15 - QUINTA-FEIRA 24 DE MARÇO
Christer Malm se sentia cansado e deprimido quando finalmente voltou para casa depois daquele dia de trabalho imprevisto. Da cozinha vinha o aroma de um prato exótico, e ele foi dar um beijo no namorado.
—Como você está? - perguntou Arnold Magnusson.
—Como um saco de merda - disse Christer.
—Falaram no assunto o dia inteiro no noticiário. Ainda não deram nenhum nome. Mas é uma história horrorosa.
—É bem isso, uma história horrorosa. O Dag trabalhava para nós. Era um amigo, eu gostava muito dele. Eu não conheci a companheira dele, a Mia, mas o Micke conheceu, e a Erika também.
Christer olhou para a cozinha. Eles acabavam de comprar aquele apartamento no Allhelgonatan e fazia só três meses que tinham se mudado. De repente, o apartamento se transformara num mundo completamente estranho.
O telefone tocou. Christer e Arnold se olharam e decidiram ignorar. Em seguida, a secretária eletrônica foi acionada e eles ouviram uma familiar.
—Christer. Você está aí? Atende.
Erika Berger estava ligando para avisar que a polícia suspeitava que a antiga investigadora de Mikael Blomkvist era a autora do assassinato de Dag e Mia.
Christer recebeu a notícia com uma sensação de irrealidade.
Henry Cortez perdera a invasão da Lundagatan pelo simples motivo de que estivera o tempo todo em frente ao centro de comunicação da polícia e, concretamente, ainda estava lá, esperando por notícias. Nada de novo surgira desde a breve coletiva de imprensa no início da tarde. Ele estava cansado, com fome e nervoso por ser regularmente rechaçado pelas pessoas que tentava contatar. Só por volta das seis horas, depois de terminada a blitz no apartamento de Lisbeth Salander, é que ele conseguiu interceptar um comentário de que a polícia tinha um suspeito. O mais irritante é que essa informação vinha de um colega da imprensa vespertina mais enturmado com a sua redação. Pouco depois, Henry finalmente conseguiu o número do celular pessoal do procurador Richard Ekström. Apresentou-se e fez as perguntas apropriadas: quem, como e por quê.
—De que veículo o senhor disse que era? - perguntou Richard Ekström.
—Da revista Millennium. Eu conhecia uma das vítimas. De acordo com uma fonte, a polícia está procurando por uma pessoa específica. O que está acontecendo?
—Não posso adiantar nada por enquanto.
—Quando o senhor vai poder me dizer alguma coisa?
—Talvez haja outra coletiva de imprensa mais tarde.
O procurador Richard Ekström parecia evasivo. Henry Cortez mexeu na argola de ouro que usava na orelha.
—As coletivas de imprensa são mais dirigidas aos jornalistas de informação geral, que repassam o fato para divulgação imediata. Eu trabalho para uma revista mensal e temos um interesse bem pessoal em saber o que anda acontecendo.
—Não posso ajudá-lo. Vai ter que esperar como todo mundo.
—De acordo com as minhas fontes, estão procurando por uma mulher. De quem se trata?
—Não posso dizer nada.
—O senhor desmente que estejam procurando uma mulher?
—Não, já disse: não posso dizer nada...
O inspetor Jerker Holmberg estava parado na porta do quarto contemplando, pensativo, a enorme poça de sangue no lugar onde Mia Bergman tinha sido encontrada. Virando a cabeça, sem mudar de lugar, avistava uma poça semelhante ali onde estivera Dag Svensson. Pensava na grande quantidade de sangue. Havia muito mais sangue que em outros ferimentos a bala que ele já tinha visto, o que indicava que tinham usado uma munição capaz de causar um estrago terrível, o que, por sua vez, confirmava a hipótese do delegado Mártensson de que o assassino usara munição de caça. O sangue coagulado se tornara uma mancha preta e cor de ferrugem que cobria tão extensamente o piso que os paramédicos e técnicos tinham sido obrigados a pisar nela, deixando assim marcas em todo o apartamento. Holmberg cobrira seus tênis com sacos de plástico azul.
