8. SEXTA-FEIRA 3 DE JANEIRO – DOMINGO 5 DE JANEIRO


Quando Mikael Blomkvist desceu do trem em Hedestad pela segunda vez, o céu estava azul-pastel e o ar gelado. Um termômetro na fachada da estação indicava dezoito graus negativos. Mais uma vez ele usava sapatos pouco adaptados ao frio. Ao contrário da visita anterior, o amável advogado Frode não viera esperá-lo com um carro aquecido. Mikael apenas dissera o dia em que chegaria, sem especificar o horário do trem. Supôs que haveria um ônibus para a aldeia, mas não teve vontade de carregar duas malas pesadas e uma sacola atrás de um ponto de ônibus. Dirigiu-se a um ponto de táxi do outro lado da esplanada em frente à estação.

Entre o Natal e o Ano-novo, as precipitações de neve haviam sido violentas e as montanhas acumuladas ao longo do caminho provavam que o serviço de desobstrução da prefeitura de Hedestad trabalhara sem parar. O motorista de táxi, que a placa de identificação no pára-brisa dizia chamar-se Hussein, concordou com a cabeça quando Mikael perguntou se o tempo causara muitos problemas. Com o mais puro sotaque do Norrland, contou que fora a pior tempestade de neve havia décadas e que se arrependia de não ter tirado férias de inverno para passar o Natal na Grécia.

Mikael indicou o caminho ao taxista até o pátio amplo em frente à casa de Henrik Vanger e, depois de subir com as malas até a entrada, olhou o carro desaparecendo em direção a Hedestad. Sentiu-se de repente muito só e indeciso. Erika talvez tivesse razão em dizer que todo esse projeto era insensato. Ouviu a porta se abrir às suas costas e se virou. Henrik Vanger estava ali, vestindo um espesso casaco de couro, calçando botas forradas e tendo na cabeça um boné com orelheiras. Mikael vestia apenas jeans e uma jaqueta leve de couro.

— Já que vai morar aqui, primeiro precisa aprender a se vestir nesta época do ano. — Apertaram-se as mãos. — Tem certeza de que não quer ficar na casa principal? Não? Então vamos acomodá-lo em sua nova moradia.

Uma das exigências nas negociações com Henrik Vanger e Dirch Frode fora que Mikael pudesse morar num lugar onde ficasse independente e pudesse ir e vir à vontade. Henrik guiou Mikael em direção à ponte e abriu o portão de um pátio recentemente desobstruído diante de uma pequena casa de madeira. Não estava trancada, e o velho abriu a porta. Entraram num pequeno vestíbulo, onde Mikael depositou as malas com um suspiro de alívio.

— Aqui está o que chamamos a casa dos convidados, onde hospedamos as pessoas que ficam por algum tempo. Foi aqui que você e seus pais se instalaram em 1963. É uma das construções mais antigas do povoado, embora modernizada. Cuidei para que Gunnar Nilsson, o meu faz-tudo, pusesse o aquecimento para funcionar esta manhã.

A casa consistia em uma grande cozinha e dois pequenos quartos, ao todo uns cinquenta metros quadrados. A cozinha ocupava a metade da área; moderna, tinha fogão elétrico, uma pequena geladeira, um balcão com pia, e junto à parede que dava para o vestíbulo havia também um velho aquecedor de metal fundido, no qual já ardia um bom fogo.

— Só precisará usar esse aquecedor se fizer muito frio. Há um baú com lenha no vestíbulo e um pequeno depósito nos fundos da casa. Estava desativado desde o último outono e voltamos a acendê-lo esta manhã para aquecer as paredes. Mas os aquecedores elétricos deverão ser suficientes durante o dia. Evite apenas pôr roupas em cima deles, para não provocar um incêndio.

Mikael assentiu com a cabeça e olhou ao redor. Havia janelas em três lados; da mesa da cozinha avistava-se a ponte a uns trinta metros. Além da mesa, a cozinha era equipada com dois armários, cadeiras, um antigo banco de madeira e uma prateleira com jornais. No alto da pilha, um número de Se, datado de 1967. Num canto próximo à mesa, um aparador podia servir de escrivaninha.

A porta de entrada da cozinha ficava próxima ao aquecedor a lenha. Do outro lado, duas portas estreitas conduziam a dois pequenos cômodos. O da esquerda, mais próximo da parede externa, estava mobiliado com uma mesa de trabalho, uma cadeira e uma estante ao longo da parede. O outro cômodo, entre o vestíbulo e o escritório, era um quarto relativamente pequeno, com uma cama de casal bastante estreita, um criado-mudo e um armário. Nas paredes havia alguns quadros com cenas da natureza. Os móveis e os papéis de parede da casa estavam velhos e descoloridos, mas tudo cheirava a limpeza. O soalho fora cuidadosamente encerado. O quarto tinha outra porta, que levava diretamente ao vestíbulo, onde um velho cubículo fora transformado em banheiro com ducha.

— A água pode vir a ser um problema — disse Henrik. — Verificamos que está funcionando bem hoje de manhã, mas como a tubulação é muito superficial, se o frio persistir, pode congelar. Há um balde no vestíbulo. Se for necessário, vá buscar água na minha casa.

— Vou precisar de um telefone — disse Mikael.

— Já fiz o pedido. Virão instalar depois de amanhã. E então, o que acha? Se mudar de opinião, pode se transferir para a casa principal quando quiser.

— Tudo vai correr bem — respondeu Mikael, longe de estar convencido de que a situação na qual se metera era razoável.

— Ótimo. Ainda temos uma hora antes que escureça. Podemos dar uma volta para você conhecer o povoado. Sugiro que use botas e meias grossas de lã, que poderá encontrar no armário do vestíbulo.

Mikael aquiesceu, mas decidiu que no dia seguinte percorreria as lojas para comprar ceroulas e calçados próprios para o inverno.


