4 - SEGUNDA-FEIRA 10 DE JANEIRO – TERÇA-FEIRA 11 DE JANEIRO
Lisbeth Salander aterrissou no aeroporto de Estocolmo às seis e meia da manhã. Viajara vinte e seis horas, nove das quais passadas no aeroporto Grantly Adams de Barbados, onde a British Airways negara-se a autorizar a decolagem do avião sem antes neutralizar uma ameaça terrorista e isolar um passageiro de aparência árabe suspeita, a fim de interrogá-lo. Em Londres, perdera a conexão do último voo para a Suécia e tivera de esperar durante horas até que encontrassem um lugar para ela no primeiro voo da manhã.
Lisbeth se sentia um saco de bananas esquecido ao sol uma tarde inteira. Só levava uma bagagem de mão, com seu Powerbook, o Dimensions e algumas roupas bem compactadas. Passou pela porta verde da alfândega sem que lhe perguntassem nada. No ponto de ônibus, foi recebida pela lama da neve e uma temperatura próxima de zero.
Hesitou um instante. A vida inteira, por causa de suas evidentes limitações materiais, sempre optara pela alternativa mais barata, e ainda era difícil para ela se habituar à idéia de que dispunha de perto de três bilhões de coroas que roubara astuciosamente, utilizando a internet e um bom velho golpe à antiga. Um minuto foi suficiente para ela deixar para lá a regra geral e acenar Para um táxi. Deu seu endereço na Lundagatan e adormeceu quase imediatamente no banco traseiro.
Quando o táxi parou na Lundagatan e o motorista a acordou, percebeu que tinha dado o endereço errado. Corrigiu-se e pediu que ele fosse até a Gõtgatsbacken. Pagou em dólares americanos, deixando uma generosa gorjeta, e soltou um palavrão ao pisar numa poça d’água na sarjeta. Vestia calça jeans, camiseta e uma jaqueta leve. Nos pés, usava sandálias e meias finas. Foi, vacilante, até o supermercado da esquina, onde comprou xampu, pasta de dentes, sabonete, coalhada, queijo, ovos, pão, pãezinhos de canela congelados, café, chá em saquinhos, pepinos em conserva, maçãs, um pacote gigante de Billys Pan Pizza e um maço de Marlboro light. Pagou com cartão Visa.
Ao voltar para a rua, ficou em dúvida quanto ao caminho a seguir. Podia escolher a Svartensgatan, onde já estava, ou a Hõkensgatan, mais para baixo na direção de Slussen. A desvantagem da Hõkensgatan é que teria de passar bem em frente à redação da Millennium, onde sempre corria o risco de cruzar com Mikael Blomkvist. Acabou decidindo que não ia ficar dando voltas só para evitar Mikael. Tomou, portanto, a direção de Slussen, embora na verdade se tratasse de um pequeno desvio, e virou à direita pela Hõkensgatan até a praça de Mosebacke. Passou pela estátua das Irmãs na frente do Sôdra Teatern e chegou à Fiskaregatan pela escadaria. Lá, parou e contemplou pensativamente um edifício. Não conseguia sentir que era de fato “a sua casa”.
Olhou ao redor. Em todos os sentidos do termo, tratava-se de um recanto isolado em pleno Södermalm. Nenhuma grande artéria de tráfego, o que lhe convinha muito bem. Dali também se identificava rapidamente quem quer que passasse pelas redondezas. Talvez fosse um lugar de passeio apreciado no verão, mas no inverno só passava gente com algum motivo para estar naquele bairro. Não havia absolutamente ninguém à vista — principalmente ninguém que ela conhecesse e que, por conseguinte também poderia reconhecê-la. Teve de colocar o saco do supermercado na lama da neve para pegar a chave. Foi de elevador até o último andar e abriu a porta em que estava escrito o nome V. Kulla.
Uma das primeiras medidas que havia tomado no ano anterior, quando de uma hora para a outra se vira de posse de uma quantia confortável, tornando-se assim economicamente independente pelo resto da vida (ou, pelo menos, pelo tempo que imaginava poder viver com quase três bilhões de coroas), fora sair para procurar outro apartamento. As transações imobiliárias eram para ela uma experiência nova. Nunca na vida tinha investido dinheiro em algo mais importante que objetos utilitários que podia pagar em dinheiro ou mediante um crédito razoável. Os dois maiores débitos da sua contabilidade tinham sido o equipamento de informática e sua Kawasaki de baixa cilindrada, adquirida por sete mil coroas, uma oportunidade inesperada. Comprara peças avulsas por mais ou menos a mesma quantia e passara ela própria vários meses desmontando e ajeitando a moto. Teria preferido um carro, mas hesitara em comprar um sem saber como iria financiá-lo.
Já um apartamento, ela percebeu, era um negócio de dimensões bem diferentes. Começara lendo anúncios de apartamentos à venda na edição on-line do Dagens Nyheter. Uma legítima ciência à parte, como ela não demorou a se dar conta.
Apto qto sl + s. jant. boa local. prox. estação. P: 2,7 U. Condom. 5510/mês.
Apto 2 dorm, vista p/ parque, Högalid. 2,9 U
Apto qto sl, 47m2, banh. reform, encanam, novo 1998. Gotlandsgatan. 1,8 V. Condom: 2200.
Ela coçara a cabeça e tentara ligar para alguns anúncios ao acaso, mas não sabia o que deveria perguntar e logo se sentiu tão ridícula que interrompeu o exercício. Depois, no primeiro domingo de janeiro, se aventurara a visitar alguns apartamentos à venda. Um deles situava-se no Vindragarvägen sobre o Reimersholme, e o outro na Heleneborgsgatan, perto de Horntull. O de Reimersholme era um três dormitórios claro e espaçoso com vista para Lângholmen e Essingen. Teve a impressão de que poderia se sentir bem ali. O apartamento da Heleneborgsgatan era um reduto sórdido com vista para o prédio da frente.
