1. SEXTA-FEIRA 20 DE DEZEMBRO


O processo estava definitivamente encerrado e tudo que podia ser dito fora dito. Ele não duvidara um só instante que seria declarado culpado. A sentença fora pronunciada às dez da manhã desta sexta-feira e agora não restava senão ouvir a opinião dos jornalistas que aguardavam no corredor do tribunal.

Mikael Blomkvist os viu pela fresta da porta e deteve-se alguns segundos. Não tinha vontade de discutir o veredicto cuja cópia acabava de obter, mas as perguntas eram inevitáveis e ele sabia — melhor que ninguém — que elas deviam ser feitas e que era preciso respondê-las. Eis o que é ser um criminoso, pensou. Do outro lado do microfone. Endireitou-se, pouco à vontade, e tentou sorrir. Os repórteres o receberam e o cumprimentaram gentilmente, um pouco constrangidos.

— Vejamos... Aftonbladet, Expressen, TT, TV4 e... você de onde é?... Ah, sim, Dagens Industri. Parece que virei uma celebridade — constatou Mikael Blomkvist.

— Uma declaração, por favor, Super-Blomkvist! — disparou o enviado de um dos jornais vespertinos.

Mikael Blomkvist, cujo nome completo era Carl Mikael Blomkvist, forçou-se a não levantar os olhos para o céu como fazia todas as vezes que ouvia esse apelido. Certa vez, vinte anos antes, quando tinha vinte e três anos e iniciava-se na profissão de jornalista como substituto de férias de verão, Mikael Blomkvist descobrira por acaso uma gangue de assaltantes de bancos, autores de cinco ações violentas muito noticiadas naqueles últimos dois anos. Tratava-se, com toda a certeza, do mesmo grupo; sua especialidade era chegar de carro em cidades pequenas e assaltar um ou dois bancos com precisão militar. Usavam máscaras de borracha dos personagens de Walt Disney e foram batizados — segundo uma lógica policial não de todo absurda — de o Bando do Pato Donald. Os jornais, porém, preferiram chamá-los de os Irmãos Metralha, apelido um pouco mais sério, já que em duas ocasiões haviam disparado, sem escrúpulos, tiros de advertência, sem se importar com a segurança das pessoas, ameaçando transeuntes e curiosos.

O sexto ataque à mão armada ocorreu num banco de Östergötland, em pleno verão. Um repórter da rádio local achava-se no banco no momento do assalto e reagiu de acordo com as regras da profissão. Assim que os assaltantes deixaram o banco, ele correu até uma cabine telefônica e se comunicou com a rádio para transmitir ao vivo a informação.

Mikael Blomkvist passava alguns dias com uma amiga na casa de campo dos pais dela, não muito distante de Katrineholm. Quando a polícia o interrogou, ele não soube dizer exatamente por que fizera a ligação, mas no momento em que escutava as informações no rádio lembrou-se de quatro sujeitos numa casa de veraneio a poucas centenas de metros dali. Já os vira dois dias antes, quando passeava com a amiga: os sujeitos jogavam badminton no jardim.

Ele vira apenas quatro jovens louros e atléticos, de bermuda e peito nu, visivelmente adeptos do body-building, mas algo nesses jogadores de badminton o fizera olhar uma segunda vez — talvez porque jogassem, sob um sol escaldante, com uma energia e uma violência espantosas. Não parecia um jogo, e isso chamara a atenção de Mikael.

Não havia nenhum motivo racional para suspeitar que aqueles homens fossem os assaltantes do banco; no entanto, depois do flash na rádio, Mikael Blomkvist saiu para dar uma volta e se posicionou numa colina com vista para a casa, de onde constatou que tudo ali parecia vazio até o momento. Depois de uns quarenta minutos, ele viu o grupo chegar num Volvo e estacionar. Pareciam apressados, cada um carregava uma sacola, o que apenas podia significar que eles haviam saído para tomar banho em algum lugar. Mas um deles voltou ao carro e pegou um objeto, que se apressou a cobrir com o blusão do abrigo. Mesmo de seu posto de observação relativamente afastado, Mikael viu que se tratava de um rifle AK4, do tipo dos que ele mesmo manipulara havia não muito tempo durante seu ano de serviço militar. Foi o que o levou a chamar a polícia e a relatar suas observações. Começaram então três dias de uma intensa vigilância da casa, com Mikael na primeira fila, sustentado por copiosos honorários de freelance pagos por um dos jornais vespertinos. A polícia montou seu quartel-general num trailer estacionado no terreno da casa de campo onde Mikael passava férias.

O caso dos Irmãos Metralha deu a Mikael a incontestável condição de vedete, que ele tanto necessitava como jornalista iniciante. O reverso da celebridade foi que o outro jornal vespertino não pôde deixar de dar a manchete: "Super-Blomkvist resolve o mistério dos Metralha". O texto gozador, escrito por uma redatora não muito jovem, continha várias referências ao herói dos romances juvenis de Astrid Lindgren. Para completar, o jornal ilustrava o artigo com uma foto não muito clara, em que Mikael, de boca aberta e dedo indicador erguido, parecia dar instruções a um policial de uniforme. Na realidade, o que ele indicava nesse momento eram os sanitários no fundo do jardim.


A partir desse dia, para seu grande desespero, seus colegas jornalistas passaram a chamá-lo de Super-Blomkvist. Era um apelido pronunciado com um toque malicioso, nunca maldoso, mas também nunca verdadeiramente carinhoso. Ele não tinha nada contra a pobre Astrid Lindgren — adorava seus livros e as aventuras de seu jovem herói detetive —, porém detestava o apelido. Haviam sido necessários vários anos e méritos jornalísticos bem mais consistentes para que o apelido começasse a se diluir, e Mikael ainda hoje se contraía toda vez que o chamavam de Super-Blomkvist.

