2. SEXTA-FEIRA - 8 DE ABRIL
Sonja Modig e Jerker Holmberg chegaram à estação central de Göteborg pouco depois das oito da manhã. Bublanski tinha ligado e passado novas instruções; era para deixarem Gosseberga para lá e pegarem um táxi até a chefatura de polícia, em Nya Ullevi, sede da polícia criminal de Vástra Götaland. Aguardaram quase uma hora até o inspetor Ackerman chegar de Gosseberga, acompanhado de Mikael Blomkvist. Mikael cumprimentou Sonja Modig, que ele já conhecia, e apertou a mão de Jerker Holmberg. Em seguida, um colega de Ackerman juntou-se a eles trazendo um relatório atualizado da busca a Ronald Niedermann. O relatório era sucinto.
— Dispomos de um grupo de investigação dirigido pela Criminal. Foi lançado, claro, um aviso de busca em todo o país. Encontraram a viatura da polícia em Alingsâs, às seis da manhã. Por enquanto, a pista acaba aí. Desconfiamos que ele trocou de carro, mas não foi registrada nenhuma queixa de roubo de carro.
— E a imprensa? — inquiriu Modig, com um olhar de desculpas para Mikael Blomkvist.
— Trata-se do assassinato de um policial, e a mobilização é geral. Vai haver uma coletiva de imprensa às dez horas.
— Alguém por acaso sabe alguma coisa sobre o estado da Lisbeth Salander? — perguntou Mikael. Estranho, mas não sentia quase nenhum interesse por tudo o que dizia respeito à caçada a Niedermann.
— Ela foi operada durante a madrugada. Extraíram uma bala da cabeça dela. Ainda não acordou.
— Algum prognóstico?
— Pelo que entendi, não há como saber antes de ela acordar. Mas o médico que fez a cirurgia diz que ela tem boas chances de sobreviver se não houver nenhuma complicação.
— E o Zalachenko?
— Quem? — perguntou o colega de Ackerman, que ainda não estava inteirado de todos os meandros complicados da história.
— Karl Axel Bodin.
— Ah, sim, ele também foi operado de madrugada. Levou uma machadada feia no rosto e outra logo abaixo da patela. Está em péssimo estado, mas os ferimentos não apresentam risco de morte.
Mikael assentiu com a cabeça.
— Você parece cansado — disse Sonja Modig.
— Pode-se dizer que sim. Estou começando meu terceiro dia sem dormir praticamente nada.
— Ele dormiu no carro, voltando de Nossebro — disse Ackerman.
— Você teria condições de nos contar a história toda desde o início? — perguntou Holmberg. — Parece que os investigadores particulares estão dando de três a zero na polícia.
Mikael tentou sorrir.
— Essa é uma fala que eu gostaria de ouvir da boca do Bublanski — disse.
Acomodaram-se na cafeteria da chefatura de polícia para tomar o café da manhã. Mikael passou cerca de meia hora explicando, tintim por tintim, de que modo reconstituíra a complexa história de Zalachenko. Quando concluiu, os policiais mantiveram um silêncio pensativo.
— Existem umas lacunas na sua história — disse Jerker Holmberg afinal.
— E bem possível.
— Você não explicou como teve acesso ao relatório secreto da Sapo sobre o Zalachenko.
Mikael assentiu com a cabeça.
— Eu o encontrei ontem na casa da Lisbeth Salander, depois que finalmente descobri o esconderijo dela. Quanto a ela, decerto achou o relatório na casa de campo do doutor Nils Bjurman.
— Quer dizer que você descobriu o esconderijo da Lisbeth Salander — disse Sonja Modig.
Mikael assentiu com a cabeça.
— E?
— Vou deixar para vocês a tarefa de descobrir o endereço por seus próprios meios. A Lisbeth fez um esforço enorme para conseguir aquele endereço secreto, e agora não vou ser eu quem vai deixar vazar.
Modig e Holmberg ficaram meio acabrunhados.
— Mikael... trata-se de uma investigação de homicídio — disse Sonja Modig.
— E vocês ainda não sacaram que a Lisbeth Salander é inocente e que a polícia pisoteou a vida pessoal dela de um jeito que não dá para entender. De onde vocês tiraram aquela história de lésbicas satânicas? Tenho certeza de que a própria Lisbeth, se quiser, vai contar para vocês onde ela mora.
— Tem outra coisa que não consegui entender direito — insistiu Holmberg. — Onde é que o Bjurman entra nessa história? Você disse que foi ele quem desencadeou tudo isso quando contatou o Zalachenko e pediu que ele matasse a Salander..., mas por que ele faria uma coisa dessas?
Mikael teve um longo momento de hesitação.
— Tenho a impressão de que ele contratou o Zalachenko para se livrar da Lisbeth Salander. O objetivo era ela ir parar no armazém de Nykvarn.
— Ele era o seu tutor. Que motivo teria para se livrar dela?
— É complicado.
— Explique.
— Ele tinha um puta motivo. Foi uma coisa que ele fez, e a Lisbeth estava sabendo. Ela era uma ameaça para o futuro pessoal e financeiro dele.
— O que foi que ele fez?
— Acho melhor a própria Lisbeth explicar essa parte. Seu olhar cruzou com o de Holmberg.
— Deixe eu adivinhar — disse Sonja Modig. — O Bjurman se comportou mal com a sua protegida.
Mikael assentiu com a cabeça.
— Posso deduzir que ele a submeteu a algum tipo de violência sexual? Mikael deu de ombros e se absteve de qualquer comentário.
— Você está sabendo da tatuagem na barriga do Bjurman?
— Tatuagem?
— Uma tatuagem feita por um amador, um texto que ocupa a barriga toda... Sou um porco sádico, um canalha estuprador. A gente andou se perguntando sobre o significado disso tudo.
