25 - TERÇA-FEIRA 5 DE ABRIL – QUARTA-FEIRA 6 DE ABRIL


Paolo Roberto não pegara no sono, mas estava tão imerso em seus pensamentos que levou alguns segundos para avistar a mulher que vinha chegando a pé da direção da igreja de Högalid por volta das onze horas. Avistou-a pelo retrovisor. De início, ela não chamou sua atenção, mas quando passou sob um poste de iluminação a cerca de setenta metros atrás dele, Paolo virou rapidamente a cabeça e de imediato reconheceu Miriam Wu.

Endireitou-se no banco. Seu primeiro impulso foi descer do carro. Então percebeu que poderia assustá-la e que o melhor seria esperar ela chegar na frente do prédio.

No exato momento em que essa idéia lhe ocorreu, viu uma caminhonete escura arrancar mais adiante na rua e frear ao lado de Miriam Wu. Estupefato, Paolo Roberto viu um homem - um brutamontes loiro incrivelmente alto - descer pela porta de correr lateral e agarrar Miriam Wu. Ela foi pega totalmente de surpresa. Tentou se soltar recuando para trás, mas o gigante loiro segurava seu braço com força.

Paolo ficou boquiaberto ao ver a perna direita de Miriam Wu se erguer e descrever uma curva rápida. É mesmo, ela pratica kick-boxing. Ela desfechou Pontapé na cabeça do gigante loiro. O golpe pareceu deixá-lo indiferente. Em compensação, levantou a mão e deu uma bofetada em Miriam Wu. Mesmo de longe, Paolo escutou o som da pancada. Miriam Wu caiu, como atingida por um raio. O gigante loiro se inclinou, pegou-a apenas com uma mão e jogou-a dentro da caminhonete. Só então Paolo Roberto fechou a boca e caiu em si. Saltou do carro e correu para a caminhonete.

Logo percebeu a vacuidade do seu gesto. O veículo em que Miriam Wu fora jogada feito um saco de batatas arrancou silenciosamente, fez um retorno e afastou-se rua afora antes mesmo que Paolo Roberto ganhasse velocidade. O carro sumiu na direção da igreja de Högalid. Paolo correu de volta para o seu carro e se atirou ao volante. Arrancou a toda, também fez o retorno e seguiu na direção da igreja. A caminhonete tinha desaparecido quando ele chegou ao cruzamento. Freou e olhou para o lado da Högalidsgatan, então optou por dobrar à esquerda em direção à Hornsgatan.

Chegando à altura da Hornsgatan, o sinal estava vermelho, mas não havia trânsito e ele avançou um pouco para poder dar uma olhada. Os únicos faróis traseiros que conseguiu enxergar estavam entrando à esquerda rumo à ponte de Liljeholmen, perto da Lângholmsgatan. Não conseguiu ver se era mesmo a caminhonete, mas como era o único carro à vista Paolo pôs o pé na tábua. Foi detido por um sinal fechado na Lângholmsgatan e obrigado a deixar passar os carros que vinham de Kungsholmen, enquanto os segundos voavam. Quando o cruzamento ficou vazio, pisou fundo no acelerador e atravessou o sinal fechado, rezando para que nenhum carro de polícia estivesse por ali para detê-lo justo agora.

Ultrapassou, e muito, a velocidade permitida na ponte de Liljeholmen e acelerou ainda mais depois que passou a ponte. Não fazia idéia de onde poderia estar a caminhonete que avistara e não sabia se ela tinha virado na direção de Grõndal ou de Arsta. Resolveu arriscar mais uma vez e pisou fundo no pedal. Estava a mais de cento e cinquenta quilômetros por hora e passou em disparada pelos motoristas cumpridores da lei, refletindo que mais de um deles devia estar anotando sua placa.

À altura de Bredãng, tornou a avistar a caminhonete. Reduziu a distância entre eles a uns cinquenta metros, para poder conferir se era mesmo o veículo certo. Diminuiu a velocidade para noventa quilômetros por hora e se manteve a cerca de duzentos metros da caminhonete. Só então voltou a respirar.

* * *

Miriam Wu sentiu sangue escorrendo pelo pescoço quando caiu dentro da caminhonete. Seu nariz sangrava. A pancada cortara seu lábio inferior e possivelmente lhe quebrara o nariz. O ataque a pegara totalmente de surpresa e toda a sua resistência fora descartada em menos de um segundo. Sentiu o carro arrancando antes mesmo que seu agressor tivesse tempo de fechar a porta. Por um momento, o gigante loiro perdeu o equilíbrio enquanto o carro dava meia-volta.

Miriam Wu se virou e firmou o quadril no piso. Quando o gigante loiro se virou para ela, desfechou-lhe um pontapé. Atingiu-o na têmpora. Viu uma marca no lugar onde o salto bateu. O normal seria ele se machucar.

Ele olhou para ela, chocado. Então sorriu.

Meu Deus, que diabo de Terminator será esse?

Ela deu outro pontapé, mas ele agarrou-lhe a perna e torceu seu pé com tanta brutalidade que ela urrou de dor e foi obrigada a virar de bruços.

Então ele se inclinou sobre ela e esbofeteou-a com a palma da mão. Miriam Wu ficou atordoada, como que atingida por uma maça. Ele se escanchou nas suas costas. Ela tentou empurrá-lo, mas era tão pesado que não conseguiu demovê-lo um milímetro sequer. Ele dobrou-lhe brutalmente os braços às costas e prendeu-os com algemas. Ela estava indefesa. De repente, Miriam Wu se sentiu paralisada de medo.

