28 - QUARTA-FEIRA 6 DE ABRIL – QUINTA-FEIRA 7 DE ABRIL


Bublanski se encontrou com Sonja Modig para tomarem um café com um sanduíche no Wayne’s da Vasagatan lá pelas oito da noite. Ela nunca tinha visto seu chefe tão abatido. Ele a inteirou de tudo que acontecera naquele dia. Ela permaneceu muito tempo calada. Por fim, estendeu a mão e colocou-a no pulso de Bublanski. Era a primeira vez que ela o tocava e não havia outra intenção em seu gesto que não a amizade. Ele sorriu, triste, e da mesma forma amistosa deu uns tapinhas na mão dela.

—Talvez seja hora de eu me aposentar - disse ele. Ela sorriu com indulgência.

—Essa investigação está indo para o brejo - ele prosseguiu. —Aliás, já foi. Contei ao Ekström tudo o que aconteceu hoje e a única instrução que ele me deu foi “Faça o melhor possível”. Ele parece incapaz de qualquer tipo de ação.

—Não quero falar mal dos meus superiores, mas no que me diz respeito o Ekström pode ir plantar coquinho.

Bublanski assentiu com a cabeça.

—Você está oficialmente de volta à investigação. Imagino que ele não vá lhe pedir desculpas.

Ela deu de ombros.

—Neste momento, tenho a impressão de que a investigação se limita a mim e a você — disse Bublanski. - O Faste saiu às pressas hoje de manhã, louco de raiva, e deixou o celular desligado o dia inteiro. Se ele não aparecer até amanhã, vou ser obrigado a emitir um alerta de busca.

—Por mim, o Faste pode ficar de fora. O que vai acontecer com o Niklas Eriksson?

—Nada. Eu queria que ele fosse indiciado, mas o Ekström não se atreveu. Mandamos o cara embora e fui ter uma conversinha com o Dragan Armanskij. Encerramos a colaboração da Milton, o que significa, infelizmente, que também perdemos o Steve Bohman. Pena. É um policial competente.

—E o Armanskij, como reagiu?

—Ficou arrasado. O interessante é que...

—É que...?

—O Armanskij me contou que a Lisbeth Salander nunca gostou do Eriksson. Lembrou que há alguns anos ela o aconselhou a despedir o cara. Disse que ele era um canalha, mas não quis explicar por quê. O Armanskij, obviamente, não seguiu o conselho dela.

—Humm.

—O Curt ainda está em Södertálje. Estão para efetuar uma busca na casa do Carl-Magnus Lundin. O Jerker está desenterrando o ex-presidiário Kenneth Gustafsson, vulgo Vagabundo, para os lados de Nykvarn. E pouco antes de eu chegar aqui ligou para dizer que também tem um corpo no segundo túmulo. Pela roupa, é uma mulher. Parece que já faz um tempinho que está ali.

—Um cemitério dentro da mata. Jan, tenho a impressão que essa história é muito mais monstruosa do que a gente pensava. A Salander não está sendo acusada dos assassinatos de Nykvarn, está?

Bublanski sorriu, pela primeira vez em muitas horas.

—Não. Dessa ela vai se livrar. Mesmo assim, está armada e atirou no Lundin.

—Chama a atenção ela ter atirado no pé e não na cabeça. No caso do Magge Lundin, talvez não faça muita diferença, mas a gente sempre achou que o assassino de Enskede era um excelente atirador.

- Sonja... Isso tudo é um completo absurdo. O Magge Lundin e o Benny Nieminen são dois grandalhões violentos com uma ficha criminal quilométrica. Lundin ganhou um pouco de peso, é verdade, e não está no melhor de sua forma, mas é perigoso. E o Nieminen é um patife brutal que costuma assustar até os fortões. Não consigo acreditar que uma magrelinha como a Salander tenha conseguido quebrar a cara deles desse jeito. O Lundin está seriamente ferido.

—Humm.

—Não estou dizendo que ele não merece. Mas não entendo como ela conseguiu fazer isso.

—A gente pergunta quando ela for pega. Mas existe um consenso de que ela é violenta.

—Seja como for, não consigo sequer imaginar o que aconteceu por lá. Estamos falando de dois sujeitos que o Curt Bolinder teria pensado duas vezes em enfrentar sozinho. E o Curt Bolinder não é particularmente um sujeito doce.

