32 - QUINTA-FEIRA 7 DE ABRIL
Mikael Blomkvist chegou à estação central de Göteborg pouco depois das nove da noite. O X2000 recuperara parte do atraso, mas não totalmente. Mikael passara a última hora da viagem ligando para autolocadoras. Primeiro tentou conseguir um carro em Alingsâs, pensando em descer do trem ali, as isso revelou-se impossível àquela hora da noite. Acabou desistindo e coseguindo um Volkswagen através de uma reserva de hotel em Göteborg. O carro estaria disponível em Jãrntorget. Deixou para lá o complexo transporte coletivo de Göteborg, com seu incompreensível sistema de bilhetes que só um engenheiro espacial seria capaz de entender. Pegou um táxi.
Quando finalmente pegou o carro, descobriu que não havia um mapa rodoviário no porta-luvas. Foi até um posto de gasolina vinte e quatro horas e fez umas provisões. Comprou, além do mapa, uma lanterna, uma garrafa de água mineral e um café para viagem que ele acomodou no painel, no espaço previsto para essa finalidade. Já eram mais de dez e meia da noite quando passou por Partille, saindo de Göteborg em direção ao norte. Pegou a estrada para Alingsâs.
Às nove e meia, uma raposa macho passou junto ao túmulo de Lisbeth Salander. Parou e olhou em volta, preocupada. Sabia, por instinto, que havia algo enterrado ali, mas achou que a presa estava difícil demais de alcançar e que não valia a pena cavar. Podia encontrar presas mais fáceis.
Muito perto dali, um animal noturno inconsciente do perigo fez um barulho e a raposa imediatamente ergueu as orelhas. Deu um passo cauteloso. Mas antes de prosseguir na caçada levantou a pata traseira e marcou seu território com uma mijada.
Bublanski não tinha por hábito dar telefonemas de trabalho à noite, mas desta vez não resistiu. Tirou o fone do gancho e discou o número de Sonja Modig.
—Desculpe eu te ligar tão tarde. Está acordada?
—Não se preocupe.
—Terminei agora de ler o relatório de 1991.
—Eu também não conseguia parar de ler.
—Sonja... como você interpreta tudo que está acontecendo?
—O Gunnar Björck, um nome bem em evidência na lista dos clientes sexuais, aparentemente mandou internar a Lisbeth Salander num hospício depois que ela tentou proteger a si mesma e à mãe de um assassino de mente perturbada que trabalhava para a Säpo. Para isso, o Björck contou com a ajuda do Peter Teleborian, que fez uma avaliação do estado psíquico da Lisbeth Salander, avaliação essa em que nós, por nossa vez, baseamos boa parte do nosso julgamento.
—Isso muda completamente a imagem dela.
—E explica algumas coisas.
—Sonja, você pode vir me pegar amanhã às oito?
—Claro.
—Vamos para Smädalarö ter uma conversinha com o Gunnar Björck. Mandei tirar informações sobre ele. Está de licença médica.
—Eu vou adorar.
—Acho que vamos precisar rever a nossa avaliação da Lisbeth Salander.
Lars Beckman olhou de esguelha para a mulher. Erika Berger, em pé em frente à janela da sala, contemplava a baía. Estava com o celular na mão e ele sabia que ela esperava uma ligação de Mikael Blomkvist. Parecia tão infeliz que ele se aproximou e pôs o braço em seus ombros.
—O Blomkvist já é bem crescidinho - disse. —Mas se você está tão preocupada, deveria ligar para aquele tira.
—Eu deveria ter feito isso há horas. Mas não é por isso que estou mal.
—É algo que eu deveria saber? - perguntou Lars. Ela meneou a cabeça.
—Fala.
—Tem uma coisa que eu não te contei. Nem para o Mikael. Nem para ninguém da redação.
—O quê?
Ela se virou para o marido e contou que tinha aceitado o cargo de redatora-chefe do Svenska Morgon-Posten. Lars Beckman ergueu as sobrancelhas.
—Não entendo por que não contou nada - disse ele. —É uma super-notícia para você. Meus parabéns.
—Acho que é porque eu simplesmente tenho a sensação de estar cometendo uma traição.
—O Mikael vai entender. Chega uma hora em que cada um tem que traçar seu próprio caminho. Essa hora chegou para você.
—Eu sei.
—Você está mesmo decidida?
—Estou. Já resolvi. Mas ainda não tive coragem de contar a ninguém. E tenho a sensação de estar abandonando o navio no meio do caos.
Ele estreitou a mulher nos braços.
Dragan Armanskij esfregou os olhos e fitou a escuridão para além das janelas do centro de reabilitação de Ersta.
—Seria melhor chamar o Bublanski - disse.