Mikael Blomkvist passou pelo Globe quando voltava de Tyresjõ. Estivera toda a tarde e noitinha visitando três sujeitos da lista de clientes sexuais. Não dera em absolutamente nada. Topara com indivíduos apavorados, já abalados por Dag Svensson e prontos para ver seu mundo ruir. Tinham suplicado, implorado. Mikael riscara todos de sua lista pessoal de assassinos potenciais.

Ao passar pela ponte de Skanstull pegou o celular e ligou para Erika Berger. Ela não atendeu. Tentou Malu Eriksson. Também não atendeu. Droga. Era tarde. Queria conversar com alguém.

Perguntou-se se Paolo Roberto tinha descoberto alguma coisa sobre Miriam Wu e discou o número dele. Ouviu tocar cinco vezes antes que Paolo atendesse.

- Paolo.

—Oi. É o Blomkvist. Só queria saber como vão as coisas...

—Blomkvist, estou... ssscrrp ssscrrp num carro com a Miriam.

—Não estou escutando.

—Srcp, scrrrraaaap, scrrraaaap.

—A sua voz está sumindo. Não estou escutando. E então a ligação caiu.

Paolo Roberto soltou um palavrão. A bateria do celular acabava de apagar na sua mão, quando passava por Fittja. Apertou no ON e conseguiu reanimar o aparelho. Discou o número do SOS-Brigada, mas assim que atenderam o celular tornou a desligar.

Droga.

Ele tinha um carregador que funcionava no isqueiro do carro, só que estava em casa, em cima do móvel do hall. Jogou o celular no banco do passageiro e se concentrou nos faróis traseiros da caminhonete, que ele queria manter na mira. Dirigia uma BMW com tanque cheio e não havia a mínima possibilidade de a maldita caminhonete se distanciar. Mas não queria ser notado e deixou o espaço entre eles crescer várias centenas de metros.

Um mastodonte movido a anabolizantes nocauteia uma garota na minha frente. Ainda pego esse canalha para trocar umas palavrinhas com ele.

Se Erika Berger estivesse ali o teria chamado de caubói machão. Paolo Roberto chamava isso de ficar bravo.

Mikael Blomkvist passou pela Lundagatan e viu que o apartamento de Miriam Wu estava às escuras. Tentou ligar para Paolo Roberto mais uma vez, só para ser informado que o número estava indisponível. Resmungou um palavrão e voltou para casa para preparar café e sanduíches.

O trajeto durou mais tempo do que Paolo Roberto imaginara. Passaram por Södertálje, depois pegaram a E20 em direção a Stràngnás. Um pouco depois de Nykvarn, a caminhonete entrou à esquerda por estradas secundárias no interior de Sõrmland.

Com isso, aumentava o risco de ele chamar atenção e ser flagrado. Paolo Roberto tirou o pé do acelerador e abriu mais distância entre ele e a caminhonete.

Paolo não era muito bom em geografia, mas até onde podia perceber, passaram a oeste do lago Yngern. Perdeu a caminhonete de vista e acelerou. Chegou a uma linha reta e freou.

A caminhonete tinha sumido. Estradinha não era o que faltava naquele lugar. Ele tinha perdido os canalhas.

Miriam Wu estava com a nuca e o rosto doendo, mas tinha dominado o pânico e a angústia de se ver assim indefesa. Ele tinha parado de bater nela. Ela se sentara, recostada no banco do motorista. Suas mãos estavam algemadas nas costas e havia uma fita adesiva larga tampando sua boca. Tinha uma narina cheia de sangue e sentia dificuldade em respirar.

Fitou o gigante loiro. Desde que a tinha amordaçado, ele não dissera uma palavra sequer e a ignorara solenemente. Ela olhou a marca no lugar onde lhe dera o pontapé que em princípio deveria ter causado algum estrago. Ele parecia nem ter notado. Isso não era normal.

Ele era alto e tremendamente forte. Seus músculos mostravam que ele passava horas por semana numa academia. Mas não era para bombar. Os músculos pareciam naturais. As mãos lembravam enormes frigideiras. Ela entendeu por que tinha tido a impressão de levar uma bordoada quando ele a esbofeteara.

A caminhonete avançava aos solavancos numa estrada em más condições.

Não fazia a menor idéia de onde se encontrava, só achava que tinham rodado pela E4 na direção sul por um bom tempo até enveredar por estradas menores.

Sabia que mesmo que estivesse com as mãos soltas não teria nenhuma chance contra o gigante loiro. Sentia-se totalmente impotente.

Malu Eriksson ligou para Mikael pouco depois das onze da noite, quando ele acabava de chegar e ligar a cafeteira. Estava preparando um sanduíche na cozinha.

—Desculpe eu ligar tão tarde. Faz horas que estou tentando, você não atendia.

—É que eu desliguei o celular enquanto conversava com os clientes sexuais.

—Achei uma coisa que pode ser interessante.

—Estou escutando.

—O Bjurman. Você pediu para eu vasculhar o passado dele.

—Sim.

—Ele nasceu em 1950 e começou o curso de direito em 1970. Formou-se em 1976 e começou a trabalhar no escritório Klang & Reine em 1978, antes de abrir seu próprio escritório em 1989.

—Sei.

—Nesse meio-tempo, entre outras coisas, ele trabalhou um breve período como estagiário no tribunal de instâncias, só umas poucas semanas em 1976. Logo depois do exame, em 1976, trabalhou dois anos, até 1978, como jurista na direção geral da Polícia Nacional.