De repente, Mikael caiu na risada.
— O que foi?
— Fiquei pensando no que a Lisbeth teria feito para se vingar. Mas, já disse, não quero discutir isso com vocês, pelo mesmo motivo. Trata-se da vida pessoal dela. A Lisbeth é que foi objeto de um crime. Ela é que é a vítima. Ela é quem deve decidir o que vai querer ou não contar para vocês. Sinto muito.
Ele parecia estar quase se desculpando.
— O certo, em caso de estupro, é dar queixa — disse Sonja Modig.
— Concordo. Mas esse estupro aconteceu há dois anos e a Lisbeth ainda não contou nada à polícia. O que prova que ela não pretende contar. Posso até não concordar, mas ela é quem decide. Além disso...
— Sim?
— Ela não tem motivo algum para confiar na polícia. Da última vez que tentou explicar a que ponto Zalachenko era um canalha, foi trancafiada num hospital psiquiátrico.
Richard Ekström, o responsável pelo inquérito preliminar, estava um tanto ansioso naquela manhã de sexta-feira, quando, pouco antes das nove horas, convidou o chefe das investigações, Jan Bublanski, para se sentar à sua frente. Ekström ajeitou os óculos e esfregou a barba bem cuidada. Para ele, aquela situação era caótica e ameaçadora. Durante um mês, ele fora o responsável pela investigação preliminar, o homem que caçava Lisbeth Salander. Ele a tinha descrito abertamente como uma psicopata, uma doente mental perigosa para a população. Tinha deixado vazar informações que seriam vantajosas para ele num eventual processo. Tudo parecia às mil maravilhas.
Na sua cabeça, não havia dúvida de que Lisbeth Salander era de fato culpada do triplo homicídio e que o processo resultaria numa vitória tranqüila, uma mera encenação de marketing com ele próprio no papel principal. E eis que tudo tinha desandado e lá estava ele às voltas com um assassino bem diferente e um caos que parecia não ter fim. Droga de Salander.
— Estamos com uma autêntica baderna para resolver — disse ele. — O que você descobriu esta manhã?
— Emitimos um pedido nacional de busca para Ronald Niedermann, mas ele ainda está foragido. Por enquanto, está sendo procurado apenas pelo assassinato do policial Gunnar Andersson, mas imagino que a gente deva incluir os três homicídios aqui de Estocolmo. Talvez você devesse convocar uma coletiva de imprensa.
Bublanski só estava sugerindo a coletiva para sacanear Ekstrõm, a quem detestava.
— Acho melhor esperar um pouco — respondeu Ekström depressa. Bublanski fez um esforço para não sorrir.
— Os últimos acontecimentos dizem respeito principalmente à polícia de Göteborg — retomou Ekström, para ser mais claro.
— É, mas estamos com a Sonja Modig e o Jerker Holmberg no local, em Göteborg, e iniciamos uma colaboração...
— Vamos esperar mais informações antes de convocar uma coletiva — interrompeu Ekström com voz autoritária. — O que eu queria saber é até que ponto você tem certeza de que o Niedermann está envolvido nos assassinatos aqui de Estocolmo.
— Como policial, estou convencido disso. Mas, de fato, não temos muitas provas. Não existe testemunha dos assassinatos nem nenhuma prova técnica irrefutável. O Magge Lundin e o Benny Nieminen, do MC Svavelsjö, negam-se a prestar uma declaração e afirmam que nunca ouviram falar do Niedermann. Em compensação, é certo que ele vai ser condenado pelo homicídio do Gunnar Andersson.
— Está bem — disse Ekström. — O que nos interessa no momento é o assassinato do policial. Mas me conte... Há algo que indique que a Salander estaria, apesar de tudo, envolvida nos assassinatos? Daria para supor que ela e o Niedermann agiram juntos?
— Duvido. Eu é que não divulgaria uma teoria dessas.
— Mas então qual é o papel dela nisso tudo?
— É uma história super complicada. Como o Mikael Blomkvist vem afirmando desde o começo, é esse sujeito, o Zala... Alexander Zalachenko.
Ao ouvir o nome de Mikael Blomkvist, o procurador Ekstrõm estremeceu visivelmente.
— O Zala é um espião russo fora de atividade, obviamente desprovido de qualquer escrúpulo, que atuava na época da guerra fria — prosseguiu Bublanski. — Chegou aqui nos anos 1970, e é o pai de Lisbeth Salander. Foi apoiado por um grupo da Sapo, que o cobria quando ele infringia a lei. Um policial da Sapo também deu um jeito de a Lisbeth Salander ser internada, aos treze anos, numa clínica de psiquiatria infantil, quando ela ameaçou revelar a verdade sobre o Zalachenko.
— Admita que é meio difícil engolir tudo isso. Não dá para tornar pública uma história dessas. Se entendi bem, tudo o que diz respeito ao Zalachenko é considerado segredo de Estado.
— Mas é a pura verdade. Tenho documentos que comprovam isso.
— Posso ver esses documentos?
Bublanski empurrou na direção dele o arquivo contendo o relatório policial datado de 1991. Ekström, pensativo, contemplou o selo que classificava o documento como segredo de Estado, e o número do arquivo, que ele de imediato identificou como proveniente da Sapo. Folheou rapidamente as cerca de cem páginas e leu algumas ao acaso. Por fim, largou o relatório.
— Temos que tentar acalmar as coisas para que a situação não escape das nossas mãos. Com que então a Lisbeth Salander foi internada num hospital de loucos porque tentou matar o pai... o tal Zalachenko. E agora cravou um machado na cabeça dele. Não dá para não entender isso como uma tentativa de homicídio. E ela também tem que ser acusada por ter atirado no Magge Lundin em Stallarholmen.
— Acuse quem você quiser, mas eu, no seu lugar, avançaria pisando em ovos.
