9. SEGUNDA-FEIRA 6 DE JANEIRO – QUARTA-FEIRA 8 DE JANEIRO
Mikael continuou lendo até o amanhecer e levantou-se tarde no Dia de Reis. Um Volvo azul-marinho, último tipo, estava estacionado diante da casa de Henrik Vanger. No momento em que Mikael punha a mão na maçaneta da porta, ela se abriu e um homem de uns cinquenta anos saiu. Por pouco não colidiram. O homem parecia apressado.
— Sim, posso ajudá-lo?
— Vim ver Henrik Vanger — respondeu Mikael.
O olhar do homem se abrandou. Ele sorriu e estendeu a mão.
— Você deve ser Mikael Blomkvist, o homem que vai ajudar Henrik a fazer a crônica da família, não?
Mikael assentiu com a cabeça e apertou-lhe a mão. Aparentemente, Henrik já começara a espalhar a história que, para todos os efeitos, explicaria a presença de Mikael em Hedestad. O homem tinha excesso de peso — resultado dos muitos anos de estresse em escritórios e salas de reunião —, mas Mikael notou imediatamente em seu rosto traços que lembravam Harriet Vanger.
— Sou Martin Vanger — ele confirmou. — Bem-vindo a Hedestad.
— Obrigado.
— Vi você na televisão não faz muito tempo.
— Tenho a impressão de que o mundo todo me viu na televisão.
— Wennerström não é... muito popular nesta casa.
— Foi o que Henrik me disse. Estou esperando o desenrolar da história.
— Ele me contou outro dia que o havia contratado. — Martin Vanger deu uma risada. — Disse-me que foi provavelmente por causa de Wennerström que você aceitou este trabalho.
Mikael hesitou um segundo antes de se decidir a falar com franqueza.
— Admito que é uma das razões. Mas, para ser franco, estava precisando me afastar de Estocolmo, e Hedestad apareceu na hora certa, acho. Não posso fazer de conta que o processo não existiu. Terei que cumprir uma pena de prisão.
Martin Vanger assentiu com a cabeça e voltou a ficar sério.
— Você tem a possibilidade de recorrer?
— No meu caso não adiantaria nada. Martin consultou seu relógio.
— Preciso estar em Estocolmo hoje à noite. Estou com pressa, voltarei dentro de alguns dias. Vá jantar lá em casa qualquer dia. Tenho muita vontade de ouvir o que realmente se passou nesse processo.
Apertaram-se de novo as mãos antes de Martin descer e abrir a porta do Volvo. Ele se virou e disse a Mikael:
— Henrik está no andar de cima. Vá até lá.
Henrik Vanger estava sentado no sofá de seu escritório com o Hedestads-Kuriren, o Dagens Industri, o Svenska Dagbladet e os dois jornais vespertinos sobre a mesa diante dele.
— Encontrei Martin na entrada.
— Está partindo em socorro do império — respondeu Henrik, brandindo a garrafa térmica. — Café?
— Sim, aceito — respondeu Mikael. Sentou-se, perguntando-se por que Henrik Vanger parecia divertir-se tanto.
— Estão falando de você no jornal.
Henrik Vanger empurrou um dos jornais da noite, aberto na manchete "Curto-circuito jornalístico". O artigo era escrito por um ex-cronista do Finansmagasinet Monopol, o perfeito insípido de terno e gravata, especialista na arte de denegrir todos os que se engajavam em alguma causa ou que ousavam levantar a cabeça. Feministas, anti-racistas e militantes do meio ambiente podiam contar com suas farpas, sem que ele próprio emitisse nenhuma opinião passível de controvérsia. Mas agora, aparentemente, convertera-se em crítico; semanas após o julgamento do caso Wennerström, passou a focalizar suas energias contra Mikael Blomkvist, que descrevia com todas as letras como um verdadeiro idiota. Erika Berger era pintada como um vaso decorativo da mídia, perfeitamente incompetente:
Corre o rumor de que a Millennium está sucumbindo, embora sua diretora seja uma feminista de minissaia e desfile seu mau humor na tevê. Por vários anos a revista sobreviveu da imagem que a redação conseguiu vender — a de jovens repórteres ávidos por investigações que desmascaram os vigaristas do mundo dos negócios. O truque comercial talvez funcione com jovens anarquistas desejosos de ouvir essa mensagem, mas não funciona no tribunal. E o Super-Blomkvist acaba de comprovar isso.
Mikael verificou no celular se havia alguma chamada de Erika. Não havia nenhuma. Henrik Vanger esperava, silencioso. Mikael percebeu de repente que o velho pretendia que ele interrompesse o silêncio.
— Ele é um cretino — disse Mikael.
Henrik riu, mas acrescentou um comentário desprovido de qualquer sentimentalismo:
— É possível. Mas não foi ele que foi condenado pela Justiça.
— É verdade. E também nunca será. Não é o tipo que gosta de investigar, pega sempre o trem em marcha e joga a última pedra nos termos mais degradantes possíveis.
— Cansei de encontrar gente assim na minha vida. Um bom conselho, se é que quer aceitar um conselho meu: ignore-o quando ele estiver provocando, nunca esqueça nada e dê-lhe o troco quando puder. Mas não agora que ele ataca em posição de força.
Mikael o interrogou com o olhar.
— Tive numerosos inimigos ao longo dos anos e aprendi uma coisa: não aceitar o combate quando é certo que se vai perder. Em compensação, jamais dê folga a quem o demoliu. Seja paciente e responda quando estiver em posição de força, mesmo que não haja mais necessidade de responder.
— Obrigado por essa aula de filosofia. Mas agora gostaria que me falasse da sua família. — Mikael colocou um gravador na mesa entre os dois e acionou a tecla.
— O que deseja saber?
— Li o primeiro arquivo, sobre o desaparecimento de Harriet e as buscas dos primeiros dias. Mas há tantos Vanger que não consigo distinguir um do outro.
Imóvel no hall do elevador vazio, Lisbeth Salander permaneceu durante cerca de dez minutos com o olhar fixo na placa de metal amarelo que anunciava Dr. N. E. Bjurman, advogado, antes de tocar a campainha. A fechadura da porta emitiu um pequeno estalo.
Era terça-feira. Era o segundo encontro e ela tinha maus pressentimentos.
Não que tivesse medo do dr. Bjurman — Lisbeth Salander raramente tinha medo das pessoas ou das coisas. Mas sentia um profundo mal-estar diante desse novo tutor. O predecessor de Bjurman, o dr. Holger Palmgren, tinha uma índole bem diferente; correto, cortês e amável. Sua relação com ele terminara brutalmente três meses antes, Palmgren sofrera um derrame cerebral. E Nils Erik Bjurman o sucedera segundo uma lógica administrativa que ela não entendia.
Durante os doze anos em que Lisbeth Salander foi objeto de cuidados sociais e psiquiátricos, dois deles passados numa clínica pediátrica, em nenhum momento ela respondeu — nem uma vez sequer — à simples pergunta "Como você está se sentindo hoje?".
Lisbeth Salander tinha treze anos quando o tribunal de primeira instância, cumprindo a lei de proteção a menores, decidiu que ela deveria ser internada na clínica de psiquiatria infantil Sankt Stefan, em Uppsala. A decisão se baseava principalmente num parecer segundo o qual ela apresentava distúrbios psiquiátricos e era considerada potencialmente perigosa para seus colegas de classe e eventualmente para si mesma.