Assim, armou um sorriso tranquilo e olhou o enviado do jornal vespertino bem nos olhos.

— Você só precisa inventar alguma coisa. Não é o que costuma fazer quando escreve?

O tom não era áspero. Todos se conheciam um pouco, e os críticos mais ferrenhos de Mikael não tinham vindo. Ele já havia trabalhado com um dos rapazes que estavam ali; quanto à moça da Tv4, por pouco não transara com ela numa festa anos antes.

— Eles não acreditaram em você — constatou o Dagens Industri, que parecia ter enviado um foca.

— Pode-se dizer que sim — reconheceu Mikael. Dificilmente poderia responder outra coisa.

— Como está se sentindo?

Apesar da gravidade da situação, nem Mikael nem os jornalistas credenciados puderam deixar de esboçar um sorriso ao ouvir a pergunta. Mikael trocou um olhar com a moça da TV4. Como está se sentindo? Pergunta que os jornalistas sérios dizem ser a única que os repórteres esportivos sabem fazer ao Esportista Sem Fôlego que cruzou a linha de chegada. Mas ele voltou a ficar sério.

— É evidente que só posso lamentar que o tribunal não tenha chegado a outras conclusões — respondeu um tanto formal.

— Três meses de prisão e cento e cinquenta mil coroas por perdas e danos. Não é pouco — disse a moça da TV4.

— Sobreviverei.

— Você pretende se desculpar com Wennerström, apertar-lhe a mão?

— Não, nem imagino uma coisa dessas. Minha opinião sobre a moralidade do senhor Wennerström nos negócios não mudou muito.

— Então continua afirmando que ele é um escroque? — perguntou vivamente o Dagens Industri.

Uma declaração acompanhada de uma manchete potencialmente devastadora anunciava-se por trás da pergunta, e Mikael poderia ter pisado na casca de banana se o repórter não tivesse assinalado o perigo ao avançar o microfone com demasiada pressa. Ele refletiu sobre a resposta por alguns segundos.

O tribunal acabara de concluir que Mikael Blomkvist caluniara o financista Hans-Erik Wennerström. Ele fora condenado por difamação. O processo terminara e Mikael não pretendia recorrer. Mas o que aconteceria se, por imprudência, reiterasse suas acusações ao sair da sala do tribunal? Decidiu que não tinha vontade de saber.

— Julguei ter tido boas razões para publicar as informações de que eu dispunha. A opinião do tribunal foi outra e evidentemente sou obrigado a aceitar que o processo siga seu curso. Agora vamos discutir esse julgamento a fundo na redação da revista antes de decidir o que faremos. Não posso dizer mais nada.

— Mas você está esquecendo que nós, como jornalistas, devemos ter como provar nossas afirmações — disse a moça da TV4 com um tom de voz levemente cáustico. Ponto difícil de contestar. Eles haviam sido amigos. Ela exibia um rosto neutro, mas Mikael teve a impressão de vislumbrar uma sombra de decepção em seus olhos.

Ainda durante alguns dolorosos minutos, Mikael Blomkvist respondeu às perguntas. A que pairava no ar e que nenhum repórter decidia-se a fazer — talvez porque de tão incompreensível se tornava incômoda — era como Mikael pudera escrever um texto tão sem substância. Os repórteres ali presentes, com exceção do foca do Dagens Industri, eram todos veteranos, com grande experiência profissional. Para eles, a resposta a essa pergunta achava-se além do limite do compreensível.

A moça da TV4 pediu que ele ficasse em frente à porta do Palácio de Justiça e fez suas perguntas à parte, diante da câmera. Ela foi mais amável do que ele merecia, e Mikael deu declarações suficientes para satisfazer a todos os jornalistas. O caso renderia grandes manchetes — era inevitável —, mas ele se forçou a pôr na cabeça que não se tratava, de modo algum, do maior acontecimento do ano na mídia. Quando os repórteres conseguiram o que queriam, foram embora para suas respectivas redações.


Tinha a intenção de voltar a pé para casa, mas ventava muito naquele dia de dezembro e ele sentia frio. Ao sair sozinho do Palácio de Justiça, viu William Borg descer de um carro no qual permanecera durante a entrevista. Seus olhares se cruzaram, William Borg exibia um grande sorriso.

— Valeu a pena vir até aqui para vê-lo com esse documento na mão. Mikael não respondeu. William Borg e Mikael Blomkvist se conheciam havia quinze anos. Durante algum tempo trabalharam juntos como jornalistas substitutos na seção de economia de um diário matutino. Talvez pela falta de química entre os dois, esse período estabelecera uma hostilidade permanente entre eles. Aos olhos de Mikael, Borg era um jornalista execrável, um sujeito fatigante e vingativo, de espírito curto, que aborrecia os que estavam a sua volta com gracejos imbecis e que insinuava desprezo pelos jornalistas mais velhos, portanto mais experientes. Borg parecia ter particular aversão por jornalistas mulheres de uma certa idade. Eles discutiram uma primeira vez, depois outras, até que suas diferenças adquiriram um caráter profundamente pessoal.