O velho começou o passeio explicando que o vizinho de Mikael do outro lado da estrada era Gunnar Nilsson, o empregado que Henrik insistia em chamar de seu faz-tudo. Mas Mikael logo entendeu que ele cuidava da manutenção das construções da ilha e também de várias residências em Hedestad.

— O pai dele, Magnus Nilsson, trabalhou do mesmo modo em minha casa nos anos 1960, e foi um dos que prestaram ajuda no dia do acidente na ponte. Magnus ainda está vivo, mas se aposentou e mora em Hedestad. Gunnar vive nessa casa com a mulher, chamada Helen. Os filhos partiram para viver sua vida.

Henrik Vanger fez uma pausa e refletiu um momento antes de prosseguir.

— Mikael, a explicação oficial para sua presença aqui é que você vai me ajudar a escrever a minha biografia. Isso permitirá que você investigue em todos os cantos e faça perguntas às pessoas. Mas a verdadeira missão é um assunto restrito a você, a mim e a Dirch Frode. Somos os únicos que a conhecem.

— Entendo. E repito o que já disse: é uma perda de tempo. Não vou poder resolver o enigma.

— Peço apenas que tente. Devemos, no entanto, prestar atenção ao que dizemos quando houver pessoas por perto.

— Tudo bem.

— Gunnar tem cinquenta e seis anos agora, portanto tinha dezenove quando Harriet desapareceu. Há uma questão para a qual nunca obtive resposta: Harriet e Gunnar eram bons amigos e creio que houve uma espécie de flerte adolescente entre os dois. Em todo caso, ele estava bastante interessado nela. No dia do desaparecimento, Gunnar estava em Hedestad, é um dos que ficaram presos em terra por causa do acidente na ponte. Considerando-se a relação dos dois, evidentemente ele foi investigado com cuidado. A polícia verificou seu álibi e ele é sólido. Passou o dia com colegas e só voltou para cá no começo da noite.

— Imagino que você tenha uma lista completa de quem estava na ilha e de quem fez o que durante o dia.

— Isso mesmo. Continuamos?

Detiveram-se na subida, no cruzamento dos caminhos diante da casa Vanger, e Henrik indicou o porto de recreio.

— Toda a ilha de Hedeby pertence à família Vanger, ou, para ser mais preciso, a mim. A não ser pela fazenda de Östergarden e algumas casas particulares aqui no povoado. As pequenas cabanas ali embaixo, onde antigamente ficava o porto de pesca, são propriedades privadas, mas funcionam como casas de veraneio e, de modo geral, permanecem desabitadas no inverno. A única exceção é a cabana bem ali na ponta. Está vendo a fumaça da chaminé?

Mikael fez que sim com a cabeça. Já estava gelado até os ossos.

— Aquele barraco miserável está cheio de frestas, mas serve de habitação o ano todo. Quem mora ali é Eugen Norman. Tem sessenta e sete anos, é uma espécie de artista, pintor. Acho as pinturas dele um tanto kitsch, mas ele é bastante conhecido por suas paisagens. É um pouco o tipo excêntrico da aldeia.

Henrik guiou os passos de Mikael ao longo do caminho em direção ao promontório, apontando cada uma das casas pelas quais passavam. O povoado tinha seis casas do lado oeste da estrada e quatro do lado do Leste Europeu. A primeira, muito próxima da casa dos convidados onde Mikael se instalara e defronte à casa Vanger, pertencia a Harald, irmão de Henrik. Era um sobrado retangular, de pedra, aparentemente abandonado. As cortinas nas janelas estavam corridas e meio metro de neve se acumulava no caminho que subia até a casa. Examinando mais de perto, porém, marcas de passos revelavam que alguém pisara a neve entre a estrada e a porta.

— Harald é um misantropo. Nunca nos entendemos bem, eu e ele. Com exceção dos conflitos relacionados às empresas — ele é acionista —, mal nos falamos nos últimos sessenta anos. É mais velho que eu, tem noventa e dois anos e é o único dos meus cinco irmãos ainda vivo. Contarei os detalhes mais tarde, mas ele estudou medicina e trabalhou principalmente em Uppsala. Voltou a morar em Hedebyön ao completar setenta anos.

— Entendi que não gosta dele. No entanto são vizinhos.

— Acho-o detestável e teria preferido que continuasse em Uppsala, mas a casa lhe pertence. Estou falando como um verdadeiro crápula, não?

— Fala apenas como alguém que não gosta do seu irmão.

— Passei os primeiros vinte e cinco, trinta anos da minha vida desculpando pessoas como Harald apenas porque éramos da mesma família. Depois descobri que o parentesco não é uma garantia de amor e que eu tinha muito poucas razões para defender Harald.

A casa seguinte pertencia a Isabella, a mãe de Harriet Vanger.

— Ela completará setenta e cinco este ano, continua sendo uma mulher vistosa e elegante. É a única no povoado que fala com Harald e o visita de vez em quando, mas eles não têm muita coisa em comum.

— Como eram as relações entre ela e Harriet?

— Boa pergunta. As mulheres também devem entrar no círculo de suspeitos. Eu disse a você que muitas vezes ela não dava a menor atenção aos filhos. Não sei muito bem, acho que ela até gostaria mas era incapaz de assumir responsabilidades. Harriet e ela não tinham intimidade, porém não eram inimigas. Isabella pode se mostrar um pouco insensível, às vezes também é um pouco individualista. Você vai entender o que estou querendo dizer quando a vir.

A vizinha de Isabella era Cecilia Vanger, filha de Harald Vanger.

— Enquanto esteve casada, ela morou em Hedestad, mas há pouco mais de vinte anos separou-se do marido. A casa me pertence e propus a ela que viesse morar aqui. Cecilia é professora e é o oposto do pai em muitos aspectos. Posso acrescentar que ela e o pai se falam apenas o necessário.

— Qual a idade dela?

— Nasceu em 1946. Tinha então vinte anos quando Harriet desapareceu. E era uma das pessoas que estavam na ilha naquele dia.

Refletiu por um momento.