O problema é que ela não sabia como queria morar, que cara deveria ter a sua casa e o que ela deveria exigir do seu domicílio enquanto moradora. Nunca imaginara que poderia ter mais do que os quarenta e nove metros quadrados da Lundagatan, onde passara a infância e cujo usufruto lhe cabia desde a maioridade graças a seu tutor Holger Palmgren. Então se acomodara no sofá embolotado da sua sala-escritório integrada para refletir.
O apartamento da Lundagatan ficava no fundo de um pátio interno, era exíguo e pouco confortável. Da janela do quarto avistava a parede cega do prédio vizinho. A janela da cozinha dava para os fundos do edifício principal e para uma entrada de porão. Da sala, avistava-se um poste de iluminação e uns galhos de bétula.
A primeira exigência era que seu novo apartamento tivesse uma vista bonita.
Ela gostava de sacadas e sempre invejara seus vizinhos mais favorecidos dos andares superiores do prédio, que passavam os dias quentes de verão na sacada, à sombra de um toldo e com uma cerveja fresca. A segunda exigência era que sua nova moradia tivesse uma sacada.
Como deveria ser esse apartamento? Pensou no apartamento de Mikael Blomkvist — um único cômodo de sessenta e cinco metros quadrados num loft da Bellmansgatan com vista para a prefeitura e Slussen. Sentira-se bem na casa dele. Queria um apartamento agradável, fácil de mobiliar e de manter. Esse foi o terceiro ponto da sua lista de exigências.
Fazia anos que vivia apertada. Na sua cozinha de dez metros quadrados, mal dava para acomodar uma mesinha e duas cadeiras. A sala tinha vinte metros quadrados, o quarto doze. Sua quarta exigência era que a nova moradia fosse espaçosa e provida de vários armários. Queria uma verdadeira sala de trabalho e um quarto grande onde pudesse se esparramar.
Seu atual banheiro era um reduto sem janela, com lajotas de cimento cinza no piso, uma banheira de assento antiga com um revestimento de plástico que continuava encardido mesmo depois de esfregado horas a fio. Ela agora queria cerâmica e uma banheira grande. Queria ter sua própria lavadora de roupas no apartamento e não ter mais que usar a máquina comunitária dos inquilinos num porão úmido. Queria seu banheiro com um cheiro bom, e poder arejá-lo.
Então entrou na internet para procurar imobiliárias. No dia seguinte, levantou cedo e foi até a Nobel, que tinha fama de ser a melhor imobiliária de Estocolmo. Vestia sua calça jeans preta surrada, botinas e uma jaqueta de couro preta. Foi até o balcão e olhou distraidamente para uma mulher loira de uns trinta anos que estava ocupada atualizando o site da imobiliária e carregando fotos de apartamentos. Por fim, um homem rechonchudo de uns quarenta anos, cabelos ruivos e finos, veio atendê-la. Lisbeth perguntou que apartamentos eles tinham para oferecer, e por alguns instantes ele olhou para ela estupefato, antes de adotar um tom paternal e zombeteiro.
—Então senhorita, seus pais sabem que está pretendendo abandonar o ninho?
Lisbeth Salander o fitou em silêncio com seus olhos imensos até que a risadinha dele cessasse.
—Preciso de um apartamento - ela especificou.
Ele deu uma tossidinha e olhou de relance para a colega.
—Entendo. E o que a senhorita tem em mente?
—Quero um apartamento no Söder. Tem que ter uma sacada e vista para a água, pelo menos três dormitórios, e um banheiro com janela e espaço para uma máquina de lavar roupa. E precisaria ter um lugar com chave para eu guardar a minha moto.
A mulher ao computador interrompeu seu trabalho e virou-se para encarar Lisbeth, curiosa.
—Moto? - perguntou o homem de cabelos finos. Calmamente, Lisbeth assentiu com a cabeça.
—Posso perguntar... hã, qual o seu nome?
Lisbeth Salander se apresentou. Fez por sua vez a mesma pergunta e o homem se apresentou como Joakim Persson.
—Bem, quer dizer... um apartamento aqui em Estocolmo custa relativamente caro...
Lisbeth olhou para ele em paciente silêncio. Perguntou que apartamentos ele tinha para oferecer e disse que não se preocupava muito com o preço.
—A senhorita trabalha em que ramo?
Lisbeth refletiu por um instante. Formalmente, ela era sua própria chefe. Na prática, só trabalhara para Dragan Armanskij na Milton Security, mas isso fora de maneira irregular durante o ano anterior, e nos últimos três meses não assumira nenhuma missão.
—No momento, não estou fazendo nada em especial - respondeu com franqueza.
—Entendo... estudante, imagino.
—Não, não sou estudante.
Joakim Persson viera até o lado de cá do balcão e, delicadamente, pusera um braço em volta dos ombros de Lisbeth. Deu uma risadinha enquanto a conduzia com gentileza até a porta.
—Pois é, senhorita, será muito bem-vinda daqui a alguns anos, mas terá que trazer um pouco mais do que o dinheiro do seu cofrinho. Aqui a sua mesada não chega a ser suficiente, sabe. - Deu-lhe um beliscão paternal na bochecha. - Mas não hesite em nos procurar, vamos tentar achar algo simpático para a senhorita.