—Não - disse Holger Palmgren. —Nem Bublanski, nem autoridade nenhuma nunca levantou um dedo para defender a Lisbeth. Agora deixe ela fazer o que tem que fazer.
Armanskij olhou para o antigo tutor de Lisbeth Salander. Continuava espantado com a evidente melhora do estado de saúde de Palmgren desde sua última visita, no Natal. Palmgren ainda gaguejava, mas estava com uma nova vitalidade no olhar. E também com uma raiva que ele nunca havia visto. Naquele entardecer, Palmgren tinha lhe contado a história que Mikael Blomkvist descobrira. Armanskij estava em choque.
—Ela vai tentar matar o pai.
—É possível - disse Palmgren calmamente.
—Ou então o Zalanchenko vai tentar matá-la.
—Também é possível.
—E a gente vai ficar aqui esperando?
—Dragan... você é um cara legal. Mas o que a Lisbeth Salander faz ou deixa de fazer, se ela vai morrer ou sobreviver, não é responsabilidade sua.
Palmgren fez um gesto amplo com o braço. Estava de repente com uma capacidade de coordenação que há muito não tinha. Parecia que o drama das últimas semanas tinha afiado seus sentidos deficientes.
—Nunca tive nenhuma simpatia por pessoas que assumem o lugar da lei. Por outro lado, nunca soube de ninguém que tivesse tão bons motivos para isso. Mesmo ao risco de parecer cínico... o que vai acontecer esta noite há de acontecer independentemente do que eu ou você achamos. Está escrito nas estrelas desde o nascimento da Lisbeth. E só o que nos resta fazer é decidir qual será a nossa atitude em relação a ela se ela voltar.
Armanskij soltou um suspiro infeliz e olhou furtivamente para o velho advogado.
—E se ela passar os próximos dez anos na prisão, terá sido escolha dela. E eu vou continuar sendo seu amigo.
—Eu não sabia que você tinha essa visão tão libertária do ser humano.
—Nem eu - disse Holger Palmgren.
Miriam Wu fitou o teto. Tinha deixado a lamparina acesa e o rádio tocando música num volume baixo. O programa da noite tocava “On a slow boat to China”. Ela acordara no hospital no dia anterior, depois de Paolo Roberto levá-la até lá. Tinha dormido e acordado agitada, depois dormira de novo, tudo sem muita lógica. Os médicos diziam que ela estava com uma concussão cerebral. De qualquer forma, precisava de repouso. Estava também com o nariz quebrado, três costelas partidas e ferimentos por todo o corpo. Sua sobrancelha esquerda estava tão inchada que o olho não passava de uma fresta estreita. Sentia dor assim que tentava mudar de posição. Sentia dor quando tentava encher os pulmões de ar. Sua nuca doía, e tinham-lhe posto um colete ortopédico, nunca se sabe. Os médicos garantiam que ela ficaria totalmente boa.
Quando acordara, no final da tarde, Paolo Roberto estava ali. Ele riu e perguntou como ela estava. Tinha curiosidade em saber se sua aparência estava tão ruim quanto a dele.
Ela fizera perguntas e ele tinha explicado tudo. Estranhamente, já não parecia tão improvável ele ser amigo da Lisbeth Salander. Era um garganta. A Lisbeth gostava dos gargantas e detestava os metidos cheios de si. A diferença era muito sutil, mas Paolo Roberto pertencia à primeira categoria.
Ela ouvira a explicação sobre a repentina chegada dele, surgido do nada, ao armazém de Nykvarn. Ficou estupefata com a obstinação de Paolo em seguir a caminhonete. E descobriu, apavorada, que a polícia estava desenterrando três cadáveres no terreno em volta da construção.
—Obrigada - disse ela. —Você salvou a minha vida. Ele balançou a cabeça e ficou um bom tempo calado.
—Tentei explicar para o Blomkvist. Ele não entendeu direito. Acho que você pode entender. Porque você também luta boxe.
Ela sabia o que ele queria dizer. Ninguém que não tivesse estado no armazém de Nykvarn podia entender qual a sensação de lutar com um monstro insensível à dor. Sentira-se totalmente impotente.
Por fim, eles pararam de falar e ela ficara só segurando a mão enfaixada dele. Não havia nada a dizer. Quando voltou a acordar, ele não estava mais lá. Gostaria que Lisbeth Salander desse notícias.
Era ela que o Niedermann estava procurando.
Miriam Wu sentiu medo que ele a encontrasse.
Lisbeth Salander não conseguia respirar. Perdera a noção do tempo, mas sabia que seu corpo tinha sido atingido por balas e percebia - mais por instinto que por dedução racional - que estava enterrada. Seu braço esquerdo estava imprestável. Não conseguia mexer um músculo sequer sem que ondas de dor lhe varassem o ombro, e qualquer pensamento evoluía numa espécie de estado nebuloso. Preciso de ar. A cabeça estava a ponto de explodir com o pulsar de uma dor como ela nunca havia sentido.