No decorrer dos anos, Mikael e Borg haviam se cruzado com regularidade, mas só se indispuseram de fato no final dos anos 1990. Mikael escrevera um livro sobre jornalismo econômico e extraíra mais de uma citação absurda dos artigos assinados por Borg. Segundo Mikael, Borg era um presunçoso que entendera de maneira errada a maior parte das informações e elevara às nuvens empresas "pontocom" que não tardariam a sucumbir. Borg não gostou da crítica de Mikael e, quando se encontraram por acaso num bar em Söder, por pouco não chegaram às vias de fato. Borg abandonara o jornalismo e agora trabalhava como relações-públicas, recebendo um salário consideravelmente mais alto, numa empresa que, para completar, pertencia à esfera de interesses do industrial Hans-Erik Wennerström.

Eles se encararam por um bom tempo antes de Mikael virar as costas e ir embora. Vir ao Palácio com a única finalidade de tirar um sarro era bem típico de Borg.

Mikael tinha começado a caminhar quando o 40 chegou e ele subiu no ônibus, antes de mais nada para sair dali. Desceu em Fridhemsplan e ficou indeciso no abrigo de ônibus, sempre segurando na mão a cópia de sua sentença. Decidiu enfim ir a pé até o café Anna, ao lado da garagem da delegacia.

Menos de um minuto depois de pedir um caffè latte e um sanduíche, o noticiário do meio-dia começou pelo rádio. O assunto foi o terceiro, depois de um atentado suicida em Jerusalém e da notícia de que o governo formara uma comissão de inquérito para investigar aparentes cartéis ilícitos na construção civil.


O jornalista Mikael Blomkvist, da revista Millennium, foi condenado nesta sexta-feira a três meses de prisão por difamação contra o industrial Hans-Erik Wennerström. Num artigo sobre o suposto caso Minos, que há alguns meses chocou a opinião pública, Blomkvist acusava Wennerström de ter desviado fundos sociais, destinados a investimentos industriais na Polônia, para o tráfico de armas. Mikael Blomkvist também foi condenado a pagar cento e cinquenta mil coroas por perdas e danos. O advogado de Wennerström, Bertil Camnermarker, disse que seu cliente estava satisfeito com a sentença. "Trata-se de um caso de difamação particularmente grave", declarou.


A sentença ocupava vinte e seis páginas. Ela apresentava as razões pelas quais Mikael fora julgado culpado em quinze pontos, por difamação agravada contra o financista Hans-Erik Wennerström. Mikael constatou que cada uma das acusações que o condenavam custava dez mil coroas e seis dias de prisão. Sem contar as custas do processo e suas próprias custas com advogado. Ele não tinha sequer a coragem de começar a refletir sobre o tamanho da conta, mas também dizia a si mesmo que podia ter sido pior; o tribunal o inocentara em sete itens.

A medida que lia o enunciado da sentença, uma sensação de peso cada vez mais desagradável ia se instalando em seu estômago. Ficou surpreso com isso. Desde o início do processo, sabia que só um milagre o livraria da condenação. Não tinha a menor dúvida a respeito e acostumara-se com a idéia. Permanecera com o espírito relativamente tranquilo durante os dois dias em que transcorrera o julgamento, e por onze dias esperou, sem sentir nada de especial, que o tribunal acabasse de refletir e formulasse o texto que ele segurava na mão. Mas só agora, encerrado o julgamento, é que o mal-estar se insinuara.

Mordeu um pedaço do sanduíche, mas o pão pareceu inchar dentro de sua boca. Teve dificuldade de engolir e o cuspiu no prato.

Era a primeira vez que Mikael Blomkvist era condenado por um delito — a primeira vez que se via acusado de alguma coisa ou chamado a comparecer em juízo. Pensando bem, a sentença era insignificante. Um delito peso-pena. Afinal, não se tratava de roubo à mão armada, de assassinato ou estupro. Mas, do ponto de vista financeiro, a condenação teria consequências. A Millennium não era nenhum carro-chefe do mundo da mídia, nem dotada de recursos ilimitados — a revista atuava com uma estreita margem de lucro —, mas a condenação também não era uma catástrofe. O problema é que Mikael era ao mesmo tempo um dos acionistas da Millennium e, estupidamente, redator e editor responsável pela publicação. Ele pretendia tirar do próprio bolso as cento e cinquenta mil coroas por perdas e danos, o que reduziria a zero sua poupança. A revista se encarregaria dos custos judiciais. Navegando com perspicácia, dava para seguir em frente.

Ocorreu-lhe vender o apartamento, mas essa hipótese ficou atravessada em sua garganta. No final dos felizes anos 1980, numa época em que tinha emprego fixo e um salário relativamente alto, adquirira um imóvel. Visitou uma porção de apartamentos e recusou todos, até encontrar uma água-furtada de sessenta e cinco metros quadrados, bem no começo da Bellmansgatan. O ex-proprietário havia começado a transformá-la em algo habitável, mas fora contratado por uma empresa de informática no exterior e Mikael adquiriu seu projeto de reforma por um preço irrisório.

Mikael não quis plantas desenhadas por arquitetos, preferiu ele mesmo terminar as obras, reservando dinheiro para a cozinha e o banheiro, e deixando o resto como estava. Em vez de substituir o piso e instalar divisórias para criar dois ambientes, poliu o assoalho, passou cal nas grosseiras paredes originais e cobriu os defeitos mais graves com algumas aquarelas de Emanuel Bernstone. O resultado foi um loft arejado, com um quarto atrás de uma estante de livros, um canto para refeições e uma sala com uma pequena cozinha americana. O apartamento tinha duas janelas de mansarda e outra triangular com vista para os telhados, para as águas do Riddarfjarden e para a cidade velha. Ele até podia avistar uma ponta do Slussen e do paço municipal. Levando em conta os preços de mercado, agora ele não podia mais pagar um apartamento como aquele, por isso tinha muita vontade de conservá-lo.