Lisbeth Salander ficou plantada na calçada em frente à imobiliária Nobel durante uns bons minutos. Perguntava-se o que Joakim Persson iria achar se ela jogasse um coquetel Molotov na vitrine. Então, voltou para casa e ligou o Powerbook.
Levou dez minutos para piratear a rede interna da Nobel graças aos códigos de acesso que ela observara distraidamente quando a mulher de trás do balcão se conectara para baixar as fotos. Levou mais três minutos para perceber que o computador da mulher era também o servidor da empresa - será possível ser tão burro? -- e outros três para ter acesso aos catorze computadores que compunham a rede. Em pouco mais de duas horas, esmiuçou a contabilidade de Joakim Persson e constatou que ele sonegara ao fisco perto de setecentos e cinquenta mil coroas nos últimos dois anos.
Baixou todos os arquivos indispensáveis e os reuniu num pacote coerente, que enviou por e-mail para o Tesouro Público usando o endereço anônimo de um fornecedor de acesso americano. Feito isso, expulsou Joakim Persson do pensamento.
Dedicou o restante do dia a percorrer as ofertas de apartamentos interessantes da Imobiliária Nobel. O imóvel mais caro era um pequeno castelo próximo a Mariefred, onde ela não tinha a menor vontade de se instalar. Só para perturbar, escolheu o segundo imóvel mais caro entre as ofertas da Nobel, um apartamento grandioso na Fiskaregatan, perto de Mosebacke Torg.
Passou um bom tempo examinando as fotos e estudando o mapa da cidade. Por fim, concluiu que o apartamento da Fiskaregatan preenchia perfeitamente todas as exigências de sua lista. O antigo proprietário era um diretor da ABB que saíra de cena depois de conceder a si mesmo um sensacional e criticadíssimo pacote de demissão de um bilhão de coroas.
À noite, pegou o telefone e ligou para Jeremy MacMillan, um dos sócios do escritório de advocacia MacMillan & Marks em Gibraltar. Já tivera assuntos a tratar com MacMillan. Fora ele quem, mediante uma generosa remuneração, criara para ela um certo número de empresas de fachada. Essas empresas eram titulares das contas bancárias que geriam a fortuna que ela surrupiara do financista Hans-Erik Wennerström no ano anterior.
Tornou a solicitar os serviços de MacMillan. Desta vez, pediu que ele atuasse em nome de sua empresa Wasp Enterprises e entabulasse negociações com a Imobiliária Nobel no intuito de adquirir o gracioso apartamento da Fiskaregatan, próximo a Mosebacke Torg. A transação durou quatro dias, e a fatura final representava uma quantia que a fez erguer uma sobrancelha. Mais cinco por cento de comissão para MacMillan. Antes do final da semana, ela já tinha feito a mudança de duas caixas de roupas, roupa de cama, um colchão e alguns poucos utensílios de cozinha. Então habitara — ou pelo menos dormira num colchão — o apartamento por três semanas, durante as quais tratara de procurar clínicas de cirurgia estética, resolver algumas pendências administrativas (entre elas, uma conversa noturna com um certo Dr. Nils Bjurman) e pagar antecipadamente algumas despesas fixas, condomínio, energia elétrica etc.
Depois disso, comprara a passagem para ir até a clínica na Itália. Quando, uma vez efetuada a cirurgia, tivera alta da clínica, hospedara-se num hotel em Roma a fim de pensar sobre o que iria fazer. Deveria voltar à Suécia e começar a organizar sua vida, mas, por diversos motivos, só de pensar em Estocolmo lhe dava náuseas.
Não tinha uma profissão de fato. A impressão é de que não havia futuro para ela na Milton Security. Não por culpa de Dragan Armanskij. Ele gostaria que ela integrasse o quadro de funcionários fixos e se tornasse um elemento importante dentro da empresa, mas, aos vinte e cinco anos, ela ainda não possuía nenhuma formação. Não queria chegar aos cinquenta anos para descobrir que ainda passava a vida investigando delinquentes do mundo empresarial. Aquilo era um passatempo divertido, não a vocação de uma vida.
Um dos motivos de sua resistência a voltar para Estocolmo atendia pelo nome de Mikael Blomkvist. Em Estocolmo, ela corria seriamente o risco de topar com aquele Maldito Super-Blomkvist, o que no momento era uma das últimas coisas que ela queria. Ele a machucara. Tinha a honestidade de reconhecer que ele não tivera essa intenção. Só podia culpar a si mesma por ter se apaixonado por ele. A mera palavra “apaixonado” era uma contradição, tratando-se dessa Maldita Babaca da Lisbeth Salander, um metro e cinquenta e uma aparência física que necessariamente suscitava comentários, sem esquecer uma bagagem social que a transformava em atração onde quer que aparecesse.
Mikael Blomkvist era um notório mulherengo. Ela representava, quando muito, uma diversão agradável aceita com compaixão num momento em que ele tinha precisado dela e não achara nada melhor, mas ele passaria rapidamente para outra cama com uma companhia muito mais interessante. Ela não tinha a menor chance nessa área e amaldiçoava a si mesma por ter baixado a guarda e deixado ele se aproximar. Como pudera imaginar algo diferente?
Quando se refizera, cortara qualquer contato com ele. Tinha sido doloroso, mas conseguira se blindar. A última vez que o vira, fora na estação de metrô Gamla Stan - ela estava na plataforma e ele, num trem em direção ao centro. Ficara olhando para ele durante um minuto e então resolvera que não nutria nem um átimo de sentimento por ele, pois isso significaria sangrar até morrer. Vá se danar! Ele a avistara no exato momento em que as portas se fechavam e fixara os olhos nela antes que ela desse meia-volta e fosse embora enquanto o metrô se punha em movimento.
