uma conduta nesse caso.

Então ela disse uma coisa estranha: me pediu que eu não julgasse nem a ela nem a você com demasiada severidade. Que tinha uma dívida de gratidão com você e que gostaria muito de que ela e eu fôssemos amigas. E prometeu me contar a história oportunamente, se você não contasse. Acho que gosto muito dela, mas não sei muito bom se posso confiar. Erika.

P. S. Sinto sua falta. Tenho a impressão de que aconteceu algo terrível em Hedestad. Christer disse que você está com uma marca estranha — de estrangulamento? — no pescoço.]


De mikael.blomkvist@millennium.se

A erika.berger@millennium.se:

[Oi, Ricky. A história de Harriet é tão triste, tão lamentável, que você nem vai acreditar. Seria melhor que ela mesma te contasse. De minha parte, coloquei-a um pouco de lado na minha cabeça.

Mas pode confiar em Harriet Vanger, eu garanto. Ela é sincera quando diz ter uma dívida de gratidão comigo, e pode crer que ela nunca fará nada que possa prejudicar a Millennium. Se gosta dela, seja sua amiga; se não gosta, deixe pra lá. Mas ela merece respeito. É uma mulher que passou por duras provas e sinto uma grande simpatia por ela. M.]


No dia seguinte, Mikael recebeu mais um e-mail.


De harriet.vanger@vangerindustries.com

a mikael.blomkvist@millennium.se:

[Oi, Mikael. Há semanas venho tentando encontrar uma horinha para te dar notícias, mas o tempo passa rápido. Você saiu tão depressa de Hedeby que nem pude me despedir.

Desde que voltei à Suécia, estou soterrada por uma quantidade de impressões e por muito trabalho. As empresas Vanger estão um caos só, e trabalhei duro com Henrik para pôr ordem nos negócios. Ontem visitei a Millennium; daqui em diante representarei Henrik no conselho. Ele me descreveu em detalhe a situação da revista e a sua.

Espero que aceite me ver desembarcar assim. Se não me quer no conselho (ou a alguém mais da família), vou entender, mas garanto que farei tudo para servir a Millennium. Tenho uma enorme dívida com você e asseguro que minhas intenções serão sempre as melhores. Conheci sua amiga Erika Berger. Não sei muito bem qual foi a opinião dela a meu respeito e fiquei surpresa de que não tenha contado a ela o que aconteceu.

Quero muito ser sua amiga. Se está disposto, é claro, a frequentar os membros da família Vanger. Um abraço. Harriet.

P. S. Erika deu a entender que você pretende atacar novamente Wennerström. Dirch Frode me contou como Henrik te levou na conversa. Que posso dizer? Apenas que sinto muito. Se houver algo que eu possa fazer, diga-me.]


De mikael.blomkvist@millennium.se

A harriet.vanger@vangerindustries.com

[Oi, Harriet. Desapareci de repente de Hedeby e neste momento estou trabalhando no que deveria ter feito este ano. Você será informada antes de o texto ir para a impressão, mas acho que posso adiantar que os problemas deste último ano logo vão terminar.

Espero que você e Erika se tornem amigas e evidentemente não há problema nenhum de você "desembarcar" no conselho da Millennium. Vou contar o que aconteceu a Erika. Só que neste momento não tenho disposição nem tempo, ainda gostaria de manter uma certa distância.

Continuamos em contato. Um abraço. Mikael.]


Lisbeth não mostrava muito interesse pelo que Mikael estava escrevendo. Ela levantou a cabeça do seu livro. Mikael acabara de dizer algo que ela não ouvira. Pediu que ele repetisse.

— Desculpe. Estava pensando em voz alta. Eu dizia que é o cúmulo.

— O que é o cúmulo?

— Wennerström teve um caso com uma servente de vinte e dois anos que ele engravidou. Não leu a correspondência dele com o advogado?

— Querido Mikael, existem dez anos de correspondências, e-mails, contratos, relatórios de viagens e não sei mais o que no disco rígido. O seu Wennerström não me fascina a ponto de eu querer guardar na cabeça seis gigas de bobagens. Li uma parte ínfima, apenas para satisfazer a minha curiosidade, e foi o suficiente para entender que esse cara é um gângster.

— Concordo. Mas escute isso: ele a engravidou em 1997. Quando ela exigiu uma compensação, os advogados de Wennerström despacharam alguém para convencê-la a abortar. Suponho que a intenção era oferecer-lhe dinheiro, mas ela não aceitou. Então a persuasão tomou outro caminho: um capanga qualquer manteve a cabeça dela mergulhada numa banheira até que aceitasse deixar Wennerström em paz. E esse advogado idiota do Wennerström escreveu isso num e-mail! Encriptado, é verdade, mas mesmo assim... O nível de inteligência dessa gente é muito baixo.

— O que aconteceu com a moça?

— Abortou. Wennerström ficou satisfeito.