Mas o risco de perder o apartamento não era nada comparado à enorme bofetada profissional que sofrera, cujos danos levaria algum tempo para reparar, supondo que fossem reparáveis.

Era uma questão de confiança. Num futuro próximo, muitos redatores hesitariam em publicar artigos em sua revista. Ele ainda tinha amigos capazes de entender que fora vítima do azar e das circunstâncias, mas não poderia mais se dar ao luxo de cometer o menor erro.

O mais doloroso, porém, era a humilhação.

Tivera todos os trunfos na mão, mas perdera para uma espécie de gangster vestido de Armani. Um especulador safado. Um yuppie defendido por um advogado do jet-set que passou o processo inteiro rindo.

Como as coisas tinham dado tão errado?


O caso Wenneström, no entanto, começara de forma bastante promissora um ano e meio antes na cabine de um veleiro Mälar-30 amarelo, numa noite de São João. Tudo porque o acaso fizera um ex-colega seu jornalista, na época relações-públicas da prefeitura, alugar um Scampi, sem muito refletir, para impressionar a mais recente namorada, levando-a a um cruzeiro romântico de alguns dias pelo arquipélago de Estocolmo. A garota, que tinha vindo de Hallstahammar para estudar em Estocolmo, após certa resistência, concordou em ir, mas com a condição de que sua irmã e o namorado dela também fossem. O problema é que os três nunca tinham estado num veleiro, e o relações-públicas era um marujo mais entusiasmado que experiente. Três dias antes da partida, desesperado, ele chamou Mikael e o convenceu a ser o quinto tripulante, por ter mais experiência que ele em navegação.

A princípio reticente, Mikael acabou cedendo diante da oportunidade de ter pela frente alguns dias de descanso no arquipélago e da anunciada perspectiva de boa comida e companhia agradável. As promessas se revelaram falsas, e o cruzeiro acabou sendo uma catástrofe que superou seus piores pesadelos. Eles haviam navegado, a menos de dez nós, de Bullandö até o estreito de Furusund — bonito, é verdade, mas pouco excitante —, o que não impediu que a namorada do relações-públicas enjoasse desde o início. Sua irmã brigou com o namorado e ninguém mostrava o menor interesse em aprender o mínimo que fosse de navegação. Logo ficou evidente que esperavam que Mikael fizesse o barco funcionar, enquanto eles se limitavam a dar conselhos bem-intencionados porém totalmente inúteis. Após a primeira noite ancorado numa enseada de Ängsö, ele estava decidido a descer em Furusund e pegar o primeiro ônibus de volta para casa. Somente as súplicas desesperadas do relações-públicas o convenceram a permanecer a bordo.

Na manhã seguinte, por volta do meio-dia, cedo ainda para que encontrassem alguns lugares, eles atracaram ao cais dos visitantes em Arholma. Prepararam uma refeição e tinham acabado de comer quando Mikael avistou um M-30 com casco de poliéster entrando na enseada com apenas a vela mestra. O barco deu uma volta tranquila enquanto seu piloto procurava uma vaga no cais. Mikael deu uma olhada ao redor e constatou que o espaço entre o seu Scampi e um iate a estibordo era provavelmente o único lugar disponível, suficiente e na medida exata, para o estreito M-30. Foi até a proa e agitou o braço; o piloto do M-30 ergueu a mão em sinal de agradecimento e virou em direção ao cais. Um solitário que não usa o motor para atracar, observou Mikael. Ele ouviu o ruído da corrente da âncora e, segundos depois, a vela mestra foi arriada, enquanto o piloto saltava de um lado a outro para manter o leme em posição e, ao mesmo tempo, preparar a ancoragem na proa.

Mikael saltou para o cais e estendeu a mão para oferecer ajuda. O recém-chegado corrigiu a rota uma última vez e o barco veio com seu impulso colocar-se suavemente ao longo do Scampi. No momento em que o piloto lançou a amarra a Mikael, eles se reconheceram e sorriram, encantados.

— Olá, Robban — disse Mikael. — Se utilizasse o motor, evitaria arranhar outros barcos no porto.

— Olá, Micke. Eu disse a mim mesmo que conhecia esse cara. Sabe, eu teria usado o motor se tivesse conseguido fazê-lo funcionar. Essa droga pifou há dois dias perto de Rödöga.

Apertaram-se as mãos por cima da amurada.

Uma eternidade antes, no colégio de Kungsholmen nos anos 1970, Mikael Blomkvist e Robert Lindberg haviam sido companheiros, e até mesmo muito bons amigos. Como acontece com frequência entre velhos colegas de escola, a amizade acabou depois da conclusão do secundário. Cada um seguiu seu caminho e eles se viram raras vezes nos vinte anos seguintes. O último encontro antes deste, inesperado, no cais de Arholma, ocorrera sete ou oito anos atrás. Agora os dois se examinavam com curiosidade. Robert estava bronzeado, com cabelos emaranhados e uma barba de quinze dias.

De repente, Mikael recobrou o ânimo. Quando o relações-públicas e seu bando de imbecis partiram para dançar em volta do mastro de são João erguido diante do armazém, do outro lado da ilha, ele ficou na cabine do M-30 batendo papo com seu velho companheiro de colégio, em volta do tradicional arenque regado a aquavita.