A mão direita tinha ido parar sob o seu rosto, e ela instintivamente começou a cavar a fim de tirar a terra da frente do nariz e da boca. Era uma terra arenosa e relativamente seca. Conseguiu abrir uma cavidade do tamanho de um punho diante do rosto.
Não fazia idéia de quanto tempo já estava naquele túmulo. Mas sabia que sua vida estava em perigo. Por fim, conseguiu formular um pensamento coeso.
Ele me enterrou viva.
Esta certeza a deixou em pânico. Não conseguia respirar. Não conseguia se mexer. Uma tonelada de terra a mantinha prisioneira.
Tentou mexer uma perna, mas não conseguia estender os músculos. Então, cometeu o erro de tentar se levantar. Empurrou a cabeça para o alto e imediatamente a dor a transpassou pelas têmporas feito uma descarga elétrica. Não posso vomitar. Tornou a cair numa vaga inconsciência.
Quando conseguiu pensar novamente, conferiu com cautela que partes do seu corpo ainda podiam ser usadas. O único membro que ela conseguia mexer uns poucos centímetros era a mão direita na frente do rosto. Preciso de ar. O ar estava acima dela, acima do túmulo.
Lisbeth Salander começou a cavoucar. Pressionou o cotovelo e conseguiu criar um pequeno espaço de manobra. Com o dorso da mão, ampliou a cavidade na frente de seu rosto, afastando a terra. Eu tenho que cavar.
Depois de algum tempo, percebeu que, em virtude de sua posição fetal, criara-se um espaço vazio num ponto cego debaixo e entre suas coxas. Ali é que estava boa parte do ar usado que ainda a mantinha viva. Pôs-se a torcer o tórax desesperadamente e sentiu a terra afundando embaixo de si. A pressão sobre o peito cedeu um pouco. De repente conseguiu mexer o braço alguns centímetros.
Minuto a minuto, trabalhou num estado próximo da inconsciência. Foi raspando a terra arenosa do rosto e enfiando-a no espaço oco debaixo de si, punhado por punhado. Por fim, conseguiu soltar o braço o necessário para tirar a terra acima da cabeça. Centímetro por centímetro, foi liberando a cabeça. Sentiu algo duro e de repente se viu segurando na mão uma pequena raiz ou pedaço de galho. Cavou para o alto. A terra ainda estava solta, não muito compacta.
Eram pouco mais de dez horas quando a raposa tornou a passar junto ao túmulo de Lisbeth Salander, ao voltar para sua toca. Tinha comido uma ratazana e sentia-se satisfeita, quando, de súbito, percebeu uma presença. Imobilizou-se e ergueu as orelhas. O focinho e o bigode estremeceram.
Súbito, os dedos de Lisbeth Salander emergiram da terra como algo não muito vivo surgindo das trevas. Se um espectador humano estivesse por ali, provavelmente teria tido a mesma reação da raposa. Pernas para que te quero.
Lisbeth sentiu o ar fresco se espalhar pelo braço. Voltava a respirar.
Precisou de mais meia hora para se libertar do túmulo. Não se lembrava muito bem do processo. Achava estranho não poder usar a mão esquerda, mas raspou energicamente a terra e a areia com a direita.
Precisava de uma ferramenta para cavar. Depois de algum tempo, descobriu um jeito. Puxou o braço para dentro do buraco e conseguiu alcançar o bolso interno da jaqueta e pegar a cigarreira que Miriam Wu tinha lhe dado. Abriu-a e usou-a como vertedouro. Foi escoando a terra de grão em grão, jogando-a para fora com um gesto seco do punho. Súbito, conseguiu mexer o ombro direito e pressioná-lo contra a camada de terra. Depois, raspou para tirar à areia e a terra e conseguiu erguer a cabeça. Com isso, ficou com o braço direito e a cabeça fora do túmulo. Depois que conseguiu desprender parte do tórax, foi possível começar a se torcer e ir subindo centímetro por centímetro até que de repente a terra soltasse suas pernas.
Afastou-se do túmulo rastejando, olhos fechados, e só parou quando seu ombro esbarrou num tronco de árvore. Virou o corpo devagar para se recostar na árvore e limpou a sujeira dos olhos com o dorso da mão antes de abrir as pálpebras. Era noite escura e o ar estava gélido. Ela transpirava. Sentiu uma dor surda na cabeça, no ombro esquerdo e no quadril, mas não gastou energia pensando no assunto. Permaneceu imóvel uns dez minutos, respirando. Então se deu conta de que não podia ficar ali.
Foi uma luta conseguir ficar de pé, enquanto o mundo inteiro girava.