— Cecilia pode parecer meio cabeça-tonta, mas na realidade é bastante esperta. Não a subestime. Se alguém vier a descobrir o que você está realmente fazendo aqui, será ela. Eu diria que é um dos membros da família que mais aprecio.

— Isso significa que não suspeita dela?

— Não chegaria a tanto. Gostaria que considerasse o caso sem a menor restrição, independentemente do que eu penso ou acredito.

A casa ao lado da de Cecilia pertencia a Henrik Vanger, mas estava alugada a um casal de idade que trabalhara na direção do grupo Vanger. Como vieram morar na ilha nos anos 1980, nada tinham a ver, portanto, com o desaparecimento de Harriet. A casa seguinte era propriedade de Birger Vanger, o irmão de Cecilia. Estava vazia havia anos, desde que Birger se instalara numa mansão moderna em Hedestad.

Em sua maior parte, as construções ao longo da estrada eram sólidas casas de pedra que datavam do começo do século anterior. A última, porém, era de outro tipo, uma casa de arquitetura moderna, de tijolos brancos, portas e janelas escuras. Sua localização era excelente. Mikael calculava que a vista do primeiro andar devia ser magnífica: o mar no Leste Europeu e Hedestad ao norte.

— É aqui que mora Martin Vanger, o irmão de Harriet e atual diretor-executivo do grupo Vanger. Antigamente era aqui que o presbitério estava situado, mas foi parcialmente destruído por um incêndio nos anos 1970 e Martin resolveu construir essa casa quando assumiu o comando.

Bem ao fundo, do lado do Leste Europeu da estrada, morava Gerda Vanger, viúva de Greger, um outro irmão de Henrik, e seu filho Alexander Vanger.

— Gerda é inválida, sofre de reumatismo. Alexander tem uma pequena participação no grupo Vanger, mas possui também alguns negócios próprios, restaurantes, por exemplo. Costuma passar vários meses do ano em Barbada, nas Antilhas, onde investiu dinheiro no turismo.

Entre a casa de Gerda e a de Henrik havia duas casas pequenas, vazias, utilizadas para hospedar membros da família em visita. Do outro lado da casa de Henrik, havia outra, alugada para um ex-empregado do grupo, agora aposentado, e sua mulher. Mas o casal passava o inverno na Espanha, e a casa estava desabitada.

Voltaram ao cruzamento dos caminhos e o passeio terminou. Começava a escurecer. Mikael tomou a iniciativa.

— Henrik, só posso voltar a dizer que nos lançamos numa aventura que não dará resultado, mas farei aquilo para o qual fui contratado. Escreverei sua biografia e, conforme me pediu, lerei o material sobre Harriet Vanger com o máximo de atenção e cuidado. Quero simplesmente que entenda que não sou detetive particular, portanto não deposite em mim esperanças sem fundamento.

— Não espero nada. Como eu disse, quero apenas que seja feita uma última tentativa para descobrir a verdade.

— Então, perfeito.

— Deito-me cedo — explicou Henrik. — Poderá me encontrar depois do café-da-manhã e ao longo do dia. Vou preparar um local de trabalho aqui para você, do qual poderá dispor à vontade.

— Não, obrigado. Já tenho um lugar de trabalho na casa dos convidados e é lá que tenho a intenção de trabalhar.

— Como quiser.

— Quando eu precisar de informações, conversaremos no seu escritório, mas não vou começar com perguntas já esta noite.

— Entendo. — O velho deixava transparecer uma timidez enganadora.

— Vou precisar de algumas semanas para ler todos os dossiês. Trabalharemos em duas frentes: nos veremos algumas horas por dia, quando farei perguntas para coletar material para a biografia. Quando eu tiver perguntas sobre Harriet, virei discuti-las com você.

— Parece razoável.

— Trabalharei com bastante liberdade, sem horários fixos.

— Organize-se como quiser.

— Você não deve ter esquecido que, dentro de alguns meses, vou precisar cumprir uma pena de prisão. Não sei ainda quando será, mas não vou recorrer. O que significa que acontecerá durante este ano.

Henrik Vanger franziu o cenho.

— Isso é ruim. Teremos que achar uma solução quando chegar o momento. Poderia pedir um sursis.

— Se tudo correr bem e eu já tiver elementos suficientes sobre a família, poderei trabalhar na prisão. Mas vamos esquecer isso por enquanto. Outra coisa: continuo sendo sócio da Millennium, que neste momento é uma revista em crise. Se acontecer algo que exija minha presença em Estocolmo, serei obrigado a deixar o que estou fazendo aqui para ir até lá.

— Não o contratei como escravo. Quero que trabalhe de forma racional e leve adiante a tarefa que lhe passei, mas é evidente que deve se organizar como bem entender, trabalhar de acordo com seus próprios métodos. Se precisar licenciar-se, faça-o, mas se eu notar que está negligenciando o trabalho, considerarei como um rompimento de contrato.

Mikael concordou com a cabeça. Henrik Vanger olhava em direção à ponte. O homem era magro e Mikael de repente teve a impressão de que ele parecia um espantalho.

— No que se refere à Millennium, deveríamos ter uma conversa sobre a crise, para ver se posso ser útil de alguma forma.

— O melhor meio de ser útil é entregar-me a cabeça de Wennerström logo.

— Ah, não, essa não é a minha intenção. — O velho lançou um olhar severo a Mikael. — A única razão pela qual aceitou minha proposta é que prometi desmascarar Wennerström. Se eu entregá-lo agora, poderia ficar tentado a abandonar o trabalho. Terá essa informação dentro de um ano.

— Henrik, perdoe-me falar assim cruamente, mas nada me garante que você estará vivo daqui a um ano.

— Entendo. Vou falar com Dirch Frode e veremos como arranjar isso. Mas, no que se refere à Millennium, talvez eu possa intervir de outro modo. Pelo que entendi, o problema é que os anunciantes estão saindo.

Mikael assentiu lentamente com a cabeça antes de responder:

— Os anunciantes são o problema mais imediato, porém a crise é mais profunda. E uma questão de confiança. Pouco importa o número de anunciantes que temos se as pessoas não quiserem mais comprar a revista.