— Vai ser um escândalo daqueles se essa história envolvendo a Sapo for divulgada.
Bublanski deu de ombros. Sua missão era elucidar crimes, e não administrar escândalos.
— E esse canalha da Sapo, o Gunnar Björck, o que se sabe sobre o papel dele nisso tudo?
— Ele é um dos protagonistas. Atualmente está de licença médica por causa de uma hérnia de disco e está passando um tempo em Smâdalarö.
— Certo... por enquanto não se fala na Sapo. Trata-se de um policial morto, só isso. O nosso papel não é criar confusão.
— Acho que vai ser difícil de abafar.
— Como assim?
— Mandei o Curt Bolinder deter o Björck para um interrogatório. — Bublanski consultou o relógio. — À essa hora ele deve estar em plena ação.
— O quê?
— Na verdade, minha intenção era eu mesmo ter o prazer de ir até Smâladarö, mas não pude por causa do assassinato do policial.
— Não emiti nenhuma autorização para a prisão de Björck.
— Correto. Mas não se trata de prisão. Mandei que o trouxessem para interrogá-lo.
— Não estou gostando nada disso.
Bublanski se inclinou para a frente e assumiu um ar confidencial.
— Richard... a questão é a seguinte. A Lisbeth Salander foi vítima de uma série de abusos judiciários, que tiveram início quando ela não passava de uma criança. Não preterido deixar que isso continue. Você pode escolher me afastar das investigações, mas nesse caso vou ser obrigado a escrever um relatório incisivo a respeito.
Richard Ekström ficou com cara de quem chupou um limão.
Gunnar Björck, em licença médica do seu cargo de chefe-adjunto da Brigada dos Estrangeiros na Sapo, abriu a porta de sua casa de campo em Smâladarö e se viu frente a frente com um homem corpulento, de cabelos loiros e curtos e jaqueta de couro preta.
— Gostaria de falar com Gunnar Björck.
— Sou eu.
— Curt Bolinder, de Assuntos Criminais. O homem mostrou sua identificação.
— Pois não?
— Vou pedir que me acompanhe até a chefatura de polícia de Kungsholmen para auxiliar na investigação sobre Lisbeth Salander.
— Hã... deve haver algum engano.
— Não há nenhum engano — disse Curt Bolinder.
— O senhor não está entendendo. Eu também sou da polícia. Sugiro que verifique com seu chefe.
— É o meu chefe que quer falar com o senhor.
— Preciso dar um telefonema e...
— Vai poder telefonar de Kungsholmen.
De repente, Gunnar Björck entregou os pontos. Droga de Mikael Blomkvist. Droga de Salander.
— Estou sendo detido? — perguntou.
— Por enquanto não. Mas acho que se pode dar um jeito, se o senhor acha indispensável.
— Não... não, vou acompanhá-lo, claro. Faço questão de auxiliar meus colegas da polícia oficial.
— Melhor assim — disse Curt Bolinder, entrando na casa. Manteve um olhar atento em Gunnar Björck enquanto ele ia pegar o casaco e desligar a cafeteira.
Às onze da manhã, Mikael Blomkvist soube que o seu carro alugado continuava estacionado atrás de uma granja na entrada de Gosseberga, mas no estado de exaustão em que se encontrava não tinha energia para ir buscá-lo, e muito menos para dirigir uns tantos quilômetros sem se transformar em vim perigo para o trânsito. Pediu conselho ao inspetor Marcus Ackerman, que generosamente propôs que um técnico da Criminal de Göteborg fosse buscar o carro.
— Encare isso como uma compensação pela maneira como você foi tratado na noite passada.
Mikael assentiu com a cabeça e pegou um táxi para o City Hotel, na Lorensbergsgatan, perto da Avenyn. Pediu um quarto simples por uma diária de oitocentas coroas e subiu imediatamente. Despiu-se, sentou-se nu sobre a cama, tirou do bolso interno do casaco o Palm Tungsten T3 de Lisbeth Salander e avaliou seu peso com a mão. Ainda estava surpreso de o computador de mão não ter sido apreendido quando o delegado Thomas Paulsson o revistara, mas Paulsson partira do princípio de que aquele era o computador de Mikael, e ele não fora formalmente acusado de nada nem destituído de seus objetos pessoais. Refletiu um instante e então colocou o Palm no compartimento da mochila de seu computador, onde já estava guardado o DVD Bjurman, de Lisbeth, que Paulsson também deixara passar. Estava ciente de que, do ponto de vista legal, era uma retenção de provas, mas aqueles eram objetos que Lisbeth aparentemente não ia querer que fossem parar em mãos erradas.
Pegou seu celular, observou que a bateria estava quase no fim e colocou-o para carregar. Telefonou para sua irmã, a Dra. Annika Giannini.
— Oi, mana.
— Você tem alguma coisa a ver com o assassinato do policial da noite passada? — ela foi logo perguntando.
Ele explicou rapidamente o que tinha acontecido.
— Certo. Quer dizer que a Salander está na UTI.
— Isso. Só vão saber da gravidade dos ferimentos depois que ela acordar, mas ela vai precisar de um advogado.
Annika Giannini ponderou alguns instantes.
— Você acha que ela vai me aceitar?
— É provável que não aceite nenhum advogado. Pedir ajuda não é o estilo dela.
— Tudo indica que ela vai precisar de um advogado criminal. Preciso dar uma olhada nos documentos que você tem aí.
— Fale com a Erika Berger e peça uma cópia para ela.
Assim que terminou de falar com a irmã, Mikael ligou para Erika Berger. Como ela não atendesse o celular, discou o número da redação da Millennium. Henry Cortez atendeu.
— A Erika saiu — disse Henry.
Mikael deu um resumo da situação e pediu a Henry que repassasse a informação para a diretora da Millennium.
— Certo. E o que a gente faz? — perguntou Henry.
