27. SEXTA-FEIRA 15 DE JULHO


O juiz Iversen bateu o martelo na mesa às doze e trinta e declarou reaberta a sessão do Tribunal Correcional. Reparou imediatamente numa terceira pessoa sentada à mesa de Annika Giannini. Holger Palmgren, numa cadeira de rodas.

— Boa tarde, Holger — disse o juiz Iversen. — Faz séculos que não o vejo numa sala de audiência.

— Boa tarde, juiz Iversen. Você sabe, alguns casos são tão complexos que os jovens precisam de alguma assistência.

— Pensei que você tivesse encerrado suas atividades profissionais.

— Estive doente. Mas a doutora Giannini recorreu a mim para assessorada neste caso.

— Entendo.

Annika Giannini deu uma tossidinha.

— Cabe lembrar, também, que por vários anos Holger Palmgren representou Lisbeth Salander.

— Bem, vamos deixar a conversa de lado — disse o juiz Iversen. Com um sinal de cabeça, indicou que Annika Giannini podia começar.

Ela se levantou. Nunca apreciara o mau hábito sueco de conduzir as audiências num tom informal, todos sentados ao redor de uma mesa intimista, quase como se estivessem num jantar. Sentia-se muito melhor quando podia falar de pé, portanto se levantou.

— Acho que poderíamos começar pelos comentários que encerraram a sessão desta manhã. Senhor Teleborian, por que o senhor desaprova sistematicamente todas as afirmações de Lisbeth Salander?

— Porque está muito claro que elas são falsas — respondeu Peter Teleborian.

Ele estava calmo e relaxado. Annika Giannini meneou a cabeça e se voltou para o juiz Iversen.

— Excelência, Peter Teleborian afirma que Lisbeth Salander está mentindo e fantasiando. A defesa vai demonstrar agora que cada palavra da autobiografia de Lisbeth Salander é verídica. Vamos apresentar provas. Escritas e testemunhais. Nesse estágio do julgamento, o procurador já expôs as linhas gerais de sua argumentação. Nós o ouvimos e agora sabemos no que consistem precisamente as acusações contra Lisbeth Salander.

De repente, Annika Giannini sentiu a boca seca e que sua mão tremia. Respirou fundo e tomou um gole de água mineral. Então segurou com firmeza o encosto da cadeira para que o tremor das mãos não traísse seu nervosismo.

— Da argumentação do procurador, podemos concluir que ele dispõe de uma abundância de opiniões, mas de pouquíssimas provas. Ele acredita que Lisbeth Salander atirou em Carl-Magnus Lundin em Stallarholmen. Ele afirma que ela foi até Gosseberga para matar o pai. Ele supõe que minha cliente sofre de esquizofrenia paranóica e que tem todos os tipos de doenças mentais que se possa imaginar. E ele fundamenta essa suposição nos dados fornecidos por uma única fonte, o doutor Peter Teleborian.

Ela fez uma pausa e acertou sua respiração. Obrigou-se a falar devagar.

— No momento, a situação das provas é tal que a opinião do procurador baseia-se exclusivamente em Peter Teleborian. Se este estiver certo, então está tudo perfeito; nesse caso, seria muito bom que minha cliente pudesse receber a ajuda psiquiátrica adequada conforme o procurador e ele próprio pleiteiam.

Pausa.

— Mas se o doutor Teleborian estiver errado, o caso adquire de imediato outra conotação. Se, além disso, ele estiver mentindo de forma proposital, ficamos numa situação em que minha cliente se vê vítima de abuso do Poder Judiciário, abuso, aliás, que vem ocorrendo há muitos anos. Ela olhou para Ekstrõm.

— Nesta tarde, vamos demonstrar que sua testemunha está errada e que o senhor, como procurador, foi enganado e induzido a aceitar essas falsas conclusões.

Peter Teleborian exibia um sorriso divertido. Afastou as mãos e fez um sinal de cabeça para Annika Giannini, convidando-a a começar. Ela voltou-se novamente para Iversen.

— Excelência, vou demonstrar que a pretensa avaliação psiquiátrica médico-legal do doutor Peter Teleborian foi pura encenação, do começo ao fim. Vou demonstrar que ele está mentindo de modo consciente a respeito de Lisbeth Salander. Vou demonstrar que minha cliente foi vítima de abuso agravado do Poder Judiciário. E vou demonstrar que ela é tão inteligente e sensata como qualquer um de nós aqui presente.

— Me desculpe, mas... — Ekstrõm começou a dizer.

— Um momento. — Ela ergueu um dedo. — Eu o deixei falar sem nenhuma interrupção durante dois dias. Agora é a minha vez.

Virou-se novamente para o juiz Iversen.

— Eu não pronunciaria acusações tão graves num tribunal se não contasse com provas irrefutáveis.

— Por favor, prossiga — disse Iversen. — Mas não quero ouvir falar em grandes conspirações. Tenha em mente que a senhora pode ser processada por difamação, mesmo que seja por declarações feitas perante um tribunal.

— Obrigada. Não vou me esquecer disso.

Virou-se para Teleborian. Ele ainda parecia achar a situação divertida.

— A defesa solicitou várias vezes a consulta ao dossiê de Lisbeth Salander que datava da época em que, ainda adolescente, ela estava internada na sua clínica de Sankt Stefan. Por que não tivemos acesso a esse dossiê?

— Porque o Tribunal de Instâncias declarou que ele era confidencial. A decisão foi tomada para proteger Lisbeth Salander, mas se um tribunal de cassação revisse esse ponto e voltasse atrás, eu evidentemente lhe passaria o dossiê.

— Obrigada. Durante os dois anos que Lisbeth Salander permaneceu em Sankt Stefan, quantas noites ela ficou imobilizada?

— Não me lembro assim de pronto.

— Ela, por sua vez, sustenta que foram trezentas e oitenta noites, das setecentas e oitenta e seis que ela passou na Sankt Stefan.

— Não saberia dizer quantas foram exatamente, mas esse número é um tanto exagerado. De onde foi tirado?

— Da autobiografia dela.

— A senhora está querendo dizer que ela se lembraria com precisão, hoje, de cada uma das noites que passou imobilizada? Impossível.

— Ah, é? Que número o senhor sugere?

— Lisbeth Salander era uma paciente muito agressiva, com tendências à violência, e foi sem dúvida nenhuma necessário colocá-la numa sala de privação sensorial um certo número de vezes. Talvez eu devesse explicar qual a finalidade dessa sala...

— Obrigada, mas não é preciso. Trata-se de uma sala onde um paciente não recebe nenhum estímulo sensorial supostamente passível de perturbá-lo. Quantos dias e quantas noites Lisbeth Salander passou imobilizada numa sala assim quando tinha treze anos?

— Bem... por alto, cerca de trinta vezes durante o período de sua internação.

— Trinta. Isso é uma fração mínima das trezentas e oitenta vezes que ela menciona.

— Sem dúvida.

— Menos de dez por cento do número que ela apresenta.

— Sim.

— O seu dossiê poderia nos informar de modo mais preciso?

— É possível.

— Excelente — disse Annika Giannini, apanhando em sua pasta um volume pesado de papéis. Eu gostaria então de apresentar ao tribunal uma cópia do dossiê da Sankt Stefan sobre Lisbeth Salander. Contei o número de anotações referentes à imobilização e obtive trezentas e oitenta e uma vezes, uma a mais, portanto, do que afirma minha cliente.

Os olhos de Peter Teleborian se arregalaram.

— Espere... são informações confidenciais. Onde conseguiu isso?

— Um jornalista da revista Millennium me passou. Portanto, não é tão confidencial assim se pode andar pelas redações em meio a um monte de outros dossiês. Eu talvez também deva dizer que a revista Millennium está publicando hoje excertos desse dossiê. Me parece que este tribunal deva ter a oportunidade de dar uma olhada nele.