— Sim, entendo. Mas continuo sendo membro do conselho administrativo de um grupo importante, mesmo como membro passivo. Também temos necessidade de divulgar nossas informações em algum lugar. Discutiremos isso mais tarde. Quer comer alguma coisa...?

— Não. Vou me instalar na casa, fazer algumas compras e me familiarizar com o lugar. Amanhã irei a Hedestad comprar roupas de inverno.

— Boa idéia.

— Gostaria que transferisse os arquivos relativos a Harriet para minha casa.

— Eles devem ser manipulados...

— ... com o maior cuidado, imagino eu.


* * *

Mikael retornou à casa dos convidados batendo os dentes. Um termômetro diante da janela indicava quinze graus negativos, e ele não lembrava de alguma vez ter sentido tanto frio como após esse passeio de apenas meia hora.

Ele dedicou a hora seguinte a se instalar na que haveria de ser a sua moradia naquele ano. Tirou as roupas da mala e as colocou no armário do quarto. Artigos de toalete, no móvel do banheiro. A segunda bagagem era uma volumosa mala com rodinhas; dela tirou livros, CDs, um MP3, blocos de anotações, um gravador Sanyo, uma máquina fotográfica digital Minolta e vários outros objetos que julgara indispensáveis para um exílio de um ano.

Distribuiu os livros e os CDs na estante da saleta de trabalho, ao lado de dois arquivos contendo documentos relativos à sua investigação sobre Hans-Erik Wennerström. O material não tinha valor, mas Mikael não conseguia se desembaraçar dele. Como se os dois arquivos devessem se transformar, de uma maneira ou de outra, em elementos determinantes na continuação de sua carreira.

Abriu por fim a bolsa e tirou de lá o notebook, que pôs sobre a mesa de trabalho. Depois deteve-se e olhou ao redor, com uma expressão estúpida no rosto. Da vantagem da vida no campo! Acabava de perceber que não havia tomada para o cabo. Não havia sequer uma entrada de telefone para ligar um velho modem.

Mikael voltou à cozinha e, usando seu celular, ligou para a companhia telefônica Telia. Depois de insistir um pouco, conseguiu convencer alguém a localizar o pedido que Henrik Vanger fizera para a casa dos convidados. Perguntou se a linha tinha capacidade para ADSL e responderam-lhe que era possível através de um ponto retransmissor em Hedeby, mas que levaria alguns dias.


Eram pouco mais de quatro da tarde quando Mikael terminou a arrumação. Pôs as meias grossas de lã, as botas e vestiu um pulôver suplementar. Quando ia sair, deteve-se diante da porta: não lhe haviam dado as chaves da casa, e seu instinto de habitante de Estocolmo revoltava-se contra a idéia de deixar a porta de entrada aberta. Voltou à cozinha e vasculhou as gavetas. Acabou por encontrar a chave pendurada num prego no guarda-comida.

O termômetro descera a menos dezessete. Mikael atravessou a ponte com passos rápidos e subiu a encosta diante da igreja. O supermercado Konsum ficava a apenas trezentos metros. Encheu duas sacolas de papel com produtos básicos, que transportou para casa. Antes de cruzar a ponte uma segunda vez, passou pelo Café Susanne. Perguntou a uma mulher de cinquenta anos, atrás do balcão, se ela era a Susanne do letreiro e apresentou-se dizendo que provavelmente viria com regularidade durante algum tempo. Era o único freguês e Susanne ofereceu-lhe café para acompanhar o sanduíche que ele pediu. Mikael comprou também pão e croissants. Pegou o Hedestads-Kuriren do mostruário de jornais e instalou-se numa mesa, de onde avistava a ponte e a igreja, cuja fachada estava iluminada e parecia, na obscuridade, um cartão de Natal. Quatro ou cinco minutos foram suficientes para ler o jornal. A única informação interessante era um artigo curto que dizia que um representante da comunidade, Birger Vanger (liberal), queria investir no IT TechCent — um centro de desenvolvimento tecnológico em Hedestad. Ficou ali por meia hora, até que o café fechasse, às seis.


Às sete e meia, Mikael ligou para Erika, mas só obteve como resposta uma voz dizendo que o telefone procurado não estava disponível. Sentou-se no banco da cozinha e tentou ler um romance, que, pelo que dizia a quarta capa, era a estréia sensacional de uma adolescente feminista. O romance narrava as tentativas da autora de pôr ordem em sua vida sexual durante uma viagem a Paris, e Mikael se perguntou se o chamariam de feminista se ele próprio escrevesse um romance com um vocabulário de colegial sobre sua vida sexual. Provavelmente não. Uma das razões que levaram Mikael a comprar o livro era que o editor descrevia a estreante como "uma nova Carina Rydberg". Logo constatou que não era nada disso, nem no estilo nem no conteúdo. Fechou o livro e começou a ler uma novela sobre Hopalong Cassidy numa Rekordmagasinet dos anos 1950.

Cada meia hora era pontuada por um breve toque do sino da igreja. Havia luz nas janelas da casa de Gunnar Nilsson, o faz-tudo do outro lado da estrada, mas Mikael não distinguia ninguém no interior. A casa de Harald Vanger estava mergulhada na escuridão. Por volta das nove da noite, um carro atravessou a ponte e desapareceu em direção ao promontório. Cerca de meia-noite, a iluminação da fachada da igreja se apagou. Aparentemente, resumiam-se a isso as distrações que Hedeby oferecia numa noite de sexta-feira naquele começo de janeiro. O silêncio era impressionante.

Tentou falar com Erika mais uma vez, e ouviu uma voz pedindo que deixasse uma mensagem. Fez isso, depois apagou a luz e foi se deitar. Seu último pensamento antes de dormir foi que corria o sério risco de enlouquecer com o isolamento em Hedeby.