—Sei.

—Verifiquei as funções dele. Não foi fácil achar. Mas ele instruía casos jurídicos na Säpo. Trabalhava na Brigada dos Estrangeiros.

—Puta merda, repita isso!

—Em outras palavras, ele deve ter trabalhado lá na mesma época que este Bjôrck de Smädalarö.

—Que filho-da-mãe! Björck. Ele não me contou que tinha trabalhado com o Bjurman.

A caminhonete tinha que estar nas redondezas. Paolo Roberto havia ficado tão para trás que em alguns momentos perdera o carro de vista, mas toda vez voltara a localizá-lo, por alguns segundos, até perdê-lo de novo. Fez o retorno pelo acostamento e voltou na direção norte. Dirigia devagar, atento às bifurcações.

A apenas cento e cinquenta metros, avistou de súbito um cone de luz brilhando numa brecha em meio à mata. Divisou uma estradinha florestal do outro lado do caminho e virou naquela direção. Percorreu uns dez metros e estacionou. Não se deu ao trabalho de trancar o carro, voltou correndo para a estrada principal e pulou o barranco. Lamentou não ter trazido uma lanterna enquanto ziguezagueava entre arbustos e mudas de árvores.

A mata formava uma tira estreita rente à estrada e de repente ele se viu num pátio de cascalhos. Avistou algumas construções sombrias e baixas e já ia se aproximando devagar, quando a iluminação sobre o portão de carregamento se acendeu.

Paolo se agachou e não se mexeu mais. Um segundo depois, uma luz foi acesa dentro de uma das construções. O armazém media uns trinta metros de comprimento e ostentava uma estreita fileira de janelas no alto da fachada. O pátio estava cheio de contêineres e, à direita, estava estacionado um caminhão amarelo. Ao lado do caminhão, avistou um Volvo branco. À luz da iluminação externa, percebeu de repente a caminhonete, estacionada apenas vinte e cinco metros adiante.

Uma porta de passagem abriu-se dentro do portão de carregamento bem à sua frente. Um homem loiro de barriga grande saiu do armazém e acendeu um cigarro. Quando ele virou a cabeça, Paolo avistou um rabo de cavalo à luz da abertura.

Paolo não mexeu um dedo, joelho apoiado no chão. Estava totalmente visível, a menos de vinte metros do homem, mas o clarão do isqueiro prejudicara sua visão noturna. Então, Paolo, e também o homem, aparentemente, escutou um grito abafado na caminhonete. Quando o rabo de cavalo avançou em direção ao veículo, Paolo, devagar, deitou-se de bruços.

Ouviu a porta de correr da caminhonete se abrindo e viu o gigante loiro descer, depois inclinar-se para dentro do veículo e tirar de lá Miriam Wu. Pegou-a debaixo do braço e carregou-a sem dificuldade, apesar das tentativas dela de se soltar. Os dois homens trocaram algumas palavras, mas Paolo não conseguiu ouvir o que diziam. Então o homem do rabo de cavalo abriu a porta do motorista e subiu. Arrancou e atravessou o pátio, fazendo uma curva apertada. O feixe dos faróis passou a poucos metros de Paolo. A caminhonete desapareceu num caminho de acesso e Paolo escutou o barulho do motor se distanciando.

Com Miriam Wu debaixo do braço, o gigante loiro entrou no armazém pela porta de passagem. Em seguida, Paolo viu sua silhueta passando por trás das vidraças. Teve a impressão que ele se dirigia a uma área mais afastada da construção.

Levantou-se, todos os sentidos alertas. Sua roupa estava úmida. Sentia-se ao mesmo tempo aliviado e preocupado. Aliviado por ter conseguido achar a caminhonete e estar com Miriam Wu ao alcance da mão, mas também cheio de respeito pelo preocupante gigante loiro que a tratava como se ela não passasse de uma sacola de compras da Konsum. Paolo reparava principalmente em sua enorme estatura e na impressão de força imensa que ele transmitia.

O mais lógico teria sido ir embora e chamar a polícia. Mas seu celular estava mudo e ele tinha apenas uma vaga idéia de onde se encontrava; não estava certo se conseguiria indicar o caminho para chegar até ali. Também não fazia a menor idéia do que estava acontecendo lá dentro com Miriam Wu.

Devagar, deu um semicírculo em volta da construção e constatou que aparentemente só havia uma entrada. Dois minutos depois, estava de volta, ciente de que precisava tomar uma decisão. Paolo já tinha entendido que o gigante loiro não era um mocinho nessa história. O sujeito tinha nocauteado Miriam Wu. Paolo não estava realmente com medo - tinha muita confiança em si próprio e sabia que podia se mostrar eficiente caso fosse preciso chegar às vias de fato. A questão era se o homem lá dentro estava armado, e se havia mais de um. Hesitou. Não devia haver mais ninguém.

O portão de carregamento, amplo o suficiente para dar passagem ao caminhão amarelo estacionado lá fora, tinha uma porta de entrada comum, embutida. Aproximou-se dessa porta, pegou na maçaneta e abriu. Viu-se num grande armazém iluminado por umas poucas lâmpadas, cheio de tralhas, caixas rasgadas e material desarrumado.