— Hoje, nada — disse Mikael. — Preciso dormir. Volto amanhã para Estocolmo, se não houver nenhum imprevisto. A Millennium vai dar sua versão do caso no próximo número, isto é, daqui a quase um mês.
Desligou, enfiou-se na cama e em menos de trinta segundos estava dormindo.
A adjunta do chefe de polícia do Departamento, Monica Spângberg, bateu com uma caneta na borda do seu copo de água mineral para pedir silêncio. Dez pessoas — três mulheres e sete homens — estavam em volta da mesa de reuniões de sua sala, na chefatura de polícia. Eram eles o diretor da Brigada Criminal, seu adjunto, três inspetores criminais, entre eles Marcus Ackerman, e o assessor de comunicação da polícia de Göteborg. Também tinham sido convocados para a reunião a responsável pelo inquérito preliminar, Agneta Jervas, do Ministério Público, e os inspetores criminais Sonja Modig e Jerker Holmberg, de Estocolmo. Estes últimos estavam presentes para demonstrar a boa vontade dos colegas de Estocolmo em colaborar e também, quem sabe, para mostrar como se conduz uma investigação de verdade.
Spângberg, em geral a única mulher naquele ambiente masculino, não tinha fama de desperdiçar tempo com formalidades nem amenidades. Explicou que o chefe de polícia do departamento estava em uma viagem de trabalho, uma conferência da Europol em Madri, que interrompera a viagem ao ser avisado do assassinato de um policial, mas que só deveria chegar tarde da noite. Depois, dirigindo-se diretamente ao diretor da Brigada Criminal, Arne Pehrzon, pediu-lhe um resumo da situação.
— Há pouco mais de dez horas nosso colega Gunnar Andersson foi morto na estrada de Nossebro. Sabemos o nome do assassino, Ronald Niedermann, mas não temos nenhuma foto do indivíduo.
— Em Estocolmo temos uma foto dele de vinte anos atrás. Foi o Paolo Roberto quem conseguiu, mas quase não dá para aproveitar — disse Jerker Holmberg.
— Certo. Encontraram a viatura roubada em Alingsâs hoje cedo. Estava estacionada numa rua lateral, a cerca de trezentos metros da estação. Não houve nesta manhã nenhuma queixa de carro roubado na área.
— E quanto às investigações?
— Estamos verificando os trens que chegam a Estocolmo e Malmö. Emitimos um pedido nacional de busca e informamos a polícia norueguesa e a dinamarquesa. No momento estamos com cerca de trinta policiais trabalhando diretamente no caso e, é claro, com todos os agentes de olhos bem abertos.
— Nenhuma pista?
— Nada ainda. Mas não deve ser impossível localizar um homem com o físico do Niedermann.
— Alguém tem notícias do Fredrik Torstensson? — perguntou um dos inspetores da Criminal.
— Está no hospital de Sahlgrenska. Ficou bem machucado, mais ou menos como se tivesse sofrido um acidente de carro. É difícil acreditar que um ser humano possa ter causado tantas lesões apenas com as mãos. Além das fraturas e das costelas quebradas, ele está com uma vértebra machucada e corre o risco de ficar parcialmente paralisado.
Todos refletiram sobre a situação do colega durante alguns segundos, até que Spângberg retomou a palavra. Voltou-se para Ackerman.
— O que de fato aconteceu em Gosseberga?
— Em Gosseberga? Aconteceu o Thomas Paulsson.
Um gemido unânime foi ouvido por parte de vários participantes da reunião.
— Por que ninguém aposenta esse cara? Ele é uma puta de uma catástrofe ambulante.
— Conheço bem o Paulsson — disse Monica Spângberg em tom áspero. — Mas ninguém se queixou dele nesses... digamos, últimos dois anos.
— O prefeito de lá é uni velho conhecido do Paulsson e deve ter achado melhor mantê-lo por perto. A intenção era boa, claro, não se trata de uma crítica. Mas, na noite passada, o Paulsson se comportou de um modo tão estranho que vários colegas relataram o fato.
— O que ele fez?
Marcus Ackerman olhou de soslaio para Sonja Modig e Jerker Holmberg. Parecia sem graça de revelar as imperfeições de sua organização diante dos colegas de Estocolmo.
— O mais estranho, sem dúvida, foi ele destacar um agente do departamento técnico para fazer um inventário do galpão de lenha onde o Zalachenko foi encontrado.
— Inventário do galpão de lenha? — espantou-se Spângberg.
— É... quer dizer... ele queria saber exatamente quantas toras de lenha tinha ali. Para fazer um relatório bem completo.
Fez-se um silêncio expressivo em volta da mesa de reuniões, até que Ackerman prosseguiu:
— Hoje de manhã, descobrimos que o Paulsson consome pelo menos dois psicotrópicos, o Xanor e o Efexor. Na verdade, era para ele estar de licença médica, mas escondeu seu estado dos colegas.
— Que estado? — perguntou Spângberg, ríspida.
— E claro que não sei exatamente do que se trata — sigilo profissional dos médicos, sabe como é —, mas esses psicotrópicos que ele toma são um ansiolítico fortíssimo e um estimulante. Na noite passada, ele estava simplesmente dopado.
— Meu Deus — disse Spângberg, enfática. Lembrava a tempestade que passara sobre Göteborg naquela manhã. — Quero o Paulsson aqui para uma conversa. Agora.
— Vai ser difícil. Ele desmoronou hoje de manhã e foi internado no hospital por estresse. Foi mesmo um azar para a gente ele estar de plantão.
— Uma pergunta — disse o diretor da Brigada Criminal. — Quer dizer que na noite passada o Paulsson pediu o indiciamento de Mikael Blomkvist?
— Ele deixou um relatório em que registra desacato à autoridade, resistência violenta a um funcionário e porte ilegal de arma.