Despertar num silêncio total foi completamente inusitado para ele. Mikael passou do sono profundo a um estado de vigília absoluta numa fração de segundos e em seguida permaneceu tranquilo, escutando. O frio reinava no cômodo. Virou a cabeça e olhou o relógio que pusera num banquinho ao lado da cama: 7h08. Nunca acordava cedo e precisava de duas chamadas do despertador para levantar. Mas ali, despertado sem alarme, sentia-se repousado.

Esquentou água para o café antes de tomar um banho, onde foi subitamente invadido pela sensação prazerosa da autocontemplação. Super-Blomkvist, o explorador das causas perdidas.

Ao mais leve toque, o misturador passava de uma água escaldante para uma água gelada. Não havia jornal para ler no café-da-manhã. A manteiga congelara e não havia fatiador de queijo na gaveta dos talheres. Lá fora, ainda estava tudo escuro. O termômetro indicava vinte e um graus negativos. Era um sábado.


O ponto de ônibus na aldeia Hedeby ficava diante do supermercado Konsum, e Mikael iniciou seu exílio indo às compras. Em Hedestad, desceu em frente à estação e foi até o centro da cidade para comprar calçados de inverno, duas ceroulas, algumas camisas de flanela, uma jaqueta espessa, gorro de lã e luvas forradas. Na Teknikbutiken, encontrou um pequeno aparelho de televisão com antena telescópica. O vendedor garantiu que na aldeia ele conseguiria captar pelo menos a rede nacional, e Mikael o fez prometer um reembolso caso não fosse verdade.

Inscreveu-se na biblioteca e emprestou dois romances policiais de Elizabeth George. Numa papelaria, adquiriu canetas e blocos de notas. Comprou também uma mochila para carregar suas novas aquisições.

Para terminar, comprou um maço de cigarros. Parara de fumar dez anos antes, mas tinha recaídas episódicas e estava sentindo uma necessidade súbita de nicotina. Pôs o maço no bolso da jaqueta sem abri-lo. A última visita foi a uma ótica, onde procurou um produto de limpeza e encomendou novas lentes de contato.

Aproximadamente às duas da tarde, já de volta à ilha, estava retirando as etiquetas das roupas, quando ouviu a porta de entrada ser aberta. Uma mulher loura de uns cinquenta anos bateu na porta da cozinha ao entrar. Trazia um pão-de-ló num prato.

— Bom dia, venho desejar as boas-vindas. Meu nome é Helen Nilsson, moro do outro lado da estrada. Somos vizinhos agora.

Mikael apertou-lhe a mão e se apresentou.

— Sim, já vi você na tevê. É agradável ver luz acesa à noite na casa dos convidados.

Mikael preparou café — ela primeiro o recusou, mas acabou sentando-se à mesa da cozinha. Olhou pela janela.

— Aí vem vindo Henrik com meu marido. Estão trazendo caixas para o senhor, acredito.

Henrik Vanger e Gunnar Nilsson detiveram-se diante da casa com um carrinho de mão e Mikael saiu depressa para cumprimentar os dois homens e ajudar a carregar quatro pesadas caixas. Depuseram-nas no chão, ao lado do aquecedor a lenha. Mikael serviu mais xícaras de café e cortou em fatias o pão-de-ló de Helen.

Gunnar e Helen Nilsson eram pessoas simpáticas. Não pareciam muito curiosos de saber por que Mikael se achava em Hedestad — trabalhar para Henrik Vanger parecia-lhes uma explicação suficiente. Mikael constatou que os Nilsson e Henrik Vanger tratavam-se de maneira muito natural, sem distinção entre patrão e empregados. Falavam da aldeia e de quem construíra a casa onde Mikael habitava. O casal corrigia Vanger quando sua memória falhava; este, por sua vez, contou com humor a vez em que Gunnar Nilsson, ao voltar para casa tarde da noite, avistou o retardado mental da aldeia tentando entrar pela janela da casa dos convidados, e então perguntou ao pobre-coitado por que não entrava pela porta, que não estava trancada. Gunnar Nilsson observou com ceticismo o pequeno aparelho de televisão e convidou Mikael a ir à casa deles à noite, quando quisesse ver algum programa. Tinham uma parabólica.

Henrik Vanger ficou mais um momento depois que os Nilsson foram embora. O velho explicou que preferia deixar o próprio Mikael fazer uma seleção dos arquivos e que viria vê-lo se surgisse um problema. Mikael agradeceu, certo de que seria melhor assim.

Quando voltou a ficar a sós, Mikael levou as caixas para a saleta de trabalho e começou a examinar seu conteúdo.


As investigações pessoais de Henrik Vanger sobre o desaparecimento de sua jovem sobrinha haviam sido feitas ao longo de trinta e seis anos. Mikael tinha dificuldade de determinar se o interesse devia-se a uma obsessão doentia ou se, com o passar do tempo, transformara-se num jogo intelectual. O certo é que o velho patriarca pusera mãos à obra com a aplicação de um arqueólogo amador. As pastas, enfileiradas, chegavam a quase sete metros.

Vinte e seis arquivos compunham a base do inquérito policial sobre o desaparecimento de Harriet. Era difícil para Mikael imaginar que um desaparecimento "normal" produzisse um resultado tão volumoso. Henrik Vanger provavelmente exercera bastante influência para que a polícia de Hedestad seguisse todas as pistas, tanto as plausíveis como as inconcebíveis.

Além do inquérito policial, havias pastas com recortes de imprensa, álbuns de fotografias, mapas, suvenires, artigos de jornais sobre Hedestad e as empresas Vanger, o diário íntimo de Harriet Vanger (relativamente pequeno), livros de escola, atestados de saúde et cetera. Havia também uns quinze volumes encadernados, formato ofício, de cem páginas cada um, que poderiam ser definidos como o diário de bordo pessoal das investigações de Henrik Vanger. Nesses papéis o patriarca anotara, com letra cuidadosa, suas próprias reflexões, suas idéias, suas pistas que não levaram a nada e suas observações. Mikael folheou-os ao acaso. O texto era bem redigido e ele teve a impressão de que esses volumes eram cópias passadas a limpo de cadernos mais antigos. Para terminar, havia uns dez arquivos com material sobre diferentes membros da família Vanger; as páginas estavam datilografadas e haviam sido claramente redigidas por um longo período.