Miriam Wu sentia as lágrimas lhe escorrerem no rosto. Não chorava tanto de dor, e sim de medo. Durante o trajeto, o gigante a ignorara totalmente. Quando a caminhonete parou, ele tinha arrancado a fita adesiva. Erguera-a e carregara-a sem nenhum esforço, e a jogara no piso de cimento sem dar ouvidos as suas súplicas e protestos. Quando olhava para ela, era com um olhar gelado.

Miriam Wu compreendeu, de repente, que iria morrer naquele armazém.

Ele lhe deu as costas, se aproximou de uma mesa, abriu uma garrafa de água mineral e bebeu largos goles. Não prendera as suas pernas, e Miriam Wu começou a se levantar.

Ele voltou-se para ela e sorriu. Estava mais perto da porta que ela. Não havia a menor chance de passar na frente dele. Resignada, quedou-se ajoelhada e se enfureceu consigo mesma. Você vai ver se eu me rendo sem lutar. Ficou de pé e cerrou os dentes. Vamos lá, seu Terminator idiota!

Mãos algemadas atrás das costas sentiu-se desajeitada e sem equilíbrio, mas, quando ele se aproximou, ela começou a girar e procurar uma brecha. Desfechou-lhe um pontapé nas costelas, deu uma viravolta e desfechou outro na virilha. Atingiu-o no quadril, recuou um metro e trocou de perna para o golpe seguinte. Com as mãos nas costas, não tinha equilíbrio suficiente para atingir o rosto, mas tascou-lhe um pontapé vigoroso no peito.

Ele estendeu uma mão, agarrou-lhe o ombro e a virou como se ela fosse uma folha de papel. Deu-lhe um soco só, não particularmente forte, na lombar. Miriam Wu urrou enlouquecida quando uma dor paralisante lhe transpassou o diafragma. Caiu de joelhos. Ele ainda lhe deu uma bofetada e ela desmoronou no chão. Ele levantou o pé e desferiu-lhe um pontapé no flanco. Ela ficou sem fôlego e ouviu umas costelas se quebrando.

Paolo Roberto não viu aquela surra, mas de repente ouviu Miriam Wu urrar de dor, um grito forte e estridente, logo interrompido. Voltou a cabeça na direção do som e cerrou os dentes. Havia outra sala, atrás de uma parede divisória. Atravessou o local sem fazer ruído e deu uma olhada cautelosa pela porta entreaberta no instante em que o gigante loiro empurrava Miriam Wu de costas. Ele sumiu alguns segundos de seu campo de visão e voltou de repente com uma serra elétrica que depositou no chão diante dela. Paolo Roberto franziu o cenho.

—Quero uma resposta para uma pergunta simples.

Sua voz era estranhamente aguda, parecia quase a voz de um menino. Paolo notou um sotaque estrangeiro.

—Onde está Lisbeth Salander?

—Eu não sei - murmurou Miriam Wu.

—Essa não é a resposta correta. Vou lhe dar uma segunda chance antes de ligar este negócio.

Ele se agachou e deu uns tapinhas na serra elétrica.

—Onde Lisbeth Salander está se escondendo? Miriam Wu balançou a cabeça.

Paolo hesitou. Mas quando o gigante loiro estendeu a mão para pegar a serra elétrica, deu três passadas decididas sala adentro e enfiou-lhe um gancho de direita na lombar.

Paolo Roberto não se tornara um boxeador mundialmente famoso dando mostras de delicadeza no ringue. Tinha no currículo trinta e três lutas profissionais, das quais vencera vinte e oito. Quando batia em alguém, esperava uma reação. Reação essa que seria, por exemplo, o alguém em questão cair de joelhos e sentir dor em algum lugar. Desta vez, porém, teve a sensação de ter acertado uma parede de cimento. Nunca vivera nada parecido naqueles anos todos de ringue. Olhou estupefato, para o colosso à sua frente.

O gigante loiro se virou e encarou Paolo Roberto com igual estupefação.

—O que você acha de enfrentar alguém da sua categoria? - perguntou Paolo Roberto.

Bateu uma série de direita-esquerda-direita na direção do diafragma, botando força. Legítimas bordoadas. E, de novo, teve a impressão de estar batendo numa parede. O único efeito foi o gigante loiro recuar meio passo, mais surpreso do que abalado pela força dos golpes. E, súbito, sua fisionomia se iluminou num sorriso.

—Você é o Paolo Roberto! - disse.

Paolo estacou, pasmo. Acabava de enfiar quatro golpes que, de acordo com as regras, teriam jogado o gigante loiro no chão, e ele próprio deveria estar voltando para o seu lado do ringue enquanto o juiz abria a contagem. Nenhum dos golpes parecia ter surtido o menor efeito.

Caramba. Isso não é normal.

Depois viu, quase em câmera lenta, o gancho de direita do loirinho cortar o ar. O cara era lento e seu golpe, previsível. Paolo esquivou-se e aparou parcialmente com o ombro esquerdo. Teve a sensação de ter sido atingido por um cano de ferro.

Paolo Roberto recuou dois passos, cheio de um renovado respeito por seu adversário.

Algo está errado. Ninguém bate desse jeito, porra.

Aparou maquinalmente um gancho de esquerda com o antebraço e sentiu de chofre uma dor fulgurante. Não teve tempo de aparar o gancho de direita que surgiu do nada e veio parar em sua testa.

Feito bêbado, Paolo recuou cambaleando até a porta. Estatelou-se ruidosamente contra uma pilha de bancos de madeira e balançou a cabeça. Sentiu imediatamente o sangue escorrendo, abundante, no seu rosto. Arrancou-me o supercílio. Vão ter que me costurar. De novo!