À noite, em dado momento, depois de muitos tragos e de terem desistido de lutar contra os tristemente famosos mosquitos de Arholma e irem se refugiar na cabine, a conversa se transformou numa altercação amistosa sobre a moralidade e a ética no mundo dos negócios. Os dois tinham escolhido carreiras que, de um modo ou de outro, estavam focalizadas nas finanças do país. Robert Lindberg passara do colégio aos estudos de comércio e depois ao mundo financeiro. Mikael Blomkvist cursara a faculdade de jornalismo e dedicara grande parte de sua vida a denunciar negócios duvidosos justamente do mundo financeiro. A conversa girava em torno da imoralidade de alguns pára-quedas dourados (as famosas indenizações milionárias de demissão) surgidos ao longo dos anos 1990. Depois de ter valentemente defendido alguns dos mais espetaculares, Lindberg acabou admitindo, a contragosto, que no mundo das finanças provavelmente havia alguns especuladores corruptos disfarçados. Ele ficou sério de repente e olhou Mikael bem nos olhos.

— Já que você é jornalista investigativo e vasculha delitos econômicos, por que não escreve alguma coisa sobre Hans-Erik Wennerström?

— Não sabia que havia algo a escrever sobre ele.

— Pelo amor de Deus, que espécie de bisbilhoteiro você é? Então não conhece o programa CAI?

— Bem, era uma espécie de programa de apoio, nos anos 1990, para reabilitar a indústria dos ex-países do Leste Europeu. Foi extinto há alguns anos. Nunca escrevi nada a respeito.

— Isso, CAI, Comitê de Apoio Industrial. O projeto tinha o aval do governo, e a tramóia era gerenciada por representantes de uma dezena de grandes empresas suecas. O CAI obteve garantias do Estado para uma série de projetos firmados em acordos com os governos da Polônia e dos países bálticos. A confederação operária participava, para garantir que o movimento operário dos países do Leste Europeu se fortalecesse graças ao modelo sueco. Na teoria, o projeto significava um apoio baseado no princípio de ajuda ao desenvolvimento, e supostamente oferecia aos regimes do Leste Europeu uma possibilidade de sanear suas economias. Na prática, equivalia a conceder subvenções do Estado para que empresas suecas estabelecessem parcerias com empresas do Leste Europeu. Lembra daquele ministro cristão cretino? Era um defensor ardoroso do CAI. Falava-se de construir uma fábrica de papel na Cracóvia, de restabelecer a indústria metalúrgica em Riga, de montar uma usina de cimento em Tallinn, e por aí afora. O dinheiro era distribuído pelo conselho do CAI, exclusivamente formado por pesos pesados do mundo financeiro e industrial.

— Ou seja, dinheiro do contribuinte?

— Cerca de cinquenta por cento eram subvenções do Estado, o resto vinha dos bancos e da indústria. Mas não se pode realmente falar de uma atividade desinteressada. Os bancos e as empresas contavam com um lucro consistente, caso contrário não teriam por que se lançar no negócio.

— Qual era o montante desses fundos?

— Espere um minuto, escute. O CAI era constituído principalmente por empresas suecas sólidas, desejosas de penetrar no mercado do Leste Europeu. Empresas de peso, como ABB, Skanska e outras do gênero. Nada de capital especulativo, se entende o que quero dizer.

— Você está dizendo que a Skanska não faz especulação? Como explicar então a demissão de seu diretor-executivo, depois que um de seus rapazes perdeu meio bilhão especulando com títulos de curto prazo? E como não rir de seus negócios imobiliários histéricos em Londres e Oslo?

— Sim, claro, há cretinos em todas as empresas do mundo, mas você sabe o que estou querendo dizer. Trata-se de empresas que pelo menos produzem alguma coisa. A coluna vertebral da indústria sueca, como se diz.

— E Wenneström, onde ele entra no esquema?

— Wennerström é o curinga da história. Ou seja, um cara surgido do nada, sem nenhum passado na indústria pesada e que, na realidade, nada tem a ver com esse meio. Mas ele acumulou uma fortuna colossal na Bolsa e investiu em empresas estáveis. Entrou, por assim dizer, pela porta de serviço.

Mikael tornou a encher seu copo com a aquavita Reimersholms e inclinou-se para trás na cadeira, refletindo sobre o que sabia a respeito de Wennerström. Era magro. Nascido na região do Norrland, onde criou uma empresa de investimentos nos anos 1970, juntou algum dinheiro e se transferiu para Estocolmo, fazendo ali uma carreira fulgurante nos gloriosos anos 1980. Criou o Wennerströmgruppen, rebatizado de Wennerström Group quando foram abertos os escritórios de Londres e Nova York, e quando nos jornais a empresa começou a ser mencionada no mesmo nível que a Beijer. Negociando com ações, participações e operações rápidas, passou a figurar na imprensa VIP como um dos novos bilionários suecos, proprietário de um loft em Strandwägen, de uma suntuosa residência de verão em Värmdö e de um iate de vinte e três metros, comprado de uma ex-estrela do tênis em decadência. Um calculista esperto, certamente, mas os anos 1980 foram sobretudo a década dos calculistas e dos especuladores imobiliários, e Wennerström não se destacou mais que os outros. Pelo contrário, permaneceu de certo modo à sombra dos figurões. Não tinha a lábia de um Stenbeck nem se exibia na imprensa como Barnevik. Desprezando os bens imobiliários, focalizou seu interesse em investimentos maciços no ex-bloco do Leste Europeu. Quando, nos anos 1990, a bolha murchou e os empresários foram obrigados, um após outro, a recolher seus pára-quedas dourados, as empresas de Wennerström continuaram em ótimo estado. Nenhuma sombra de escândalo. A Swedish success story, foi assim que o Financial Times resumiu seu caso.