Henrik Vanger conduzira a investigação contra a própria família.

Por volta das sete da noite, Mikael ouviu um miado alto e abriu a porta da entrada. Um gato ruivo, diante dele, entrou correndo em busca de calor.

— Eu te entendo — disse Mikael.

O gato ficou algum tempo farejando tudo pela casa. Mikael despejou um pouco de leite numa travessa que o convidado não tardou a lamber. Depois o gato saltou para cima do banco e se enrolou, quieto, decidido a não sair dali.


Passava das dez da noite quando Mikael conseguiu ter uma idéia clara do material e dispor tudo nas prateleiras numa ordem compreensível. Foi até a cozinha, esquentou água para o café e preparou dois sanduíches. Ofereceu um pouco de presunto e patê de fígado ao gato. Não comera de forma adequada durante o dia, mas sentia-se estranhamente pouco preocupado com a alimentação. Depois de comer, tirou o maço de cigarros do bolso da jaqueta e o abriu.

Ouviu as mensagens do celular. Erika não chamara e ele tentou localizá-la. Novamente obteve como resposta apenas a secretária eletrônica.

Uma das primeiras providências de Mikael em sua investigação particular foi escanear o mapa de Hedebyön. Colocou o nome dos moradores em cada casa, enquanto ainda os tinha na memória após a visita guiada por Henrik. Logo percebeu que o clã Vanger oferecia uma galeria de personagens tão vasta que ele precisaria de tempo para se familiarizar com cada um.


Um pouco antes da meia-noite, agasalhou-se, pôs os calçados novos e saiu para um passeio do outro lado da ponte. Tomou a estrada que costeava o canal abaixo da igreja. O gelo cobria o canal e o velho porto, mas ao longe podia-se ver uma faixa mais escura de água livre. A iluminação da fachada da igreja se apagou nesse meio-tempo e ele ficou cercado pela escuridão. O frio era intenso e o céu estrelado.

De repente, Mikael sentiu-se muito deprimido. Não conseguia entender como pudera se deixar convencer a aceitar aquele trabalho insensato. Erika tinha razão, era perda de tempo. Ele deveria estar em Estocolmo agora — na cama com Erika, por exemplo —, preparando a ofensiva contra Hans-Erik Wennerström. Mas mesmo isso não o animava e ele não fazia a menor idéia de como iniciar uma estratégia de ataque.

Se não fosse tão tarde, teria procurado Henrik Vanger para romper o contrato e voltar para casa. Do alto da colina da igreja, podia constatar que a casa Vanger já estava em silêncio e com as luzes apagadas. Da igreja, via todas as moradias da ilha. A casa de Harald também estava às escuras, mas havia luz na de Cecilia e na mansão de Martin na ponta do promontório, e também uma lâmpada acesa na casa alugada. Próximo ao porto de recreio, via-se luz na casa de Eugen Norman, o pintor que morava no barraco com frestas, cuja chaminé expelia fagulhas. Também o andar superior do Café Susanne estava iluminado e Mikael se perguntou se ela morava ali e, nesse caso, se vivia sozinha.


Mikael dormiu até tarde no domingo e despertou, assustado, com um alarido irreal dominando toda a casa. Precisou de um segundo para se localizar e entender que eram os sinos chamando para a missa, e que portanto deviam ser quase onze horas. Ficou mais um pouco na cama, sem vontade de nada. Quando ouviu um miado exigente diante da porta, levantou-se e deixou o gato sair.

Perto do meio-dia, tomou um banho e fez o desjejum. Entrou decididamente na saleta de trabalho e pegou o primeiro arquivo do inquérito policial. Depois hesitou. Da janela lateral da casa, avistou o letreiro do Café Susanne, pôs o arquivo na bolsa e vestiu a jaqueta. Ao chegar ao café, viu que estava abarrotado de fregueses e então teve a resposta a uma pergunta que lhe martelava a cabeça: como um café pode sobreviver num buraco como a aldeia de Hedeby? Susanne contava com os fiéis que iam à igreja e com as refeições ligeiras após os enterros e outras cerimônias.

Optou por uma caminhada. Como o Konsum fechava aos domingos, andou mais umas centenas de metros pela estrada de Hedestad, onde comprou jornais na loja de conveniências de um posto de gasolina. Dedicou uma hora andando a pé pela aldeia e se familiarizando com os arredores em terra firme. A área mais próxima da igreja e diante do Konsum constituía o núcleo, com edificações antigas, sobrados de pedra que Mikael julgou construídos nos anos 1910 ou 1920, alinhados para formar uma pequena rua. No começo da via de acesso a Hedestad, erguiam-se pequenos prédios de apartamento para famílias com filhos e, mais adiante, junto à margem e do lado sul do supermercado, algumas mansões. A aldeia Hedeby era sem dúvida onde moravam as pessoas abastadas de Hedestad.

Quando voltou a se aproximar da ponte, o Café Susanne já não estava tão cheio, mas a proprietária ainda limpava as mesas.

— Rush de domingo? — ele comentou ao entrar.

Ela concordou com a cabeça e ajeitou uma mecha de cabelos atrás da orelha.

— Bom dia, senhor Mikael.

— Lembra o meu nome?

— Difícil não lembrar — ela respondeu. — Eu o vi na tevê, no julgamento antes do Natal.

Mikael sentiu-se constrangido.

— Eles precisam ocupar os noticiários com alguma coisa — murmurou, apressando-se em direção à mesa de canto, de onde podia avistar a ponte. Quando seu olhar cruzou com o de Susanne, ela sorria.


Às três da tarde, Susanne avisou que o café ia fechar. Após a afluência de clientes depois da missa, raros fregueses apareceram. Mikael lera pouco mais de um quinto do primeiro arquivo do inquérito policial sobre o desaparecimento de Harriet. Tornou a fechá-lo, pôs o bloco de anotações na bolsa e atravessou a ponte com passos rápidos, de volta para casa.