—A questão é saber se ela tinha algum motivo para atacar o Lundin e o Nieminen.

—Uma moça sozinha com dois psicopatas, dois cretinos puros-sangues, numa casa de campo deserta. Até posso imaginar os motivos - disse Bublanski.

—Será que ela teve a ajuda de alguém? Será que havia mais gente no local?

—Nada no exame técnico indica isso. A Salander entrou na casa. Havia uma xícara de café em cima da mesa. E, além disso, temos Anna Viktoria Hansson, que, do alto dos seus setenta e dois anos, dá uma de zeladora e repara em todo mundo que transita por ali. Ela jura que só passaram a Salander e os dois caras de Svavelsjõ.

—Como é que ela entrou na casa?

—Com uma chave. Acho que ela pegou no apartamento do Bjurman. Lembre...

—...dos lacres rompidos. É. Essa mocinha não para.

Sonja Modig tamborilou os dedos na mesa por alguns segundos, depois foi por outra direção.

—Deu para confirmar que o Lundin participou do sequestro da Miriam Wu?

Bublanski assentiu com a cabeça.

—Pedimos para o Paolo Roberto dar uma olhada nas fotos de uns cinquenta motoqueiros. Ele identificou o Lundin imediatamente, sem pensar duas vezes. Diz que é o mesmo homem que ele viu no armazém de Nykvarn.

—E o Mikael Blomkvist?

—Não consegui falar com ele. Ele não atende o celular.

—Bem. Mas o Lundin bate com a descrição do agressor da Lundagatan. Podemos então definir que o mc Svavelsjõ vem perseguindo a Salander já há algum tempo. Por quê?

Bublanski afastou os braços.

—Será que a Salander estava na casa de campo de Bjurman esse tempo todo em que vem sendo procurada? - quis saber Sonja Modig.

—Também pensei nessa hipótese. Mas o Jerker acha que não. A casa não parecia ter sido ocupada recentemente, e temos essa testemunha afirmando que ela só apareceu na aldeia hoje.

—Por que ela foi até lá? Custo a acreditar que tivesse um encontro marcado com o Lundin.

—Tem razão, é pouco provável. Ela deve ter ido lá buscar alguma coisa. E só encontraram uns arquivos que parecem ser uma investigação particular do Bjurman sobre a Lisbeth Salander. Uma pilha de documentos do Serviço Social e da Comissão de Tutelas referentes a Salander, e também antigas anotações sobre a escolaridade dela. Mas faltam alguns arquivos. Eles estão numerados. Temos o 1, o 4 e o 5.

—Faltam o 2 e o 3.

—E talvez outros depois do 5.

—O que leva a uma pergunta: por que a Salander iria procurar informações sobre si mesma?

—Vejo dois motivos. Ou está querendo esconder algo que ela sabe que Bjurman registrou a seu respeito, ou está tentando descobrir alguma coisa. Mas fica também outra pergunta.

—Ah, é?

—Por que o Bjurman fez uma pesquisa tão ampla sobre ela e depois escondeu tudo na casa de campo? Aparentemente, a Salander descobriu os arquivos no sótão. Ele era o tutor dela, tinha por missão cuidar de suas finanças e coisas do tipo. Mas os arquivos dão a impressão de que ele estava era obcecado pela vida dela a ponto de querer esmiuçar tudo.

—O Bjurman está cada vez mais parecendo uma figurinha meio suspeita. Pensei nisso hoje enquanto analisava a lista dos clientes sexuais na Millennium. Estava quase esperando topar com o nome dele.

—Bem pensado. Afinal, existe aquela coleção de sexo explícito no computador dele. Merece atenção. Descobriu alguma coisa?

—Não sei bem. O Mikael Blomkvist está se encontrando com todos os caras da lista, mas essa moça da Millennium, a Malu Eriksson, diz que ele não descobriu nada de interessante. Jan... preciso te dizer uma coisa.

—O quê?

—Não acho que foi a Salander que fez tudo isso. Quero dizer, Enskede e Odenplan. No início, eu estava convencida da culpa dela, como todo mundo, mas não acredito mais nisso. E não sei nem explicar por quê.

Bublanski meneou a cabeça. E percebeu que concordava com Sonja Modig.