— Foi em 1992 que Wennerström, de repente, recorreu ao CAI. Ele precisava de ajuda financeira. Apresentou um projeto que aparentemente atendia gente interessada na Polônia: tratava-se de estabelecer um setor de fabricação de embalagens para a indústria alimentícia.

— Quer dizer, uma fábrica de latas de conserva?

— Não exatamente, mas algo do tipo. Não faço a menor idéia das pessoas que ele conhecia no CAI, mas saiu de lá com sessenta milhões de coroas no bolso, sem problema.

— A história começa a me interessar. Deixe-me adivinhar: ninguém mais voltou a ver a cor desse dinheiro.

— Errado — disse Robert Lindberg.

E sorriu como quem sabe das coisas, antes de beber as últimas gotas de sua aquavita.

— O que se passou depois foi o clássico em matéria de balanço financeiro. Wennerström de fato montou uma fábrica de embalagens na Polônia, mais precisamente em Lodz. A empresa chamava-se Minos. O CAI recebeu alguns relatórios entusiasmados em 1993. E então, em 1994, a Minos faliu de repente.


Robert Lindberg bateu o copo vazio na mesa, com um golpe seco, para sublinhar a que ponto a empresa afundara.

— O problema do CAI é que não havia procedimentos bem definidos para avaliar os relatórios sobre os projetos. Lembre-se do espírito da época. Todo mundo estava otimista com a queda do muro de Berlim. Iam introduzir a democracia, a ameaça de uma guerra nuclear não existia mais e os bolchevistas se tornavam verdadeiros capitalistas da noite para o dia. O governo queria ancorar a democracia no Leste Europeu. Todos os capitalistas desejavam contribuir para a construção da nova Europa.

— Eu nunca soube de capitalistas propensos à caridade.

— Acredite, era o sonho tropical de todo capitalista. Agora a Rússia e os países do Leste Europeu são os maiores mercados depois da China. Os industriais não hesitavam em ajudar o governo, sobretudo quando as empresas só precisavam contribuir com uma parte ínfima dos gastos. Somando tudo, o CAI abocanhou mais de trinta bilhões de coroas do contribuinte. O dinheiro voltaria sob a forma de ganhos futuros. No papel, o CAI era uma iniciativa governamental, mas a influência da indústria era tão grande que, na prática, o conselho do CAI desfrutava de uma completa liberdade de ação.

— Entendo. Mas há material para um artigo também sobre esse ponto?

— Calma. Quando os projetos começaram, não havia problema de financiamento. A Suécia ainda não conhecia o choque das taxas de juros. O governo estava feliz de poder pedir, através do CAI, uma contribuição sueca importante em favor da democracia do Leste Europeu.

— Era um governo de direita.

— Não misture política com isso. Trata-se de dinheiro, e pouco importa saber se são os socialistas ou os moderados que indicam os ministros. Então, com os cofres cheios, surgiram os problemas de câmbio, e em seguida aqueles novos democratas imbecis — lembra-se da Nova Democracia? — começaram a se lamentar, achando que faltava transparência às atividades do CAI. Um deles confundiu o CAI com a Swedish International Development Authority, imaginando um projeto de desenvolvimento para boas obras, como a ajuda à Tanzânia. Na primavera de 1994, uma comissão foi encarregada de investigar o CAI. A essa altura, já se faziam críticas a vários projetos, mas um dos primeiros a ser investigados foi o da Minos.

— E Wennerström não conseguiu justificar a utilização dos fundos.

— Pelo contrário. Wennerström apresentou um excelente relatório financeiro, mostrando que mais de cinquenta e quatro milhões de coroas haviam sido investidas na Minos. Mas alegou que os problemas estruturais de um país a reboque como a Polônia eram grandes demais para que uma fábrica de embalagens moderna pudesse dar certo, e ela acabou desbancada pela concorrência de um projeto alemão similar. Os alemães estavam comprando tudo no bloco do Leste Europeu.

— Você disse que ele obteve sessenta milhões de coroas.

— Isso mesmo. O dinheiro do CAI funcionava na forma de empréstimos sem juros. A idéia, evidentemente, era que as empresas reembolsassem uma parte depois de alguns anos. Mas a Minos faliu e o projeto fracassou. Wennerström não podia ser responsabilizado. É aqui que entram as garantias do Estado: a dívida de Wennerström foi apagada. Ele simplesmente não precisou reembolsar o dinheiro perdido na falência da Minos e conseguiu demonstrar que perdera a mesma quantia do próprio bolso.

— Deixa eu ver se entendi bem toda essa história. Além de fornecer bilhões do contribuinte, o governo oferecia diplomatas para abrir portas. A indústria recebia o dinheiro e o utilizava para investir em joint ventures que lhe permitiam, em seguida, acumular um lucro recorde. Em outras palavras, as negociatas de sempre. Alguns enchem os bolsos enquanto outros pagam a conta, e conhecemos bem os atores dessa peça.

— Meu Deus, como você é cínico! Os empréstimos deviam ser devolvidos ao Estado.

— Você disse que não corriam juros. Isso significa que os contribuintes não receberam nenhum dividendo pelo que pagaram. Wennerström obteve sessenta milhões e investiu cinquenta e quatro. O que fez com os outros seis milhões?

— No momento em que ficou evidente que os projetos do CAI passariam a ser controlados, Wennerström enviou um cheque de seis milhões para reembolsar a diferença. Assim o caso estava resolvido do ponto de vista jurídico.


Robert Lindberg calou-se e lançou um olhar inquieto a Mikael.