Essa suposição se apoiava mais em julgamentos empíricos do que numa análise cuidadosa. Cada tentativa de médicos e professores para iniciar uma conversa sobre seus sentimentos, seus pensamentos ou seu estado de saúde sempre esbarrara, para grande frustração deles, num silêncio compacto, obtuso e num olhar obstinadamente dirigido ao chão, ao teto e às paredes. Ela cruzava os braços de modo sistemático e se recusava a participar de testes psicológicos. Sua total resistência a todas as tentativas de medi-la, pesá-la, cartografá-la, analisá-la e educá-la se aplicava também aos trabalhos escolares — as autoridades podiam levá-la a uma sala de aula e acorrentá-la à carteira, mas não podiam impedi-la de tapar os ouvidos e de se recusar a pegar uma caneta na hora dos testes. Ela deixou a escola sem um boletim de avaliação.
O simples estabelecimento de um diagnóstico sobre seus problemas mentais revelou-se, portanto, algo complicado. Lisbeth Salander era tudo, menos uma pessoa manejável.
Tinha treze anos quando foi tomada também a decisão de atribuir-lhe um administrador ad hoc para zelar por seus interesses e bens até a maioridade. O administrador designado, o advogado Holger Palmgren, apesar de um começo relativamente difícil, foi bem-sucedido onde psiquiatras e médicos fracassaram. Aos poucos, ganhou não apenas uma certa confiança mas também uma pequena afeição dessa menina complicada.
Quando completou quinze anos, os médicos puseram-se mais ou menos de acordo sobre ela não ser violenta e perigosa e não constituir um perigo para si mesma. Como sua família fora declarada incompetente, e não havendo mais ninguém que pudesse se responsabilizar por seu bem-estar, decidiu-se que Lisbeth Salander poderia deixar a clínica de Uppsala e retornar à sociedade por intermédio de uma família substituta.
A operação não foi simples. Ela fugiu da casa da primeira família substituta já na segunda semana. As famílias número 2 e número 3 também foram descartadas rapidamente. Palmgren teve então uma conversa séria com ela e explicou que, se prosseguisse naquele caminho, fatalmente acabaria voltando a uma instituição. A falsa ameaça fez que ela aceitasse a família número 4 — um casal idoso que morava em Midsommarkransen.
Isso não quis dizer que ela se transformou em uma moça bem-comportada. Com dezessete anos, Lisbeth Salander foi detida pela polícia quatro vezes, duas delas num estado de embriaguez tão avançado que precisou ser levada ao hospital, e uma vez sob o efeito de drogas. Numa dessas ocasiões, encontraram-na completamente bêbada e com as roupas em desordem no banco traseiro de um carro estacionado na Söder Mälarstrand. Estava acompanhada de um homem também embriagado e consideravelmente mais velho que ela.
A última intervenção ocorrera três semanas antes de ela completar dezoito anos, quando desferiu um pontapé na cabeça de um passageiro na estação de metrô de Gamla Stan. Estava perfeitamente sóbria. O incidente lhe valeu um indiciamento por insulto e agressão. Salander justificou o gesto dizendo que o homem a bolinara e, como sua aparência era de alguém de doze e não de dezoito anos, ela achou que o bolinador tinha tendências pedófilas. Na medida, é claro, em que conseguiu explicar alguma coisa. Contudo, suas declarações foram sustentadas por testemunhas e o promotor arquivou o caso.
Mesmo assim, com base em informações sobre seu passado, o tribunal ordenou um exame psiquiátrico. Fiel a seus hábitos, ela se recusou a responder às perguntas e a participar dos exames, e os médicos consultados pela direção de Saúde e Assistência Social acabaram dando um parecer sobre "suas observações da paciente". O que exatamente se podia observar no caso de uma jovem sempre calada, sentada de braços cruzados e com expressão amuada, era um tanto vago. Ficou estabelecido apenas que ela sofria de problemas psíquicos que requeriam tratamento. O relatório médico-legal preconizava um acompanhamento numa instituição psiquiátrica. Paralelamente, um subdiretor da comissão de assistência social redigiu um relatório no qual constavam as conclusões da perícia psiquiátrica.
Referindo-se ao quadro de Lisbeth Salander, o relatório mencionava um grande risco de abuso de álcool ou de drogas e falta de instinto de preservação. Seu caso era descrito em termos categóricos: introvertida, socialmente limitada, ausência de empatia, egocêntrica, comportamento psicopata e anti-social, dificuldades de colaboração e de aprendizado. Quem lesse o dossiê podia facilmente concluir que ela tinha um grave retardo. Outro fato também a prejudicava: a equipe de intervenção dos serviços sociais a observara diversas vezes na companhia de diferentes homens nos arredores da rua Mariatorget. Certa vez, fora também interpelada no parque Tantolunden, de novo acompanhada de um homem consideravelmente mais velho. Supunha-se que, de uma forma ou de outra, Lisbeth Salander praticava, ou corria o risco de começar a praticar, a prostituição.
No dia em que o tribunal de primeira instância — a jurisdição à qual cabia determinar seu futuro — se reuniu para tomar uma decisão sobre o caso, a saída parecia traçada de antemão. Sendo manifestamente uma jovem com problemas, era pouco provável que os magistrados seguissem outro caminho que não as recomendações dadas pelo inquérito social e pelo inquérito de psiquiatria legal.
Na manhã do dia em que deveria comparecer ao tribunal, foram buscar Lisbeth Salander na clínica psiquiátrica onde ela estava internada desde o incidente na estação de Gamla Stan. Ela se sentia como um boi no matadouro, sem a menor esperança de sobrevivência. A primeira pessoa que avistou na sala de audiência foi Holger Palmgren, e ela demorou um momento até entender que ele não estava ali na qualidade de administrador, mas como seu advogado e conselheiro jurídico. Descobriu então um novo aspecto desse homem.
Para sua grande surpresa, Palmgren estava a seu lado no canto do ringue e argumentou vigorosamente contra a proposta de internação. Ela não deixou transparecer surpresa nem sequer erguendo uma sobrancelha, mas escutou intensamente cada palavra pronunciada por ele. Palmgren mostrou-se brilhante durante as duas horas em que interrogou o dr. Jesper H. Löderman, o médico que assinara a recomendação de encerrar Salander numa instituição. Tudo o que o relatório dizia foi discutido e o médico chamado a explicar o fundamento científico de cada afirmação. Aos poucos ficou evidente, visto que a paciente se recusara a se submeter aos testes, que as conclusões médicas se baseavam apenas em suposições e não numa certeza.
No final das deliberações do tribunal, Palmgren deu a entender que, muito provavelmente, uma internação coercitiva não apenas se opunha às decisões do Parlamento sobre questões desse gênero mas também podia se tornar um cavalo de batalha para os políticos e a mídia. Portanto, era do interesse de todos encontrar uma alternativa conveniente. Tal linguagem não era habitual nas deliberações desse tipo de caso, e os membros do tribunal manifestaram certa inquietação.