Para ele, a verdadeira investigação do crime começava agora. Os corpos das duas vítimas tinham sido removidos. Jerker Holmberg estava sozinho no local depois da saída dos dois técnicos. Eles tinham fotografado as vítimas, medido os respingos de sangue nas paredes e discutido sobre as áreas respingadas e a velocidade dos pingos. Holmberg conhecia aquele tipo de especulação, mas só mostrara um interesse distraído pelos exames técnicos. O trabalho dos técnicos iria resultar num relatório volumoso que revelaria detalhadamente onde o assassino se posicionara em relação às vítimas e a que distância e em que ordem os tiros tinham sido disparados, e quais impressões digitais poderiam ter alguma importância. Para Jerker Holmberg, porém, isso não apresentava o menor interesse. Os exames técnicos não forneceriam uma só palavra sobre a identidade do assassino nem sobre o motivo que ele ou ela - já que o principal suspeito era uma mulher - tivera para cometer aqueles crimes. Eram essas perguntas que cabia a ele elucidar.
Jerker Holmberg começou pelo quarto. Colocou uma pasta surrada numa cadeira e pegou um ditafone, uma câmera digital e um bloco de anotações.
Primeiro, abriu as gavetas de uma cômoda que ficava atrás da porta. As duas gavetas superiores continham roupa de baixo, pulôveres e um porta-joias que obviamente tinham pertencido a Mia Bergman. Dispôs os objetos sobre a cama e examinou o porta-joias em detalhes, concluindo que não continha nada de grande valor. Na gaveta de baixo achou dois álbuns de fotos e duas pastas com contas domésticas. Ligou o ditafone.
“Relatório de apreensão na Bjôrneborgsvãgen, número 8b. Dormitório, gaveta inferior da cômoda. Dois álbuns de fotografias encadernados, formato A4. Uma pasta preta intitulada ‘Doméstico’ e uma pasta azul intitulada ‘Certidões de Propriedades’, com documentos referentes ao financiamento e à amortização de um apartamento. Uma caixa com cartas, postais e objetos pessoais.”
Levou os objetos até o hall e os enfiou numa sacola de viagem. Prosseguiu nas gavetas dos criados-mudos de um lado e outro da cama de casal, porém não encontrou nada de interessante. Abriu os armários e separou as roupas, tateou todos os bolsos e xeretou os sapatos em busca de algum objeto esquecido ou escondido, depois voltou a atenção para as prateleiras superiores. Abriu caixas grandes e pequenas. Encontrou aqui e ali papéis e objetos que, por diferentes motivos, incluiu no relatório de apreensão.
A um canto do quarto, tinham conseguido encaixar uma escrivaninha. Era um minúsculo espaço de trabalho, com um computador Compaq e um monitor antigo. Embaixo da escrivaninha havia um móvel com rodinhas e, ao lado, uma prateleira baixa. Sabendo que naquele espaço de trabalho é que ele provavelmente daria com os achados mais importantes - na medida em que houvesse achados - ele o deixou para o fim. Voltou, portanto, à sala e prosseguiu o exame do local do crime. Abriu a cristaleira e conferiu minuciosamente cada pote, cada caixa e cada prateleira. Depois seu olhar convergiu para a estante grande de livros que formava um ângulo com a parede externa e a parede do banheiro. Pegou uma cadeira e primeiro verificou se havia algo escondido no topo do móvel. Depois inspecionou as prateleiras, uma por uma, tirando os livros, para se certificar de que não tinha nada escondido atrás deles, e folheando-os rapidamente. Uma boa meia hora depois, guardou o último volume na estante. Na mesa de jantar achava-se agora uma pequena pilha de livros que, por um motivo ou outro, chamaram sua atenção. Ligou o ditafone e falou.
“Da estante de livros da sala. Um livro de Mikael Blomkvist, O banqueiro da máfia. Um livro em alemão intitulado Der Staat und die Autonomen, um livro sueco intitulado Terrorismo revolucionário, além de um livro inglês, Islamic Jihad.”