O gato esperava junto à porta e Mikael olhou ao redor perguntando-se a quem pertencia aquele gato. Mesmo assim deixou que ele entrasse, afinal era alguma companhia.

Tentou outra vez o celular de Erika, mas de novo caiu na secretária eletrônica. Ela estava certamente furiosa com ele. Poderia ter ligado direto para a redação ou para a casa dela, mas, teimoso como era, decidiu não fazer isso. Já deixara mensagens suficientes. Preparou um café, conduziu o gato ao banco da cozinha e abriu o arquivo em cima da mesa.

Lia devagar, concentrando-se para não deixar escapar detalhes. Quando voltou a fechar o arquivo, tarde da noite, enchera várias páginas do seu bloco com pontos de referência e perguntas cuja resposta esperava encontrar nos arquivos seguintes. Tudo estava organizado em ordem cronológica; não sabia ao certo se Henrik Vanger classificara assim ou se era esse o sistema da polícia nos anos 1960.

A primeira folha era a fotocópia de um formulário de declaração, preenchido à mão, do comissariado central da polícia de Hedestad. O agente que atendera o chamado assinara Ap Ryttinger, o que Mikael interpretou como "agente de plantão". Henrik Vanger fora designado como declarante, seu endereço e número de telefone estavam anotados. O relatório trazia a data: domingo, 23 de setembro de 1966, 11h 14. O texto era breve e seco:


Chamado de Hrk Vanger inf. que sua sobrinha (?) Harriet Ulrika Vanger, nascida em 15 jan. 1950 (16 anos), desapareceu do seu domicílio na ilha Hedeby desde sábado à tarde. O declarante demonstra grande inquietação.


Às 11h20, uma nota estabelecia que P-014 (policial? patrulha? piloto de uma lancha?) fora despachado ao local.

Às 1 lh35, outro texto, mais difícil de interpretar que o de Ryttinger, acrescentava que Magnusson inf. ponte Hedeby ilha cont. fechada. Transp. por barco. Na margem, a assinatura era ilegível.

Às 12hl4, Ryttinger novamente: Chamada tel. Magnusson em H-by inf. que Harriet Vanger, 16 anos, está ausente desde começo tarde de sábado. Fam. demonstra grande inquietação. Aparentemente não dormiu em sua cama. Não pôde deixar ilha por causa acidente na ponte. Nenhum dos membros da família sabe onde HV se encontra.

Às 12h l9: G. M. informado do caso por tel.

A última informação fora anotada às 13h42: G. M. chegou a H-by; encarrega-se do caso.


A folha seguinte revelava que as misteriosas iniciais G. M. referiam-se a Gustav Morell, um inspetor de polícia que chegara de barco à ilha Hedeby, assumira o comando das operações e fizera uma declaração formal sobre o desaparecimento de Harriet Vanger. Ao contrário das notas preliminares com suas abreviações, os relatórios de Morell estavam escritos à máquina e numa prosa legível. Nas páginas seguintes, ele relatava as medidas que haviam sido tomadas com uma objetividade e uma riqueza de detalhes que surpreenderam Mikael.

Morell fora sistemático. Primeiro interrogara Henrik Vanger em companhia de Isabella Vanger, a mãe de Harriet. A seguir falara sucessivamente com Ulrika Vanger, Harald Vanger, Greger Vanger, com o irmão de Harriet, Martin Vanger, e Anita Vanger. Mikael concluiu que essas pessoas haviam sido interrogadas segundo uma espécie de escala de importância decrescente.

Ulrika Vanger era a mãe de Henrik e parecia ter um estatuto semelhante ao de uma rainha-mãe. Ulrika morava na casa Vanger e não tinha nenhuma informação para dar. Fora deitar-se cedo na véspera e fazia dias não via Harriet. Na verdade, ela só insistira em falar com o inspetor Morell para expressar sua opinião de que a polícia devia agir imediatamente.

Harald Vanger era o irmão de Henrik e o número dois na lista dos membros influentes da família. Ele explicava que tinha visto Harriet muito rapidamente quando ela voltou do desfile em Hedestad, mas que não a vira desde que o acidente ocorrera na ponte e não sabia onde ela se encontrava no momento.

Greger Vanger, irmão de Henrik e Harald, declarava que vira a jovem desaparecida quando ela tinha ido ao escritório de Henrik pedir para conversar com o tio-avô após sua ida a Hedestad, na manhã de sábado. Greger acrescentava que não dirigira a ela senão um bom-dia. Não sabia onde ela podia estar, mas achava que decerto fora à casa de alguma colega sem avisar ninguém e que seguramente não tardaria a voltar. Não soube responder à pergunta de como, então, ela teria deixado a ilha.

Martin Vanger fora interrogado às pressas. Aluno do último ano num colégio de Uppsala, morava nessa cidade na casa de Harald Vanger. Como não houve lugar para ele no carro de Harald, viera de trem a Hedeby. Chegou tão tarde que ficou preso do outro lado da ponte e só pôde chegar à ilha tarde da noite, de barco. Fora interrogado na esperança de que a irmã pudesse ter se aberto com ele e talvez confessado a intenção de fugir. A pergunta fora recebida com protestos da mãe de Harriet, mas o inspetor Morell julgou naquele instante que uma fuga representava antes uma esperança. Martin, porém, não falava com a irmã desde as últimas férias e não tinha nenhuma informação importante a dar.

Anita Vanger, a filha de Harald, era apresentada, de maneira errônea, como "prima" de Harriet— na realidade, Harriet era filha do primo de Anita. Estava no primeiro ano da faculdade em Estocolmo e passara o verão em Hedeby. Tinha quase a mesma idade que Harriet e as duas eram muito amigas. Ela declarava que chegara à ilha com o pai no sábado, que se alegrara em poder rever Harriet, mas que não tivera tempo para isso. Anita dizia-se inquieta porque não era próprio de Harriet desaparecer sem dizer nada à família. Nisso concordava tanto com Henrik quanto com Isabella Vanger.