A solução foi, de fato, um acordo político. O tribunal de primeira instância estabeleceu que Lisbeth Salander sofria de doença mental, mas que sua loucura não requeria necessariamente internação. Em troca, levou-se em conta a recomendação, feita pelo diretor da assistência social, de uma tutela. Ao que o presidente do tribunal se virou com um sorriso venenoso em direção a Holger Palmgren, que até então fora o administrador ad hoc de Salander, perguntando-lhe se aceitava assumir esse papel. O presidente esperava evidentemente que o advogado recuasse e tentasse tirar o corpo fora, mas Palmgren declarou, ao contrário, que se encarregaria com prazer da tarefa de tutoriar a srta. Salander — com uma condição.
"Isso pressupõe, evidentemente, que a senhorita Salander tenha confiança em mim e me aceite como tutor."
E virou-se para ela. Lisbeth Salander estava um pouco perplexa após as trocas de réplicas disparadas acima de sua cabeça ao longo de toda a jornada. Até então, nunca ninguém pedira sua opinião. Ela olhou demoradamente para Holger Palmgren e então assentiu com a cabeça uma vez.
Palmgren era uma mistura estranha de jurista e trabalhador social da velha escola. No início da carreira, fora membro da comissão de assistência social e dedicara quase toda a vida a lidar com crianças difíceis. Um respeito constrangido, que beirava a amizade, se estabeleceu entre o advogado e sua protegida incomparavelmente mais difícil.
A relação dos dois durou onze anos, desde os treze anos de Lisbeth até o final do ano anterior, quando ela fora à casa de Palmgren algumas semanas antes do Natal, já que ele não comparecera a um de seus encontros marcados. Como ele não abriu a porta, embora se ouvissem ruídos no apartamento, ela entrou por fora, escalando um tubo de escoamento pluvial até a sacada do quarto andar. Encontrou-o estendido no vestíbulo, consciente mas incapaz de falar e de se mover após um derrame cerebral. Ela chamou a ambulância e o acompanhou ao hospital com uma sensação crescente de pânico no estômago. Durante três dias e três noites, ela praticamente não deixou o corredor da UTI. Como um cão de guarda fiel, vigiava cada passo dos médicos e enfermeiras que entravam e saíam. Andava pelo corredor de um lado para o outro e cravava os olhos em cada médico que se aproximava dela. Finalmente, um médico, cujo nome ela nunca soube, a introduziu numa sala e lhe explicou a gravidade da situação. O estado de Holger Palmgren era crítico após uma grave hemorragia cerebral. Provavelmente não recuperaria a consciência. Tinha apenas sessenta e quatro anos. Ela não chorou nem demonstrou o menor sentimento. Levantou-se, deixou o hospital e nunca mais retornou.
Cinco semanas depois, a comissão de tutelas convocou Lisbeth Salander para um primeiro encontro com o novo tutor. Seu primeiro impulso foi ignorar a convocação, mas Holger Palmgren inculcara cuidadosamente em sua consciência que todo ato acarreta consequências. Nesse estágio, ela aprendera a analisar as consequências antes de agir e, refletindo melhor, concluiu que a saída mais indolor para aquele dilema era satisfazer a comissão de tutelas, comportando-se como se a opinião deles realmente importasse.
Assim, em dezembro apresentou-se docilmente — uma curta pausa na investigação sobre Mikael Blomkvist — no escritório de Bjurman na rua Sankt Eriksplan, onde uma mulher de idade, representante da comissão, entregara o volumoso dossiê ao advogado. A senhora perguntou-lhe gentilmente como estava e pareceu satisfeita com o silêncio obstinado que obteve como resposta. Ao cabo de meia hora, deixou Salander aos cuidados de Bjurman.
Lisbeth Salander detestou o advogado cinco segundos depois de apertar-lhe a mão.
Examinou-o furtivamente enquanto ele lia o dossiê. Pouco mais de cinquenta anos. Corpo atlético, de quem joga tênis às terças e sextas-feiras. Louro. Cabelos finos. Covinha no queixo. Loção de barba Boss. Terno azul. Gravata vermelha com alfinete dourado e botões no punho da camisa com as iniciais N. E. B. Óculos com armação metálica. Olhos cinzentos. A julgar pelas revistas em cima de uma mesa baixa, interessava-se por caça e tiro.
Durante os dez anos em que se encontrara regularmente com Palmgren, ele lhe oferecia café e conversava com ela. Mesmo suas piores fugas das famílias substitutas ou suas ausências sistemáticas da escola não conseguiram desestabilizá-lo. A única vez que Palmgren ficou realmente furioso foi quando a indiciaram por insulto e agressão ao sujeito nojento que a tinha bolinado no metrô. Percebe o que fez? Você atacou um ser humano, Lisbeth. Parecia um velho professor e ela pacientemente ignorou cada palavra da descompostura.
Bjurman não estava disposto a conversar. Logo de início constatou que havia incompatibilidade entre os deveres de Holger Palmgren previstos pelo regulamento da tutela e o fato de ele aparentemente ter deixado que a própria Lisbeth Salander administrasse seu apartamento e seu orçamento. Fez uma espécie de interrogatório. Quanto você ganha? Quero uma cópia da sua contabilidade. Quem são seus amigos? Paga o aluguel em dia? Costuma beber? Palmgren estava de acordo com esses anéis que tem no rosto? É cuidadosa em matéria de higiene?
Vá se foder!
Palmgren tornara-se seu administrador ad hoc pouco depois que todo o Mal aconteceu. Ele insistira em vê-la pelo menos uma vez por mês em encontros fixos, e às vezes com mais frequência. Desde que ela retornara à Lundagatan, eles eram praticamente vizinhos. Palmgren morava na Hornsgatan, perto da casa dela, e quase sempre se cruzavam e iam tomar um café no Giffy ou em outra parte do bairro. Palmgren nunca fora importuno, mas às vezes passava para vê-la com um presentinho de aniversário, por exemplo. Ela tinha o convite permanente para visitá-lo a qualquer momento, privilégio que raramente usou, mas nos últimos anos passara as vésperas de Natal na casa dele depois de visitar a mãe. Comiam peru de Natal e jogavam xadrez. Esse jogo de modo nenhum a interessava, mas, depois que aprendeu as regras, não perdeu uma só partida. Palmgren era viúvo e Lisbeth Salander encarava como um dever seu ter piedade dele e de sua solidão nesses dias de festa.
Achava que lhe devia isso, e ela sempre pagava suas dívidas.
Palmgren é que sublocara o apartamento da mãe na Lundagatan até que Lisbeth tivesse necessidade de lugar próprio para morar. O apartamento de quarenta e nove metros quadrados estava decrépito e sujo, mas ainda assim era um teto.
Agora Palmgren se fora, e outro laço com a sociedade normal acabava de ser desfeito. Nils Bjurman era outro tipo de gente. Ela não imaginava passar uma véspera de Natal na casa dele. A primeira medida que ele tomou foi estabelecer novas regras sobre o acesso à conta bancária na qual era depositado seu salário. Palmgren fechara gentilmente os olhos para o regime das tutelas e deixara que ela mesma administrasse seu orçamento. Lisbeth pagava as contas e podia utilizar sua poupança quando bem entendesse.
Tendo se preparado para o encontro com Bjurman na semana anterior ao Natal, ela tentou explicar a ele que seu predecessor confiara nela e que ela nunca o decepcionara. Palmgren deixara-a conduzir o barco sem se intrometer em sua vida particular.