O gigante loiro andava para lá e para cá na casa de Magge Lundin em Svavelsjõ, preocupado. Parou em frente à janela da cozinha e espiou a estrada. Àquela hora, eles já deviam ter voltado. Sentiu a preocupação corroer-lhe as tripas. Tinha acontecido alguma coisa.

Além disso, não gostava de ficar sozinho na casa de Magge Lundin. Não conhecia a casa. Havia um sótão do lado do quarto dele, no piso superior, e a casa estalava o tempo todo de forma desagradável. Tentou se livrar daquele mal-estar. O gigante loiro sabia que era bobagem, mas nunca tinha gostado de ficar sozinho. Não sentia nenhum medo dos seres humanos de carne e osso, mas achava que casas de campo vazias tinham algo tremendamente inquietante. Os vários ruídos atiçavam sua imaginação. Não conseguia se livrar da sensação de que algo obscuro e maligno o observava pela fresta de uma porta. Às vezes tinha até a impressão de ouvir uma respiração.

Quando era mais jovem, caçoavam dele por causa de seu medo do escuro. Ou melhor, tinham caçoado até ele dar uma surra nos colegas e, eventualmente, em pessoas mais velhas que sentiam prazer nesse tipo de diversão. Ele era bom de surra.

Mas era um problema. Ele tinha horror a escuro e solidão. Odiava os seres que povoavam o escuro e a solidão. Queria que Lundin voltasse já. A presença de Lundin restabeleceria o equilíbrio, mesmo que eles não conversassem, mesmo que não estivessem no mesmo cômodo. Ele escutaria ruídos de verdade, movimentos, e saberia que havia seres humanos por perto.

Tentou se livrar do mal-estar escutando uns discos. Não se aguentando no lugar, procurou alguma coisa para ler nas prateleiras de Lundin. Infelizmente, a veia intelectual de Lundin deixava muito a desejar e ele teve de se contentar com uma coleção de revistas antigas sobre motos, revistas masculinas e romances policiais maltratados do tipo que nunca o fascinara. Passou algum tempo limpando e azeitando a arma de fogo que guardava na sacola, o que o acalmou por uns momentos.

Por fim, incapaz de continuar na casa, saiu para dar uma voltinha no pátio e tomar ar. Manteve-se longe da vista dos vizinhos, mas parou de modo a enxergar janelas iluminadas onde havia gente. Ficando totalmente imóvel, podia ouvir uma música ao longe.

Quando quis entrar de novo na casa de Lundin, seu mal-estar tornou-se aterrador e ele ficou um tempão nos degraus da frente, coração disparado, até conseguir fazer um esforço e abrir resolutamente a porta.

As sete horas, desceu até a sala e ligou a tevê para assistir ao noticiário da TV4. Atônito, escutou as manchetes e, depois, a descrição dos incidentes na casa de campo de Stallarholmen. Era o tema central do noticiário.

Galgou os degraus da escada de quatro em quatro até o quarto de hóspedes, e enfiou suas coisas numa sacola. Dois minutos depois, saiu pela porta e arrancou com o Volvo branco num estardalhaço.

Saiu bem a tempo. A um quilômetro apenas de Svavelsjõ, cruzou com dois carros de polícia, luzes giratórias azuis ligadas, entrando na aldeia.

Depois de muito esforço, Mikael Blomkvist conseguiu se encontrar com Holger Palmgren por volta das dezoito horas de quarta-feira. Muito esforço porque precisou convencer os funcionários a que o deixassem entrar. Insistiu com tamanha energia que uma enfermeira ligou para um tal de Dr. A. Sivarnandan, que aparentemente morava bem perto da casa de saúde. Sivarnandan chegou depois de quinze minutos e assumiu o problema do jornalista persistente. De início, foi categórico. Nas duas últimas semanas, vários jornalistas tinham conseguido localizar Holger Palmgren e apelado para métodos quase desesperados a fim de obter alguma declaração. Holger Palmgren, por sua vez, teimara em rechaçar todas essas visitas, e os funcionários tinham recebido ordem de não deixar entrar ninguém.

Sivarnandan também tinha acompanhado o caso com imensa preocupação. Estava apavorado com as manchetes sobre Lisbeth Salander na mídia e observou que seu paciente mergulhara numa profunda depressão que, na sua interpretação, era fruto da incapacidade em que Palmgren se via de fazer alguma coisa. Interrompera a reabilitação e passava os dias lendo os jornais e acompanhando a caçada a Lisbeth Salander pela tevê. O resto do tempo ficava matutando no quarto.