Enquanto interrogava os membros da família, o inspetor Morell ordenara aos agentes de polícia Magnusson e Bergman — a patrulha 014! — que organizassem uma primeira busca antes do anoitecer. A ponte continuava fechada, era difícil trazer reforços do continente; o primeiro grupo de busca foi formado por cerca de trinta pessoas disponíveis, homens e mulheres de idades variadas. Até o final da tarde foram examinadas as cabanas desabitadas no porto de recreio, as praias do promontório e as margens do canal, a parte arborizada perto do povoado e também o monte Sul, acima do porto de recreio, isso depois de alguém sugerir que Harriet talvez tivesse subido lá para obter uma boa visão geral do acidente na ponte. Patrulhas foram igualmente enviadas a Östergarden e ao chalé de Gottfried do outro lado da ilha, para onde Harriet ia de vez em quando.

No entanto as buscas não deram em nada e foram interrompidas com a noite já avançada, por volta das dez horas. Na madrugada, a temperatura caíra a zero grau.

Durante a tarde, o inspetor Morell instalara seu QG numa sala que Henrik Vanger pusera à sua disposição no andar térreo da casa Vanger. Ele tomou uma série de providências.

Acompanhado de Isabella Vanger, inspecionou o quarto de Harriet para tentar descobrir se faltava alguma coisa, roupas, uma sacola ou algo semelhante que pudesse indicar que Harriet fugira, Isabella, pouco prestativa, não parecia ter a menor idéia do guarda-roupa da filha. Ela geralmente veste jeans, mas são todos parecidos. A bolsa de Harriet foi encontrada em cima da escrivaninha. Continha sua carteira de identidade, um porta-moedas com nove coroas e cinquenta centavos, um pente, um espelhinho e um lenço. Após a inspeção, o quarto de Harriet foi lacrado.

Morell interrogou outras pessoas, tanto membros da família quanto empregados. Todos os interrogatórios foram minuciosamente registrados.

Como os participantes da primeira batida iam voltando aos poucos e sem informações proveitosas, o inspetor decidiu realizar buscas mais sistemáticas. No começo da noite, reforços foram chamados; Morell entrou em contato, entre outros, com o presidente do clube de orientação de Hedestad, pedindo-lhe que convocasse seus membros para uma batida. Por volta da meia-noite, responderam-lhe que cinquenta e três atletas ativos, sobretudo da categoria júnior, estariam na casa Vanger às sete da manhã do dia seguinte. A contribuição de Henrik Vanger fora convocar, pura e simplesmente, toda a equipe da manhã da fábrica de papel Vanger local, cinquenta homens, além de providenciar bebida e comida para todo esse pessoal.

Mikael Blomkvist não teve nenhuma dificuldade em imaginar as cenas que devem ter se passado na casa Vanger durante aqueles dias repletos de acontecimentos. Estava claro que o acidente na ponte contribuíra para a confusão das primeiras horas, seja complicando a possibilidade de obter reforços eficazes, seja porque todos achavam que dois acontecimentos tão dramáticos ocorridos no mesmo lugar e na mesma hora tinham necessariamente uma ligação. Depois que retiraram o caminhão-tanque da ponte, contra todas as probabilidades, o inspetor Morell fora certificar-se pessoalmente de que Harriet não se achava sob os destroços. Foi a única ação irracional que Mikael identificou nos procedimentos do inspetor, pois a jovem desaparecida fora comprovadamente vista na ilha depois de ocorrido o desastre. No entanto, sem que pudesse explicar a si mesmo por quê, o responsável pelas investigações não conseguia tirar da cabeça a idéia de que um dos acontecimentos havia, de algum modo, provocado o outro.


As primeiras vinte e quatro horas viram minguar as esperanças de um desfecho rápido e feliz do caso, substituídas gradualmente por duas especulações. Apesar das dificuldades evidentes de poder abandonar a ilha sem ser vista, Morell não queria excluir a possibilidade de Harriet ter fugido. Decidiu ampliar as buscas e ordenou que os policiais da patrulha em Hedestad ficassem de olhos abertos. Também passou a um colega da divisão criminal a tarefa de interrogar motoristas de ônibus e o pessoal da ferrovia, para o caso de alguém a ter visto.

Quanto mais respostas negativas chegavam, mais parecia provável que Harriet fora vítima de um acidente. Essa hipótese passou a dominar a organização das buscas nos dias seguintes.

Dois dias depois do desaparecimento, uma grande batida foi realizada, e, de acordo com a avaliação de Mikael Blomkvist, com a maior competência. Policiais e bombeiros com experiência em casos semelhantes comandaram as buscas. Embora houvesse algumas áreas de difícil acesso, a superfície era limitada e a ilha inteira foi submetida a uma operação pente-fino. Um barco da polícia e dois de recreio, voluntários, sondaram da melhor maneira possível as águas ao redor da ilha.

No dia seguinte, as buscas foram retomadas com uma equipe reduzida. Dessa vez, patrulhas foram enviadas a uma segunda batida nos pontos de acesso mais difícil, bem como numa área chamada "A Fortificação" — um conjunto de bunkers abandonados que a defesa costeira havia montado durante a Segunda Guerra. Assim foram examinados nesse dia todos os pequenos redutos, poços, grutas, depósitos e porões do povoado.

Podia-se ler uma certa frustração numa nota de serviço que anunciava a interrupção das buscas no terceiro dia após o desaparecimento. Naturalmente Gustav Morell ainda não tinha consciência disto, mas naquele instante, na realidade, ele havia atingido o ponto culminante de suas buscas, o qual jamais ultrapassaria. Mergulhado na maior perplexidade, não sabia como recomendar a próxima etapa lógica ou um local onde as buscas devessem recomeçar. Harriet Vanger aparentemente sumira no ar, e o calvário de Henrik Vanger, que haveria de prosseguir por quarenta anos, estava apenas começando.


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