Pegou automaticamente o livro de Mikael Blomkvist, uma vez que o autor fora mencionado na investigação preliminar. Os outros três pareciam mais obscuros. Jerker Holmberg ignorava se os assassinatos tinham alguma conotação política - não dispunha de nenhum elemento que indicasse que Dag Svensson e Mia Bergman eram politicamente engajados. Os livros podiam expressar um simples interesse geral pela política, ou mesmo estar ali por serem necessários para algum trabalho jornalístico. Em compensação, ponderou que se havia dois cadáveres num apartamento que continha livros sobre terrorismo político, fazia todo o sentido registrar o fato. Os livros foram, portanto, colocados na sacola de objetos apreendidos.
Depois, passou alguns minutos examinando as gavetas de uma pequena cômoda antiga e bastante danificada. Sobre ela havia um CD-player, e as gavetas continham uma vasta coleção de discos. Jerker Holmberg gastou trinta minutos abrindo todas as caixinhas de CD para conferir se o disco correspondia à capa. Achou uma dúzia de capas não impressas, ou seja, CDs gravados em casa ou pirateados; colocou cada um deles no aparelho de CD e concluiu que não continham nada além de música. Deteve-se um bom tempo diante do rack abarrotado de videocassetes, junto à porta do quarto. Testou vários deles e observou que havia de tudo, desde filmes de ação copiados até uma miscelânea de programas de variedades e reportagens, Os fatos falam, Insider e Contra-investigação. Mencionou trinta e seis cassetes no relatório de apreensão. Então foi até a cozinha, abriu uma garrafa térmica de café e fez uma breve pausa antes de prosseguir.
Na prateleira de um armário da cozinha, ele pegou certa quantidade de frascos e caixinhas, que obviamente constituíam a reserva de medicamentos da casa. Colocados num saco plástico, foram todos fazer companhia aos demais objetos apreendidos. Ele tirou os alimentos do armário e do refrigerador, e abriu cada pote, cada pacote de café e cada garrafa já em uso. Num vaso de flores no peitoril da janela, encontrou 1220 coroas e uns recibos de caixa. Imaginou que fosse uma espécie de fundo para as compras do dia a dia. Não achou nada de fundamental importância. No banheiro, não fez nenhuma apreensão. Em compensação, o cesto de roupa suja estava transbordando e ele verificou todas as roupas. Do armário do hall de entrada, tirou casacos e jaquetas e examinou os bolsos.
Encontrou a carteira de Dag Svensson no bolso interno de uma jaqueta, e a incluiu no relatório de apreensão. Havia um cartão de sócio de um clube esportivo, um cartão de crédito do Handelsbanken e quase quatrocentas coroas em dinheiro. Achou a bolsa de Mia Bergman e revistou por alguns minutos seu conteúdo. Ela também tinha um cartão do mesmo clube esportivo, um cartão bancário, um cartão das lojas Konsum e outro de um clube chamado Horisont, cujo logotipo era um globo terrestre. Havia, além disso, pouco mais de duas mil e quinhentas coroas em dinheiro, o que era uma quantia relativamente importante, mas não absurda, considerando-se que os dois planejavam passar o fim de semana prolongado fora de casa. O fato de o dinheiro estar na carteira diminuía, além disso, a probabilidade de ter sido um assassinato por roubo.
“Da bolsa de Mia Bergman na prateleira do hall. Uma agenda de bolso do tipo ProPlan, um caderno de endereços e um bloco de anotações encadernado.”
Holmberg fez outra pausa para um café e ponderou que, por enquanto, fato bastante raro, não encontrara nada de doloroso ou de foro íntimo e privado no apartamento do casal Svensson-Bergman. Nenhum acessório sexual escondido, nenhuma roupa íntima loucamente sexy nem gavetas com filmes pornôs. Não encontrara um esconderijo de ervas nem sinal de nenhuma atividade criminosa. Tudo indicava que se tratava de um casal comum de subúrbio, a rigor (do ponto de vista policial) um pouco mais sem graça que o normal.