— Wennerström certamente desviou um pouco de dinheiro do CAI, mas, comparado ao meio bilhão que desapareceu da Skanska ou à história do pára-quedas dourado de um bilhão do diretor da ABB — coisas que realmente revoltaram as pessoas —, não me parece um caso realmente digno de uma reportagem — constatou Mikael. — Os leitores, hoje, estão fartos de textos sobre especuladores incompetentes da Bolsa, mesmo aqueles que operam com fundos públicos. Há algo mais na sua história?

— Ela está apenas começando.

— Como você ficou sabendo desses negócios do Wennerström na Polônia?

— Eu trabalhei no Banco do Comércio nos anos 1990. Adivinhe quem conduziu as investigações como representante do banco no CAI?

— Entendo. Continue.

— Bem... resumindo: o CAI recebeu uma explicação de Wennerström. Documentos foram redigidos. O dinheiro restante foi reembolsado. Esse retorno de seis milhões foi esperto. Se alguém chega na sua casa insistindo em te dar um saco de milho, você diz que aquele é um bom sujeito, não é mesmo?

— Vamos aos fatos.

— Mas, meu velho, o fato é exatamente esse. O CAI ficou satisfeito com o relatório do Wennerström. O investimento fracassou, mas não havia nada a dizer sobre a maneira como fora conduzido. Examinamos faturas, transferências e um monte de papelada. Tudo estava minuciosamente justificado. Eu acreditei. Meu chefe acreditou. O CAI acreditou e o governo nada teve a acrescentar.

— E onde é que a coisa tropeça?

— A história entra agora na sua fase sensível — disse Lindberg com um tom de voz subitamente fúnebre. — Levando em conta que você é jornalista, o que vou dizer agora é off the record.

— Espere aí. Você não pode começar a me contar falcatruas e depois me dizer que não posso divulgá-las.

— Claro que posso. Tudo que contei até agora é de conhecimento público. Você mesmo pode consultar o relatório, se quiser. Concordo que escreva sobre o resto da história — que ainda não contei —, mas quero ser tratado como fonte anônima.

— Ah, melhor assim, porque, na terminologia habitual, off the record significa que obtive uma informação confidencial, mas que não tenho o direito de escrever sobre ela.

— Pouco importa a terminologia. Escreva o que quiser, contanto que eu seja sua fonte anônima. Estamos de acordo?

— Claro — respondeu Mikael.

Considerando o que houve depois, sua resposta foi naturalmente um erro.

— Bem, esse caso Minos aconteceu há dez anos, logo após a queda do Muro e quando os bolcheviques começaram a virar capitalistas frequentáveis. Eu era um dos que investigavam Wennerström, e sempre tive uma puta impressão de que toda a história estava mal contada.

— E por que não disse nada na época?

— Discuti com o meu chefe. A questão é que não havia nada de sólido. Todos os papéis estavam em ordem. Nada mais fiz que pôr minha assinatura no final do relatório. Mas em seguida, sempre que eu topava com o nome de Wennerström na imprensa, Minos me vinha à lembrança.

— E aí?

— Acontece que alguns anos mais tarde, em meados dos anos 1990, meu banco fez alguns negócios com Wennerström. Na verdade, altos negócios. E a coisa não foi muito bem.

— Ele roubou vocês?

— Não, eu não diria isso. As duas partes lucraram. Tratava-se de... Não sei bem como explicar. É que agora começo a falar do homem que me contratou e isso não me agrada. Mas a impressão que ficou — a impressão geral e duradoura, como dizem — não foi nada positiva. Na mídia, Wennerström é apresentado como um considerável oráculo da economia. É disso que ele vive. É seu capital de confiança.

— Entendo o que quer dizer.

— Eu tinha a impressão de que o sujeito era simplesmente um blefe. Que não tinha nenhum dom especial para as finanças. Ao contrário, achei-o de uma estupidez assombrosa em certas áreas, embora estivesse cercado de alguns jovens tubarões de fato astutos como conselheiros. Eu o detestava cordialmente.

— Continue.

— Há cerca de um ano, fui à Polônia por outro motivo. Nossa delegação jantou com alguns investidores de Lodz e na minha mesa estava o prefeito. Discutimos sobre o quanto era difícil repor a economia da Polônia nos trilhos et cetera, e mencionei o projeto Minos. O prefeito me pareceu totalmente perplexo por um momento — como se nunca tivesse ouvido falar de Minos —, depois lembrou que era um pequeno negócio de merda que dera em nada. Despachou o assunto com um sorrisinho, dizendo que — reproduzo exatamente suas palavras — se isso fosse tudo que os investidores suecos sabiam fazer, nosso país entraria em falência rapidamente. Está me acompanhando?

— Essa declaração revela que o prefeito de Lodz é um homem sensato. Mas continue.

— Essa declaração, como você diz, não parou de me azucrinar. No dia seguinte, eu tinha uma reunião de manhã, mas estava com a tarde livre. Só para remexer na merda, resolvi visitar, numa pequena aldeia perto de Lodz, a fábrica abandonada da Minos, situada dentro de uma granja com latrinas no pátio. A grande fábrica Minos era um depósito arruinado prestes a desabar, um velho hangar com telhas onduladas, montado pelo Exército Vermelho nos anos 1950. Encontrei um guarda no local que falava algumas palavras em alemão, e soube que um de seus primos trabalhara na fábrica. O primo morava quase ali ao lado e fomos até a casa dele. O guarda serviu de intérprete. Está interessado em ouvir o que ele disse?

— É óbvio que sim.