Lisbeth Salander não disse nada durante dez minutos. Seus olhos ficaram de repente sombrios.

— Mais um homem que odiava as mulheres — murmurou enfim. Mikael não a ouviu.

Ela pegou os CDs e passou os dias seguintes vasculhando o correio eletrônico de Wennerström, assim como outros documentos. Enquanto Mikael continuava seu trabalho, Lisbeth estava no mezanino com seu Powerbook sobre os joelhos, refletindo sobre o estranho império Wennerström.

Ocorrera-lhe um pensamento curioso, do qual agora não conseguia mais se afastar. Antes de mais nada, perguntou-se por que não havia tido essa ideia antes.


Num dia de fins de outubro, Mikael imprimiu a última página e desligou o computador por volta das onze da manhã. Sem uma palavra, subiu até o mezanino e entregou a Lisbeth uma pilha de papéis. Depois foi dormir. Ela o despertou no final da tarde e passou-lhe suas observações.

Pouco depois das duas da manhã, Mikael fez uma última correção no texto.

No dia seguinte, fechou as janelas da cabana e trancou a porta. As férias de Lisbeth haviam terminado. Voltaram juntos para Estocolmo.


Antes de chegar a Estocolmo, Mikael precisava conversar com Lisbeth sobre uma questão delicada. Entrou no assunto quando tomavam café na balsa de Vaxholm.

— A questão é o que devo contar a Erika. Ela vai se recusar a publicar isto se eu não explicar como obtive as informações.

Erika Berger! A amante de Mikael há muitos anos e sua chefe. Lisbeth nunca a vira e não tinha muita certeza se queria vê-la. Erika Berger era um ligeiro aborrecimento em sua vida.

— O que ela sabe de mim?

— Nada. — Ele suspirou. — Venho evitando Erika desde o verão. Não consegui contar a ela o que houve em Hedestad porque estou muito envergonhado. Ela está frustrada com a pouca informação que lhe dei. Sabe, evidentemente, que me recolhi em Sandhamn para escrever esse texto, mas não faz ideia do seu conteúdo.

— Humm.

— Daqui a algumas horas ela estará com o texto nas mãos e vai me encher de perguntas. A questão é: o que devo dizer a ela?

— O que você tem vontade de dizer?

— A verdade.

Uma ruga surgiu entre as sobrancelhas de Lisbeth.

— Escute, Lisbeth: eu e Erika discutimos o tempo todo, isso já é um hábito nosso. Mas temos uma confiança ilimitada um no outro. Ela é absolutamente confiável. Você é uma fonte. Ela preferiria morrer a traí-la.

— E a quem mais você vai precisar contar?

— A ninguém mais. Nós dois levaremos isso para o túmulo. Se você se opuser, não revelarei o segredo a ela. Contudo, não tenho a intenção de mentir para Erika e de inventar uma fonte.

Lisbeth refletiu até a balsa atracar ao pé do Grande Hotel. Análise das consequências. Com relutância, ela acabou permitindo que Mikael a apresentasse a Erika. Ele ligou o celular e chamou.


Erika recebeu o telefonema de Mikael em meio a um almoço profissional com Malu Eriksson, que ela pretendia contratar como secretária de redação. Malu tinha vinte e nove anos e havia trabalhado como substituta durante cinco anos. Nunca teve emprego fixo e começava a perder as esperanças de encontrar um. Nenhum anúncio havia sido feito para o cargo; Erika entrou em contato com Malu através de um velho colega jornalista. Chamou-a no mesmo dia em que Malu terminava uma substituição, para saber se lhe interessava um bico na Millennium.

— É apenas por três meses — disse Erika. — Mas, se der certo, posso vir a contratá-la.

— Ouvi boatos de que a Millennium em breve vai fechar.

— Não acredite em boatos.

— Esse Dahlman que devo substituir... — Malu hesitou. — Ele vai para um dos jornais de Hans-Erik Wennerström...

Erika assentiu com a cabeça.

— Não é segredo para ninguém nesse meio que estamos em litígio com Wennerström. Ele não gosta de pessoas que trabalham na Millennium.

— Isso significa que, se eu aceitar o cargo, também vou ser incluída nessa categoria.

— É muito provável que sim.

— Mas Dahlman conseguiu trabalho no Finansmagasinet...

— Pode-se dizer que é a retribuição de Wennerström pelos serviços prestados por Dahlman. Ainda está interessada?

Malu refletiu um instante e depois assentiu com a cabeça.

— Quer que eu comece quando?

Foi nesse momento que Mikael Blomkvist chamou, interrompendo a entrevista de contratação.


Erika utilizou as próprias chaves para abrir a porta do apartamento de Mikael. Era a primeira vez, desde a breve aparição dele no final de junho, que ela o encontrava. Entrou na sala e viu uma jovem de uma magreza anoréxica sentada no sofá, vestindo uma jaqueta de couro gasto e com os pés apoiados na mesinha de centro. A princípio, deu uns quinze anos à moça, até ver seus olhos. Contemplava essa aparição quando Mikael chegou trazendo café e biscoitos.