— Esse é justamente um dos problemas — respondeu Bjurman, tamborilando sobre a pasta do dossiê.
Depois fez um longo discurso a respeito das regras e dos decretos administrativos referentes às tutelas, antes de informá-la que uma nova ordem entraria em vigor.
— Ele deixou que você agisse à vontade, não foi? Eu me pergunto como conseguiu não bater com o martelo nos dedos.
Porque fazia quarenta anos que o velho cuidava de adolescentes com problemas, seu imbecil!
— Não sou mais uma criança — disse Lisbeth Salander, como se isso bastasse como explicação.
— Não, não é mais uma criança. Mas fui designado para ser seu tutor e, como tal, sou jurídica e economicamente responsável por você.
A primeira medida de Bjurman foi abrir uma nova conta bancária em nome dele, que ela devia indicar à contabilidade da Milton e que seria utilizada daí em diante. Salander se deu conta de que os dias felizes tinham acabado: agora Bjurman pagaria suas contas e ela teria uma quantia fixa para os gastos mensais e lhe forneceria os recibos das despesas. Ele decidiu que ela receberia mil e quatrocentas coroas por semana — "para alimentação, roupas, cinema e coisas do gênero".
Conforme escolhesse trabalhar muito ou pouco, Lisbeth Salander podia ganhar até cento e sessenta mil coroas por ano. Podia facilmente dobrar essa quantia se trabalhasse em tempo integral e aceitasse todas as missões que Dragan Armanskij viesse a propor. Por outro lado, tinha poucas contas a pagar e não gastava muito. O apartamento custava-lhe duas mil coroas por mês e, apesar de seus rendimentos modestos, tinha noventa mil coroas na conta de poupança. Poupança da qual não ia mais poder dispor livremente.
— Eu sou o responsável pelo seu dinheiro — ele explicou. — Você deve reservar um dinheiro para o futuro. Mas não se preocupe, eu me encarregarei disso.
Eu mesma me encarrego disso há dez anos, seu babaca!
— Está se saindo suficientemente bem de um ponto de vista social para não precisar ser internada, mas a sociedade é responsável por você.
Ele a interrogou em detalhe sobre suas tarefas na Milton Security. Instintivamente, ela mentiu sobre seu trabalho. A resposta que forneceu era uma descrição do que havia feito nas primeiras semanas de trabalho. Assim, Bjurman teve a impressão de que ela apenas fazia o café e selecionava a correspondência — atividades de uma pessoa de pouca inteligência — e pareceu satisfeito com as respostas.
Ela não sabia por que mentira, mas estava convencida de que agira bem.
Mesmo que o advogado Bjurman figurasse numa lista de espécies de insetos ameaçadas de extinção, não teria hesitado em esmagá-lo com o calcanhar.
Mikael Blomkvist passou cinco horas na companhia de Henrik Vanger e dedicou uma parte da noite e a terça-feira toda para organizar suas notas e montar o quebra-cabeça genealógico dos Vanger. A história familiar que resultava das conversas com Henrik era uma versão muito diferente da que era dada no retrato oficial da família. Mikael sabia perfeitamente que todas as famílias têm esqueletos no armário. A família Vanger tinha um cemitério inteiro.
Mikael precisou lembrar-se várias vezes de que seu trabalho real não era escrever uma biografia da família Vanger, mas desvendar o que acontecera com Harriet Vanger. Aceitara a missão convencido de que, na realidade, desperdiçaria um ano com a bunda numa cadeira e de que os esforços que faria por Henrik Vanger não levariam a nada. Ao cabo de um ano, receberia um salário extravagante — o contrato redigido por Dirch Frode fora assinado. Mas o verdadeiro salário, ele esperava, seria a informação sobre Hans-Erik Wennerström, que Henrik afirmava possuir.
Depois da conversa com Henrik Vanger, ele começou a dizer a si mesmo que podia não ser um ano perdido. Um livro sobre a família Vanger tinha lá seu valor — era simplesmente um assunto interessante.
Não lhe passava pela mente, nem por um único segundo, que pudesse descobrir o assassino de Harriet Vanger — se é que ela fora mesmo assassinada; podia ter sido vítima de um acidente absurdo ou desaparecido de outra maneira. Mikael concordava com Henrik sobre a quase improbabilidade de uma jovem de dezesseis anos desaparecer por vontade própria e conseguir permanecer oculta a todos os sistemas de vigilância oficiais durante trinta e seis anos. Em contrapartida, Mikael não excluía a possibilidade de Harriet Vanger ter fugido, para Estocolmo talvez, e de alguma coisa ter acontecido no caminho — drogas, prostituição, uma agressão ou simplesmente um acidente.
Por seu lado, Henrik estava convencido de que Harriet fora assassinada e de que um membro da família era o responsável — talvez em colaboração com outro. A força do seu raciocínio se baseava no fato de Harriet ter desaparecido durante as horas dramáticas de isolamento da ilha, quando todos os olhos estavam voltados para o acidente.
Erika teve razão em dizer a Mikael que seu trabalho era mais do que insensato se o objetivo era resolver o mistério de um crime, mas ele começava a entender que o destino de Harriet Vanger tivera um papel central na família, principalmente para Henrik Vanger. Justificadas ou não, as acusações de Henrik contra seus familiares eram de grande importância para a história dessa família. Ele os acusava abertamente havia mais de trinta anos e essa suspeita marcara as reuniões familiares e criara oposições inflamadas que contribuíram para desestabilizar o grupo. Examinar o desaparecimento de Harriet, portanto, seria um capítulo à parte e até mesmo um fio condutor da história da família — e as fontes eram abundantes. Um ponto de partida lógico seria estabelecer uma galeria de personagens — sem se importar se Harriet Vanger era sua principal missão ou se ele se contentaria em escrever uma crônica familiar. Foi esse o tema da conversa com Henrik naquele dia.
A família Vanger era constituída de uma centena de pessoas, contando os filhos de primos de primeiro e segundo grau de todos os ramos. A família era tão numerosa que Mikael foi obrigado a criar um banco de dados no notebook. Utilizou o programa NotePad (www.ibrium.se), um desses produtos completos que dois rapazes do KTH [Real Instituto de Tecnologia], de Estocolmo, haviam criado e disponibilizado na internet em troca de quase nada. Programas como esse, tão indispensáveis a um jornalista investigativo, eram raros, pensou Mikael. Cada membro da família ganhou sua própria ficha.
A árvore genealógica podia ser reconstituída com segurança até o começo do século XVI, época em que o nome era Vangeersad. Segundo Henrik Vanger, o nome talvez se originasse do holandês Van Geerstad; nesse caso, a árvore genealógica retrocedia ainda mais no tempo, até o século XII.
Numa época mais recente, a família se estabelecera no norte da França e chegara à Suécia com Jean-Baptiste Bernadotte no começo do século XIX. Alexander Vangeersad não conheceu pessoalmente o rei, mas destacou-se como chefe militar e, em 1818, recebeu as terras de Hedeby em agradecimento por seus longos e fiéis serviços. Alexander Vangeersad obteve assim uma fortuna pessoal que utilizou para adquirir áreas florestais bastante extensas no Norrland. Seu filho Adrian nasceu na França, mas, a pedido do pai, veio morar no canto perdido de Hedeby, longe dos salões parisienses, para administrar a propriedade. Explorando as terras e as florestas com novos métodos importados da Europa, fundou a fábrica de papel em torno da qual Hedestad se desenvolveu.