— Isso tudo é ilegal...

— Não. Lisbeth Salander concordou com a publicação dos excertos pois minha cliente não tem nada a esconder.

— Sua cliente é considerada incapaz e não tem o direito de tomar esse tipo de decisão sozinha.

— Daqui a pouco voltaremos à declaração de incapacidade de Lisbeth Salander. Primeiro, vamos examinar o que aconteceu com ela em Sankt Stefan.

O juiz Iversen franziu o cenho e pegou o dossiê que Annika Giannini lhe oferecia.

— Não tirei uma cópia para o procurador Ekstrõm. De qualquer modo, já faz um mês que ele recebeu esses documentos que atentam contra a integridade de minha cliente.

— Como? — perguntou Iversen.

— O procurador Ekstrõm recebeu uma cópia desse dossiê confidencial das mãos do doutor Teleborian no dia 4 de junho deste ano, um sábado, numa reunião realizada em sua sala às dezessete horas.

— Isso é verdade? — perguntou Iversen.

O primeiro impulso de Richard Ekstrõm foi negar. Em seguida se deu conta de que Annika Giannini talvez tivesse provas.

— Pedi para ler partes do dossiê sob sigilo profissional — admitiu Ekstrõm. — Eu precisava conferir se a história da Salander era mesmo como ela declara.

— Obrigada — disse Annika Giannini. — Isso confirma que o doutor Teleborian, além de dizer mentiras, também infringiu a lei entregando um dossiê que ele próprio afirma ser confidencial.

— Registramos o fato — disse Iversen.

O juiz Iversen sentia-se totalmente desperto. De maneira muito inabitual, Annika Giannini acabava de atacar uma testemunha e já reduzira a pó um dado importante de seu depoimento. E ela ainda afirma poder provar tudo o que está dizendo. Iversen ajeitou os óculos.

— Doutor Teleborian, de acordo com esse dossiê criado pessoalmente pelo senhor, pode me dizer, agora, quantas noites Lisbeth Salander passou imobilizada?

— Não me lembro que tenham sido tantas, mas se é o que consta no relatório, então só me resta acreditar.

— Trezentas e oitenta e uma noites. Não é um número impressionante?

— De fato, é muita coisa.

— Como o senhor vivenciaria coisas assim se tivesse treze anos e alguém o deixasse por mais de um ano preso com correias na estrutura metálica de sua cama? Como uma tortura?

— E preciso entender que a paciente representava um perigo para si mesma e para os outros...

— Certo. Um perigo para si mesma. Lisbeth Salander alguma vez feriu a si própria? Sim ou não?

— Era de se temer...

— Repito a pergunta: Lisbeth Salander alguma vez feriu a si própria? Sim ou não?

— Nós, psiquiatras, temos de aprender a interpretar a imagem em seu todo. No que diz respeito a Lisbeth Salander, por exemplo, nota-se que há em seu corpo uma quantidade de tatuagens e piercings que também denotam um comportamento autodestrutivo e uma forma de ferir o próprio corpo. Podemos interpretar isso como uma manifestação de ódio contra si mesma.

Annika Giannini virou-se para Lisbeth Salander.

— Essas tatuagens são uma manifestação do ódio que você tem de si mesma?

Holger Palmgren conteve uma risada, conseguindo transformar o riso numa tossidinha.

— Não, não é isso... as tatuagens também podem fazer parte de um ritual social.

— Então o senhor está querendo dizer que Lisbeth Salander não tem nada a ver com esse ritual social?

— A senhora mesma pode constatar que essas tatuagens são grotescas e cobrem partes amplas do corpo dela. Não se trata de um fetichismo estético comum nem de uma ornamentação do corpo.

— Quantos por cento?

— Como?

— A partir de que percentagem uma superfície tatuada do corpo deixa de ser um fetichismo ligado à estética e passa a ser doença mental?

— A senhora está desvirtuando as minhas palavras.

— É mesmo? Como se explica que, no seu entender, esse seja um ritual social perfeitamente aceitável quando se trata de mim ou de outros jovens, mas se torne uma acusação contra minha cliente quando se trata de avaliar o estado psíquico dela?

— Como eu dizia, enquanto psiquiatra cabe-me observar a imagem em seu todo. As tatuagens são apenas um indício, um dos inúmeros indícios que devo levar em conta ao avaliar seu quadro.

Annika Giannini calou-se por alguns segundos e fitou Peter Teleborian. Falou devagar.

— Mas, doutor Teleborian, o senhor começou a atacar a minha cliente quando ela ainda não tinha completado treze anos. E naquela época não havia tatuagem nenhuma, não é?

Peter Teleborian hesitou por alguns segundos. Annika retomou a palavra.

— Suponho que o senhor não a manteve amarrada por prever que algum dia ela viria se tatuar.

— Não, claro que não. Suas tatuagens não têm nada a ver com seu estado em 1991.

— Voltamos então à minha pergunta inicial. Lisbeth Salander alguma vez feriu a si mesma de uma forma que justificasse ela ser mantida durante um ano imobilizada numa cama? Ela, por exemplo, se cortou com uma faca ou uma lâmina de barbear, ou algo do gênero?

Por um instante, Peter Teleborian pareceu inseguro.

— Não, mas tínhamos todos os motivos para acreditar que ela constituía um perigo para si mesma.

— Motivos para acreditar. O senhor quer dizer que a deixou amarrada porque supunha alguma coisa...

— Nós fazemos avaliações.

— Faz cinco minutos que eu estou lhe fazendo a mesma pergunta. O senhor afirma que o comportamento autodestrutivo de minha cliente foi um dos motivos pelos quais a manteve imobilizada por mais de um ano, durante os dois anos em que ela esteve sob seus cuidados. O senhor faria a gentileza de me oferecer, afinal, algum exemplo do comportamento autodestrutivo que ela apresentava com doze anos de idade?

— Essa garota estava, por exemplo, absolutamente subnutrida. Isso porque, entre outras coisas, ela se negava a comer. Chegamos a suspeitar que estivesse anoréxica. Fomos obrigados a alimentá-la à força em várias oportunidades.

— E por que motivo?

— Porque ela se negava a comer, claro. Annika Giannini virou-se para sua cliente.

— Lisbeth, é verdade que você se negou a comer na Sankt Stefan?

— É.

— Por quê?

— Porque esse crápula misturava psicotrópicos na minha comida.

— Ahá. Quer dizer que o doutor Teleborian queria lhe dar remédios. E por que você não queria tomá-los?

— Eu não gostava daqueles remédios. Eles me deixavam apática. Eu não conseguia mais pensar e ficava entorpecida boa parte do tempo que passava acordada. Era desagradável. E esse crápula se negava a me dizer o que havia naqueles psicotrópicos.

— Então você se negava a tomá-los?

— Sim. Então eles começaram a colocar aquela porcaria na minha comida. Aí eu parei de comer. Cada vez que aparecia alguma coisa na comida, eu me negava a comer por cinco dias.

— Então você ficava com fome.

— Nem sempre. Várias vezes alguns enfermeiros me deram sanduíches às escondidas. Especialmente um, que me levava alguma coisa para comer tarde da noite. Isso aconteceu diversas vezes.

— Você está dizendo que a equipe da Sankt Stefan percebia que você estava passando fome e lhe dava de comer para você não ficar faminta?

— Isso foi na época em que eu briguei com esse crápula por causa dos psicotrópicos.

— Então havia um motivo perfeitamente racional para que você se recusasse a se alimentar?

— Sim.

— E não era porque você simplesmente recusava os alimentos

— Não. Eu senti fome muitas vezes.