No instante seguinte, o gigante entrou em seu campo de visão e Paolo jogou-se instintivamente para o lado. Esquivou por um fio mais uma bordoada do punho imenso. Recuou rápido três, quatro passos e conseguiu levantar os braços em posição de defesa. Paolo Roberto estava abalado.

O gigante loiro fitou-o com olhos curiosos, quase divertidos. Então adotou a mesma posição de defesa de Paolo Roberto. É um boxeador. Começaram lentamente a se cercar.

Os cento e oitenta segundos que se seguiram foram à luta mais esquisita que Paolo Roberto já tinha enfrentado. Não havia cordas nem luvas. Auxiliares e juiz, inexistentes. Nenhum gongo interrompendo a luta e mandando cada combatente para o seu canto do ringue fazer uma pausa de alguns segundos, com água, sais de amoníaco e uma toalha para limpar o sangue dos olhos.

Paolo Roberto entendeu de repente que lutava por sua vida. Todo o treino, todos aqueles anos batendo em sacos de areia, todo o sparring e toda a sua experiência de todas as lutas se concentraram na energia que ele produziu rapidamente enquanto sentia a adrenalina circular como nunca.

Já não punha surdina em seus golpes. Ele e o adversário se enfrentavam numa luta em que Paolo investia toda a sua força e todos os seus músculos. Esquerda, direita, esquerda, esquerda de novo e um jab de direita no rosto, se abaixar para o gancho de esquerda, um passo atrás, ataque de direita. Cada golpe desferido por Paolo Roberto atingia o adversário.

Estava enfrentando a luta mais importante de sua vida. Brigava tanto com o cérebro como com os punhos. Conseguia se abaixar e evitar cada golpe que o gigante desfechava.

Aplicou-lhe um puríssimo gancho de direita no maxilar, que deveria ter derrubado o adversário no chão. Teve a sensação de rebentar os ossos da mão. Olhou para as suas juntas e viu que estavam cobertas de sangue. Observou vermelhões e hematomas no rosto do gigante loiro. O adversário de Paolo dava a impressão de nem perceber os golpes.

Paolo recuou e fez uma pausa enquanto avaliava o adversário. Ele não é boxeador. Movimenta-se como um boxeador, mas está a dez mil milhas de saber lutar boxe. Está fazendo de conta. Não sabe aparar. Ele telegrafa seus golpes. E é incrivelmente lento.

No instante seguinte, o gigante enfiou um gancho de esquerda na caixa torácica de Paolo. Foi seu segundo lance sério. Paolo sentiu a dor atravessando seu corpo quando as costelas estalaram. Tentou recuar e tropeçou na tralha espalhada no chão e caiu de costas. No espaço de um segundo, viu o gigante se erguer à sua frente, mas teve tempo de rolar para o lado e em seguida se pôr de pé, meio atordoado.

Recuou e tentou concentrar forças.

O gigante vinha mais uma vez para cima dele, mas Paolo já estava na defensiva. Esquivou, esquivou de novo e recuou. Sentia dor toda vez que aparava um golpe com o ombro.

Então chegou o momento que todo boxeador já experimentou, assustado, uma vez ou outra. Uma sensação que pode surgir bem no meio da luta. A sensação de não estar dando conta. A certeza. Droga estou perdendo.

É o momento decisivo de quase todas as lutas de boxe.

O momento em que, súbito, falta força e a adrenalina circula tão depressa que vira uma carga paralisante, e uma capitulação resignada aparece no ringue, qual fantasma. É o momento que distingue o amador do profissional, o vencedor do perdedor. Poucos boxeadores, ao enfrentarem esse abismo, encontram força suficiente para reverter à luta e transformar em vitória uma derrota garantida.

Paolo Roberto foi tomado por essa certeza. Experimentou-a como um súbito frêmito na cabeça que o atordoou totalmente, e viveu aquele instante como se observasse a cena de fora, como se olhasse para o gigante loiro através da lente de uma câmera fotográfica. Naquele momento, era ganhar ou morrer.

Paolo Roberto recuou, descrevendo um amplo semicírculo para concentrar forças e ganhar tempo. O gigante seguiu-o. metódica mas lentamente, como se soubesse que o fim já estava dado e quisesse estender o round. Ele está boxeando, só que não sabe boxear. Ele sabe quem eu sou. Quer acabar comigo. A força dele é quase inconcebível e ele parece totalmente insensível aos golpes.

Os pensamentos giravam num turbilhão pela cabeça de Paolo enquanto ele tentava avaliar a situação e decidir o que fazer.

Súbito, reviveu a noite de Mariehamn, dois anos antes. Sua carreira profissional se encerrara de maneira brutal no seu encontro com o argentino Sebastián Luján. Experimentara o primeiro K. O. de sua vida e ficara desacordado durante quinze minutos.

Tinha repensado inúmeras vezes no que havia dado errado. Ele estava em excelente forma. Estava concentrado. Sebastián Luján não era melhor que ele. Mas o argentino conseguira desfechar um golpe perfeitamente puro, e de repente o round se transformara em naufrágio.

Mais tarde, no vídeo, vira a si mesmo titubeando indefeso. O knock-out acontecera vinte e três segundos depois.

Sebastián Luján não era melhor que ele, nem mais bem treinado. A margem era tão tênue que o resultado da luta poderia perfeitamente ter sido o inverso.