Sentiu-se imediatamente enjoada e se inclinou para a frente a fim de vomitar.
Então, começou a andar, sem saber em que direção. Tinha dificuldades para mexer a perna esquerda, tropeçava o tempo todo, caía de joelhos. A cada vez, uma dor intensa lhe varava a cabeça.
Não sabia bem há quanto tempo estava andando, quando repentinamente avistou uma luz com o canto do olho. Mudou de direção e continuou avançando aos tropeções. Só quando chegou ao galpão ao lado do pátio percebeu que tinha voltado direto para a casa de Zalachenko. Deteve-se, cambaleando como uma bêbada.
Células fotoelétricas na trilha de acesso e no arvoredo. Ela tinha vindo pelo outro lado. Eles não teriam notado.
Ficou perturbada. Compreendeu que não estava em condições de travar outra luta com Niedermann e Zalachenko. Contemplou a casa branca.
Clique. Lenha. Clique. Fogo.
Pôs-se a tecer fantasias com um galão de gasolina e um fósforo.
Com muito custo, virou-se para o galpão e cambaleou até uma porta fechada com uma tranca. Conseguiu erguê-la empurrando com o ombro direito. Ouviu o barulho quando a tranca caiu no chão esbarrando na porta. Deu um passo no escuro e olhou em volta.
Era um galpão de lenha. Ali não havia gasolina.
Na mesa da cozinha, Alexander Zalachenko ergueu os olhos ao ouvir o som da tranca se chocando contra a porta do galpão. Afastou a cortina e estreitou os olhos para a escuridão lá fora. Levou alguns segundos até seus olhos se habituarem. O vento estava mais forte. A meteorologia anunciara um fim de semana agitado. Então, viu a porta do galpão entreaberta.
Ele tinha ido, à tarde, buscar lenha com Niedermann. Uma caminhada inútil, cujo principal objetivo fora confirmar para Lisbeth Salander que ela tinha chegado ao endereço certo, e assim atraí-la.
Niedermann teria se esquecido de recolocar a tranca? Como ele podia ser tão negligente? Deu uma olhada para a porta da sala, onde Niedermann adormecera no sofá, mas pensou que podia deixá-lo dormir. Levantou-se da cadeira.
Para achar gasolina, Lisbeth seria obrigada a ir até o estábulo onde estavam guardados os carros. Apoiou-se num cepo e respirou pesadamente. Precisava descansar. Estava sentada havia um minuto apenas, quando escutou os passos arrastados da prótese de Zalachenko na frente do galpão.
Por causa da escuridão, Mikael errou de estrada em Mellby, ao norte de Sollebrunn. Em vez de virar na direção de Nossebro, continuou para o norte e só se deu conta do erro ao chegar a Trõkõrna. Parou e consultou o mapa rodoviário.
Soltou um palavrão, deu meia-volta e retornou para o sul rumo a Nossebro.
Com a mão direita, Lisbeth Salander apanhou um machado que estava em cima do cepo um segundo antes de Alexander Zalachenko entrar no galpão. Como não tivesse forças suficientes para erguê-lo acima da cabeça, segurou-o com uma mão só e traçou uma curva de baixo para cima, jogando o peso sobre o quadril intacto e fazendo um meio giro sobre si mesma.
Zalachenko estava pressionando o interruptor quando a lâmina o golpeou de viés do lado direito do rosto, quebrou-lhe o osso da face e penetrou alguns milímetros em sua testa. Não teve tempo de entender o que estava acontecendo, mas, no instante seguinte, seu cérebro registrou a dor e ele se pôs a urrar feito um demente.
Ronald Niedermann acordou num sobressalto e se sentou atordoado. Ouviu um berro que, de início, julgou não ser humano. Vinha lá de fora. Depois percebeu que quem berrava era Zalachenko. Levantou-se rapidamente.
Lisbeth Salander tomou impulso e jogou o machado mais uma vez, só que seu corpo não obedeceu à ordem. Sua intenção tinha sido erguer o machado e plantá-lo na cabeça do seu pai, mas suas forças haviam se esgotado e o golpe o atingiu bem mais embaixo, logo abaixo do joelho. O peso, porém, fez a lâmina se cravar tão fundo que o machado ficou preso e escapou de sua mão quando Zalachenko caiu de cabeça dentro do galpão. Ele não parava de urrar.
Ela se inclinou para pegar o machado de volta. O chão começou a balançar quando a dor irradiou para sua cabeça. Foi obrigada a se sentar. Estendeu a mão e apalpou os bolsos de Zalachenko. Ele ainda estava com a pistola no bolso direito do casaco, e ela focou o olhar enquanto a terra balançava.
Uma Browning calibre 22.
Um brinquedinho de escoteiro!