— O Blomkvist admite alguma dessas coisas?
— Admite o desacato, mas afirma que foi em legítima defesa. Segundo ele, a resistência consistiu numa tentativa verbal um pouco extremada de impedir que Torstensson e Andersson fossem prender o Niedermann sozinhos e sem reforços.
— Alguma testemunha?
— Só os agentes Torstensson e Andersson. Permita-me dizer que não acredito em nada no relatório do Paulsson quando ele fala em resistência violenta. Claramente se trata de uma forma de se proteger de eventuais queixas do Blomkvist.
— Mas ele, o Blomkvist, tinha conseguido dominar o Niedermann sozinho? — perguntou a procuradora Agneta Jervas.
— Ele o ameaçou com uma arma.
— Então o Blomkvist tinha uma arma. Ou seja, o indiciamento de Blomkvist tem fundamento. Onde ele conseguiu a arma?
— O Blomkvist não quer falar sobre isso antes de consultar um advogado. Mas o Paulsson indiciou o Blomkvist quando ele tentava lhe entregar a arma.
— Posso fazer uma sugestão informal? — perguntou cautelosamente Sonja Mondig.
Todos olharam para ela.
— Estive com o Mikael Blomkvist várias vezes durante a investigação, e acho que ele é um sujeito legal, apesar de ser jornalista. Suponho que a decisão de indiciá-lo ou não seja sua... — Ela fitou Agneta Jarvas, que assentiu a cabeça. — Neste caso, essa história de desacato e resistência é pura bobagem, e imagino que vai arquivá-la imediatamente.
— E provável. Mas porte ilegal de arma já é coisa mais séria.
— Sugiro que espere um pouco antes de apertar o gatilho. O Blomkvist reconstituiu toda esta história, sozinho e está muito à frente da polícia. Seria melhor mantermos boas relações com ele e cooperarmos. E mais vantajoso do que dar margem para ele detonar a polícia toda na mídia.
Ela se calou. Passados alguns segundos, Marcus Ackerman pigarreou. Se Sonja Mondig podia empinar o nariz, ele não iria ficar para trás.
— Concordo. Também acho o Blomkvist um sujeito sensato. Apresentei nossas desculpas pelo modo como foi tratado na noite passada. Ele parece disposto a deixar por isso mesmo. Além do que, é um cara íntegro. Descobriu o endereço da Lisbeth Salander, mas se nega a nos fornecer. Não tem medo de enfrentar uma discussão aberta com a polícia... e está numa posição em que a voz dele vai ter tanto peso na mídia quanto qualquer denúncia do Paulsson.
— Mas e se ele se negar a dar informações sobre a Salander para a polícia?
— Diz ele que é só a gente perguntar para a Lisbeth.
— Que tipo de arma era essa? — perguntou Jervas.
— Uma Colt 1991 Government. Número de série desconhecido. Mandei para o laboratório, e ainda não sabemos se foi usada em algum contexto criminal na Suécia. Se for o caso, vamos ter que reconsiderar.
Monica Spângberg ergueu a caneta.
— Agneta, você decide se quer abrir um inquérito preliminar sobre o Blomkvist. Imagino que esteja esperando os resultados do Laboratório. Continuando... Esse sujeito, o Zalachenko... vocês, de Estocolmo, o que podem nos dizer sobre ele?
— Acontece que até ontem à tarde nós também nunca tínhamos ouvido falar nem em Zalachenko nem em Niedermann — respondeu Sonja Modig.
— Eu achava que em Estocolmo vocês andavam atrás de um grupo de lésbicas satânicas — disse um dos policiais de Göteborg. Alguns homens esboçaram um sorriso. Jerker Holmberg começou a examinar as próprias unhas. Sonja Modig que respondesse àquela pergunta.
— Cá entre nós, na Brigada a gente também tem um "Thomas Paulsson", e é a ele que a gente deve essa história de bando de lésbicas satânicas.
E então Sonja Modig e Jerker Holmberg passaram toda uma meia hora relatando suas investigações.
Quando concluíram, um longo silêncio se fez em volta da mesa.
— Se essa informação sobre o Gunnar Björck estiver certa, quem vai ficar com as orelhas ardendo é a Sapo — disse, por fim, o adjunto do diretor da Brigada Criminal.
Todos assentiram com a cabeça. Agneta Jervas levantou a mão.
— Se eu entendi bem, boa parte das suspeitas de vocês está fundada em suposições e presunções. Como procuradora, fico um pouco preocupada com a falta de provas concretas.
— Temos consciência disso — disse Jerker Holmberg. — Julgamos saber, de forma geral, o que aconteceu, mas ainda existem muitos pontos de interrogação para resolver.
— Pelo que entendi, vocês estão cuidando das escavações em Nykvarn, perto de Södertälje — disse Spângberg. — Este caso envolve quantos homicídios, afinal?
Jerker Holmberg pestanejou, cansado.
— Começamos com três assassinatos em Estocolmo — que são os assassinatos pelos quais a Lisbeth Salander estava sendo procurada, o do doutor Bjurman, o do jornalista Dag Svensson e o da doutoranda Mia Bergman. No armazém de Nykvarn, até agora encontramos três túmulos. Em um deles foi identificado um receptador, bandido notório, cortado em pedaços. No outro, uma mulher não identificada. Ainda não tiveram tempo de abrir completamente o terceiro túmulo. Parece mais antigo. Além disso, o Mikael Blomkvist descobriu uma ligação com o assassinato de uma prostituta em Södertälje uns meses atrás.
— Portanto, com o agente Gunnar Andersson, em Gosseberga, são pelo menos oito homicídios... esse número chega a causar arrepios. O tal Nieder-mann é suspeito de todos esses assassinatos? Isso significaria que se trata de um doido varrido, um assassino em série.