O neto de Alexander chamava-se Henrik e reduziu o nome para Vanger. Montou uma rede comercial com a Rússia e criou uma pequena frota de escunas mercantis que assegurava a ligação com os países bálticos, a Alemanha e a Inglaterra das metalurgias, em meados do século XIX. Henrik Vanger, o antigo, diversificou a empresa familiar e iniciou uma modesta exploração de minas e as primeiras indústrias metalúrgicas do Norrland. Deixou dois filhos, Birger e Gottfried, que deram início às atividades financeiras da família Vanger.
— Você conhece alguma coisa sobre as antigas leis da herança? — perguntara Henrik Vanger.
— Não é exatamente a minha área de competência.
— Entendo. É algo que também me deixa perplexo. De acordo com a tradição familiar, Birger e Gottfried eram como cão e gato, concorrentes legendários em luta por poder e influência. Essa disputa tornou-se uma ameaça à sobrevivência da empresa e o pai deles decidiu, pouco antes de morrer, criar um sistema em que cada membro da família teria uma parte na herança da empresa. Isso provavelmente partiu de um bom sentimento, mas provocou uma situação insustentável. Em vez de atrair pessoas competentes e possíveis parceiros do exterior, deparamo-nos com uma direção composta de membros da família, cada qual com um ou dois por cento de direito de voto.
— A regra se aplica ainda hoje?
— Totalmente. Se um membro da família quiser vender sua parte, terá que ser para alguém da família. A assembléia geral reúne hoje uns cinquenta membros da família. Martin possui pouco mais de dez por cento das ações. Eu tenho cinco por cento, pois as vendi, entre outros, a Martin. Meu irmão Harald tem sete por cento, mas a maioria dos que comparecem às assembléias tem apenas um ou um e meio por cento.
— Não acredito. Parece coisa da Idade Média.
— É completamente absurdo. Significa que, se Martin quiser hoje adotar determinada política, ele é obrigado a fazer um lobby em grande escala para conseguir o apoio de pelo menos vinte e cinco por cento dos co-proprietários. É uma mixórdia de alianças, divisões e intrigas.
Henrik Vanger prosseguiu.
— Gottfried Vanger morreu sem filhos em 1901. Perdão: na verdade era pai de quatro filhas, mas naquela época as mulheres não contavam. Possuíam cotas, porém eram os homens da família que recebiam os juros. Foi só com a introdução do direito de voto, no século XX, que as mulheres passaram a assistir às assembléias gerais.
— Muito liberais, pelo que vejo.
— Não zombe. Eram tempos diferentes. Seja como for, o irmão de Gottfried, Birger, tinha três filhos homens: Johan, Fredrik e Gideon Vanger, todos nascidos no final do século XIX. Podemos eliminar Gideon: ele vendeu sua parte e emigrou para a América, onde seguimos tendo um ramo. Mas Johan e Fredrik fizeram da empresa o grupo Vanger moderno.
Enquanto narrava, Henrik Vanger pegou um álbum com fotos desses personagens. As fotos do começo do século passado mostravam dois homens de queixos vigorosos e cabelos lisos de brilhantina olhando para a câmera sem a menor sombra de um sorriso. Depois prosseguiu:
— Johan Vanger era o gênio da família. Estudou engenharia e desenvolveu a indústria mecânica com várias novas invenções que patenteou. O aço e o ferro passaram a ser a base do grupo, mas a sociedade estendeu seus negócios a outras áreas, como a têxtil. Johan Vanger morreu em 1956 e deixou três filhas, Sofia, Märit e Ingrid, que foram as primeiras mulheres a ter acesso automático à assembléia geral do grupo. O outro irmão, Fredrik Vanger, era meu pai. Ele foi o homem de negócios, o capitão de indústria que transformou as invenções de Johan em rendimentos. Meu pai só morreu em 1964. Participou ativamente da direção até sua morte, ainda que, já nos anos 1950, tivesse me passado a direção do dia-a-dia da empresa. Johan Vanger, ao contrário da geração precedente, teve apenas filhas. — Henrik Vanger mostrou fotos de mulheres com seios generosos, usando sombrinhas e chapéus de abas largas. — E Fredrik, meu pai, teve apenas filhos homens. Éramos cinco irmãos. Richard, Harald, Greger, Gustav e eu.
Para tentar situar-se entre todos os membros da família, Mikael desenhou uma árvore genealógica em algumas folhas tamanho ofício coladas pelas pontas. Assinalou com um marca-texto o nome dos membros presentes na ilha de Hedeby durante a reunião de família em 1966 e que, portanto, ao menos teoricamente, poderiam ter alguma ligação com o desaparecimento de Harriet.
Mikael deixou de lado as crianças com menos de doze anos — partia do princípio de que, qualquer que tenha sido a sorte de Harriet Vanger, ele devia se limitar ao que era plausível. Sem colocar-se muitas questões, omitiu também Henrik Vanger — se o patriarca estivesse implicado no desaparecimento da neta do irmão, seus procedimentos nos últimos trinta e seis anos eram um caso psicopatológico. A mãe de Henrik Vanger, que em 1966 tinha a venerável idade de oitenta e um anos, podia razoavelmente ser riscada também. Os vinte e dois membros restantes da família, segundo Henrik, deviam entrar no grupo dos "suspeitos". Sete já haviam morrido e alguns atingiam idades respeitáveis.
Contudo, Mikael não estava disposto a aceitar sem exame a convicção de Henrik de que um membro da família era o responsável pelo desaparecimento de Harriet. A lista de suspeitos deviam ser acrescentadas outras pessoas.
Dirch Frode começara a trabalhar como advogado de Henrik na primavera de 1962. E, quando Harriet desapareceu, o faz-tudo da época, Gunnar Nilsson — não importa se com um álibi ou não —, tinha dezenove anos e, assim como seu pai, Magnus Nilsson, estava na ilha de Hedeby, do mesmo modo que o artista pintor Eugen Norman e o pastor Otto Falk. E esse Falk, era casado? O fazendeiro de Östergarden, Martin Aronsson, assim como seu filho Jerker Aronsson, se encontravam na ilha e foram próximos de Harriet Vanger ao longo de toda a sua infância. Quais eram as relações deles? Martin Aronsson era casado? Havia outras pessoas na fazenda?
Quando Mikael escreveu todos os nomes, o grupo chegou a umas quarenta pessoas. Com um gesto de frustração, jogou longe o marca-texto. Já eram três e meia da manhã e o termômetro indicava vinte e um graus negativos. A onda de frio parecia querer se instalar. Seu desejo era estar na cama, em sua cama na Bellmansgatan.
Mikael Blomkvist despertou às nove da manhã da quarta-feira, quando o técnico da Telia bateu à sua porta para instalar a linha telefônica e o modem ADSL. Às onze já podia se conectar e não se sentia mais em total desvantagem profissional. O telefone, porém, permanecia mudo. Fazia uma semana que Erika não respondia a seus chamados. Devia estar realmente zangada. Ele também começava a se sentir um pouco teimoso e recusava-se a chamá-la na redação; ao ligar para ela do celular, ela podia ver que era ele e decidir se queria atender ou não. Portanto, ela não queria.