Ela não entendia por que ele teimava em querer manter contato com ela, em mandar e-mails, como se ela fosse para ele um maldito projeto social. Enfurecia-se ao constatar que ele aparentemente não se dava conta de que a cada e-mail que mandava, e que ela apagava sem ler, era como se seu coração se despedaçasse.
Não, Estocolmo não a atraía nem um pouco. Tirando o dono da Milton Security, alguns antigos parceiros de cama e as meninas do ex-grupo de rock Evil Fingers, com quem mantinha uma amizade superficial e tomava uma cerveja no Moulin uma vez por mês, não conhecia praticamente ninguém na sua cidade natal.
A única pessoa por quem nutria um respeito desconfortável era Dragan Armanskij. Achava difícil definir seu sentimento por ele. Sempre se sentira vagamente confusa por experimentar essa atração um tanto incômoda. Se ele não fosse casado, se fosse um pouco mais moço e um pouco menos conservador no seu modo de encarar a vida, ela poderia ter cogitado chegar mais perto para ver.
Por fim, pegara a agenda e a abrira na parte do atlas. Nunca tinha ido para a Austrália nem para a África. Tinha visto as pirâmides e Angkor Vat em fotos, mas nunca ao vivo. Nunca andara no Star Ferry entre Kowloon e Victoria em Hong Kong, nunca praticara mergulho nas Antilhas, nunca fora a uma praia da Tailândia. Com exceção de algumas viagens rápidas de trabalho para os países bálticos e países nórdicos e, evidentemente, Zurique e Londres, nunca na vida tinha saído da Suécia. Na verdade, raras vezes saíra de Estocolmo.
Não tivera condições para isso.
No hotel de Roma, ficou na janela contemplando a via Garibaldi. Roma era uma cidade que lembrava um monte de ruínas. Ela então se decidiu, vestiu a jaqueta e foi até a recepção perguntar se havia uma agência de viagens ali perto. Na agência, comprou uma passagem de ida para Tel-Aviv e, nos dias seguintes, passeou pela antiga Jerusalém, contemplando a mesquita Al-Aqsa e o Muro das Lamentações. Desconfiada, observou em cada esquina os soldados armados até os dentes, em seguida voou para Bangcoc e prosseguiu assim até o final do ano.
Só lhe restava uma coisa importante a fazer. Foi até Gibraltar, para ver quem era o homem a quem confiara a gestão de seu dinheiro e conferir se ele estava fazendo o seu trabalho direito.
Girar a chave do apartamento que agora lhe pertencia foi uma sensação esquisita.
Largou a sacola de compras e a bolsa de viagem no hall de entrada e teclou rapidamente o código de quatro algarismos que desligava o alarme eletrônico. Tirou a roupa molhada e deixou-a cair no chão. Completamente nua, deu uma voltinha na cozinha, ligou a geladeira e guardou as compras antes de ir para o banheiro. Passou os dez minutos seguintes debaixo do chuveiro. Comeu uma maçã em fatias e uma Billys Pan Pizza, que aqueceu no micro-ondas. Abriu uma das caixas da mudança e achou um travesseiro, lençóis e um cobertor com um cheiro suspeito, depois de ter passado um ano encaixotado. Arrumou a cama num colchão, no chão do quarto contíguo à cozinha.
Levou dez segundos para pegar no sono depois que pôs a cabeça no travesseiro, dormiu quase doze horas seguidas e acordou pouco antes da meia-noite. Levantou-se, fez café e se enrolou num cobertor. Pôs o travesseiro diante de uma janela e se instalou com um cigarro para ficar olhando o parque de Djurgârden e a baía de Saltsjön. As luzes a fascinavam. No escuro, refletiu sobre sua vida.
No dia seguinte, Lisbeth Salander teve uma agenda cheia. Fechou a porta de seu apartamento às sete horas. Antes de descer, abriu uma janela de ventilação na escada e pendurou uma cópia da chave com um fino fio de cobre que amarrou atrás da calha. Escaldada por experiências anteriores aprendera como era útil sempre ter à mão uma cópia da chave.
Fazia um frio de rachar. Ela vestia uma velha calça jeans gasta com um rasgo debaixo do bolso de trás, que deixava ver sua calcinha azul. Enfiara uma camiseta e uma blusa de gola alta cuja costura estava soltando no pescoço. Tirara da caixa sua velha jaqueta de couro surrado, com rebites nos ombros. Concluiu que teria sido melhor deixá-la num costureiro para ele arrumar o forro rasgado e quase inexistente dos bolsos. Estava com meias grossas e sapatos fortes. No geral, sentia calor.
Pegou a Sankt Paulsgatan para ir até o bairro de Zinkensdamm e ao seu antigo endereço na Lundagatan. Primeiro, conferiu se a sua Kawasaki ainda estava em seu lugar no porão. Para abrir a porta do antigo apartamento, precisou empurrar uma pilha imensa de folhetos publicitários.
Antes de sair da Suécia, um ano antes, hesitara sobre o que fazer com aquele apartamento, e a solução mais simples fora o sistema de débito automático para pagar todas as despesas fixas. Ainda restavam alguns móveis, juntados a muito custo em diversos caminhões de lixo seco, canecos rachados, dois computadores velhos e uma considerável papelada. Mas nada de valor.
Pegou na cozinha um saco de lixo preto e levou cinco minutos separando a correspondência da publicidade. A maior parte da pilha foi direto para o lixo. Tinha recebido cartas pessoais do gênero extrato bancário, declaração de rendimentos da Milton Security para o Imposto de Renda ou publicidade disfarçada. Uma vantagem da tutela é que ela nunca precisara tratar da papelada dos impostos - que brilhava pela ausência. Afora isso, durante aquele ano inteiro só recebera três cartas em seu nome.