A única diferença que ele via, a posteriori, é que Sebastián Luján havia sido mais guloso. Quando Paolo subiu ao ringue em Mariehamn, queria vencer, mas não estava com vontade de boxear. Já não era, para ele, uma questão de vida ou morte. Uma derrota não seria nenhuma tragédia.

Um ano e meio depois, continuava boxeando. Não era mais profissional e só aceitava lutas amistosas como sparring. Mas ele ainda treinava. Não ganhara peso nem exibia pneuzinhos na cintura. Não era, evidentemente, um instrumento tão afinado como às vésperas de uma luta por um título, com o corpo exercitado meses a fio, mas era Paolo Roberto e tinha, sim, muito brio. E, à diferença daquela de Mariehamn, esta luta no armazém ao sul de Nykvarn era literalmente de vida ou morte.

Paolo Roberto se decidiu de repente. Estacou e deixou o gigante loiro chegar bem perto. Fintou com o esquerdo e investiu tudo o que tinha num gancho de direita. Jogou todas as suas forças e explodiu num golpe que atingiu boca e nariz. Seu ataque foi totalmente inesperado, depois de ter batido em retirada por tanto tempo. Enfim, ouviu alguma coisa cedendo. Completou com esquerdo-direito-esquerdo e desferiu os três golpes em pleno rosto.

O gigante loiro lutava em câmera lenta e ripostou com o direito. Telegrafou o golpe com muita antecedência, Paolo percebeu e se abaixou diante do punho imenso. Viu quando ele passou o peso para o outro lado e notou que o gigante pretendia continuar com o esquerdo. Em vez de aparar, Paolo se inclinou para trás e deixou o gancho de esquerda passar na frente de seu nariz. Respondeu com um golpe poderoso no lado do corpo, logo abaixo das costelas. Quando o gigante se esquivou para aparar o ataque, mais uma vez surgiu o gancho de esquerda de Paolo, abatendo-se em seu nariz.

Então sentiu que tudo o que fazia estava certo e que detinha o absoluto controle do combate. O inimigo, por fim, recuava. Sangrava pelo nariz. Não sorria mais.

Então o gigante loiro deu um pontapé.

O pé veio e pegou Paolo Roberto totalmente de surpresa. Por força do hábito, Paolo entrara em ritmo normal de boxe e não esperava o pontapé. Foi como uma martelada na lateral da coxa, logo acima do joelho, e uma dor fulgurante perpassou sua perna. Não. Deu um passo atrás quando a perna direita cedeu e tropeçou mais uma vez nos troços espalhados pelo chão.

O gigante olhou para ele. Por um breve segundo, seus olhos se encontraram. A mensagem era clara. A luta terminara.

Então os olhos do gigante se arregalaram quando Miriam Wu lhe desfechou um pontapé por trás, no meio das pernas.

Cada músculo do corpo de Miriam Wu doía, mas de algum modo ela tinha conseguido passar as mãos algemadas por baixo das nádegas, ficando assim com as mãos na frente do corpo. No seu estado, foi uma façanha de acrobacia e tanto.

Sentia dor nas costelas, na nuca, nas costas, na lombar, e só a muito custo pusera-se de pé. Por fim, cambaleou em direção à porta e, estupefata, viu Paolo Roberto - de onde saiu esse aí? - atingir o gigante com seu gancho de direita, depois a seqüência de golpes no rosto antes de ser ceifado pelo pontapé.

Miriam Wu percebeu que não estava minimamente interessada em saber como e por que Paolo Roberto tinha aparecido ali. Ele era do time dos mocinhos. Pela primeira vez na vida, experimentou o desejo assassino de machucar alguém. Deu alguns passos rápidos e mobilizou suas últimas migalhas de energia e os músculos que ainda estavam intactos. Avançou para o gigante pelas costas e enfiou-lhe um pontapé entre as pernas. Não era, decerto, o boxe tailandês segundo as regras da arte, mas o pontapé surtiu efeito.

Miriam Wu meneou a cabeça consigo mesma, com ar entendido. Os caras até podiam ser do tamanho de uma casa e feitos de granito, mas suas bolas ficavam sempre no mesmo lugar. E seu pontapé tinha sido tão puro que deveria ser registrado no Livro Guinness dos recordes.

Pela primeira vez o gigante loiro pareceu abalado. Soltou um gemido, levou a mão aos genitais e caiu de joelhos.

Miriam ficou um ou dois segundos indecisa, até se dar conta de que tinha que prosseguir e tentar acabar com aquilo. Optou por um pontapé na cara, mas ele conseguiu erguer um braço. Normalmente, seria impossível ele se recuperar tão depressa. E era como chutar o tronco de uma árvore. Ele agarrou bruscamente o seu pé, derrubou-a e começou a puxá-la para si. Ela viu o punho dele se levantar, contorceu-se desesperadamente e deu um golpe com sua perna livre. Atingiu-o na orelha no exato instante em que o soco se abatia em sua têmpora. Miriam Wu teve a sensação de ter dado de cabeça numa parede. Viu estrelas e tudo ficou preto diante de seus olhos.

O gigante loiro começou a se levantar.

Foi então que Paolo Roberto acertou a cabeça dele com a tábua na qual tropeçara. O gigante loiro caiu duro, batendo no chão com estardalhaço.

Paolo Roberto contemplou o armazém com uma sensação de irrealidade. O gigante loiro se contorcia no chão. Miriam Wu estava com os olhos vidrados e parecia totalmente nocauteada. Os esforços conjuntos dos dois lhes concediam uma trégua momentânea.