Sonja Modig e Jerker Holmberg trocaram um olhar. Precisavam definir até onde estavam preparados para avançar em suas declarações. Por fim, Sonja Modig assumiu a palavra.
— Mesmo que nos faltem provas concretas, o meu chefe, o inspetor Bublanski, e eu mesma tendemos a acreditar em Mikael Blomkvist quando ele diz que os três primeiros assassinatos são obra do Niedermann. Isso equivaleria à inocência da Salander. Quanto aos túmulos de Nykvarn, o Niedermann está ligado ao local pelo seqüestro da amiga da Salander, a Miriam Wu. Ela seria, evidentemente, a quarta vítima da lista, e um túmulo esperava por ela também. Mas o armazém em questão é propriedade do presidente do MC Svavelsjö, e vamos ter que esperar até a identificação dos despojos para tirar conclusões.
— E esse bandido que vocês identificaram...
— Kenneth Gustafsson, quarenta e quatro anos, conhecido receptador e delinqüente desde a adolescência. Assim, sem pensar muito, eu diria que se trata de um acerto de contas. O MC Svavelsjö está ligado a vários tipos de criminalidade, inclusive distribuição de metanfetaminas. Portanto, o local pode ser considerado um cemitério informal para pessoas que se indispunham com o MC Svavelsjö. Mas...
— Sim?
— A prostituta, essa foi morta em Södertálje... Seu nome era Irina Petrova e ela tinha vinte e dois anos.
— Certo.
— A autópsia diz que ela foi vítima de uma agressão particularmente brutal. O mesmo tipo de ferimento que pode ser encontrado numa pessoa morta a golpes de taco de beisebol ou algum instrumento parecido. Os traumatismos foram difíceis de interpretar e o médico-legista não teve condições de afirmar qual foi, exatamente, o instrumento utilizado. O Blomkvist observou bem: os ferimentos de Irina Petrova poderiam perfeitamente ter sido causados por mãos...
— Niedermann?
— É uma suposição plausível. Ainda faltam as provas.
— O que a gente faz agora? — perguntou Spângberg.
— Tenho que ver com o Bublanski, mas pela lógica o próximo passo seria interrogar o Zalachenko. De nossa parte, estamos interessados no que ele tem a dizer sobre os homicídios de Estocolmo, e vocês querem pegar o Niedermann.
Um inspetor de Gõteborg levantou o dedo.
— Tenho uma pergunta... o que encontraram na granja de Gosseberga?
— Pouca coisa. Quatro armas pequenas. Uma Sig Sauer desmontada, que estava sendo lubrificada, na mesa da cozinha. Uma Wanad P-83 polonesa no chão, do lado da banqueta. Uma Colt 1911 Government — essa é a pistola que o Blomkvist tentou entregar para o Paulsson. Por fim, uma Browning calibre 22, que no meio das outras mais parece um brinquedinho. A suspeita é que essa foi a arma usada contra a Salander, já que ela continua viva mesmo depois de uma bala no cérebro.
— E fora isso?
— Foi apreendida uma sacola contendo pouco mais de duzentas mil coroas. A sacola estava num quarto do andar de cima, ocupado pelo Niedermann.
— Como é que vocês sabem que era o quarto dele?
— Bem, ele usa roupa GG. O Zalachenko, a rigor, usa M.
— Existe alguma coisa vinculando o Zalachenko a uma atividade criminosa? — perguntou Jerker Holmberg.
Ackerman balançou a cabeça.
— Tudo depende de como vamos interpretar a apreensão das armas. Mas fora as armas e o fato de o Zalachenko dispor de uma vigilância eletrônica bastante sofisticada para a sua residência, não encontramos nada que diferencie a granja de Gosseberga de qualquer outra casa no campo. Tem pouquíssimos móveis.
Pouco antes do meio-dia, um policial fardado bateu à porta e entregou um papel para a adjunta do chefe de polícia, Monica Spângberg. Ela levantou a mão.
— Acabamos de receber um alerta sobre uma pessoa desaparecida em Alingsâs. Uma assistente de odontologia de vinte e sete anos, Anita Kaspersson, saiu de sua casa às sete e meia da manhã. Deixou o filho na creche e deveria ter chegado ao trabalho antes das oito. Não chegou. Ela trabalha para um dentista cujo consultório fica a uns cem metros de onde foi encontrada a viatura roubada.
Ackerman e Sonja Modig consultaram simultaneamente o relógio.
— Quer dizer que ele tem quatro horas de vantagem. Qual é o carro dela?
— Um Renault velho azul-escuro. O número da placa está aqui.
— Emitam imediatamente um aviso de busca para o veículo. A essa altura, ele pode estar em qualquer lugar entre Oslo, Malmõ e Estocolmo.
Trocaram mais algumas palavras e encerraram a reunião, depois de decidirem que Sonja Modig e Marcus Ackerman iriam, juntos, interrogar Zalachenko.
Henry Cortez franziu o cenho e seguiu Erika Berger com o olhar quando ela saiu de sua sala e foi para a copa. Ela voltou, segundos depois com uma caneca de café. Fechou a porta atrás de si.
Henry Cortez não conseguia de fato atinar o que havia de errado. A Millennium era um local de trabalho pequeno, onde os funcionários acabavam ficando muito próximos. Fazia quatro anos que ele trabalhava meio período na revista e já tinha vivenciado tempestades tremendas, principalmente na época em que Mikael Blomkvist cumprira três meses de prisão por difamação e a revista por pouco não afundara. Ele também passara pelo assassinato do colaborador Dag Svensson e da companheira de Dag, Mia Bergman.