A primeira era de uma advogada Greta Molander, que tinha sido a administradora ad hoc legal de sua mãe. A carta comunicava sucintamente que o inventário de sua mãe estava concluído e que Lisbeth Salander e sua irmã Camilla Salander eram herdeiras de 9312 coroas cada uma. Essa quantia fora depositada na conta da Srta. Salander. Ela poderia, por gentileza, confirmar o recebimento? Lisbeth guardou a carta no bolso interno da jaqueta.
A segunda carta era da Sra. Mikaelsson, diretora da casa de saúde de Appelviken, gentilmente comunicando que ainda estava lá uma caixa com os pertences de sua mãe — ela poderia ter a delicadeza de entrar em contato com Appelviken para dar instruções a respeito? A diretora concluía informando que se não tivessem notícias de Lisbeth ou de sua irmã (cujo endereço desconheciam) antes do final do ano, jogariam fora os pertences. Verificou o cabeçalho da carta, datada do mês de junho, e pegou o celular. Precisou esperar até que lhe passassem a pessoa certa, e então descobriu que a caixa ainda não havia sido jogada fora. Desculpou-se por não ter dado notícias mais cedo e prometeu aparecer no dia seguinte para apanhar as coisas.
A terceira carta pessoal era de Mikael Blomkvist. Ela pensou um pouco, mas concluiu que ler a carta ainda seria muito doído e jogou-a no lixo.
Acomodou numa caixa alguns objetos e quinquilharias que queria guardar e pegou um táxi para a Fiskaregatan. Subiu rapidamente ao apartamento para se maquiar, pôr óculos, uma peruca loira semilonga, e enfiar na bolsa um passaporte norueguês em nome de Irene Nesser. Olhou-se no espelho e constatou que, embora Irene Nesser fosse um pouco parecida com Lisbeth Salander, tratava-se de uma mulher muito diferente.
Depois de almoçar rapidamente uma baguete com queijo brie e um caffè latte no Éden da Götgatan, foi até a autolocadora de Ringvägen, onde Irene Nesser alugou uma Nissan Micra. Então dirigiu-se à Ikea de Kungens Kurva, onde passou três horas percorrendo toda a loja e anotando as referências de que precisava. Tomou decisões bastante rápidas.
Comprou dois estofados cor de areia, cinco poltronas de estrutura flexível, um par de gueridons de bétula envernizados, uma mesa de centro e algumas mesinhas de apoio. Pediu dois armários modulados, duas estantes para livros, um rack para a televisão e uma estante com portas. Completou com um armário de três portas acoplado a um módulo de canto e duas cômodas combinando.
Ficou um bom tempo escolhendo uma cama, para a qual levou também colchão e acessórios. Por precaução, comprou, além disso, uma cama para o quarto de hóspedes. Não esperava de fato ter visitas algum dia, mas já que tinha um quarto de hóspedes não custava mobiliá-lo.
O banheiro do apartamento novo já vinha inteiramente equipado com armários e uma lavadora de segunda mão. Contentou-se em comprar um cesto de roupa barato.
Em compensação, faltavam-lhe móveis de cozinha. Depois de hesitar um pouco, escolheu uma mesa de carvalho maciço com tampo de vidro temperado e quatro cadeiras de cores vivas.
Também precisava de móveis para a sua sala de trabalho e ficou boquiaberta ao ver algumas “estações de trabalho” com arranjos engenhosos para a CPU e o teclado. Porém, balançou a cabeça e pediu uma escrivaninha absolutamente comum de aglomerado, revestida com laminado de faia, curvo e com ângulos arredondados, e um armário do mesmo modelo. Demorou-se escolhendo a cadeira - na qual provavelmente iria passar longas horas - e optou por uma das poltronas giratórias mais caras.
Para terminar, deu uma volta e comprou um estoque considerável de lençóis, fronhas, toalhas, edredons, cobertores, um kit de instalação que incluía talheres de todo tipo, louça e panelas, tábuas de corte, e acrescentou três tapetes grandes, várias luminárias de trabalho e uma boa quantidade de material de escritório sob a forma de arquivos, cesto de papel, caixas organizadoras, entre outros.
Terminada a volta na loja, passou no caixa com sua lista. Pagou com o cartão da Wasp Enterprises e mostrou o passaporte de Irene Nesser para comprovar sua identidade. Também pagou adiantado a entrega e a montagem. O total chegava a pouco mais de noventa mil coroas.
Retornou ao Söder por volta das dezessete horas e ainda teve tempo de dar um pulo rápido na Axelssons Radio-Televisão, onde comprou um televisor de dezoito polegadas e um radiocassete. Entrou numa loja da Hornsgatan pouco antes do fechamento e comprou um aspirador. Na Mariahallen, adquiriu um escovão, sabão, um balde, sabão em pó, escova de dente e um pacote grande de papel higiênico.
Saiu exausta de sua louca jornada de compras. Colocou as últimas aquisições na Nissan Micra alugada, foi até a Hornsgatan e desabou no primeiro andar do café Java. Pegou um jornal da tarde na mesa ao lado e descobriu que o partido socialdemocrata continuava com maioria no governo e que nada de capital importância parecia ter acontecido no país durante sua ausência.