Para encerrar, voltou ao quarto e se instalou em frente à mesa de trabalho. Abriu a gaveta de cima. Passou a hora seguinte separando papéis. Não demorou para perceber que a escrivaninha e a prateleira continham uma quantidade considerável de documentos e livros de referência para a tese de doutorado de Mia Bergman, “Da Rússia com amor”. A documentação estava cuidadosamente classificada, como numa boa investigação policial, e ele ficou algum tempo concentrado em certas passagens do texto. Essa Mia Bergman teria sido perfeita na brigada, constatou. Parte da prateleira estava meio vazia e continha, aparentemente, documentos que pertenciam a Dag Svensson. Eram sobretudo recortes de jornal de artigos seus e de temas do seu interesse.
Ficou algum tempo conferindo o computador. Continha quase 5 GB de dados, pastas, cartas, artigos e arquivos em PDF baixados da internet. Ou seja, ele não teria como ler aquilo tudo até a noite. Acrescentou o computador e alguns CDs ao material apreendido, assim como um leitor com cerca de trinta disquetes ZIP.
Depois mergulhou por um breve instante numa reflexão um tanto desorientada. Até onde conseguia avaliar, o computador continha o material de Mia Bergman. Dag Svensson era jornalista e deveria ter um computador como principal ferramenta de trabalho, mas naquela máquina não havia sequer e-mails em seu nome. Portanto o computador de Dag Svensson devia estar em algum outro lugar. Jerker Holmberg se levantou e, refletindo, deu uma volta pelo apartamento. No hall de entrada havia uma mochila preta com o compartimento para computador vazio, mas que continha alguns blocos de anotação de Dag Svensson. Não achou nenhum laptop em lugar nenhum do apartamento. Pegou as chaves e desceu até o pátio para examinar o carro de Mia Bergman e o porão. Também não encontrou nenhum laptop por lá.
O que havia de estranho com aquele cachorro, meu caro Watson, é que ele não latia.
No relatório de apreensão, registrou que, no momento, parecia estar faltando um computador.
Bublanski e Faste se encontraram com o procurador Ekström na sala dele por volta das seis e meia da tarde, assim que voltaram da Lundagatan. Por telefone, Curt Bolinder fora enviado à Universidade de Estocolmo para interrogar o orientador de Mia Bergman. Jerker Holmberg ainda estava em Enskede e Sonja Modig ficara incumbida de examinar o local do crime em Odenplan. Pouco mais de dez horas haviam transcorrido desde que Bublanski fora designado chefe das investigações, e sete horas desde o início da caçada a Lisbeth Salander. Bublanski resumiu o que acontecera na Lundagatan.
—E quem é Miriam Wu? - perguntou Ekström.
—Ainda não sabemos grande coisa sobre ela. Não tem ficha na polícia. O Hans Faste vai se encarregar de procurá-la a partir de amanhã.
—Quer dizer que a Salander não está na Lundagatan?
—Nada indica que ela more lá. Para começar, as roupas que estão no armário não são do tamanho dela.
—E que roupas, precisava ver! - disse Hans Faste.
—O que têm as roupas? - perguntou Ekström.
—Não são bem do tipo que se dá de presente no Dia das Mães.
—Nesse momento, não sabemos nada sobre Miriam Wu - disse Bublanski.
—Caramba, o que mais a gente precisa? O armário dela está cheio de uniformes de puta.
—Uniformes de puta? - espantou-se Ekström.
—Quer dizer, couro, vinil, cinta-liga e mais umas tralhas fetichistas e brinquedos sexuais numa gaveta. E não parece coisa barata.
—Você está querendo dizer que Miriam Wu é uma prostituta?
—Neste momento, não sabemos nada sobre Miriam Wu - repetiu Bublanski, para ser mais claro.
—A investigação feita pelo Serviço Social alguns anos atrás dava a entender que Lisbeth Salander tinha um pé nesse universo - disse Ekström.
—O Serviço Social costuma saber do que está falando - observou Faste.