FREDRIK VANGER
(1886-1964)
esp. Ulrika (1885-1969)
JOHAN VANGER
(1884-1956)
esp. Gerda (1888-1960)
Richard (1907-1940)
esp. Margareta (1906-1959)
Gottfried
(1927-1965)
esp. Isabella (1928-)
Martin (1948-)
Harriet (1950-)
Sofia (1909-1977)
esp. Åke Sjögren (1906-1967)
Magnus Sjögren
(1929-1994)
Sara Sjögren (1931-)
Erik Sjögren (1951-)
Håkan Sjogren (1955-)
Harald (1911-)
esp. Ingrid
(1925-1992)
Birger (1939-)
Cecilia (1946-)
Anita (1948-)
Märit (1911-1988)
esp. Algot Giinther
(1904-1987)
Ossian Gunther (1930-)
esp. Agnes (1933-)
Jakob Gunther (1952-)
Greger (1912-1974)
esp. Gerda(1922-)
Ingrid (1916-1990)
esp. Harry Karlman
(1912-1984)
Alexander (1946-)
Gunnar Karlman (1942-)
Maria Karlman (1944-)
Gustav (1918-1955)
solteiro, sem filhos
Henrik(1920-)
esp. Edith (1921-1958)
sem filhos
Seja como for, ele abriu sua caixa de mensagens e passou os olhos pelos trezentos e cinquenta e-mails que lhe haviam sido enviados na última semana. Conservou uma dúzia deles, o resto eram spams ou mailings dos quais era assinante. O primeiro e-mail que abriu era de demokrat88@yahoo.com e dizia: "Espero que nesse buraco te façam chupar muitos paus, seu comunista sujo". Mikael arquivou o e-mail numa pasta intitulada Crítica Inteligente.
Escreveu uma breve mensagem a erika.berger@millenium.se.
[Oi, Ricky. Suponho que está com muita raiva de mim, pois não atende os meus chamados. Quero apenas te dizer que agora estou na internet e podemos conversar por e-mail, se você quiser me perdoar. Fora isso, Hedeby é um lugarzinho rústico que vale uma visita. M.]
Na hora do almoço, pôs o notebook na bolsa e foi até o Café Susanne, onde se acomodou na habitual mesa de canto. Quando Susanne lhe serviu um café com sanduíche, ela lançou um olhar de curiosidade ao computador e perguntou no que ele estava trabalhando. Mikael utilizou pela primeira vez seu pretexto e explicou que Henrik Vanger o contratara para escrever uma biografia. Trocaram algumas palavras polidas. Susanne convidou Mikael a procurá-la quando estivesse preparado para as verdadeiras revelações.
— Atendo os Vanger há trinta e cinco anos e conheço a maior parte dos mexericos da família — ela falou, antes de voltar à cozinha com um passo meio gingado.
O quadro que Mikael desenhou indicava que a família Vanger não cessava de produzir novos rebentos. Somando os filhos, netos e bisnetos — que ele nem se deu o trabalho de mencionar —, os irmãos Fredrik e Johan Vanger tinham cerca de cinquenta descendentes. Mikael constatou também que havia na família uma tendência à longevidade. Fredrik Vanger morrera com setenta e oito anos, seu irmão Johan com setenta e dois. Ulrika Vanger falecera com oitenta e quatro. Dos dois irmãos ainda vivos, Harald tinha noventa e dois anos e Henrik Vanger oitenta e dois.
A única exceção fora Gustav, o irmão de Henrik, morto de uma doença pulmonar aos trinta e sete anos. Henrik explicou que Gustav sempre tivera a saúde frágil e seguira seu próprio caminho, um pouco à margem do resto da família. Não se casou nem teve filhos.
Quanto aos demais, os que morreram jovens não sucumbiram a doenças, mas por outros motivos. Richard Vanger foi morto como voluntário durante a guerra de Inverno da Finlândia, com trinta e quatro anos. Gottfried Vanger, o pai de Harriet, havia se afogado um ano antes do desaparecimento da filha. E a própria Harriet tinha então somente dezesseis anos. Mikael notou a estranha coincidência nesse ramo da família em que avô, pai e filha foram vítimas de acidentes. De Richard restava apenas Martin Vanger, que aos cinquenta e cinco anos continuava solteiro e sem filhos. Henrik Vanger informou, porém, que Martin tinha uma companheira, uma mulher que morava em Hedestad.
Martin tinha dezoito anos quando a irmã desapareceu. Fazia parte dos raros parentes próximos que, com toda a certeza, não podiam ter ligação alguma com o desaparecimento. Naquele outono, ele morava em Uppsala, onde concluía o colegial. Devia participar da reunião de família, mas só chegou no fim da tarde e ficou retido do outro lado da ponte durante a hora crítica em que a irmã evaporou.
Mikael notou duas outras particularidades na árvore genealógica. A primeira é que os casamentos pareciam ser vitalícios; nenhum membro da família Vanger se divorciara nem voltara a se casar, mesmo quando o parceiro havia morrido jovem. Perguntou-se qual a frequência disso em termos estatísticos. Cecilia Vanger estava separada do marido havia vários anos, mas, se Mikael tinha entendido bem, ainda eram casados.
A outra particularidade é que a família parecia geograficamente dividida entre "homens" e "mulheres". Os descendentes de Henrik Vanger, aos quais Henrik pertencia, tradicionalmente haviam desempenhado papel de destaque na empresa e morado principalmente em Hedestad ou arredores. Os membros do ramo Johan Vanger — apenas mulheres na primeira geração — espalharam-se por outros cantos do país; moravam em Estocolmo, Malmö e Göteborg ou no exterior, e só vinham a Hedestad para as férias de verão e as reuniões importantes do grupo. A única exceção era Ingrid Vanger, cujo filho Gunnar Karlman morava em Hedestad. Era o redator-chefe do jornal local, o Hedestads-Kuriren.
Na conclusão de seu inquérito pessoal, Henrik observava que o "motivo por trás do assassinato de Harriet" devia ser buscado, talvez, na estrutura da empresa e no fato de ele ter assinalado muito cedo as qualidades excepcionais de Harriet. A intenção talvez fosse prejudicar o próprio Henrik, ou então Harriet descobrira uma espécie de informação delicada relativa ao grupo e se convertera numa ameaça para alguém. Tudo isso não passava de especulação, mas, partindo dessa hipótese, ele identificou um círculo de treze pessoas que apresentava como "particularmente interessantes".
A conversa da véspera com Henrik Vanger também esclarecera Mikael sobre outro ponto. Desde a primeira conversa, o velho falara da família em termos tão desdenhosos e degradantes que chegava a ser estranho. Mikael se perguntara se as suspeitas do patriarca sobre a família, quanto ao desaparecimento de Harriet, haviam afetado seu juízo, mas agora começava a entender que a avaliação de Henrik era, na verdade, de uma clarividência estupenda.
A imagem que começava a se esboçar revelava uma família bem-sucedida social e economicamente, mas claramente cheia de disfunções no cotidiano.