Por isso ela ainda estava viva. Se tivesse sido atingida por uma bala da Sig Sauer de Niedermann, ou por uma munição mais grossa, estaria com um buraco enorme no cérebro.
Nesse exato instante, ouviu os passos de Niedermann, que ainda sonolento surgiu de repente no vão da porta. Ele estacou e contemplou a cena com olhos esbugalhados, repletos de incompreensão. Zalachenko urrava feito louco. Seu rosto não passava de uma máscara de sangue. Tinha um machado enfiado no joelho. Uma Lisbeth Salander ensanguentada e cheia de terra estava sentada no chão a seu lado. Parecia saída diretamente de um desses filmes de terror que Niedermann tanto assistia.
Ronald Niedermann, insensível à dor e com um físico de robô antitanque, nunca tinha gostado do escuro. Até onde era capaz de lembrar, a escuridão sempre fora para ele sinônimo de ameaça.
Ele já tinha visto, com os próprios olhos, umas criaturas no escuro, e um terror indescritível o espreitava constantemente. E agora o horror acabava de se materializar.
A garota que estava sentada no chão estava morta. Sem sombra de dúvida. Ele próprio a tinha enterrado.
Por conseguinte, a criatura ali no chão não era uma garota, e sim uma alma do outro mundo que não poderia ser combatida com forças humanas ou com uma arma.
A metamorfose de ser humano em morto-vivo já havia começado. Sua pele se transformara numa carapaça igual à dos lagartos. Seus dentes à mostra eram presas afiadas prestes a arrancar pedaços da carne de sua vítima. Sua língua de réptil apontou e lambeu o contorno da boca. Suas mãos cheias de sangue tinham garras que eram como lâminas de uns dez centímetros de comprimento. Ele viu os olhos incandescentes cintilarem. Podia ouvida rosnar e a viu estender os músculos para saltar na sua garganta.
Ele viu, súbita, nitidamente, que ela tinha uma cauda, que se curvou e começou a açoitar o piso para ameaçá-lo.
Então ela ergueu a pistola e atirou. A bala passou tão perto da orelha de Niedermann que ele sentiu o calor de seu sopro. Viu sua boca lançando-lhe uma labareda.
Foi demais.
Ele parou de pensar.
Deu meia-volta e correu para salvar a vida. Ela ainda disparou mais um tiro, que passou longe dele, mas pareceu lhe dar asas. Ele transpôs uma cerca num salto de cabrito e foi engolido pela escuridão do campo na direção da estrada. Corria levado por um terror irracional.
Lisbeth Salander observou atônita, enquanto ele sumia de vista.
Arrastou-se até a porta e espiou na escuridão, mas não avistou Niedermann. Depois de algum tempo, Zalachenko parou de gritar, só continuou gemendo, ainda em choque. Ela abriu a pistola, viu que só sobrava uma bala e cogitou dispará-la na cabeça de Zalachenko. Então se lembrou de que Niedermann ainda estava lá fora no escuro e que seria melhor guardar a última bala. Caso ele atacasse, ela decerto precisaria de muito mais que uma calibre 22. Mas era melhor que nada.
Levantou-se com dificuldade, saiu do galpão manquejando e bateu a porta. Precisou de cinco minutos para repor a tranca no lugar. Atravessou o pátio com passos vacilantes, entrou na casa e achou o telefone sobre um balcão da cozinha. Digitou o número que não utilizava havia dois anos. Ele não estava em casa. Atendeu a secretária eletrônica.
Olá. Você ligou para o Mikael Blomkvist. Não posso atender no momento. Deixe seu nome e o número de seu telefone que eu ligo de volta assim que puder.
Biiip.
—Mig-g-kral - disse ela, e percebeu que sua voz estava um mingau. Engoliu em seco. —Mikael. É a Salander.
Então não soube mais o que dizer. Desligou devagar.
A Sig Sauer de Niedermann estava desmontada para limpeza na mesa da cozinha à sua frente, ao lado da P-83 Wanad de Benny Nieminen. Ela largou a Browning de Zalachenko no chão, cambaleou até a mesa, pegou a Wanad para conferir o carregador. Encontrou também seu PDA Palm e enfiou-o no bolso. Depois, foi vacilando até a pia e encheu uma xícara de café com água gelada. Tomou quatro xícaras. Súbito, ao levantar a cabeça, deparou com seu próprio rosto num espelhinho na parede. Por pouco não apertou o gatilho, tal o susto que levou.
O que ela viu lembrava mais um bicho que um ser humano. Viu uma demente com o rosto torto e uma enorme boca aberta. Estava coberta de sujeira. O rosto e o pescoço eram uma pasta ressecada de sangue e lama. Compreendeu então o que Ronald Niedermann tinha visto no galpão.