—O relatório do Serviço Social não se baseia em nenhuma interpelação ou investigação - disse Bublanski. —A Salander foi pega no Parque de Tantolunden, quando tinha dezessete anos, na companhia de um homem muito mais velho. No mesmo ano, foi detida por embriaguez. Também na companhia de um homem de muito mais idade.
—Você quer dizer que não devemos tirar conclusões precipitadas - disse Ekström. —Certo. Mas chama a atenção o tema da tese de Mia Bergman: tráfico de mulheres e prostituição. Existe, portanto, uma possibilidade de ela ter tido contato com a Salander e com essa Miriam Wu por causa do trabalho, que as tenha provocado de alguma maneira e que isso tenha servido de motivo para o crime.
—A Bergman talvez tenha entrado em contato com o tutor e desencadeado uma espécie de avalanche - sugeriu Faste.
—Pode ser - disse Bublanski. —Mas cabe à investigação esclarecer esse ponto. O que importa no momento é encontrar Lisbeth Salander. Ela aparentemente não mora nesse endereço da Lundagatan. O que significa que também temos que encontrar Miriam Wu e perguntar como ela foi parar nesse apartamento e qual a relação dela com a Salander.
—E como a gente faz para encontrar a Salander?
—Ela está lá fora, em algum lugar. O problema é que o único endereço que ela teve a vida inteira é esse da Lundagatan. Não comunicou nenhuma mudança.
—Não esqueça que ela também esteve internada no Sankt Stefan e entregue a diversas famílias adotivas.
—Não esqueço. - Bublanski conferiu sua papelada. —Quando ela tinha quinze anos, foi adotada por três famílias diferentes. Não deu muito certo. Desde um pouco antes de completar dezesseis anos até os dezoito anos, morou com um casal de Hàgersten, Fredrik e Monika Gullberg. Curt Bolinder vai vê-los hoje à noite, depois de falar com o orientador da Mia Bergman na universidade.
—E sobre a coletiva de imprensa, o que a gente faz? —Faste quis saber.
Às sete da noite, o clima na sala de Erika Berger estava pesado. Mikael Blomkvist permanecera calado e praticamente imóvel desde que o inspetor Bublanski fora embora. Malu Eriksson tinha ido de bicicleta até a Lundagatan para cobrir a intervenção da força policial. Voltou para contar que aparentemente ninguém tinha sido preso e que o trânsito na rua já estava liberado. Henry Cortez ligara para comunicar que a polícia estava procurando uma mulher cujo nome ainda não fora divulgado. Erika o informou sobre a identidade da mulher.
Erika e Malu conversaram sobre a conduta que deveriam adotar, mas não chegaram a nada sensato. A situação se complicava pelo fato de Mikael e Erika conhecerem o papel de Lisbeth Salander no caso Wennerstrôm - na qualidade de uma hacker de primeira categoria, ela tinha sido a fonte secreta de Mikael. Malu Eriksson desconhecia esse fato e nunca ouvira falar em Lisbeth Salander antes disso. Daí os misteriosos silêncios em meio à conversa.
—Vou para casa - disse Mikael Blomkvist, levantando-se de repente. —Estou tão cansado que não consigo mais pensar. Preciso dormir.
Olhou para Malu.
—Temos bastante pano para manga. Amanhã é Sexta-feira Santa e pretendo aproveitar para dormir e separar uns documentos. Malu, você poderia trabalhar no fim de semana?
—Eu tenho escolha?
—Não. Começamos no sábado ao meio-dia. Você não iria lá para casa em vez de ficar aqui na redação?
—Combinado.
—Quero reformular as diretrizes que definimos hoje de manhã. Já não se trata apenas de descobrir se as revelações do Dag e da Mia tiveram alguma relação com o crime. Agora se trata de descobrir quem matou o Dag e a Mia.
Malu se perguntou como eles poderiam fazer isso, mas não disse nada. Mikael acenou despedindo-se de Malu e Erika e saiu sem mais nenhum comentário.