Mikael, teimoso, fincou pé diante da sala do Dr. Sivarnandan, explicando que não tinha a menor intenção de expor Holger Palmgren a qualquer situação desagradável e que não estava ali para obter uma declaração. Explicou que era amigo de Lisbeth Salander, que tinha dúvidas sobre a culpa dela e estava desesperadamente em busca de informações que pudessem lançar uma luz sobre alguns detalhes do seu passado.

O Dr. Sivarnandan não se deixava seduzir assim tão facilmente. Mikael precisou se sentar e explicar com calma seu papel naquele drama. Sivarnandan só cedeu ao fim de meia hora de discussão. Pediu que Mikael esperasse enquanto ele subia até o quarto de Holger Palmgren para perguntar se este aceitava recebê-lo.

Sivarnandan voltou após dez minutos.

—Ele concordou em recebê-lo. Se não for com a sua cara, vai mandá-lo embora. Você não está autorizado a entrevistá-lo nem a comentar esta visita na imprensa.

—Eu lhe garanto que não vou escrever uma linha sequer a respeito.

Holger Palmgren tinha um quarto pequeno com uma cama, uma cô­moda, uma mesa e algumas cadeiras. Estava um espantalho, magro, de cabelos brancos, com evidentes problemas de desequilíbrio, mas ainda assim se levantou quando Mikael entrou. Não estendeu a mão, porém apontou para uma das cadeiras ao lado da mesa. Mikael sentou-se. Sivarnandan permaneceu no quarto. De início, Mikael custou a entender as palavras balbuciadas por Holger Palmgren.

—Quem é o senhor, para se apresentar como amigo de Lisbeth Salander, e o que quer?

Mikael inclinou-se para trás. Refletiu por um instante.

—Holger, o senhor não é obrigado a falar comigo. Mas peço que escute o que eu tenho a dizer antes de decidir se me põe daqui para fora.

Palmgren assentiu rapidamente com a cabeça e se arrastou até a cadeira em frente à de Mikael.

—Conheci Lisbeth Salander há mais ou menos dois anos. Contratei-a para fazer uma pesquisa para mim sobre um assunto que prefiro não abordar ou lembrar. Ela esteve comigo num lugar onde eu estava morando temporariamente e trabalhamos juntos por várias semanas.

Ele se perguntou até onde deveriam ir suas explicações a Palmgren. Resolveu se manter o mais próximo possível da verdade.

—No meio do caminho, aconteceram duas coisas. Uma delas é que a Lisbeth salvou a minha vida. A outra é que estivemos muito próximos durante um período. Aprendi a conhecê-la e gostava imensamente dela.

Sem entrar em detalhes, Mikael falou sobre sua relação com Lisbeth e do fim repentino dessa relação depois das festas de Natal do ano anterior, quando Lisbeth viajara para fora do país.

Em seguida falou sobre seu trabalho na Millennium e os assassinatos de Dag Svensson e Mia Bergman, e explicou como se via de repente envolvido na busca de um assassino.

—Entendo que o senhor andou sendo importunado por jornalistas recentemente e que os jornais publicaram bobagem que não acaba mais. Só o que posso fazer é lhe garantir que não estou aqui para obter material para um enésimo artigo. Sou provavelmente uma das raríssimas pessoas neste país que, neste momento, sem hesitar e sem segundas intenções, estão do lado de Lisbeth Salander. Acho que ela é inocente. Acho que um homem chamado Zalachenko está por trás desses assassinatos.

Mikael fez uma pausa. Alguma coisa faiscara nos olhos de Palmgren quando ele pronunciou o nome de Zalachenko.

—Se quiser contribuir com qualquer coisa que esclareça o passado dela, este é o momento. Se não quiser ajudá-la, vou estar desperdiçando o meu tempo e sabendo, também, qual a sua posição.

Holger Palmgren não dissera sequer uma palavra durante o discurso de Mikael. No último comentário, houve outro brilho em seus olhos. Mas ele falou de um modo mais pausado e articulado que conseguiu.