O pai de Henrik Vanger, homem frio e insensível, trouxera os filhos ao mundo e depois delegara à esposa o cuidado com sua educação e seu bem-estar. Eles raramente viam o pai antes de completarem dezesseis anos, exceto nas festas de família às quais deviam comparecer e ficar invisíveis. Henrik Vanger não se lembrava do pai manifestando, de alguma maneira, algum tipo de amor; ao contrário, várias vezes Henrik fora chamado de incompetente e recebera críticas arrasadoras. Castigos corporais eram raros por serem desnecessários. Só veio a ganhar o respeito do pai mais tarde, quando passou a trabalhar para o grupo Vanger.
O irmão mais velho, Richard, se revoltara. Após uma disputa cujo motivo nunca foi discutido em família, Richard partiu para Uppsala com a intenção de lá estudar. Foi quando iniciou sua carreira nazista, já mencionada por Henrik a Mikael, e que mais tarde o levaria às trincheiras da guerra de Inverno da Finlândia.
O que o velho ainda não havia contado é que dois outros irmãos tomaram caminhos idênticos.
Harald Vanger e seu irmão Greger seguiram os passos do irmão mais velho em Uppsala, em 1930. Harald e Greger eram muito próximos, mas Henrik Vanger não sabia dizer se conviveram muito com Richard. O certo é que os irmãos aderiram ao movimento fascista de Per Engdahl, a Nova Suécia. Harald Vanger manteve-se leal a Per Engdahl ao longo dos anos, primeiro na União Nacional da Suécia, depois na Oposição sueca e, por fim, no Movimento neo-sueco, desde sua fundação, no final da guerra. Continuou como membro até a morte de Per Engdahl nos anos 1990 e em alguns períodos foi um dos mais importantes financiadores do fascismo sueco remanescente.
Harald Vanger formou-se médico em Uppsala e em seguida envolveu-se com grupos entusiastas por higiene e biologia racial. Em certa época, trabalhou no instituto sueco de biologia das raças e, como médico, foi um agente de primeira ordem na campanha de esterilização dos elementos indesejáveis da população.
Declaração de Henrik Vanger, cassete 2, 02950:
Harald foi mais longe ainda. Em 1937, foi co-autor — sob pseudônimo, graças a Deus! — de um livro intitulado A Nova Europa dos povos. Fiquei sabendo disso só nos anos 1970. Tenho uma cópia que você pode ler. E provavelmente um dos livros mais ignóbeis já publicados na Suécia. Harald não argumenta apenas a favor da esterilização, mas também da eutanásia — uma ajuda ativa para morrer direcionada às pessoas que perturbavam seu gosto estético e não se adaptavam à sua imagem do sueco perfeito. Ou seja, um arrazoado a favor do massacre, redigido numa prosa acadêmica impecável e contendo todos os argumentos médicos necessários. Livremo-nos dos retardados. Não deixemos a população dos lapões aumentar; eles possuem genes mongóis. Os doentes mentais aceitarão a morte como uma libertação, não é mesmo? Mulheres de maus costumes, vagabundos, ciganos e judeus — pode-se ter uma idéia do quadro. Nos fantasmas do meu irmão, Auschwitz podia ser aqui mesmo, na Dalecarlia.
Depois da guerra, Greger Vanger se tornou professor e mais tarde diretor do colégio de Hedestad. Henrik achava que ele havia abandonado o nazismo após a guerra e se tornado apolítico. Morreu em 1974, e só quando Henrik examinou seus papéis é que ficou sabendo, pelas cartas conservadas, que nos anos 1950 seu irmão aderira ao Partido Nórdico Nacional, o NRP, uma seita sem importância política mas totalmente desmiolada, da qual foi membro até falecer.
Declaração de Henrik Vanger, cassete 2, 04167: "Três dos meus irmãos eram, portanto, politicamente dementes. Até onde iria a doença deles em outras circunstâncias?"'.
O único irmão benquisto, em certa medida, por Henrik Vanger, era Gustav, de saúde frágil e vítima de uma doença pulmonar em 1955. Gustav não se interessava por política e era visto sobretudo como um espírito artístico distante do mundo, sem o menor interesse pelos negócios nem por uma atividade no grupo Vanger. Mikael perguntou a Henrik:
— Restam apenas você e Harald hoje. Por que ele voltou a morar em Hedeby?
— Ele voltou em 1979, pouco antes de seus setenta anos. A casa lhe pertence.
— Deve ser estranho viver tão perto de um irmão odiado. Henrik Vanger olhou Mikael, surpreso.
— Você me entendeu mal. Não odeio meu irmão. Na verdade, tenho pena dele; é um perfeito imbecil. E ele quem me odeia.
— Ele odeia você?
— Muito. Acho que foi por isso que voltou a viver aqui. Para poder passar seus últimos anos me odiando de perto.
— Por que ele te odeia?
— Porque me casei.
— Acho que terá que me explicar isso.
Henrik Vanger perdera o contato com os irmãos mais velhos bastante cedo. Era o único dos cinco que revelava talento para os negócios — a última esperança do pai. Não se interessava por política e evitou Uppsala, tendo preferido estudar economia em Estocolmo. Desde os dezoito anos, passou todas as suas férias estagiando num dos muitos escritórios do grupo Vanger ou colaborando nos conselhos de administração. Ficou conhecendo todos os labirintos da sociedade familiar.
Em 10 de junho de 1941 — no auge da Segunda Guerra —, Henrik foi enviado à Alemanha para uma visita de seis semanas aos escritórios comerciais do grupo Vanger em Hamburgo. Tinha vinte e um anos, e o representante alemão das empresas Vanger, um veterano idoso chamado Herman Lobach, serviu-lhe de protetor e mentor.
— Não vou fatigá-lo com todos os detalhes, mas naquele momento Hitler e Stalin ainda eram bons amigos e não havia até então combates no fronte oriental. Todos achavam Hitler invencível. Havia um sentimento de... otimismo e desespero, acho que são as palavras adequadas. Mais de meio século depois, continua sendo difícil encontrar palavras apropriadas. Não me entenda mal: nunca fui nazista e Hitler me parecia um personagem ridículo de opereta. Mas era difícil não se contaminar pela fé no futuro que reinava entre as pessoas comuns de Hamburgo. A guerra se aproximava lentamente e vários bombardeios ocorreram em minha temporada na cidade; apesar disso, todos pareciam pensar que era um momento de irritação passageiro: a paz logo chegaria e Hitler ia instaurar sua Neuropa, a nova Europa. As pessoas queriam acreditar que Hitler era Deus: é o que a propaganda dava a entender. Henrik Vanger abriu um de seus numerosos álbuns fotográficos.