Durante todas aquelas tempestades, Erika Berger se mostrara uma fortaleza que nada, aparentemente, seria capaz de abalar. Não o surpreendia que ela o tivesse chamado tão cedo de manhã, e também Lottie Karim, pedindo que começassem logo o trabalho. O caso Salander estava implodindo, e Mikael Blomkvist estava envolvido no assassinato de um policial em Góteborg. Até aí, tudo bem. Lottie Karim tinha ficado de plantão na chefatura de polícia tentando obter alguma informação plausível. Henry passara a manhã ao telefone procurando reconstituir os acontecimentos da noite anterior. O celular de Blomkvist não atendia, mas, através de várias outras fontes, Henry já tinha um panorama bastante claro do que havia acontecido.
Em compensação, Erika Berger estivera com a cabeça longe a manhã toda. Era raro ela fechar a porta de sua sala. Isso praticamente só acontecia quando recebia alguma visita ou estava trabalhando de forma intensa em algum problema. Naquela manhã, não houvera nenhuma visita e ela não estava trabalhando. Henry tinha batido na porta da sala duas ou três vezes para lhe passar informações e dera com ela na poltrona em frente à janela, imersa em pensamentos, fitando a multidão lá embaixo na Gõtgatan com um olhar ausente.
Algo não estava bem.
A campainha da porta interrompeu suas reflexões. Ao abri-la, deparou com Annika Giannini. Henri Cortez já cruzara com a irmã de Mikael Blomkvist várias vezes, mas não a conhecia muito bem.
— Bom dia, Annika — disse ele. — O Mikael hoje não está.
— Eu sei. Eu vim falar com a Erika.
Em sua poltrona diante da janela, Erika Berger ergueu os olhos e se recompôs rapidamente quando Henry introduziu Annika. As duas mulheres ficaram a sós.
— Bom dia — disse Erika. — O Mikael hoje não está. Annika sorriu. Mas já tinha percebido o mal-estar.
— Sim, eu sei. Estou aqui por causa do relatório do Bjõrck para a Sapo. O Micke pediu que eu desse uma olhada nele, já pensando na possibilidade de eu eventualmente vir a representar a Salander.
Erika assentiu com a cabeça. Levantou-se e apanhou uma pasta em cima da mesa.
Annika pegou a pasta e hesitou um instante, prestes a sair. Então mudou de idéia e sentou-se diante de Erika.
— Bem, fora isso, qual é o problema?
— Estou saindo da Millennium. E ainda não consegui contar para o Mikael. Ele andou tão envolvido neste caso da Salander que não achei o momento certo de tocar no assunto, e também não quero contar para os outros antes de contar para ele. Por isso é que estou me sentindo uma merda.
Annika Giannini mordeu o lábio inferior.
— E então, em vez disso, está contando para mim. Qual é o seu projeto?
— Vou assumir a chefia de redação do Svenska Morgon-Posten.
— Puxa! Nesse caso, congratulações são mais apropriadas do que choro e lamentações.
— Só que não era assim que eu tinha imaginado a minha saída da Millennium. No meio deste turbilhão incrível. A coisa desabou como um raio em cima de mim, não tive como recusar. Quer dizer, é uma oportunidade única. Mas a proposta aconteceu um pouco antes de o Dag e a Mia serem assassinados, depois foi uma confusão tão grande aqui dentro que acabei não falando nada. Agora estou me sentindo tremendamente culpada, você não imagina o quanto.
— Imagino, sim. E você está com medo de falar para o Micke.
— Eu não falei para ninguém. Eu só ia começar no SMP depois do verão, e achei que tinha bastante tempo para contar. Mas agora eles estão querendo que eu assuma o quanto antes.
Calou-se e olhou para Annika. Estava a ponto de chorar.
— Concretamente, significa que esta é minha última semana na Millennium. Semana que vem vou viajar e depois... Preciso de uma semana de férias para recarregar as baterias. Vou assumir no SMP em primeiro de maio.
— E como ia ser se você tivesse sido atropelada? Em menos de um minuto eles iam ficar sem redator-chefe.
Erika ergueu os olhos.
— Só que eu não fui atropelada. Ocultei conscientemente essa história semanas a fio.
— Entendo que seja uma situação difícil, mas tenho a impressão que o Mikael, o Christer e os outros vão saber enfrentá-la. Mesmo assim, acho que você deveria contar logo para eles.
— É, mas hoje o danado do seu irmão está em Gõteborg. Está dormindo e não atende o telefone.
— Eu sei. Pouca gente tem o talento do Mikael para não atender telefone. Porém o assunto não é só entre você e o Mikael. Eu sei que faz vinte anos que vocês trabalham juntos, que já andaram transando e tudo mais, mas você tem que pensar no Christer e no pessoal da redação.
— Mas o Mikael vai...
— O Mikael vai ter um treco. Claro. Mas se ele não puder aceitar que, depois de vinte anos, você sinta vontade de conduzir seu próprio barco, então isso significa que ele não merece esse tempo todo que você gastou com ele.
Erika suspirou.
— Vamos lá, coragem. Peça que o Christer e os demais venham até aqui. Agora.
Christer Malm permaneceu abalado por alguns segundos depois que Erika reuniu os colaboradores na salinha de reuniões da Millennium. Ela ligara para o ramal de cada um deles bem no momento em que, por ser sexta-feira, ele se preparava para sair mais cedo. Ele trocou olhares com Henry Cortez e Lottie Karim, tão surpresos quanto ele. Nem a assistente de redação, Malu Eriksson, parecia estar entendendo, tampouco a jornalista Monika Nilsson e o responsável pela publicidade, Sonny Magnusson. Só faltava Mikael Blomkvist, que estava em Gõteborg.
Meu Deus. O Mikael não está sabendo, pensou Christer Malm. Como será que ele vai reagir?
Então ele percebeu que Erika Berger tinha terminado de falar e que um silêncio pesado tomava conta da sala. Balançou a cabeça, levantou-se, deu um abraço em Erika e tascou-lhe um beijo no rosto.