— A Minos começou a funcionar nó outono de 1992. Ela tinha quinze empregados, quando muito, na maior parte mulheres velhas. O salário equivalia a cento e cinquenta coroas por mês. No começo não havia máquinas, os empregados se ocupavam fazendo a limpeza do local. No início de outubro chegaram três máquinas de cartonagem compradas em Portugal. Estavam velhas, deterioradas e totalmente ultrapassadas. No ferro-velho, não valeriam mais que algumas notas de mil. Funcionavam, é verdade, mas pifavam a todo instante. Evidentemente não havia peças de reposição, de modo que a Minos sofria de eternas paradas de produção. Em geral era um empregado que consertava as máquinas, como podia.

— Agora está começando a parecer uma matéria de verdade — reconheceu Mikael. — O que a Minos fabricava realmente?

— Em 1992 e na primeira metade de 1993, as clássicas embalagens de sabão em pó, caixas de ovos e coisas do gênero. Depois passaram a produzir sacos de papel. Mas sempre faltava matéria-prima e o volume de produção era mínimo.

— Nada que correspondesse a um investimento gigantesco.

— Fiz as contas. O custo total do aluguel em dois anos equivale a quinze mil coroas. Os salários podem ter chegado a cento e cinquenta mil no máximo — e estou sendo generoso. Compra de máquinas e meios de transporte... uma caminhonete que entregava as caixas de ovos... vamos pôr uns duzentos e cinquenta mil. Mais taxas de autorização, alguns custos de viagem — aparentemente, só uma pessoa veio da Suécia algumas vezes para visitar a aldeia. Digamos que todo o negócio custou menos de um milhão. Num dia do verão de 1993, o contramestre foi até a fábrica, anunciou que ela seria fechada e, algum tempo depois, um caminhão húngaro recolheu e levou embora a maquinaria. Bye-bye, Minos.


Durante o processo, Mikael recordara várias vezes essa noite de São João.

De modo geral, a conversa transcorrera como uma discussão entre dois colegas, em tom de camaradagem, exatamente como nos tempos de colégio. Adolescentes, eles haviam compartilhado os fardos que se carrega nessa idade. Adultos, eram na verdade estranhos um para o outro, seres totalmente diferentes. Durante a noitada, Mikael refletiu que não conseguia de fato se lembrar do que os havia aproximado no colégio. Lembrava-se de Robert como um rapaz taciturno e reservado, tímido ao extremo com as meninas. Adulto, ele era... bem, um talentoso alpinista do universo bancário. Para Mikael, não havia dúvida que seu colega tinha opiniões diametralmente opostas à sua própria concepção de mundo.

Mikael quase nunca bebia a ponto de se embriagar, mas esse encontro fortuito transformara um cruzeiro malsucedido numa noitada agradável, em que o nível da garrafa de aquavita se aproximava aos poucos do fundo. Justamente porque a conversa teve esse tom ginasiano, de início ele não levou a sério o relato de Robert sobre Wennerström, mas no final seus instintos jornalísticos despertaram. De repente, escutava atentamente a história de Robert, e as objeções naturais apareceram.

— Espere um pouco — disse Mikael. — Wennerström é uma estrela entre os investidores da Bolsa. Se não estou enganado, ele deve ser bilionário...

— O capital do Grupo Wennerström é de cerca de duzentos bilhões. Você deve estar querendo saber por que um bilionário roubaria as pessoas por uns magros cinquenta milhões, quase um dinheiro de bolso.

— O que quero saber antes de mais nada é por que ele arriscaria tudo com uma fraude tão evidente.

— Não sei se se pode dizer que se trata de uma fraude evidente, já que o conselho do CM, os representantes dos bancos, o governo e os auditores do Parlamento aceitaram as contas apresentadas por Wennerström.

— Mesmo assim é uma soma ridícula.

— Certo. Mas veja: o Grupo Wennerström é uma empresa de investimentos que lida com qualquer coisa que possa dar lucro a curto prazo — imóveis, títulos, opções, moedas... Wennerström entrou em contato com o CAI em 1992, no momento em que o mercado estava a ponto de atingir o fundo. Lembra do outono de 1992?

— E acha que posso esquecer? Eu tinha feito empréstimos a taxas variáveis para comprar meu apartamento, quando os juros do Banco da Suécia atingiram quinhentos por cento em outubro. Tive que arcar com juros de dezenove por cento durante um ano.

— Não foi fácil! — disse Robert sorrindo. — Também perdi um bocado naquele ano. E Hans-Erik Wennerström — como todos os outros no mercado — enfrentava os mesmos problemas. A empresa tinha bilhões aplicados em contratos de diferentes tipos, mas muito pouca liquidez. E aí fica impossível conseguir facilmente novos empréstimos. Numa situação dessas, em geral se vendem alguns imóveis para lamber as feridas — só que em 1992 não havia ninguém para comprar imóveis.

Cash-flow problem.

— Exatamente. E Wennerström não era o único a enfrentar esse tipo de problema. Qualquer homem de negócios...

— Não diga homem de negócios. Chame como quiser, mas qualificá-los de homens de negócios é ofender uma categoria profissional séria.

— ... qualquer investidor da Bolsa, então, tinha cash-flow problems... Considere as coisas assim: Wennerström obteve sessenta milhões de coroas. Devolveu seis, e somente depois de três anos. Os gastos com a Minos dificilmente ultrapassaram um milhão. Mas os juros de sessenta milhões durante três anos representam uma boa quantia. Dependendo da maneira como foi investido, o dinheiro do CAI pode ter sido dobrado ou multiplicado por dez. E aí não estamos mais falando de bagatelas. A propósito, um brinde ao nosso encontro!


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