— Este é Hermann Lobach. Ele desapareceu em 1944, provavelmente morto e sepultado durante um bombardeio. Nunca soubemos que destino ele teve. Na minha temporada em Hamburgo, fiquei muito amigo dele. Eu tinha um quarto na sua suntuosa residência, num bairro onde só moravam famílias ricas. Nós nos víamos diariamente. Era tão pouco nazista quanto eu, mas filiara-se ao partido por comodidade. A carteira de membro abria portas e facilitava suas chances de negócio em favor do grupo Vanger, e negócios era exatamente o que fazíamos. Construíamos vagões para trens, e ainda hoje me pergunto se esses vagões partiam com destino à Polônia. Vendíamos tecidos para os uniformes e tubos catódicos para aparelhos de rádio, mas oficialmente não fazíamos idéia de para que servia a mercadoria. E Hermann Lobach sabia como agir para obter um bom contrato, tinha uma boa lábia e era jovial. Um perfeito nazista. Aos poucos, entendi que era também um homem que tentava desesperadamente esconder um segredo. Na noite de 22 de junho de 1941, Hermann Lobach bateu na porta do meu quarto e me acordou. Meu quarto ficava ao lado do quarto de sua mulher e com um sinal ele me pediu que eu não fizesse barulho, me vestisse e o acompanhasse. Descemos ao térreo e nos instalamos numa pequena sala de fumar. Lobach certamente estivera acordado a noite toda. Ligou o rádio e compreendi que algo dramático acontecera. Tivera início a operação "Barbarossa", a Alemanha atacara a União Soviética no fim de semana em que o verão se iniciava.
Henrik Vanger fez um gesto resignado com a mão.
— Hermann Lobach pegou dois copos e despejou uma dose generosa de aquavita em cada um. Pareceu-me meio embriagado. Quando lhe perguntei quais poderiam ser as consequências, respondeu-me com lucidez que aquilo significava o fim para a Alemanha e para o nazismo. Só acreditei em parte — Hitler parecia invencível —, mas Lobach brindou comigo a derrota da Alemanha. Em seguida pôs-se a falar de assuntos práticos.
Mikael balançou a cabeça para indicar que acompanhava a história.
— Em primeiro lugar, ele descartou a possibilidade de entrar em contato com meu pai para pedir instruções e por conta própria decidiu interromper minha temporada na Alemanha, mandando-me de volta para casa o mais cedo possível. Em segundo lugar, queria que eu lhe prestasse um serviço.
Henrik mostrou um retrato amarelecido e com os cantos rasgados, em tamanho três por quatro, de uma mulher morena.
— Herman Lobach era casado havia quarenta anos, mas em 1919 conhecera uma mulher que tinha a metade da sua idade, uma pobre e modesta costureira, de uma beleza avassaladora. Apaixonou-se por ela. Cortejou-a e, como tantos outros homens ricos, tinha os meios de instalá-la num apartamento a pouca distância de seu escritório. Ela passou a ser sua amante. Em 1921, deu à luz uma menina, que foi chamada Edith.
— Um homem rico já de alguma idade, uma mulher pobre e uma filha desse amor: isso não deveria causar um grande escândalo, mesmo nos anos 1940 — comentou Mikael.
— É verdade. Se não houvesse um problema. A mulher era judia e Lobach, portanto, pai de uma menina judia em plena Alemanha nazista. Concretamente, ele era um traidor de sua raça.
— Ah! isso muda tudo. O que aconteceu?
— A mãe de Edith foi detida em 1939. Desapareceu e pode-se imaginar o que lhe aconteceu. Todos sabiam que tinha uma filha que ainda não fora inscrita nas listas de transporte, e essa moça judia era procurada pela unidade da Gestapo encarregada de capturar judeus fugitivos. No verão de 1941, na mesma semana em que cheguei a Hamburgo, fez-se a ligação entre a mãe de Edith e Hermann Lobach, e convocaram-no para um interrogatório. Ele admitiu a ligação e a paternidade, mas declarou que não fazia a menor idéia do lugar onde se encontrava a filha e que havia dez anos não tinha contato com ela.
— E onde ela estava?
— Eu a via diariamente na casa de Lobach. Uma moça de vinte anos, meiga e calma, que fazia a limpeza do meu quarto e ajudava a servir o jantar. Em 1937, as perseguições aos judeus já duravam vários anos e a mãe de Edith suplicou a Hermann que a ajudasse. E ele ajudou — amava a filha ilegítima tanto quanto seus filhos legítimos. Escondeu-a no lugar mais improvável — diante do nariz de todo mundo. Providenciou-lhe falsos documentos e a contratou como empregada.
— A mulher dele sabia quem ela era?
— Não, não fazia a menor idéia.
— E depois, o que houve?
— A coisa funcionou durante quatro anos, mas Lobach sentia que o cerco se estreitava. Em breve a Gestapo viria bater à sua porta. Foi tudo o que me contou naquela noite, poucas semanas antes de eu voltar à Suécia. Depois, mandou chamar a filha e fomos apresentados. Era muito tímida e não ousou sequer me olhar nos olhos. Lobach me suplicou que salvasse a vida dela.
— Como?
— Ele arranjara tudo. Segundo seus planos, eu devia ficar por mais três semanas e em seguida tomar o trem noturno para Copenhague, depois o ferryboat para atravessar o estreito de Oresund — uma viagem sem muita importância, mesmo em tempo de guerra. No entanto, dois dias depois da nossa conversa, um cargueiro de propriedade do grupo Vanger devia deixar Hamburgo com destino à Suécia. Lobach resolveu enviar-me com o cargueiro, para que eu deixasse a Alemanha sem demora. Qualquer alteração dos projetos de viagem devia ser aprovada pelos serviços de segurança; problemas burocráticos, mas não insuperáveis. Lobach insistiu para que eu fosse naquele navio.
— Com Edith, suponho.
— Edith embarcou ilegalmente, escondida numa das trezentas caixas contendo peças para máquinas. Minha tarefa era protegê-la se fosse descoberta antes de deixarmos as águas territoriais da Alemanha, e impedir o capitão de fazer uma besteira. Não havendo problemas, eu devia esperar até estarmos a uma boa distância da Alemanha e então deixá-la sair.
— E aí?
— Parecia simples, mas a viagem foi um pesadelo. O capitão chamava-se Oskar Granath e não estava nem um pouco encantado com a responsabilidade de conduzir o herdeiro do seu patrão. Deixamos Hamburgo às nove horas de uma noite de verão. Estávamos saindo do porto quando as sirenes de alerta antiaéreo puseram-se a uivar. Um raide inglês: o pior que vivi, e o porto era evidentemente um alvo estratégico. Não exagero ao dizer que por pouco não me mijei quando as bombas começaram a explodir muito perto. Mas, de um modo ou de outro, conseguimos sair e, após uma pane de motor e uma noite horrível de tempestade nas águas recheadas de minas, chegamos à Suécia, em Karlskrona, no dia seguinte à tarde. Agora você vai me perguntar o que aconteceu com a moça.
— Acho que já sei.
— Meu pai ficou furioso, claro. Coloquei muita coisa em risco com meu ato insensato. E a moça podia ser extraditada a qualquer momento — lembre que estávamos em 1941. Mas nesse meio-tempo também me apaixonei por ela, como Lobach se apaixonara pela mãe dela. Pedi-a em casamento e dei um ultimato a meu pai: ou aceitava o casamento, ou que procurasse outra jovem esperança para a empresa da família. Ele cedeu.
— Mas ela morreu?
— Sim, morreu muito jovem. Em 1958. Vivemos juntos pouco mais de dezesseis anos. Ela tinha um problema cardíaco, de nascença. E eu me revelei estéril — nunca tivemos filhos. É por isso que meu irmão me odeia.
— Porque se casou com ela.
— Porque me casei — são os termos dele — com uma prostituta suja judia. No entender dele, eu traí a raça, o povo, a moral e tudo o que ele defendia.
— Mas ele é completamente louco.
— Eu são saberia dizer melhor.