Às sete e quinze, Bublanski, o responsável pela investigação, acompanhou a contragosto o chefe do inquérito preliminar Ekström até o estrado do centro de comunicação da polícia. A coletiva de imprensa fora marcada para as dezenove horas, e eles estavam quinze minutos atrasados. Ao contrário de Ekström, Bublanski não tinha o menor interesse em ficar sob as luzes da ribalta diante de uma dúzia de câmeras de televisão. Ser a estrela desse tipo de situação deixava-o, acima de tudo, em pânico - nunca iria se acostumar a se ver na tevê e nunca sentiria prazer nisso.
Ekström, em contrapartida, estava como um peixe dentro d’água. Ajustou os óculos, exibindo uma fisionomia séria e adequada. Deixou que os fotógrafos disparassem seus flashes por alguns instantes antes de erguer as mãos e pedir silêncio na sala. Falou como se estivesse lendo um discurso pronto.
—Permitam-me desejar boas-vindas a todos nesta coletiva de imprensa um tanto apressada, sobre os assassinatos ocorridos ontem à noite em Enskede. Temos novas informações que gostaríamos de lhes comunicar. Meu nome é Richard Ekström, sou procurador, e esse é o inspetor Jan Bublanski, da brigada criminal regional, que está à frente das investigações. Vou ler um comunicado e em seguida os senhores podem fazer perguntas.
Ekström calou-se e contemplou aquela tropa do corpo jornalístico que se mobilizara em apenas meia hora. Os assassinatos de Enskede eram um assunto sensacional, em vias de crescer ainda mais. Constatou, satisfeito, que Aktuellt, Rapport e a TV4 estavam presentes, e reconheceu repórteres da agência TT e de vários jornais matutinos e vespertinos. Havia, além disso, um grande número de repórteres que ele não conhecia. Ao todo, vinte e cinco jornalistas, pelo menos, estavam reunidos na sala.
—Como sabem, duas pessoas foram brutalmente assassinadas em Enskede ontem, pouco antes da meia-noite. Ao ser examinado o local do crime, foi encontrada uma arma, um Colt 45 Magnum. O Laboratório Criminalístico do Estado confirmou hoje que se trata da arma do crime. Sabemos quem é o proprietário da arma e procuramos por ele durante o dia de hoje.
Ekström fez uma pausa oratória.
—Hoje, por volta das dezessete horas, o proprietário da arma foi encontrado morto em sua casa, próxima de Odenplan. Foi atingido por um tiro e provavelmente já estava morto na hora do duplo homicídio de Enskede. A polícia —Ekström virou a mão na direção de Bublanski - tem fortes motivos para acreditar que se trata de um mesmo e único culpado, indivíduo este que, portanto, está sendo procurado por três assassinatos.
Fez-se um burburinho entre os jornalistas quando muitos deles começaram a sussurrar ao mesmo tempo em seus celulares. Ekström elevou um pouco a voz.
—Vocês têm algum suspeito? - gritou um repórter de rádio.
—Agradeço se não me interromperem, já estou terminando. A situação, neste momento, é de que uma pessoa foi identificada e que a polícia gostaria de interrogá-la sobre os três assassinatos.
—De quem se trata?
—De uma mulher. A polícia está procurando uma mulher de vinte e seis anos que tem uma ligação com o proprietário da arma e que, sabemos, esteve no local do crime em Enskede.
Bublanski franziu o cenho e assumiu um ar severo. Estavam justamente abordando o item da pauta em que ele e Ekström tinham discordado, ou seja, se o comando das investigações iria revelar o nome da pessoa fortemente suspeita de haver cometido os três assassinatos. Bublanski achava melhor adiar. Já Ekström acreditava que não podiam mais esperar.
Os argumentos de Ekström eram irrefutáveis. A polícia procurava uma mulher conhecida, psiquicamente perturbada e com suspeitas bem fundamentadas de haver cometido três assassinatos. Durante o dia, já fora lançado um alerta em nível regional, e depois um nacional. Ekström afirmava que Lisbeth Salander tinha de ser considerada perigosa, e portanto era do interesse geral que fosse detida o quanto antes.
Os argumentos de Bublanski eram mais vagos. Na sua opinião, seria mais sensato o comando das investigações aguardar o resultado do exame técnico no apartamento do Dr. Bjurman antes de aderir de forma tão unívoca a uma só hipótese.