— Está correto afirmar que houve um conflito entre você e o doutor Teleborian?

— Pode-se dizer que sim.

— Você foi internada na Sankt Stefan por ter jogado gasolina no seu pai e ateado fogo.

— É.

— Por que você fez isso?

— Porque ele maltratava a minha mãe.

— Você chegou a contar isso para alguém?

— Sim.

— Para quem?

— Eu contei para os policiais que me interrogaram, para o Serviço Social, para a Comissão para a Infância, para os médicos, para um pastor e para esse crápula.

— Quando diz esse crápula você se refere a...?

— A esse sujeito aí.

Ela apontou para o Dr. Teleborian.

— Por que você o chama de crápula?

— Quando eu cheguei na Sankt Stefan, tentei explicar para ele o que tinha acontecido.

— E o que o doutor Teleborian disse?

— Ele não quis me ouvir. Dizia que eram fantasias minhas. E que, como castigo, eu iria ficar imobilizada até que parasse de fantasiar. Depois ele tentou me entupir de psicotrópicos.

— Isso tudo é um disparate — disse Peter Teleborian.

— E por isso que você não fala com ele?

— Eu jamais dirigi uma única palavra a ele desde a noite em que completei treze anos. Naquela noite eu também estava amarrada. Não falar mais com ele foi um presente de aniversário que eu mesma me dei.

Annika Giannini virou-se mais uma vez para Teleborian.

— Doutor Teleborian, pelo que parece, o motivo pelo qual minha cliente se recusava a comer era não aceitar que o senhor lhe desse psicotrópicos.

— É possível que ela visse as coisas dessa maneira.

— E como o senhor vê as coisas?

— Eu estava com uma paciente extremamente difícil. Afirmo que seu comportamento já indicava que ela representava um perigo para si mesma embora esse seja um ponto passível de interpretação. Em compensação, ela era violenta e demonstrava um comportamento psicótico. Não há dúvida de que ela representava um perigo para os outros. Não se esqueça de que ela foi mandada para a Sankt Stefan depois de tentar matar o pai.

— Nós vamos chegar lá. O senhor foi o responsável pelo tratamento dela durante dois anos. Manteve-a imobilizada por trezentas e oitenta e uma noites. É lícito supor que o senhor usava a imobilização como castigo, quando minha cliente não obedecia às suas ordens?

— Isso não faz sentido.

— E mesmo? No entanto, no relatório que o senhor fez para a sua paciente reparei que a maioria das imobilizações ocorreu durante o primeiro ano... trezentas e vinte de um total de trezentas e oitenta e uma. Por que as imobilizações cessaram depois?

— O quadro da paciente evoluiu e ela se tornou mais equilibrada.

— Não seria porque a equipe de enfermagem considerava suas medidas brutais e inúteis?

— O que a senhora quer dizer com isso?

— Não seria porque a equipe se queixou, entre outras coisas, da alimentação forçada de Lisbeth Salander?

— É claro que sempre pode haver divergências na maneira de ver as coisas. Isso não é incomum. Mas alimentá-la à força tinha se tornado um fardo porque, em função da violenta resistência dela...

— Porque ela se recusava a tomar psicotrópicos que a deixavam entorpecida e passiva. Ela não tinha nenhum problema em comer quando não estava sob efeito de medicamentos. Não teria sido um tratamento mais razoável não recorrer imediatamente a medidas coercitivas?

— Com todo o respeito, doutora Giannini, acontece que eu sou médico. Suponho que minha competência médica seja superior à sua. Cabe a mim julgar a adequação dos procedimentos médicos a serem adotados.

— E verdade, eu não sou médica, doutor Teleborian. Em compensação, não sou assim tão destituída de competência. Além de advogada, sou também psicóloga formada pela Universidade de Estocolmo. Trata-se de uma competência indispensável à minha profissão de jurista.

Seria possível escutar uma mosca sobrevoando a sala de audiências Ekstrõm e Teleborian fitavam Annika Giannini atônitos. Ela prosseguiu, impiedosa.

— Não é verdade que os seus métodos para tratar minha cliente acabaram por criar sérios conflitos entre o senhor e o seu superior, o médico-chefe daquela época, o doutor Johannes Caldin?

— Não... não é verdade.

— O doutor Caldin faleceu há vários anos e não pode nos prestar seu depoimento. Mas nesta sala de audiências, hoje, está presente uma pessoa que conversou diversas vezes com o doutor Caldin. Refiro-me ao meu assessor, Holger Palmgren.

Ela se virou para ele.

— Você poderia nos esclarecer sobre um aspecto?

Holger Palmgren pigarreou. Ainda se ressentia das seqüelas de seu derrame cerebral e precisava se concentrar para pronunciar as palavras sem gaguejar.

— Fui nomeado administrador legal da Lisbeth depois que sua mãe, em decorrência dos maus-tratos que seu marido lhe inflingia, e que a deixaram deficiente, tornou-se incapaz de cuidar da filha. Ela tinha muitas lesões cerebrais e sofria de repetidas hemorragias.

— Você está falando de Alexander Zalachenko? O procurador Ekstrõm pigarreou mais uma vez.

— Eu gostaria de destacar que estamos entrando num assunto considerado segredo de Estado.

— Não pode ser segredo que Alexander Zalachenko maltratou a mãe de Lisbeth Salander durante vários anos.

Peter Teleborian levantou a mão.

— Os fatos não são tão evidentes como a doutora Giannini apresenta.

— Como assim?

— Não resta dúvida de que Lisbeth Salander foi testemunha de uma tragédia familiar, de que algo desencadeou os inacreditáveis maus-tratos em 1991. Mas não há documentação alguma que prove que essa situação se prolongou por vários anos, como afirma a senhora Giannini. Pode-se tratar de um fato isolado ou de uma briga que degenerou. Verdade seja dita: não existe sequer um documento provando que o senhor Zalachenko era quem maltratava a mãe de Lisbeth. Há informações de que ela se prostituía, e pode haver outros culpados.

Annika Giannini fitou Peter Teleborian surpresa. Durante um instante, deu a impressão de estar sem voz. Então seu olhar se tornou penetrante.

— O senhor poderia explicar melhor? — pediu.

— O que eu quero dizer é que, na prática, só temos as afirmações de Lisbeth para nos basear.

— E?

— Em primeiro lugar, eram duas irmãs. Camilla, a irmã de Lisbeth, nunca fez acusações desse tipo. Negou que essas coisas tivessem acontecido. Além disso, é preciso levar em conta que se tivesse mesmo havido maus-tratos durante todo esse período mencionado por sua cliente, eles teriam, obviamente, sido averiguados pelo Serviço Social.

— Existe algum depoimento de Camilla Salander que possamos consultar?

— Depoimento?

— O senhor tem algum documento que prove que perguntaram a Camilla Salander sobre o que se passava na casa delas?

Lisbeth Salander se remexeu na cadeira quando foi pronunciado o nome da irmã. Ela olhou para Annika Giannini.

— Estou pressupondo que o Serviço Social tenha feito alguma investigação...

— O senhor acabou de afirmar que Camilla Salander nunca fez nenhuma acusação contra Alexander Zalachenko e que, pelo contrário, ela negou que ele maltratasse a mãe dela. A sua declaração foi categórica. De onde o senhor tirou essa informação?

Peter Teleborian permaneceu calado por alguns segundos. Annika Giannini viu seu olhar se alterar quando se deu conta de que cometera um erro. Percebeu por onde ela ia enveredar, mas não tinha mais como escapar da pergunta.

— Tenho impressão de que constava na investigação policial - ele disse por fim.