Voltou ao apartamento às oito da noite. Aproveitou que estava escuro, descarregou o carro e levou tudo para o apartamento de V. Kulla. Deixou as compras jogadas no hall de entrada e passou meia hora procurando um lugar numa rua lateral para estacionar o carro alugado. Ao retornar, preparou um banho e ficou uma hora naquele spa em que pelo menos três pessoas poderiam entrar sem se espremer. Por um momento, pensou em Mikael Blomkvist. Até ver a carta, pela manhã, havia meses que não pensava nele. Perguntou-se se ele estaria em casa e se Erika Berger estaria lhe fazendo companhia.
Depois de algum tempo, respirou profundamente, inclinou a cabeça e mergulhou o rosto na água. Colocou as mãos nos seios, beliscou os mamilos com força e prendeu a respiração por vários minutos, até que seus pulmões começassem a doer terrivelmente.
Erika Berger, diretora da Millennium, olhou ostensivamente para o relógio quando Mikael Blomkvist chegou quase quinze minutos atrasado à sacrossanta reunião de planejamento de toda segunda terça-feira do mês, onde se definiam as linhas gerais da programação editorial e se tomavam as decisões de longo prazo.
Mikael desculpou-se pelo atraso e resmungou uma explicação que ninguém ouviu, ou que pelo menos ninguém registrou. Além de Erika, estavam presentes à reunião a assistente de redação Malu Eriksson, o sócio e diretor de arte Christer Malm, a jornalista Monika Nilsson e os freelancers Lottie Karim e Henry Cortez, que trabalhavam na revista em tempo parcial. Todos tinham a obrigação de participar da reunião de terça-feira, cujo item principal da pauta era o planejamento da edição seguinte. Mikael Blomkvist reparou imediatamente na ausência da jovem estagiária sedutora e na presença de um rosto desconhecido, embora fosse raro alguém de fora ser autorizado a participar das reuniões de planejamento da Millennium.
—Quero apresentar a vocês o Dag Svensson - disse Erika Berger. -Vamos comprar um texto dele.
Mikael Blomkvist meneou a cabeça e apertou-lhe a mão. Loiro de olhos azuis, Dag Svensson tinha cabelos bem curtos e uma barba de três dias. Estava em torno dos trinta anos e exalava força e saúde.
—Como todo ano, vamos lançar um ou dois números temáticos - prosseguiu Erika. —Eu queria este assunto para o número de maio. A gráfica já está reservada para 27 de abril. Isso nos dá três meses para produzir os textos.
—E qual é o tema? - perguntou Mikael.
Dag Svensson veio me ver, semana passada, com o esboço de um assunto. Pedi a ele que viesse à reunião. Ele vai poder explicar melhor que eu - disse Erika, voltando-se para Dag.
—Tráfico de mulheres - disse Dag Svensson. —Ou seja, exploração sexual de mulheres. No caso, são principalmente mulheres originárias dos países bálticos e do Leste europeu. Na verdade, estou escrevendo um livro sobre o assunto, por isso entrei em contato com a Erika - já que vocês também têm uma editora.
Todo mundo pareceu achar graça. Até agora, a Millennium Editora só tinha publicado um livro, que vinha a ser o tijolão de Mikael Blomkvist sobre o império financeiro do bilionário Wennerström, lançado um ano antes. O livro estava na sexta edição na Suécia, fora publicado em norueguês, alemão e inglês e estava sendo traduzido para o francês. Aquele sucesso comercial lhes parecia um tanto incompreensível, considerando-se que a história já estava para lá de conhecida e tinha sido contada em inúmeros jornais.
—A nossa produção de livros não é das mais consistentes - disse Mikael, cauteloso.
Dag Svensson esboçou um sorriso.
—Isso eu já entendi. Ainda assim, vocês são uma editora.
—Existem outras maiores - observou Mikael.
—Sem dúvida - disse Erika Berger. —Mas faz um ano que estamos discutindo se partimos de fato para a edição de livros. Levantamos o assunto em duas reuniões do conselho administrativo, e todos se mostraram muito receptivos. A idéia é uma política editorial limitada a três, quatro livros por ano, que seriam apenas, grosso modo, reportagens sobre diferentes temas. Ou seja, típicos produtos jornalísticos. O livro de Dag se inscreve perfeitamente dentro dessa óptica.
—Tráfico de mulheres - disse Mikael Blomkvist. - Fale mais a respeito.
—Estou há quatro anos trabalhando no assunto. De certa forma, fui levado a ele pela minha companheira. Ela se chama Mia Bergman, é criminologista e a pesquisa dela se encaixa nesta área. Ela trabalhou no Conselho de Prevenção Criminal e pesquisou a legislação relacionada ao comércio sexual.
—Conheço a Mia Bergman - interveio Malu Eriksson. —Fiz uma entrevista com ela, dois anos atrás, quando ela publicou um relatório comparativo sobre o tratamento dado a homens e mulheres num tribunal.
Dag Svensson meneou a cabeça e sorriu.
—É verdade, esse relatório foi muito comentado - disse. —Ela vem pesquisando sobre o tráfico de seres humanos de uns cinco, seis anos para cá. Foi assim que a gente se conheceu. Eu estava investigando o comércio do sexo via internet e me aconselharam a conversar com ela. Resumindo, começamos a trabalhar juntos, eu corno jornalista e ela como pesquisadora, no meio da história viramos um casal e já faz um ano que moramos juntos. Ela está fazendo doutorado, vai defender a tese na primavera. O tema é o tráfico de mulheres.
—Quer dizer que ela escreve a tese e você...?
—Eu escrevo a versão grande público da tese, acrescentando meu trabalho pessoal. E também uma versão resumida em forma de artigo, que foi o que passei para a Erika.
—Certo, vocês formam uma equipe. E qual é a história?