Chegou mais perto do espelho e se deu conta que sua perna esquerda vinha se arrastando atrás dela. Estava com muita dor no quadril, onde fora atingida pela primeira bala de Zalachenko. A segunda bala a pegara no ombro e paralisara o braço esquerdo. Doía.
Mas a dor de cabeça é que a fazia cambalear, de tão forte que era. Devagar, levantou a mão direita e apalpou a parte de trás da cabeça. Seus dedos depararam com a cratera que a bala abrira ao entrar.
Apalpou o buraco no crânio e percebeu de repente, apavorada, que tocava em seu próprio cérebro, que seus ferimentos eram tão graves que ela já devia estar agonizando ou, quem sabe, morta. Não entendia como ainda se mantinha em pé.
Um cansaço paralisante bruscamente tomou conta dela. Não sabia bem se estava a ponto de desmaiar ou de cair no sono, mas acercou-se do banco, deitou-se devagarinho e descansou o lado direito da cabeça, que não estava ferido, numa almofada.
Precisava se deitar para recobrar as forças, mas sabia que não podia se permitir pegar no sono com Niedermann lá fora. Mais cedo ou mais tarde ele ia voltar. Mais cedo ou mais tarde, Zalachenko conseguiria sair do galpão de lenha e se arrastar até a casa, mas ela não tinha mais forças para ficar de pé. Estava com frio. Soltou a trava de segurança.
* * *
Ronald Niedermann estava parado, indeciso, na beira da estrada entre Sollebrunn e Nossebro. Ele estava sozinho. A noite, totalmente escura. Voltara a pensar de maneira racional e se envergonhava de ter fugido. Não entendia como era possível, mas chegara à conclusão lógica de que ela devia ter sobrevivido. De um jeito ou de outro, ela tinha conseguido cavar e sair do túmulo.
Zalachenko precisava dele. Tinha, portanto, que voltar para casa e torcer o pescoço daquela Lisbeth Salander.
Ao mesmo tempo, Ronald Niedermann tinha a sensação de que estava tudo acabado. Essa sensação vinha já de algum tempo. As coisas começaram a dar errado, e continuaram dando errado, desde que Bjurman fizera contato com eles. Zalachenko se transformara totalmente ao ouvir o nome de Lisbeth Salander. Todas as regras da prudência e da reserva que Zalachenko pregava havia tantos anos tinham deixado de vigorar.
Niedermann hesitou.
Zalachenko precisava de cuidados médicos. Se é que ela já não o tinha matado. Isso suscitava algumas questões. Mordeu o lábio inferior.
Já fazia muitos anos que era parceiro do pai. Anos repletos de sucesso. Ele economizara algum dinheiro e, além disso, sabia onde Zalachenko escondera sua fortuna. Possuía recursos e as competências necessárias para levar adiante sua atividade. O mais racional seria ir embora sem olhar para trás. Se alguma coisa Zalachenko conseguira lhe incutir, era exatamente isto: ter a capacidade de abandonar sem pruridos uma situação que se tornara incontrolável. Era a regra básica de sobrevivência. Não levante um dedo sequer por uma causa perdida.
Ela não era sobrenatural. Mas era sinônimo de más notícias. Era sua meia-irmã.
Ele a subestimara.
Ronald Niedermann estava dividido entre duas vontades. Parte dele queria voltar lá e torcer o pescoço dela. Outra parte queria continuar fugindo noite adentro.
Estava com o passaporte e a carteira no bolso de trás. Não tinha vontade de voltar para a granja. Não havia nada, lá, de que ele precisasse. A não ser um carro, quem sabe.
Ainda estava ali tergiversando quando, por trás de uma elevação, viu o clarão dos faróis de um carro se aproximando. Virou a cabeça. Ele talvez pudesse achar outro meio de transporte. Só precisava de um carro para ir até Göteborg.
Pela primeira vez na vida - pelo menos desde que saíra da infância -, Lisbeth Salander sentia-se incapaz de tomar as rédeas da situação. Ao longo dos anos, ela se envolvera em brigas, fora vítima de maus-tratos, objeto de uma internação compulsória decretada pelo Estado e de abusos praticados por pessoas físicas. Seu corpo e sua alma tinham recebido muito mais pancadas do que um ser humano deveria receber.
Toda vez, porém, soubera se revoltar. Recusara-se a responder às perguntas de Teleborian, e quando fora vítima de violência física soubera escapar e se recolher.
Podia viver com um nariz quebrado.
Mas não podia viver com um buraco no crânio.
Desta vez não ia dar para ela se arrastar até a cama, puxar o cobertor sobre a cabeça e dormir dois dias seguidos, para depois se levantar e voltar à rotina como se nada tivesse acontecido.