— O senhor tem a impressão... Quanto a mim, procurei por toda parte uma investigação policial sobre os acontecimentos na Lundagatan, quando Alexander Zalachenko foi gravemente queimado. Só encontrei uns poucos relatórios redigidos pelos policiais enviados ao local.

— É possível...

— Então eu gostaria de saber como é possível o senhor ter lido um relatório policial que não estava disponível para a defesa.

— Não saberia responder a essa pergunta — disse Teleborian. — Tive a oportunidade de consultar esse relatório quando, em 1991, efetuei uma avaliação médico-legal de Lisbeth Salander depois que ela tentou matar o pai.

— E o senhor, procurador Ekstrõm, teve oportunidade de ler esse relatório?

Ekstrõm se remexeu na cadeira e acariciou o cavanhaque. Já percebera que havia subestimado Annika Giannini. Por outro lado, não tinha por que mentir.

— Sim, tive.

— Por que a defesa não teve acesso a esse material?

— Não achei que fosse relevante para o processo.

— O senhor pode me dizer como conseguiu ter acesso a esse relatório? Todas as vezes que me dirigi à polícia, me disseram que esse relatório não existia.

— A investigação foi conduzida pela Sapo. É um relatório confidencial.

— Quer dizer então que a Sapo investigou um caso de maus-tratos agravados contra uma mulher e decidiu arquivá-lo como segredo de Estado?

— Devido ao autor... Alexander Zalachenko. Ele era um refugiado político.

— Quem conduziu a investigação? Silêncio.

— Não ouvi. Qual o nome que constava na primeira página?

— A Investigação foi conduzida por Gunnar Bjôrck, da Brigada dos Estrangeiros da Sapo.

— Obrigada. Será o mesmo Gunnar Bjôrck que, segundo afirma minha cliente, colaborou com o doutor Peter Teleborian para falsificar o relatório médico-legal de 1991 sobre ela?

— Imagino que sim.

Annika Giannini dirigiu sua atenção a Peter Teleborian.

— Em 1991, um Tribunal de Instâncias decidiu internar Lisbeth Salander numa clínica de psiquiatria infantil. O tribunal tomou essa decisão por quê?

— O Tribunal de Instâncias fez uma avaliação cuidadosa dos atos e do estado psíquico de sua cliente; afinal ela tinha tentado matar o pai com um coquetel Molotov. Essa não é uma atitude comum nos adolescentes normais, sejam eles tatuados ou não.

Peter Teleborian sorriu educadamente.

— E em que o Tribunal de Instâncias se baseou nessa avaliação? Pelo que entendi, eles tinham um único parecer médico no qual se orientar. Esse parecer foi redigido pelo senhor e por um policial chamado Gunnar Bjõrck.

— Doutora Giannini, agora entramos com tudo nas teorias da conspiração apresentadas pela senhorita Salander. Nesse ponto, devo...

— Me desculpe, não se preocupe, mas eu não vou me perder — disse Annika Giannini dirigindo-se a Holger Palmgren. — Holger, acabamos de dizer que você esteve com o superior do doutor Teleborian, o médico-chefe Caldin.

— Sim. Eu tinha sido nomeado administrador legal de Lisbeth Salander. Eu ainda não havia estado com ela, mas tínhamos nos cruzado. Como todo mundo, eu acreditava que ela estivesse gravemente afetada no plano psíquico. No entanto, como se tratava da minha tarefa, procurei me informar sobre seu estado geral de saúde.

— E o que disse o médico-chefe Caldin?

— Ela era paciente do doutor Teleborian, e o doutor Caldin não prestara muita atenção nela, além da atenção de praxe que lhe dispensava na hora das avaliações. Somente mais de um ano depois é que comecei a conversar sobre alguma forma possível de reintegrá-la à sociedade. Propus uma família adotiva. Não sei exatamente o que se passou entre as quatro paredes da clínica Sankt Stefan, mas, em dado momento, quando Lisbeth já estava lá havia mais de um ano, o doutor Caldin começou a se interessar por ela.

— De que modo se manifestou esse interesse?

— Tive a sensação de que ele havia feito uma avaliação diferente daquela do doutor Teleborian. Certo dia, ele me disse que decidira fazer algumas mudanças no tratamento. Só mais tarde vim a entender que se tratava da imobilização. O Caldin simplesmente resolveu que ela não seria mais amarrada. Dizia que nada justificava esse procedimento.

— Contrariando a opinião do doutor Teleborian?

— Desculpem, mas tudo isso não passa de falatório — protestou Eks-trõm.

— Não — disse Holger Palmgren. — Não só. Eu solicitei a opinião do doutor Caldin sobre diferentes formas de reintegrar Lisbeth Salander na sociedade. Ele me deu essa opinião por escrito. Ainda está comigo.

Ele estendeu uma folha de papel para Annika Gianníni.

— Pode nos dizer o que está escrito?

— Trata-se de uma carta que o doutor Caldin me escreveu. E de outubro de 1992, ou seja, fazia vinte meses que Lisbeth se encontrava em Sankt Stefan. Citando o que escreveu o doutor Caldin: "Minha decisão de que a paciente não fosse mantida imobilizada nem alimentada à força também obteve o notável resultado de que ela está calma. Os psicotrópicos não são necessários. Contudo, a paciente é extremamente fechada e pouco comunicativa, precisa de um acompanhamento regular". Fim da citação.

— Portanto, ele deixa claro que a decisão partiu dele.

— Exato. Foi também o doutor Caldin quem decidiu que Lisbeth seria reinserida na sociedade através de uma família adotiva.

Lisbeth fez um gesto de assentimento com a cabeça. Lembrava-se do Dr. Caldin, assim como se lembrava, nos mínimos detalhes, de sua estada na clínica Sankt Stefan. Ela se recusara a falar com o Dr. Caldin, ele era um médico de loucos, mais um entre todos aqueles jalecos brancos que iam vasculhar seus sentimentos. Mas ele fora gentil e complacente. Ela o escutara em sua sala, quando ele tinha lhe explicado de que modo a via.

Ele parecera magoado por Lisbeth não querer falar com ele. Por fim, ela olhara dentro de seus olhos e lhe revelara sua decisão. "Nunca vou falar nem com você nem com nenhum outro psiquiatra. Vocês não escutam o que eu digo. Podem me deixar trancada aqui pelo resto da vida. Isso não vai mudar nada. Não vou falar com vocês". Ele a fitara com olhos surpresos. Então meneara a cabeça como se acabasse de entender alguma coisa.

— Doutor Teleborian... Constatei que foi o senhor quem mandou internar a Lisbeth Salander numa clínica de psiquiatria infantil. Foi o senhor quem forneceu ao Tribunal de Instâncias o relatório que veio a ser a única base do julgamento. Correto?

— Sim, está correto, mas eu acho...

— O senhor terá muito tempo para dizer o que acha. Quando Lisbeth Salander chegou à maioridade, o senhor interveio novamente na vida dela e tentou fazer com que ela fosse internada uma segunda vez.

— Dessa vez não fui eu quem fez a avaliação médico-legal...

— Não, ela foi feita por um certo doutor Jesper H. Lõderman. Por coincidência, na época ele fazia doutorado sob sua orientação. Logo, também nesse caso foram as suas opiniões que prevaleceram.

— Não há nada de errado ou antiético nessas avaliações. Elas foram realizadas dentro das regras.

— Hoje Lisbeth Salander tem vinte e sete anos e, pela terceira vez, nos vemos numa situação em que o senhor tenta convencer um tribunal de que ela é uma doente mental e que deve ser internada numa instituição.

O Dr. Peter Teleborian respirou fundo. Annika Giannini estava bem preparada. Ela o surpreendera com algumas perguntas maliciosas que o tinham obrigado a alterar suas respostas. Ela não era receptiva ao seu charme e ignorava totalmente sua autoridade. Ele era um homem acostumado a que as pessoas concordassem quando ele falava.