—Grosso modo... temos um governo que aprovou uma lei rigorosíssima para o comércio sexual, temos uma polícia para cuidar da aplicação dessa lei e tribunais para julgar criminosos sexuais - qualificamos os clientes como criminosos sexuais, já que virou crime pagar por serviços sexuais -, temos uma mídia que escreve textos moralizantes e indignados sobre o assunto, e tutti quanti. Mas, paralelamente, a Suécia é um dos maiores consumidores per capita de prostitutas originárias da Rússia e dos países bálticos.
—E você tem como provar?
—Não é nenhum segredo. O assunto, inclusive, está longe de ser novidade. Agora, a novidade é que nós interrogamos uma dúzia de Lilya 4-ever. São, na maioria, garotas entre quinze e vinte anos, estagnadas na miséria social dos países do Leste europeu, trazidas para cá com promessas variadas de emprego e que no fim das contas caem nas garras de uma máfia do sexo absolutamente inescrupulosa. Algumas experiências dessas garotas fazem do Lilya 4-ever um entretenimento familiar. E não digo isso desmerecendo o filme de Moodysson, que é excelente. O que eu quero dizer é que essas garotas viveram coisas que simplesmente não dá para descrever num filme.
—Certo.
—Este, por assim dizer, é o cerne da tese da Mia. Mas não do meu livro. Um silêncio instalou-se em volta da mesa.
—Enquanto Mia entrevistava as garotas, eu, por minha vez, estabeleci uma cartografia dos fornecedores e da clientela.
Mikael nunca estivera com Dag Svensson antes, mas de repente sentiu que ele era exatamente o tipo de jornalista que ele apreciava, desses que sabiam se ater ao essencial. Para Mikael, a regra de ouro do jornalismo era que sempre há um responsável. O malvado.
—E você descobriu fatos interessantes?
—Sim, tenho condições de provar que um funcionário do Ministério da Justiça, que trabalhou na elaboração da lei do comércio sexual, explorou no mínimo duas garotas que chegaram aqui através da máfia do sexo. Uma delas tinha quinze anos.
—Uau!
—Estou nessa história há três anos. O livro apresenta estudos com exemplos de clientes sexuais. Tenho pelo menos três tiras, sendo que um deles trabalha na Säpo e outro na Polícia de Costumes. Tenho cinco advogados, um procurador e um juiz. Peguei também três jornalistas, sendo que um deles escreveu vários textos sobre comércio sexual. Na vida privada, ele se entrega a delírios de estupro com uma prostituta adolescente de Tallinn... e nesse caso não se trata exatamente de preferências sexuais partilhadas. Pretendo divulgar os nomes. A minha documentação é superconsistente.
Mikael Blomkvist deu um assobio. Então, parou de sorrir.
—Como voltei a ser o editor responsável pela publicação, faço questão de examinar esses documentos com lente de aumento - disse. —A última vez que descuidei na conferência das minhas fontes, acabei pegando três meses de cadeia.
—Se vocês aceitarem publicar minha história ponho à disposição os documentos que quiser. Mas só vendo o assunto para a Millennium com uma condição.
—Dag quer que a gente também publique o livro - disse Erika erger.
—De fato, quero que o livro seja publicado. Quero que ele caia feito uma bomba, e no momento a Millennium é a revista com maior credibilidade e mais impertinente da cidade. Dificilmente outra editora ousaria publicar um livro como esse.
—Ou seja, sem livro não há artigo - resumiu Mikael.
—Por mim, acho que faz sentido - disse Malu Eriksson.
—Artigo e livro são duas coisas diferentes. No caso do artigo na revista, Mikael é o responsável pela publicação. No que diz respeito ao livro, o autor é que é responsável.
—Eu sei - disse Dag Svensson. —Isso não me preocupa. No exato momento da publicação do livro, Mia vai denunciar todos os caras que eu cito.
—Vai ser um auê - disse Henry Cortez.
—Isso é só metade da história - disse Dag Svensson. —Também investiguei as redes que ganham dinheiro com esse comércio. Porque se trata realmente de crime organizado.
—E quem você descobriu?
—Aí é que a coisa fica especialmente trágica. A máfia do sexo não passa de um bando sórdido de pés-rapados. Não sei bem o que eu esperava quando comecei a pesquisa, mas de algum modo fomos levados a pensar - ou pelo menos eu fui levado a pensar - que essa “máfia” era um bando de gente chique da elite social, que circula em carros de luxo. Imagino que alguns filmes americanos que abordam o tema contribuíram para eu formar essa imagem. O seu trabalho sobre o Wennerstróm - Dag lançou um olhar para Mikael - mostrou que esse pode ser o caso. Mas o Wennerstróm era uma das exceções. Eu me deparei foi com um amontoado de cretinos sádicos e brutais que mal sabem ler e escrever, e são uns perfeitos idiotas no que se refere a organização e estratégia. Esses caras trabalham em associação com grupos de motoqueiros e outros círculos um pouco mais estruturados, mas, no geral, o comércio sexual é tocado por um bando de gente burra.
—Isso transparece claramente no seu artigo - disse Erika Berger. —Nós temos leis, um corpo policial e uma justiça financiados por milhões de coroas saídos do bolso do contribuinte, que supostamente deveriam cuidar dessa delinquência lucrativa, e não conseguem prender um bando de idiotas.