Estava tão gravemente ferida que não poderia resolver a situação sozinha. Estava tão cansada que seu corpo não obedecia a seus comandos.
Preciso dormir um pouco - pensou. Mas teve a súbita certeza de que, se relaxasse e fechasse os olhos, provavelmente nunca mais acordasse. Analisou essa conclusão e, aos poucos, decidiu que tanto fazia. Pelo contrário. Essa idéia até a atraía. Poder descansar. Não precisar acordar.
Seu último pensamento foi para Miriam Wu.
Perdoa-me, Mimmi.
Ainda segurava na mão a pistola de Benny Nieminen, com a trava de segurança solta, quando cerrou os olhos.
Mikael Blomkvist avistou Ronald Niedermann de longe, à luz dos faróis, e o reconheceu de imediato. Era difícil ignorar um gigante loiro de mais de dois metros, com um físico de Terminator. Niedermann acenou com os braços. Mikael passou para a luz baixa e freou. Estendeu a mão até a bolsa do computador e tirou do bolso externo o Colt 1911 Government que encontrara na escrivaninha de Lisbeth Salander. Parou a uns bons cinco metros de Niedermann e antes de abrir a porta desligou o motor.
—Obrigado por parar - disse Niedermann, ofegante. Ele tinha corrido. —Meu carro enguiçou. O senhor poderia me levar até a cidade?
A voz dele era estranhamente aguda.
—É claro que posso - disse Mikael Blomkvist. Apontou a arma para Niedermann. —Deite-se no chão.
As provações de Ronald Niedermann naquela noite pareciam não ter fim. Ele olhou para Mikael de um jeito cético.
Niedermann não tinha medo nenhum da pistola, nem do sujeito que a segurava. Em compensação, respeitava armas. Passara a vida inteira entre armas e violência. Partia do princípio de que se alguém apontava um revólver para ele era porque a pessoa estava desesperada e disposta a usá-lo. Estreitou os olhos e tentou avaliar o homem atrás da pistola, mas os faróis do carro o transformavam num vulto escuro. Um tira? Não tinha cara. Os tiras costumam se identificar. Pelo menos é o que eles fazem nos filmes.
Calculou suas chances. Sabia que, atirando-se feito um selvagem, conseguiria pegar a arma. Mas o homem parecia determinado e estava protegido pela porta do carro. Niedermann levaria uma bala, talvez duas. Se fosse rápido, o homem talvez errasse o tiro, ou não atingisse nenhum órgão vital, mas mesmo que ele sobrevivesse às balas iriam dificultar sua fuga, ou até torná-la impossível. O mais certo era esperar uma oportunidade melhor.
—DEITE-SE NO CHÃO, AGORA! — berrou Mikael.
Desviou o cano da arma alguns centímetros e deu um tiro no chão, na beira da estrada.
—A próxima bala vai ser no seu joelho - disse Mikael com voz forte e autoritária.
Ronald Niedermann se ajoelhou, cegado pelos faróis.
—Quem é você? - perguntou.
Mikael enfiou a mão na porta do carro e pegou a lanterna que tinha comprado no posto de gasolina. Iluminou o rosto de Niedermann.
—Mãos nas costas - ordenou. —Afaste as pernas. Esperou que Niedermann, a contragosto, obedecesse.
—Eu sei quem você é. Se fizer alguma besteira, eu atiro sem hesitar. Vou mirar no pulmão, debaixo da escapula. Você provavelmente consegue me pegar... mas vai custar caro.
Soltou a lanterna no chão, tirou o cinto, amarrou-o num laço como tinha aprendido na infantaria ligeira durante o serviço militar, vinte anos antes. Colocando-se entre as pernas do gigante loiro, prendeu o laço em volta de seus braços, apertando acima dos cotovelos. O imenso Niedermann ficava, assim, praticamente indefeso.
E depois? Mikael olhou ao redor. Estavam absolutamente sozinhos na escuridão da estrada. Paolo Roberto não tinha exagerado quando descrevera Niedermann. Era um colosso. A questão era saber por que um colosso daqueles surgia correndo na noite, como fugindo do diabo em pessoa.
—Estou procurando Lisbeth Salander. Imagino que você tenha encontrado com ela.
Niedermann não respondeu.
—Onde está Lisbeth Salander? - perguntou Mikael. Niedermann endereçou-lhe um olhar estranho. Não compreendia nada do que estava acontecendo naquela noite esquisita, em que tudo parecia estar dando errado.
Mikael deu de ombros. Voltou para o carro, abriu o porta-malas e achou uma corda de reboque. Não podia deixar Niedermann amarrado no meio da estrada, e olhou em volta. Trinta metros adiante, uma placa brilhava à luz dos faróis. Travessia de alces.
—Levante-se.