O que ela sabe, afinal?

Lançou um olhar para o procurador Ekstrõm, mas percebeu que não podia esperar nenhuma ajuda dele. Teria que se sair dessa sozinho.

Lembrou-se que, apesar de tudo, era uma autoridade muito respeitada.

Não importa o que ela diga. A minha avaliação fala mais alto.

Annika Giannini pegou na mesa o relatório da avaliação psiquiátrica feita por Teleborian.

— Vamos examinar mais de perto sua última avaliação. O senhor se dedica bastante a analisar a vida espiritual de Lisbeth Salander. Boa parte são interpretações que o senhor faz sobre ela, sobre seu comportamento e seus hábitos sexuais.

— Nessa investigação, procurei oferecer uma imagem completa.

— Ótimo. E partindo dessa imagem completa o senhor conclui que Lisbeth Salander sofre de esquizofrenia paranóica.

— Prefiro não me prender a um diagnóstico preciso.

— Mas o senhor não chegou a essa conclusão conversando com Lisbeth Salander, não é?

— A senhora sabe muito bem que sua cliente nega-se sistematicamente a responder às perguntas feitas por mim ou por qualquer outra autoridade. Só esse comportamento já é bem eloqüente. Uma possível interpretação é que as tendências paranóides da paciente se manifestam de forma tão forte que ela se vê literalmente incapaz de manter uma conversação com qualquer pessoa que represente uma autoridade. Ela acha que todo mundo está tentando prejudicá-la e sente-se tão ameaçada que se fecha atrás de uma couraça impenetrável, ficando literalmente muda.

— Observo que o senhor se expressa com muita cautela. O senhor disse "uma possível interpretação"...

— De fato. Eu me expresso com cautela. A psiquiatria não é uma ciência exata e é meu dever ser cauteloso nas minhas conclusões. Acontece também que nós, psiquiatras, não apresentamos suposições levianas.

— O senhor toma cuidado para se proteger. Na verdade, o senhor não trocou uma palavra sequer com a minha cliente desde a noite em que ela completou treze anos, já que depois disso ela se negou sistematicamente a falar com o senhor.

— Não só comigo. Ela não tem condições de manter uma conversa com um psiquiatra, seja ele quem for.

— Isso significa que, como escreveu aqui, suas conclusões se baseiam na sua experiência e nas suas observações sobre minha cliente.

— Exato.

— O que é possível descobrir observando uma garota que fica sentada de braços cruzados numa cadeira e se nega a falar?

Peter Teleborian suspirou, querendo mostrar o quanto era cansativo ter de explicar o óbvio. Sorriu.

— Sobre um paciente que não diz uma só palavra, é possível descobrir que ele é um paciente que faz isso muito bem: não dizer uma só palavra. O que em si já representa um comportamento perturbado, mas não foi nisso que baseei minhas conclusões.

— Vou chamar aqui, esta tarde, outro psiquiatra para testemunhar. Seu nome é Svante Brandén, e ele é médico-chefe da supervisão de Medicina Legal e especialista em psiquiatria infantil. O senhor o conhece?

Peter Teleborian sentiu-se mais tranqüilo. Sorriu. Ele de fato previra que Giannini ia tirar outro psiquiatra da cartola para tentar questionar suas conclusões. Tinha se preparado para essa situação e saberia enfrentar qualquer objeção, palavra por palavra. Seria mais simples administrar um colega universitário numa discussão amistosa do que uma pessoa como essa Giannini, que não tinha nenhuma ponderação e estava pronta para distorcer suas palavras e ironizá-las.

— Conheço. É um psiquiatra competente e respeitado da área de medicina legal. Mas perceba, doutora Giannini, que uma avaliação desse tipo é um processo acadêmico e científico. A senhora pode discordar das minhas conclusões e outro psiquiatra pode interpretar comportamentos ou algum fato de maneira distinta da minha. Trata-se então de diferentes formas de enxergar as coisas, ou talvez até do conhecimento que o médico tem de seu paciente. O doutor Brandén talvez chegue a uma conclusão muito diferente no caso de Lisbeth Salander. Isso é comum na psiquiatria.

— Não é por isso que o chamei. Ele nunca esteve com Lisbeth Salander nem a examinou, portanto não vai dar nenhuma opinião sobre o estado psíquico dela.

— Ah,é?...

— Eu pedi que ele lesse o seu relatório e toda a documentação redigida pelo senhor sobre Lisbeth Salander, e desse uma olhada no dossiê dos anos que ela passou na clínica Sankt Stefan. Pedi que ele avaliasse não o estado de saúde da minha cliente, mas se existe, de um ponto de vista técnico, uma base sólida para as suas conclusões tal como são apresentadas no seu parecer.

Peter Teleborian deu de ombros.

— Com todo o respeito... acho que eu conheço melhor a Lisbeth Salander do que qualquer psiquiatra deste país. Acompanhei sua evolução desde que ela tinha doze anos e, infelizmente, só constato que o comportamento dela sempre confirmou minhas conclusões.

— Tanto melhor — disse Annika Giannini. — Vamos ver então suas conclusões. Nos seus relatórios, o senhor diz que o tratamento foi interrompido quando ela tinha quinze anos e que em seguida ela foi encaminhada para uma família adotiva.

— Exato. Um grande erro, aliás. Se tivéssemos continuado o tratamento até o fim, talvez não estivéssemos aqui hoje.

— O senhor está querendo dizer que se tivesse tido a possibilidade de mantê-la imobilizada por mais um ano ela talvez fosse mais dócil?

— Esse comentário é um tanto gratuito.

— Queira me desculpar. O senhor cita repetidamente a avaliação realizada por seu aluno Jesper H. Lõderman pouco antes da maioridade da Lis-beth Salander. Diz que "seu comportamento autodestrutivo e antissocial é confirmado pelos excessos e pela libertinagem que ela exibe desde que teve alta da Sankt Stefan". A que o senhor se refere?

Peter Teleborian se manteve em silêncio por alguns segundos.

— Bem... preciso voltar um pouco no tempo. Depois que saiu da clínica Sankt Stefan, Lisbeth Salander teve, como eu havia previsto, problemas com excesso de álcool e drogas. Foi detida várias vezes pela polícia. Uma investigação do Serviço Social apontou que ela mantinha relações sexuais compulsivas com homens mais velhos e que provavelmente se entregasse à prostituição.

— Vamos tentar esclarecer esse ponto. O senhor diz que ela se tornou alcoólatra. Com que freqüência ela se embriagava?

— Como?

— Ela ficava bêbada todos os dias depois que recebeu alta até completar dezoito anos? Ficava bêbada uma vez por semana?

— Isso eu evidentemente não posso responder.

— Mesmo assim o senhor concluiu que ela abusava do álcool?

— Ela era menor de idade e tinha sido detida várias vezes pela polícia por embriaguez.

— E a segunda vez que o senhor usa a expressão "detida várias vezes. Isso significa com que freqüência? Uma vez por semana, uma vez a cada duas semanas...?

— Não, não era tão freqüente...

— Lisbeth Salander foi detida por embriaguez na via pública apenas duas vezes, quando tinha dezesseis anos e depois com dezessete anos. Numa dessas ocasiões, estava tão bêbada que foi mandada para o hospital. São essas então as várias vezes de que o senhor fala. Sabe de alguma outra ocasião em que ela tenha estado embriagada?

— Não, mas é de se temer que o comportamento dela...

— Desculpe, será que eu ouvi direito? Então o senhor não sabe se ela se embriagou mais que duas vezes na adolescência, mas teme que tenha sido esse o caso. Ainda assim, declara que Lisbeth Salander embarcou num círculo infernal de álcool e drogas?