—O inteiro comércio sexual não passa de uma grande violação dos direitos humanos, e as garotas envolvidas estão num nível tão baixo da escala social que juridicamente não apresentam o menor interesse. Elas não votam. Tirando o vocabulário necessário para fechar um negócio, elas mal falam sueco. Dos crimes ligados ao comércio sexual, 99,9% nunca foram registrados na polícia e muito menos chegam aos tribunais. É provavelmente o maior iceberg na paisagem da criminalidade sueca. Imaginem se os assaltos a mão armada fossem tratados com o mesmo descaso, e só uma ínfima parte fosse denunciada. Minha conclusão é que essa atividade não continuaria nem mais um dia sequer não fosse o fato de que a Justiça simplesmente não quer pôr um fim a ela. Os abusos sexuais contra adolescentes de Tallinn e Riga simplesmente não são uma questão prioritária. Uma puta é uma puta. Faz parte do sistema.
—É... triste realidade - disse Monika Nilsson.
—Então, o que vocês acham? - perguntou Erika Berger.
—A idéia me atrai - disse Mikael Blomkvist. —Vamos nos arriscar, mas esse era o objetivo quando lançamos a Millennium anos atrás.
—É por isso que eu ainda trabalho aqui. O gerente é capaz de dar um salto mortal de vez em quando - disse Monika Nilsson.
Todo mundo riu, menos Mikael.
—É, o Mikael foi o único bobo o suficiente para aceitar ser o responsável pela publicação - disse Erika Berger. —Vamos pegar esse assunto para maio. Com o livro saindo na esteira.
—O livro está pronto? - perguntou Mikael.
—Não. Estou com a sinopse toda, mas ainda falta redigir metade. Se vocês concordarem em publicar e me derem um adiantamento, posso trabalhar nele em tempo integral. A pesquisa está praticamente concluída. Só falta completar alguns anexos, na verdade confirmações daquilo que eu já sei - e ainda tenho que me encontrar com os clientes que vou denunciar.
—Vamos fazer o que fizemos com o livro do Wennerström. Nunca entendi por que os editores costumam exigir dezoito meses para produzir um livro de umas poucas centenas de páginas. Precisamos de uma semana para a diagramação - Christer Malm assentiu com a cabeça - e duas para a impressão. Fazemos as revisões em março e abril e um resumo de quinze páginas, que vão ser as últimas. Precisamos do manuscrito fechado em 15 de abril, para dar tempo de checar todas as fontes.
—Como funciona o contrato e essas coisas todas? Erika Berger franziu o cenho:
—Nunca redigi um contrato de edição, vou ter que ver isso com o nosso advogado. Mas proponho empregar você por quatro meses, de fevereiro a maio, até você terminar o projeto. E saiba que nossos salários não são mirabolantes.
—Para mim está bem. Preciso de um salário-base para poder me concentrar no livro em tempo integral.
—Fora isso, em regra, meio a meio sobre as vendas do livro, uma vez deduzidas as despesas. O que você acha?
—Parece perfeito - disse Dag Svensson.
—Divisão de tarefas - disse Erika Berger. —Malu, quero você de assistente editorial deste número temático. Vai ser a sua tarefa a partir do mês que vem; você vai trabalhar com Dag Svensson na redação do manuscrito. Lottie, isso quer dizer que você vai assumir temporariamente a assistência de redação, de março a maio. Vai passar a trabalhar em período integral, e Malu ou Mikael vão lhe dar uma mão dependendo da disponibilidade deles.
Malu Eriksson assentiu com a cabeça.
—Mikael, faço questão que você seja o editor desse livro. - Erika olhou para Dag Svensson. —Mikael não gosta de admitir, mas ele escreve muito bem e, além disso, tem experiência em pesquisa. Ele vai pôr cada palavra do seu livro num microscópio. Para mim, é uma honra você querer publicar esse livro com a gente, mas saiba que na Millennium temos problemas bem específicos. Temos alguns desafetos que adorariam nos ver enfiar os pés pelas mãos. Quando a gente se atreve a publicar alguma coisa, ela tem que estar cem por cento irretocável. Não podemos nos permitir nada menos que isso.
—Nem eu gostaria que fosse diferente.
—Ótimo. Mas você vai aguentar uma pessoa em cima de você, enchendo você de críticas a primavera inteira?
Dag Svensson riu e olhou para Mikael.
—Vai, pode começar.
Mikael meneou a cabeça. Erika prosseguiu:
—Se vamos fazer um número temático, precisamos de mais artigos. Mikael, quero que você escreva algo sobre as finanças do comércio sexual. Quanto ele consome anualmente? Quem acumula os lucros e onde vai parar o dinheiro? Temos como provar que parte dele se encontra nos cofres do Estado? Monika, quero que você trabalhe no abuso sexual em geral. Contate o SOS-Mulheres, pesquisadores, médicos e autoridades. Monika e Mikael, portanto, mais o Dag, assinam os textos principais. Henry, quero uma entrevista com a companheira do Dag, Mia Bergman. Dag, logicamente, não pode fazer isso. Um perfil: quem é ela, os temas que ela pesquisa e quais são suas conclusões. Também gostaria que você se detivesse em alguns casos esmiuçados em investigações policiais. Christer: fotos. Não sei como vamos poder ilustrar isso. Pense no assunto.
—Pois esse tema é dos mais fáceis de ilustrar. Tem muita força. Não tem problema.
—Se me permitem acrescentar uma coisa - disse Dag Svensson. —Alguns tiras fazem realmente um bom trabalho. Talvez valesse a pena entrevistar um deles.
—Você tem nomes? - perguntou Henry Cortez.
—Tenho até os telefones - respondeu Dag Svensson.
—Perfeito - disse Erika Berger. —O tema do número de maio será, portanto, o comércio sexual. Com ele, teria que ficar claro que o tráfico de mulheres é um legítimo atentado aos direitos humanos e que os criminosos que o organizam têm de ser presos e tratados como qualquer criminoso de guerra ou de esquadrão da morte. Bem, crianças, ao trabalho!