Ao que Ekström replicara que, de acordo com todos os elementos disponíveis, Lisbeth Salander era uma mulher psiquicamente perturbada com propensão à violência e que alguma coisa havia desencadeado um surto homicida. Nada podia garantir que os atos de violência iriam cessar.
—O que vamos fazer se, nas próximas vinte e quatro horas, ela entrar em outro apartamento e assassinar mais alguém? —Ekström disparou.
Bublanski não tivera argumento para retrucar e Ekström lembrara que não faltavam precedentes. Quando o triplo assassino Juha Valjakkala, de Amsele, tinha sido caçado em todo o país, a polícia divulgara um alerta de busca com seu nome e sua foto justamente por ser considerado uma ameaça pública. Como o mesmo argumento podia ser aplicado ao caso de Lisbeth Salander, Ekström decidiu que o nome dela deveria ser divulgado.
Ekström levantou a mão para interromper a barulheira dos repórteres. A revelação de que uma mulher estava sendo procurada por triplo assassinato ia suscitar manchetes enormes. Fez um sinal indicando que Bublanski ia falar. Bublanski pigarreou duas vezes, ajeitou os óculos e olhou fixamente para o papel contendo as informações sobre as quais tinham concordado.
—A polícia está procurando uma mulher de vinte e seis anos chamada Lisbeth Salander. Uma foto dela será distribuída. No momento, não sabemos onde ela se encontra, mas supomos que ainda esteja em Estocolmo. A polícia pede a ajuda da população para encontrar essa mulher o quanto antes. Lisbeth Salander tem um metro e cinquenta de altura e uma constituição franzina.
Inspirou profunda e nervosamente. Ele transpirava e sentiu suas axilas molhadas.
—Lisbeth Salander recebeu tratamento numa clínica psiquiátrica e considera-se que ela possa representar um perigo a si mesma e aos outros. Gostaríamos de destacar que no momento não temos como afirmar categoricamente que é ela a assassina, mas as circunstâncias nos levam a querer interrogá-la o quanto antes sobre os assassinatos de Enskede e Odenplan.
—Que enrolação! - gritou o repórter de um jornal vespertino. —Ou ela é suspeita ou não é.
Bublanski lançou um olhar desamparado ao procurador Ekström.
—A polícia está realizando amplas investigações, e é claro que trabalhamos com vários cenários. Mas, no momento, as suspeitas recaem sobre essa mulher e, para a polícia, é urgente que ela seja presa. As suspeitas com relação a ela se baseiam em provas técnicas encontradas nos locais dos crimes.
—Que tipo de provas?
A pergunta irrompeu instantaneamente da platéia.
—No momento, não podemos divulgar as provas técnicas.
Vários jornalistas falavam ao mesmo tempo. Ekström ergueu a mão, depois indicou um repórter do Dagens Eko que ele conhecia e considerava uma pessoa equilibrada.
—O inspetor Bublanski disse que ela recebeu tratamento psiquiátrico. Por que motivo?
—Essa mulher teve uma... infância difícil e um bocado de problemas ao longo dos anos. Está sob tutela e o proprietário da arma era seu tutor.
—Quem é ele?
—Trata-se de uma pessoa que foi morta em seu apartamento, perto de Odenplan. Não queremos revelar seu nome em consideração à família, que ainda não foi informada.
—Qual seria o motivo dos assassinatos? Bublanski pegou o microfone.
—No momento, não queremos abordar essa questão.
—Ela já tem ficha na polícia?
—Sim.
Então veio a pergunta de um repórter com voz densa e peculiar, que se fazia ouvir acima das demais.
—Ela deve ser considerada perigosa?
Ekström hesitou um instante. Então meneou a cabeça.
—O que sabemos sobre o passado dela leva a crer que, em situações em que se sente acuada, ela pode recorrer à violência. Se estamos divulgando esse alerta de busca é porque queremos entrar em contato com ela rapidamente.
Bublanski mordeu os lábios.