— Cabe ao Serviço Social cuidar dessa parte. Não a mim. Tratava-se do estado geral de Lisbeth Salander. Como era esperado, e conforme o prognóstico pessimista oferecido após a interrupção do tratamento, toda a sua vida se transformou num círculo de álcool, intervenções policiais e libertinagem descontrolada.

— O senhor usa a expressão "libertinagem descontrolada".

— Sim... é um termo que significa que ela não tinha controle sobre sua própria vida. Mantinha relações sexuais com homens bem mais velhos.

— Isso não é contra a lei.

— É verdade, mas não é um comportamento normal numa garota de dezesseis anos. Cabe nos perguntar se ela participava disso por livre e espontânea vontade ou se sofria algum tipo de pressão.

— Mas o senhor afirmou que ela se prostituía.

— Talvez como uma decorrência natural de sua formação precária, de sua incapacidade de acompanhar o ensino escolar e concluir seus estudos e do conseqüente desemprego. Ela talvez enxergasse um pai nos homens mais velhos, com o bônus da compensação financeira por seus serviços sexuais. Seja como for, isso para mim revela um comportamento neurótico.

— O senhor está querendo dizer que uma garota de dezesseis anos que faz amor é uma neurótica?

— A senhora está desvirtuando as minhas palavras.

— Mas o senhor não sabe se alguma vez ela foi remunerada em troca de serviços sexuais?

— Ela nunca foi detida por prostituição.

— O que dificilmente poderia acontecer, já que a prostituição não é proibida por lei.

— Hã, de fato. No caso de Lisbeth Salander, trata-se de um comportamento neurótico compulsivo.

— E com base nesse escasso material o senhor não hesitou em concluir que Lisbeth Salander é uma doente mental. Quando eu tinha dezesseis anos tomei um porre de rolar no chão com meia garrafa de vodca que eu tinha roubado do meu pai. O senhor diria que eu sou uma doente mental?

— Não, é evidente que não.

— E verdade que o senhor mesmo, quando tinha dezessete anos, participou de uma festa em que se embebedou a ponto de sair com um bando para quebrar vitrines no centro de Uppsala? O senhor foi detido pela polícia e colocado na cela de desembebedamento e ainda ganhou uma multa.

Peter Teleborian pareceu estupefato.

— E verdade?

— Sim... a gente faz tanta bobagem quando tem dezessete anos. Mas...

— Mas isso não o levou a concluir que o senhor sofria de uma grave doença psíquica?

Peter Teleborian estava irritado. Aquela maldita advogada não parava de desvirtuar suas palavras e se concentrava em detalhes específicos. Ela se recusava a ver o todo. E, totalmente fora de propósito, alardeava a quem quisesse ouvir que ele próprio um dia se embebedara... como ela conseguiu descobrir?

Ele deu uma tossidinha e ergueu a voz.

— Os relatórios do Serviço Social eram inequívocos e confirmavam, em todos os aspectos essenciais, que Lisbeth Salander levava uma vida dedicada ao álcool, às drogas e à libertinagem. O Serviço Social concluiu ainda que Lisbeth Salander se prostituía.

— Não. O Serviço Social jamais afirmou que ela se prostituía.

— Ela foi presa em...

— Não. Ela não foi presa. Ela foi interpelada no parque de Tantolun-den quaYido tinha dezessete anos e estava acompanhada por um homem muito mais velho. No mesmo ano, ela foi pega embriagada, também na companhia de um homem muito mais velho. O Serviço Social talvez receasse que ela estivesse se prostituindo. Mas nunca houve qualquer prova que confirmasse isso.

— A vida sexual dela era muito intensa e ela mantinha relações com um número grande de pessoas, tanto homens como mulheres.

— No seu relatório, e cito aqui a página 4, o senhor se detém nos hábitos sexuais de Lisbeth Salander. Afirma que o relacionamento com sua amiga Miriam Wu confirma suas suspeitas de uma psicopatia sexual. Poderia explicar isso melhor?

Peter Teleborian calou-se de repente.

— Espero sinceramente que o senhor não tenha a intenção de afirmar que a homossexualidade é uma doença. Declarações desse tipo podem acarretar um processo.

— Não, é claro que não. Quero falar nos toques de sadismo sexual presentes no relacionamento delas.

— O senhor está querendo dizer que ela é sádica?

— Eu...

— Tivemos acesso ao depoimento prestado por Miriam Wu à polícia. Não havia nenhum tipo de violência no relacionamento delas.

— Elas praticavam bondage, sadomasoquismo e...

— Prefiro pensar que o senhor leu tabloides demais. Lisbeth Salander e sua amiga Miriam Wu experimentaram vez ou outra jogos eróticos em que Miriam Wu amarrava minha cliente e lhe oferecia satisfação sexual. Isso não chega a ser incomum, e não é proibido. É por esse motivo que o senhor quer internar a minha cliente?

Peter Teleborian abanou a mão para negar.

— Permita-me fazer algumas confidencias. Quando eu tinha dezesseis anos, me embriaguei até dizer chega. Me embebedei várias vezes durante meus anos de colégio. Experimentei drogas. Fumei maconha e até experimentei cocaína uma vez há uns vinte anos. Me iniciei sexualmente aos quinze anos com um colega da minha classe, e tinha uns vinte anos quando me relacionei com um garoto que amarrava minhas mãos na cabeceira da cama. Tinha vinte e dois anos quando mantive, por vários meses, um relacionamento com um homem de quarenta e sete anos. Em outras palavras, eu sou uma doente mental?

— Doutora Giannini... a senhora está apelando para a ironia, mas as suas experiências sexuais não têm nada a ver com o presente caso.

— E por que não? Lendo a sua suposta avaliação de Lisbeth Salander deparo com muitos aspectos que, extraídos do contexto, poderiam ser aplicados a mim mesma. Por que é que eu sou sã de espírito, ao passo que Lisbeth Salander é uma sádica perigosa?

— Não são os detalhes que determinam isso. A senhora não tentou matar seu pai duas vezes...

— Doutor Teleborian, a verdade é que os parceiros sexuais da Lisbeth não dizem respeito a ninguém. O sexo dos parceiros dela não diz respeito ao senhor, nem de que modo ela leva sua vida sexual. No entanto, o senhor vasculha detalhes da vida dela e se serve deles para sustentar a tese de que ela é uma doente mental.

— Desde a escola primária, toda a vida da Lisbeth não passa de uma série de ocorrências registradas nos arquivos médicos e sociais, mostrando violentos acessos de raiva contra professores e colegas.

— Um momento...

A voz de Annika Giannini de repente soou como um raspador de gelo no pára-brisa congelado de um carro.

— Olhe para a minha cliente. Todos olharam para Lisbeth Salander.

— Ela cresceu numa condição familiar execrável, vendo seu pai, por anos e anos, infligir maus-tratos violentos e sistemáticos à sua mãe.

— É...

— Deixe eu terminar. A mãe de Lisbeth Salander tinha um verdadeiro terror por Alexander Zalachenko. Não se atrevia a protestar. Não se atrevia a procurar um médico. Não se atrevia a procurar o sos-Mulheres. Foi massacrada e, por fim, tão seriamente espancada que ficou com lesões cerebrais permanentes. A pessoa responsável pela família, a única pessoa que tentou assumir a responsabilidade da família antes mesmo de chegar à adolescência, foi Lisbeth Salander. Uma responsabilidade que ela foi obrigada a assumir sozinha porque o espião Zalachenko era mais importante que a mãe de Lisbeth.

— Eu não posso...