Paolo Roberto tinha dificuldade em se apoiar na perna machucada, desconfiava que um músculo cedera logo acima do joelho. Manquejou até Miriam Wu e colocou-a de pé. Ela começou a se mexer, mas o olhar que lhe dirigiu estava muito incerto. Sem uma palavra, ele puxou-a sobre o ombro e, mancando, se encaminhou para a porta. A dor no joelho direito era tanta que ele vez ou outra pulava numa perna só.

Foi uma libertação ver-se lá fora, no ar escuro e frio. Mas nem pensar em parar. Atravessou o pátio de cascalho e penetrou na mata, refazendo o caminho por onde viera. Assim que chegou no meio das árvores, tropeçou na raiz de um pinheiro caído e desabou. Miriam Wu gemeu e ele ouviu a porta do armazém se abrindo ruidosamente.

O gigante loiro apareceu, silhueta monumental no retângulo iluminado da abertura da porta. Paolo pôs uma mão sobre a boca de Miriam Wu. Inclinou-se e sussurrou em seu ouvido que ficasse em absoluto silêncio.

Então tateou o chão em volta da raiz e achou uma pedra, maior que seu punho fechado. Fez o sinal da cruz. Pela primeira vez em sua vida pecadora, Paolo Roberto estava preparado para matar um ser humano. Machucado e maltratado como estava, não aguentaria mais um round. Mas ninguém, nem aquele monstro loiro que era uma aberração da natureza, podia lutar com a cabeça quebrada. Ele apertou a pedra na mão e sentiu que ela tinha forma oval e uma borda afiada.

O gigante loiro foi até a esquina da construção e, dali, deu uma volta ampla pelo pátio. Parou a menos de dez metros de Paolo, que prendia a respiração. O gigante escutou, espreitou - mas não podia saber para que lado eles tinham se esvanecido noite adentro. Depois de espiar alguns minutos, pareceu entender a inutilidade do seu gesto. Entrou na construção a passos rápidos, ausentando-se um ou dois minutos. Apagou a luz, saiu com uma sacola e dirigiu-se para o Volvo branco. Arrancou a toda e disparou pelo caminho de acesso. Paolo ficou escutando em silêncio, até o ruído do motor sumir ao longe. Baixou o olhar e viu os olhos de Miriam cintilando no escuro.

—Olá, Miriam - disse. —Meu nome é Paolo Roberto, e você não precisa ter medo de mim.

—Eu sei.

A voz dela estava fraca. Esgotado, ele se recostou na imensa raiz e sentiu refluir, no seu corpo, o nível da adrenalina.

—Não sei como vou fazer para chegar lá - disse Paolo -, mas estou com um carro estacionado do outro lado da estrada. A uns cento e cinquenta metros daqui.

* * *

O gigante loiro freou e entrou numa área de parada na estrada a leste de Nykvan. Estava chacoalhado, abalado, e sentia uma coisa estranha na cabeça.

Era a primeira vez na vida que apanhava numa briga. E o homem que lhe passara o corretivo era Paolo Roberto... o famoso boxeador. Parecia um sonho absurdo, do tipo que ele às vezes tinha em noites agitadas. Não conseguia entender de onde Paolo Roberto surgira. Ele simplesmente aparecera do nada no armazém.

Uma coisa totalmente insana.

Ele não sentira os golpes de Paolo Roberto. Isso não o surpreendia. Mas sentira o pontapé entre as pernas. E o tremendo golpe na cabeça quase o nocauteara. Com os dedos, apalpou a nuca e encontrou um galo enorme. Apertou, e não sentiu nenhuma dor. Mesmo assim, sua cabeça rodava. Surpreso, ao tatear com a língua notou que perdera um dente da arcada superior. Sua boca estava com gosto de sangue. Segurou o nariz com o polegar e o indicador, e movimentou-o devagar. Ouviu um estalo na cabeça e constatou que o nariz estava quebrado.

Agira corretamente ao pegar a sacola e sair do armazém antes que a polícia chegasse. Mas cometera um erro colossal. Tinha visto no Discovery Channel que os investigadores eram capazes de achar grande quantidade de provas médico-legais no local de um crime. Sangue. Cabelos, DNA.

Não estava com a menor vontade de voltar para o armazém, mas não tinha escolha. Precisava fazer uma faxina. Deu meia-volta e saiu em sentido contrário. Pouco antes de chegar a Nykvarn, cruzou com um carro sem nem prestar atenção nele.

O trajeto de volta a Estocolmo foi um pesadelo. Paolo Roberto estava com sangue nos olhos e tinha apanhado tanto que seu corpo lhe fazia sofrer um martírio. Ia dirigindo de qualquer jeito e percebeu que ziguezagueava de um lado para o outro da estrada. Enxugou os olhos com uma mão e apalpou o nariz devagarinho. Estava doendo muito mesmo, e ele só conseguia respirar pela boca. Espreitava constantemente um Volvo branco, e teve a impressão de ter cruzado com um perto de Nykvarn.

Ao chegar à E20, ficou mais fácil dirigir. Pensou em parar em Södertálje, mas não tinha idéia de onde poderia ir. Deu uma olhada em Miriam Wu, ainda algemada e arriada, sem cinto de segurança, no banco traseiro. Tivera que carregá-la até o carro, e ela tinha desmaiado assim que foi puxada para dentro. Não sabia se estava desacordada por causa dos ferimentos ou se tinha simplesmente se desconectado de pura exaustão. Hesitou. Por fim, pegou a E4 em direção a Estocolmo.