— Parabéns, Ricky — disse ele. — Redatora-chefe do SMP. Uma bela ascensão, para quem vem do nosso barquinho.
Henry Cortez acordou e deu início a uma espontânea salva de palmas. Erika ergueu as mãos.
— Alto lá — disse ela. — Hoje eu não estou merecendo nenhum aplauso.
Calou-se por um instante e observou seus colaboradores daquela pequena redação.
— Olha... estou super chateada com o rumo que as coisas foram tomando. Minha intenção era contar para vocês várias semanas atrás, mas a coisa se perdeu no meio da catástrofe que se seguiu aos assassinatos. O Mikael e a Malu trabalharam feito doidos e simplesmente não surgiu uma oportunidade. Por isso é que estamos nesta situação.
Com uma lucidez fantástica, Malu Eriksson percebeu a que ponto a redação carecia de pessoal efetivo e a que ponto a saída de Erika iria deixar um vazio. Em qualquer circunstância, e qualquer que fosse o caos da vez, ela sempre fora o rochedo em que Malu podia se segurar, sempre inabalável em meio à tempestade. Pois é... não era de admirar que o ilustre jornal matutino a tivesse contratado. Mas e agora? Como é que eles iam se virar? Erika sempre fora a pessoa-chave da Millennium.
— Temos algumas coisinhas para acertar. Entendo perfeitamente que a minha saída possa desnortear um pouco a redação. Não era essa a minha intenção, mas, enfim, aconteceu. Em primeiro lugar: não estou abandonando de vez a Millennium. Vou continuar sendo sócia e participar das reuniões do conselho administrativo. Por outro lado, é claro que não vou mais ter nenhuma influência no trabalho de redação; isso me causaria um conflito de interesses.
Christer Malm assentiu com a cabeça, pensativo.
— Em segundo lugar: oficialmente, paro de trabalhar no dia 30 de abril. Mas, na verdade, hoje é o meu último dia. Como vocês sabem, vou viajar na semana que vem, já estava combinado havia tempo, e não faz sentido eu voltar ao comando só para cumprir uns poucos dias de transição.
Calou-se por alguns instantes.
— O próximo número está pronto no meu computador. Só falta acertar uns detalhezinhos. Vai ser meu último número. Depois, alguém vai ter que assumir o leme. No final da tarde vou limpar a minha mesa.
Houve um silêncio denso.
— O melhor seria o conselho administrativo decidir contratar um redator-chefe. Mas é um assunto que também deve ser discutido entre vocês da redação.
— O Mikael — disse Christer Malm.
— Não. O Mikael não. Ele seria, indiscutivelmente, o pior redator-chefe que vocês poderiam escolher. Ele é perfeito como editor responsável e é sensacional para revisar e dar um jeito em textos problemáticos que precisam ser publicados. Mas ele também trava o fluxo das coisas. Um redator-chefe deve ser alguém que jogue na ofensiva. Além disso, o Mikael tem tendência a mergulhar nas matérias dele e às vezes fica ausente semanas a fio. Ele é ótimo nos períodos de tensão, mas é um zero à esquerda no trabalho de rotina. Vocês sabem disso.
Christer Malm assentiu com a cabeça.
— Se a Millennium deu tão certo até agora, é porque você e o Mikael se completavam.
— Não é só isso. Lembrem de quando o Mikael ficou quase um ano enfurnado naquele povoado de Hedestad. A Millennium funcionou sem ele, e agora vai ter que funcionar sem mim.
— Certo. E qual é a sua idéia?
— Eu escolheria você para redator-chefe, Christer...
— Nunca, jamais. — Christer Malm fez um gesto com as mãos, como querendo frear aquela idéia.
— ... mas como eu já sabia que você ia recusar, pensei numa outra solução. Malu. Você assume a partir de hoje como redatora-chefe temporária.
— Eu?! — exclamou Malu.
— Isso mesmo, você. Você faz um supertrabalho como assistente de redação.
— Mas eu...
— Faça uma experiência. Vou esvaziar a minha sala à tarde. Você pode se mudar para lá já na segunda de manhã. A edição de maio está praticamente pronta — uma tarefa a menos. Em junho, sai uma edição dupla e depois disso temos um mês de férias. Se não der certo, a empresa vai ter que achar outra pessoa para agosto. Henry, você passa a trabalhar em tempo integral e substitui a Malu como assistente de redação. Mais tarde vocês vão ter que contratar mais um colaborador. Mas a decisão é de vocês e do conselho administrativo.
Ela se calou um instante e contemplou-os pensativamente.
— Mais uma coisa. Eu vou trabalhar numa outra publicação. O SMP e a Millennium não são propriamente concorrentes, mas de qualquer modo significa que não quero saber mais do que já sei sobre o conteúdo do próximo número. A partir de agora, vocês tratam desse assunto com a Malu.
— E o que a gente faz em relação ao caso Salander? — perguntou Henry Cortez.
— Você vê isso com o Mikael. Eu tenho informações sobre a Salander, mas vou pôr um lacre nessa história. Não vou repassar para o SMP.
De repente, Erika sentiu um alívio imenso.
— Bem, era isso — disse, encerrando a reunião. Então se levantou e retornou à sua sala sem mais comentários.
A redação da Millennium permaneceu aturdida. Uma hora mais tarde, Malu Eriksson foi bater na porta da sala de Erika.
— Olá.
— Sim? — disse Erika.
— O pessoal tem uma coisa para te dizer.
— O quê?
— Você tem que ir até lá.
Erika se levantou e acompanhou Malu. Na mesa, havia café e uma torta enorme.
— Pensei em dar um tempinho para a verdadeira festa de despedida — disse Christer Malm. — Por enquanto, vamos nos contentar com torta e café.
Pela primeira vez naquele dia, Erika Berger sorriu.