Encostou o cano da arma na nuca de Niedermann, fez com que ele andasse até a placa e o forçou a se sentar no acostamento, ordenando que se encostasse na placa. Niedermann hesitou.
—É muito simples - disse Mikael. —Você matou o Dag Svensson e a Mia Bergman. Eles eram meus amigos. Não pretendo deixar você solto na estrada. Ou você fica amarrado aqui, ou eu disparo uma bala no seu joelho. Você escolhe.
Niedermann se sentou. Mikael passou-lhe a corda em volta do pescoço e imobilizou a cabeça. Depois, usou dezoito metros de corda para amarrar o tórax do gigante no poste, até a cintura. Reservou um pedaço da corda para prender também os braços no poste e arrematou com uns nós de marinheiro bem firmes.
Quando terminou, Mikael ainda perguntou mais uma vez onde estava Lisbeth Salander. Não obteve resposta, então deu de ombros e abandonou Niedermann ali. Só quando chegou ao carro sentiu a adrenalina afluindo e teve consciência do que acabava de fazer. A imagem de Mia Bergman cintilou diante de seus olhos.
Mikael acendeu um cigarro e bebeu água mineral direto da garrafa. Contemplou no escuro o vulto junto à placa do alce. Depois sentou-se ao volante, consultou o mapa rodoviário e concluiu que faltava um quilômetro para a bifurcação que levava à granja de Karl Axel Bodin. Arrancou com o carro e passou na frente de Niedermann.
Foi dirigindo devagar e ultrapassou a bifurcação com a placa de Gosseberga, indo estacionar ao lado de uma granja, numa trilha florestal uns cem metros mais ao norte. Pegou a pistola e acendeu a lanterna. Descobriu marcas frescas de pneus na lama e concluiu que outro carro estivera estacionado ali antes, mas não se deteve para pensar no assunto. Voltou a pé para a bifurcação de Gosseberga e iluminou a caixa de correspondência. 612 - K. A. Bodin. Foi seguindo pela trilha.
Era quase meia-noite quando avistou a luz da granja de Bodin. Parou e escutou. Permaneceu vários minutos imóvel, mas só ouviu os ruídos normais da noite. Em vez de pegar a trilha que levava diretamente à granja, foi ladeando o campo e se aproximou da construção pelo estábulo. Parou no pátio, a uns trinta metros da casa. Todos os seus sentidos estavam alertas. Niedermann ter corrido para a estrada indicava que alguma coisa tinha acontecido ali.
Mikael estava no meio do pátio quando ouviu um ruído. Virou-se e deixou-se cair de joelhos, arma em riste. Levou alguns segundos para localizar o som, que vinha de um galpão. Parecia alguém gemendo. Avançou rapidamente pela grama e parou em frente ao galpão. Olhando por uma fresta, conseguiu ver que havia uma luz acesa lá dentro.
Ficou à escuta. Alguém se mexia. Ergueu a tranca e abriu a porta, e foi recebido por um par de olhos apavorados em meio a um rosto ensanguentado. Viu o machado no chão.
—CarambaMeuDeus - murmurou.
Então viu a prótese.
Zalachenko.
Lisbeth Salander, definitivamente, tinha passado por ali. Difícil imaginar o que teria acontecido. Fechou a porta depressa e repôs a tranca no lugar.
Com Zalachenko no galpão de lenha e Niedermann amarrado na estrada de Sollebrunn, Mikael atravessou o pátio a passos céleres e dirigiu-se para a casa. A presença de uma terceira pessoa que ele não conhecesse e que pudesse representar um perigo não estava excluída, mas a casa parecia vazia, quase inabitada. Apontou a arma para o chão e, devagar, abriu a porta. Viu-se num hall de entrada escuro e percebeu um retângulo de luz na cozinha. O único som que ouviu foi o tiquetaque de um relógio de parede. Ao transpor a porta da cozinha, avistou de imediato Lisbeth Salander deitada no banco.
Por um breve instante, ficou como petrificado, contemplando o corpo maltratado. Notou que ela segurava uma pistola na mão, que pendia frouxamente. Aproximou-se devagarinho e caiu de joelhos. Lembrou de quando tinha encontrado Dag e Mia e, por um segundo, achou que ela estivesse morta. Então percebeu um leve movimento na caixa torácica e escutou um fraco estertor.
Estendeu a mão e, suavemente, começou a tirar a pistola. Súbito, a mão em volta da coronha se endureceu. Ela abriu os olhos em duas frestas estreitas e fitou-o por longos minutos. Seu olhar estava instável. Então ouviu-a murmurar, com uma voz tão baixa que custou a entender o que ela dizia.
Maldito Super-Blomkvist.
Ela fechou os olhos e soltou a pistola. Ele pôs a arma no chão, pegou o celular e discou o número do SOS-Brigada.