Mikael Blomkvist estava dormindo havia apenas uma hora quando o telefone começou a tocar. Olhou o relógio, viu que eram pouco mais de quatro da manhã e se esticou para atender, ainda sonolento. Era Erika Berger. De início, não entendeu o que ela dizia.

—Onde é que está o Paolo Roberto?

—No hospital de Sôder, com a Miriam Wu. Ele tentou te ligar, mas você não atendeu o celular e ele não tem o número do seu telefone fixo.

—Desliguei o celular. O que ele está fazendo no hospital? A voz de Erika Berger estava paciente, mas firme.

—Mikael. Pegue um táxi e vá correndo até lá ver o que foi. Ele estava completamente confuso quando me ligou, falou numa serra elétrica, numa casa no meio do mato e num monstro que não sabia lutar boxe.

Mikael pestanejou, sem entender. Então balançou a cabeça e estendeu o braço para pegar a calça.

Paolo Roberto parecia péssimo, deitado de cuecas numa maca. Fazia mais de uma hora que Mikael esperava para vê-lo. O nariz estava tapado por um curativo. O olho esquerdo estava todo inchado e a sobrancelha ostentava um esparadrapo cirúrgico no lugar em que levara cinco pontos de sutura. Tinha uma bandagem em volta das costelas e ferimentos e arranhões no corpo inteiro. O joelho esquerdo estava envolto numa atadura bem apertada.

Mikael Blomkvist lhe ofereceu café num copinho de papelão da máquina do corredor, e examinou seu rosto com jeito crítico.

—Você está parecendo um carro depois de uma batida - disse. —Me conte o que aconteceu.

Paolo Roberto balançou a cabeça e seu olhar cruzou com o de Mikael.

—Puta de um monstro - ele disse.

—O que aconteceu?

Paolo Roberto balançou mais uma vez a cabeça e olhou para os próprios punhos. As juntas estavam tão machucadas que ele mal conseguia segurar o copinho. Tinham lhe aplicado curativos. A mulher dele apreciava o boxe com restrições e ia ficar furiosa.

—Eu sou um boxeador - disse. —Quero dizer, quando eu estava na ativa, não tinha medo de entrar num ringue contra quem quer que fosse. Levei boas bordoadas, sei dar e receber. Quando ataco alguém, é para o cara cair e sentir dor.

—E não foi isso que aconteceu.

Paolo Roberto balançou a cabeça pela terceira vez. Contou calmamente, em detalhes, os acontecimentos daquela noite.

—Eu acertei o cara umas trinta vezes, pelo menos. Catorze, quinze vezes na cabeça. Atingi o maxilar quatro vezes. No começo, me contive; não queria matar, só me defender. No fim, dei absolutamente tudo de mim. Um golpe meu teria que ter quebrado o maxilar dele. E o puta do monstro só se sacudiu um pouco e continuou batendo. Porra de merda, aquilo não era um ser humano normal.

—Como é que ele é?

—Tem a estrutura de um robô antitanque. Não estou exagerando. Mede mais de dois metros e deve pesar uns cento e trinta, cento e quarenta quilos. Não estou brincando quando eu digo que ele é puro músculo e tem uma ossatura de cimento armado. Um puta gigante loiro que simplesmente não sente dor.

—Você nunca o tinha visto antes?

—Nunca. Não é um boxeador. Mas, estranhamente, ainda assim é um boxeador.

—O que você quer dizer?

Paolo Roberto refletiu um instante.

—Ele ignora tudo de boxe. Eu podia fintar e obrigar ele a abrir a guarda, e ele não tinha a menor idéia de como se movimentar para evitar os golpes. Não dava uma dentro. Mas, ao mesmo tempo, tentava se movimentar igual a um boxeador. Levantava o braço do jeito certo e ficava o tempo todo em posição de partida, feito um boxeador de verdade. Parecia que já tinha treinado boxe, só que sem escutar nada do que os treinadores falavam.

—Certo.

—O que salvou a minha vida, e a vida da garota, é que ele se movimentava superdevagar. Mandava uns swings de amador, avisando com meses de antecedência, de modo que eu conseguia esquivar ou aparar. Levei dois murros: um na cara, e você pode ver o resultado, e outro no corpo, que me quebrou uma costela. Mas foram dois quase-golpes. Se ele tivesse se posicionado direitinho, teria me arrancado a cabeça.

Paolo Roberto começou a rir de repente. Um riso estrondoso.

—O que foi?

—Eu venci. Esse louco varrido tentou me matar, e eu venci. Consegui derrubá-lo. Mas tive que usar a merda de uma tábua para dar o que ele merecia.

Tornou a ficar sério.

—Se a Miriam Wu não tivesse chutado as bolas dele na hora certa, vai saber como isso teria acabado.

—Paolo, estou muito, muito feliz por você ter vencido esta luta. A Miriam Wu vai dizer a mesma coisa quando acordar. Você tem alguma informação sobre o estado dela?

—Está mais ou menos do mesmo jeito que eu. Concussão cerebral, várias costelas partidas, nariz quebrado e um estrago nos rins.

Mikael se inclinou e pôs a mão no joelho de Paolo Roberto.

—Se algum dia você precisar de um favor... - disse Mikael. Paolo Roberto meneou a cabeça e sorriu suavemente.

—Blomkvist, se você precisar de mais um favor...

—Sim.

—...chame o Sebastián Luján.

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