Mikael e Erika se examinaram.

— Desculpe meu comportamento estranho — disse Mikael.

Erika inclinou a cabeça para o lado. Alguma coisa havia mudado em Mikael. Parecia mais sofrido, mais magro. Seus olhos estavam envergonhados, e por um breve segundo ele evitou o olhar dela. Erika olhou para o pescoço, onde se via uma mancha amarelada, pálida mas muito distinta.

— Andei evitando você. É uma longa história e não estou muito orgulhoso do meu papel nela. Mas falaremos disso mais tarde... Agora, gostaria de apresentá-la a essa jovem. Erika, essa é Lisbeth Salander. Lisbeth, Erika Berger é a diretora de publicação da Millennium e minha melhor amiga.

Lisbeth observou as roupas elegantes e a aparência segura de Erika, e em menos de dez segundos concluiu que ela não seria sua melhor amiga.


A reunião durou cinco horas. Erika telefonou duas vezes para desmarcar outras reuniões. Dedicou uma hora à leitura de algumas partes do texto que Mikael lhe pôs nas mãos. Tinha mil perguntas a fazer, mas percebeu que levaria semanas antes de obter uma resposta. O importante era o texto, que ela acabou colocando a seu lado. Se uma parte mínima daquelas afirmações fosse correta, eles estavam diante de uma situação totalmente nova.

Erika olhou para Mikael. Nunca duvidara da honestidade dele, mas bastou um segundo para sentir uma vertigem e se perguntar se o caso Wennerström não teria afetado a mente dele — se não o fizera imaginar coisas. No mesmo instante, Mikael lhe mostrou duas caixas cheias de dados impressos. Erika empalideceu. Naturalmente quis saber como havia obtido aquele material.

Foi preciso um bom tempo para convencê-la de que a estranha jovem, que ainda não pronunciara uma só palavra, tinha acesso irrestrito ao computador de Hans-Erik Wennerström. E não só isso: também havia pirateado vários dos computadores de seus advogados e colaboradores próximos.

A reação natural de Erika foi dizer que eles não podiam utilizar esse material, pois fora obtido por meios ilícitos.

Mas isso não era um empecilho. Mikael lembrou-a de que eles não eram obrigados a declarar como haviam obtido as informações. Podiam muito bem contar com uma fonte que tivera acesso ao computador de Wennerström e copiara seu disco rígido em alguns CDs.

Erika logo se deu conta da arma que tinha nas mãos. Sentia-se exausta e gostaria de fazer algumas perguntas, mas não sabia por onde começar. Por fim, deixou-se cair no sofá e balançou a cabeça.

— Mikael, o que aconteceu em Hedestad?

Lisbeth Salander levantou vivamente a cabeça. Mikael ficou em silêncio por um longo tempo. Respondeu fazendo outra pergunta.

— Como está se entendendo com Harriet Vanger?

— Bem, eu acho. Estive com ela duas vezes. Christer e eu fomos a Hedestad na semana passada para uma reunião do conselho administrativo. Exageramos um pouco no vinho, ficamos bem embriagados.

— E como foi a reunião?

— Harriet cumpre suas promessas.

— Ricky, sei que você está frustrada de ver que estou me esquivando e inventando pretextos para não falar. Nunca tivemos segredos um para o outro e, de repente, tenho seis meses da minha vida que... não consigo te contar.

Erika olhou Mikael bem nos olhos. Conhecia-o de cor, mas o que viu em seus olhos era algo completamente novo. Ele parecia suplicar, implorar que ela não perguntasse. Ela abriu a boca e olhou para ele totalmente desamparada. Lisbeth observava essa conversa muda com um olhar neutro. Não se intrometeu.

— Foi tão catastrófico assim?

— Pior. Tenho medo dessa conversa. Prometo te contar, mas passei vários meses reprimindo meus sentimentos e deixando meu interesse se voltar todo para Wennerström... Ainda não estou inteiramente preparado. Preferiria que Harriet tivesse te contado.

— O que são essas marcas no pescoço?

— Lisbeth salvou a minha vida. Se não fosse ela, eu estaria morto agora. Erika arregalou os olhos. Ela olhou a moça da jaqueta de couro.

— E agora você precisa fazer um acordo com ela. Ela é a nossa fonte. Erika ficou imóvel durante um bom tempo, refletindo. Então fez uma coisa que desconcertou Mikael e chocou Lisbeth, e que surpreendeu a ela própria também. O tempo todo em que estivera junto à mesa da sala de Mikael, ela sentira o olhar de Lisbeth Salander. Uma moça taciturna com vibrações hostis.

Erika levantou-se, contornou a mesa e tomou Lisbeth nos braços. Lisbeth defendeu-se como uma minhoca sendo enfiada num anzol.


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