— E aqui estamos nós, confrontados com uma situação em que a sociedade abandonou a mãe de Lisbeth e suas filhas. O senhor se surpreende que Lisbeth tenha tido problemas na escola? Olhe só para ela. Ela é magra e miudinha. Sempre foi a menina mais baixinha da classe. Era fechada e diferente e não tinha amigas. O senhor sabe como as crianças costumam tratar aquelas que são diferentes do resto da turma?

Peter Teleborian assentiu com a cabeça.

— Eu posso rever os dossiês escolares e anotar, uma por uma, as situações em que Lisbeth se mostrou violenta — disse Annika Giannini. — Sempre havia antes alguma provocação. Reconheço aí, perfeitamente, os sinais da perseguição. Posso lhe dizer uma coisa?

— O quê?

— Eu admiro Lisbeth Salander. Ela tem mais fibra do que eu. Se tivessem me amarrado com correias quando eu tinha treze anos, é provável que eu tivesse desabado completamente. Ela revidou com a única arma de que dispunha. Em outras palavras, com seu desprezo pelo senhor.

A voz de Annika Giannini se inflamou de repente. Há muito seu nervosismo tinha se dissipado. Sentia que estava no controle.

— Um pouco antes, em seu testemunho, o senhor falou muito em fantasias, chegando a afirmar que a descrição do estupro que Lisbeth sofreu do doutor Bjurman era pura invenção.

— Exato.

— Essa conclusão do senhor se baseia em quê?

— Na minha experiência no hábito que ela tem de fantasiar.

— Na sua experiência no hábito que ela tem de fantasiar... Como o senhor pode ter certeza de que ela fantasia? Quando ela contou ter sido imobilizada por trezentas e oitenta noites, o senhor disse que isso era uma fantasia dela, embora seu próprio relatório demonstre que é verdade.

— Trata-se de algo bem diferente. Não existe a menor sombra de prova de que o Bjurman tenha estuprado Lisbeth Salander. Quero dizer, alfinetes espetados no mamilo e violências tão excessivas que ela sem dúvida deveria ter sido levada de ambulância para o hospital... É muito claro que esses fatos não podem ter ocorrido.

Annika Giannini dirigiu-se ao juiz Iversen.

— Eu havia solicitado um videoprojetor para mostrar um DVD...

— Já está disponível — disse Iversen.

— Podemos fechar as cortinas?

Annika Giannini abriu seu PowerBook e conectou os fios. Virou-se para sua cliente.

— Lisbeth. Nós vamos assistir a um filme. Você está preparada para isso?

— Eu já vivi esse filme — respondeu Lisbeth secamente.

— E tenho sua autorização para mostrá-lo?

Lisbeth disse que sim com a cabeça. Manteve o tempo todo o olhar fixo em Peter Teleborian.

— Você poderia nos dizer quando este filme foi feito?

— No dia 7 de março de 2003.

— Quem filmou?

— Eu. Usei uma câmera oculta, que integra o equipamento-padrão da Milton Security.

— Um momento — exclamou o procurador Ekstrõm. — Isso está começando a parecer um verdadeiro circo.

— O que vamos assistir? — perguntou o juiz Iversen com voz cortante.

— Peter Teleborian sustenta que o relato de Lisbeth Salander é pura invenção. Vou lhe provar que é verídico, palavra por palavra. O filme tem noventa minutos, vou mostrar apenas alguns trechos. Devo alertar que contém cenas desagradáveis.

— Trata-se de alguma espécie de armação? — perguntou Ekstrõm.

— Só há uma maneira de saber — disse Annika Giannini, e deu início à projeção.

— Você não sabe ver as horas? — cumprimentou Bjurman com raiva. A câmera penetrou no seu apartamento.

Passados nove minutos, o juiz Iversen bateu na mesa com o martelo, no exato instante em que o dr. Bjurman era imortalizado tentando enfiar um pênis artificial no ânus de Lisbeth Salander. Annika Giannini regulara o som num volume mais alto. Os gritos de Lisbeth abafados pela fita adesiva que lhe cobria a boca ressoavam na sala de audiências.

— Pare o filme — disse Iversen com voz forte e determinada. Annika Giannini apertou o stop. A luz da sala foi acesa. O juiz Iversen estava vermelho. O procurador Ekstrõm, petrificado. Peter Teleborian, lívido.

— Doutora Giannini, quanto tempo a senhora disse que durava esse filme? — perguntou o juiz Iversen.

— Noventa minutos. O estupro propriamente dito se dividiu em várias partes durante cerca de seis horas, mas minha cliente só guarda uma vaga lembrança da violência das últimas horas. — Annika Giannini virou-se então para Teleborian. — Em compensação, vemos a cena em que o Bjurman fura o mamilo da minha cliente com um alfinete, isso que o doutor Teleborian afirma ser uma manifestação da imaginação desenfreada de Lisbeth Salander. Isso se dá aos setenta e dois minutos, e proponho exibir o episódio aqui e agora.

— Obrigado, mas não será necessário — disse Iversen. — Senhorita Salander...

Por um momento, ele perdeu o fio da meada e não soube como prosseguir.

— Senhorita Salander, por que fez esse filme?

— O Bjurman já tinha me violentado uma vez e estava exigindo mais. Na primeira vez, fui forçada a chupar aquele velho nojento. Achei que ele ia repetir a dose e queria ter provas suficientes para poder chantagear o velho e mantê-lo bem longe de mim. Mas eu o subestimei.

— Mas por que não o denunciou por estupro agravado, já que tinha provas... tão contundentes?

— Eu não falo com policiais — disse Lisbeth Salander em tom monocórdio.

Então, de repente, Holger Palmgren se levantou da cadeira de rodas. Apoiou-se na beira da mesa. Sua voz estava muito clara.

— Por princípio, nossa cliente não fala com policiais e com qualquer pessoa investida de alguma autoridade, muito menos com psiquiatras. O motivo é muito simples. Desde criança, ela tentou o tempo todo contar à polícia, aos assistentes sociais e às autoridades que sua mãe era violentamente agredida por Alexandre Zalachenko. Todas as vezes, ela é que foi punida, porque os funcionários do Estado tinham resolvido que Zalachenko era mais importante que Salander.

Ele pigarreou e prosseguiu.

— Quando ela acabou se dando conta de que ninguém lhe daria ouvidos, a única saída foi tentar salvar a mãe sendo violenta com Zalachenko E aí esse canalha que se diz médico — ele apontou para Teleborian — redigiu um diagnóstico psiquiátrico falsificado, declarando-a doente mental, o que lhe permitiu manter Lisbeth imobilizada na Sankt Stefan por trezentas e oitenta noites. Que merda! E o que eu tenho a dizer.

Palmgren se sentou. Iversen parecia surpreso com a explosão de Palm-gren. Dirigiu-se a Lisbeth Salander.

— A senhorita talvez queira fazer uma pausa...

— Por quê? — perguntou Lisbeth.

— Bem, então vamos continuar. Doutora Giannini, esse vídeo vai ser examinado, vou pedir uma avaliação técnica sobre a autenticidade dele. Por enquanto vamos dar seguimento à audiência.

— Naturalmente. Eu também acho isso muito desagradável. Mas a verdade é que minha cliente foi vítima de abusos físicos, psíquicos e judiciários. E a pessoa responsável por essa situação deplorável é Peter Teleborian. Ele traiu seu juramento de médico e traiu sua paciente. Junto com Gunnar Bjõrck, colaborador de um grupo irregular dentro da Polícia de Segurança, ele forjou uma avaliação psiquiátrica com o objetivo de trancafiar uma testemunha incômoda. Acho que deve ser um caso único na história jurídica da Suécia.

— Essas acusações são inacreditáveis — disse Peter Teleborian. — Eu procurei ajudar Lisbeth Salander da melhor maneira possível. Ela tentou matar o pai. Era evidente que havia algo errado...

Annika Giannini o interrompeu.

— Eu agora gostaria de chamar a atenção do tribunal para outras avaliações psiquiátricas médico-legais da minha cliente realizadas pelo doutor Teleborian. A avaliação mencionada hoje, nesta audiência. Afirmo que ela é falsa, tão falsa quanto a de 1991.

— Mas afinal, isso é...

— Excelência, poderia pedir à testemunha que pare de me interromper?

— Senhor Teleborian...

— Eu vou me calar. Mas são acusações inconcebíveis. É natural que eu me insurja...

— Senhor Teleborian, fique calado até que lhe façam uma pergunta. Prossiga, doutora Giannini.

— Aqui está o relatório de psiquiatria legal que o doutor Teleborian apresentou a este tribunal. Baseia-se em supostas observações da minha cliente, que teriam ocorrido após sua transferência para a casa de detenção de Kronoberg, em 6 de junho, e se estendido até o dia 5 de julho.

— Foi o que entendi — disse o juiz Iversen.

— Doutor Teleborian, é verdade que o senhor não teve a oportunidade de realizar testes ou observações com minha cliente antes do dia 6 de junho? Antes disso, sabemos que ela se encontrava isolada num quarto do hospital Sahlgrenska.

— Sim — disse Teleborian.

— Por duas vezes o senhor tentou ter acesso à minha cliente no Sahlgrenska. Nas duas vezes, esse acesso lhe foi negado. Correto?

— Sim.

Annika Giannini abriu novamente sua pasta e dela tirou um documento. Contornou a mesa e o entregou ao juiz Iversen.

— Bem, certo — disse Iversen. — É uma cópia da avaliação do doutor Teleborian. O que isso pretende provar?

— Eu gostaria de chamar duas testemunhas que estão aguardando do lado de fora da sala.

— Quem são elas?

— Mikael Blomkvist, da revista Millennium, e o delegado Torsten Edk-linth, diretor da Proteção à Constituição da Polícia de Segurança, ou seja, da Sapo.

— E eles estão esperando lá fora?

— Sim.

— Faça-os entrar — disse o juiz Iversen.

— Isso é contra as regras — reclamou o procurador Ekstrõm, que fazia algum tempo estava calado.

Quase em estado de choque, Ekstrõm se deu conta de que Annika Giannini estava reduzindo a pó sua principal testemunha. O filme era arrasador.

Iversen ignorou Ekstrõm e fez sinal ao meirinho para que abrisse a porta Mikael Blomkvist e Torsten Edklinth entraram.

— Em primeiro lugar, gostaria de chamar Mikael Blomkvist.

— Eu pediria a Peter Teleborian que se retirasse por um instante.

— Já terminou comigo? — perguntou Teleborian.

— Não, longe disso — disse Annika Giannini.

Mikael Blomkvist tomou o lugar de Teleborian no banco das testemunhas. O juiz Iversen passou rapidamente pelas formalidades e Mikael jurou falar apenas a verdade.

Annika Giannini se aproximou de Iversen e pediu emprestado, por um momento, o relatório psiquiátrico médico-legal que acabara de lhe entregar. Estendeu a cópia para Mikael.

— Você já viu este documento?

— Já vi, sim. Tenho três versões dele. Obtive a primeira por volta de 12 de maio, a segunda em 19 de maio e a terceira — esta, portanto — em 3 de junho.

— Poderia nos dizer como essa cópia chegou às suas mãos?

— Eu a obtive, na condição de jornalista, de uma fonte que não pretendo revelar.

Lisbeth Salander tinha os olhos grudados em Peter Teleborian. De repente, ele ficou lívido.

— O que você fez com esse relatório?

— Entreguei a Torsten Edklinth, da Proteção à Constituição.

— Obrigada, Mikael. Vou chamar agora Torsten Edklinth — disse Annika Giannini pegando de volta o relatório. Ela o entregou a Iversen, que o segurou, pensativo.

Repetiu-se a formalidade do juramento.

— Delegado Edklinth, é verdade que o senhor recebeu de Mikael Blomkvist um relatório médico-legal sobre Lisbeth Salander?

— Sim.

— Quando foi isso?

— Está registrado na DGPN/Sâpo em 4 de junho.

— E trata-se da mesma avaliação que acabo de entregar ao juiz Iversen?

— Se a minha assinatura está no verso do relatório, trata-se da mesma avaliação.

Iversen virou o documento e constatou que havia a assinatura de Torsten no verso.

— Delegado Edklinth, poderia nos explicar como é possível o senhor ter recebido uma avaliação psiquiátrica médico-legal de uma pessoa que se encontrava isolada no hospital Sahlgrenska?

— Sim.

— Pode falar.

— A avaliação médico-legal de Peter Teleborian é uma falsificação que ele redigiu junto com um tal de Jonas Sandberg, da mesma forma como em 1991 ele produziu uma falsificação similar junto com Gunnar Bjõrck.

— Isso é mentira — disse Teleborian num fio de voz.

— E mentira? — perguntou Annika Giannini.

— Não, de forma alguma. Eu talvez deva mencionar que Jonas Sandberg é uma das cerca de dez pessoas que foram detidas hoje por ordem do procurador-geral da nação. Ele foi preso por cumplicidade no assassinato de Gunnar Bjõrck. Ele integra um grupo irregular que operava no coração da Polícia de Segurança e protegeu Alexander Zalachenko a partir dos anos 1970. Esse mesmo grupo está por trás da decisão de internar Lisbeth Salander em 1991. Temos uma enorme quantidade de provas, assim como a confissão do chefe do grupo.

Um silêncio mortal caiu sobre a sala.

— Doutor Peter Teleborian, o senhor gostaria de fazer algum comentário sobre o que acaba de ser dito? — perguntou o juiz Iversen.

Teleborian balançou a cabeça.

— Nesse caso, aviso-lhe que o senhor pode ser processado por perjúrio e, eventualmente, sofrer outras acusações — disse o juiz Iversen.

— Se me permite... — disse Mikael Blomkvist.

— Sim? — disse Iversen.

— O Peter Teleborian está com problemas muito mais sérios do que esse. Atrás dessa porta há duas policiais que gostariam de vê-lo.

— O senhor quer dizer que eu deveria mandá-las entrar?

— Sem dúvida seria uma boa idéia.

Iversen fez sinal ao meirinho, que deixou entrar a inspetora Sonja Modig e uma mulher que o procurador Ekstrõm reconheceu de imediato. Chamava--se Lisa Collsjõ, inspetora da Brigada de Proteção de Menores, a unidade da Polícia Nacional que tinha por missão, entre outras, investigar abusos sexuais e pedofilia.

— Por que as senhoras estão aqui? — perguntou Iversen.

— Para dar voz de prisão a Peter Teleborian tão logo seja possível, sem que a nossa intervenção perturbe as deliberações deste tribunal.

Iversen olhou para Annika Giannini.

— Eu ainda não terminei com ele, mas, enfim, tudo bem.

— Façam seu trabalho — disse Iversen.

Lisa Collsjõ acercou-se de Peter Teleborian.

— O senhor está preso por violação agravada das leis de pornografia infantil.

Peter Teleborian já não respirava. Annika Giannini reparou que a luz parecia ter sumido de seus olhos.

— Mais precisamente pela apreensão de mais de oito mil fotos de pornografia infantil em seu computador.

Ela se inclinou e pegou a maleta de Peter Teleborian, onde estava seu computador.

— O computador está sendo apreendido — disse ela.

Enquanto o levavam para fora do tribunal, o olhar de Lisbeth Salander ardia feito fogo nas costas de Peter Teleborian.


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