—E o senhor quer mesmo ajudá-la. Mikael fez que sim com a cabeça. Holger Palmgren se inclinou para a frente.

—Descreva-me o sofá da sala dela. Mikael retribuiu o sorriso.

—Quando estive lá, havia um troço velho absolutamente imundo que só poderia interessar um antiquário. Início dos anos 1950, eu diria. Tinha umas almofadas de tecido marrom com uma estampa amarela. O tecido estava rasgado em vários pontos e o enchimento saindo para fora.

Holger Palmgren caiu na gargalhada. Mais parecia estar limpando a garganta. Olhou para o Dr. Sivarnandan.

—Ele pelo menos esteve no apartamento dela. Diga-me, doutor, posso pedir café para o meu convidado?

—Mas é claro.

Sivarnandan se levantou e saiu do quarto. Deteve-se na porta e, com a cabeça, acenou para Mikael.

—Alexander Zalachenko - disse Holger Palmgren, assim que a porta fechou.

Mikael arregalou os olhos.

—Conhece esse nome?

Holger Palmgren meneou a cabeça.

—A Lisbeth me disse o nome dele. Acho que é importante eu contar história para alguém... caso me dê na telha morrer de repente, o que não improvável.

—A Lisbeth? Como ela sabia da existência dele?

—Ele é o pai da Lisbeth Salander.

Num primeiro momento, Mikael custou a entender o que Holger Palmmer dizia. Aos poucos, as palavras abriram caminho dentro dele.

—O que está dizendo?

—O Zalachenko chegou aqui nos anos 1970. Era uma espécie de refugiado político - nunca entendi muito bem essa história e Lisbeth sempre foi muito muquirana em matéria de informação. Esse era um assunto no qual ela não queria tocar de jeito nenhum.

A certidão de nascimento. Pai desconhecido.

—O Zalachenko é o pai da Lisbeth - Mikael repetiu.

—Nesses anos todos desde que a conheço, ela só contou o que tinha acontecido uma única vez. Foi mais ou menos um mês antes de eu sofrer o derrame. O que eu entendi foi o seguinte: o Zalachenko chegou em meados dos anos 1970. Conheceu a mãe da Lisbeth em 1977, eles se tornaram um casal e o resultado foram duas crianças.

—Duas?

—A Lisbeth e sua irmã, Camilla. Elas são gêmeas.

—Meu Deus - quer dizer que tem outra igual a ela!

—Elas são muito diferentes. Mas essa é outra história. A mãe da Lisbeth se chamava Agneta Sofia Sjõlander. Tinha dezessete anos quando conheceu Alexander Zalachenko. Não sei de detalhes, mas pelo que entendi, ela era uma moça um tanto imatura e foi uma presa fácil para um homem mais velho e experiente. Ficou impressionada com ele e, como é provável, se apaixonou perdidamente.

—Entendo.

—O Zalachenko se mostrou tudo, menos simpático. Era muito mais velho que ela. Imagino que estivesse procurando uma mulher fácil, mais nada.

—O senhor deve ter razão.

—Ela decerto fantasiava um futuro seguro ao lado dele, só que ele não tinha a menor intenção de se casar. Aliás, eles nunca se casaram, mas em 1979 ela mudou o sobrenome de Sjõlander para Salander. Deve ter sido o jeito que ela encontrou de mostrar que estavam juntos.

—Como assim?

—Zala. Salander.

—Caramba! — exclamou Mikael.

—Comecei a me debruçar sobre o assunto bem na época em que fiquei doente. O que aconteceu depois é que o Zalachenko se revelou um psicopata de primeira. Bebia e espancava Agneta. Pelo que pude entender, essa violência se estendeu por toda a infância das meninas. Lisbeth se lembra que o Zalachenko aparecia regularmente. Ás vezes se ausentava por longos períodos e, de repente, estava de novo na Lundagatan. E toda vez era a mesma coisa. Ele vinha pelo sexo e para beber, e a história sempre acabava com Agneta Salander sofrendo diferentes maus-tratos. Lisbeth me contou detalhes que dão a entender que não eram apenas maus-tratos físicos. Ele vinha armado, ameaçador, parecia muito um sádico que curte o terror psicológico. Pelo que eu soube, só foi piorando com os anos. A mãe de Lisbeth passou grande parte da década de 1980 aterrorizada.

—Ele também batia nas filhas?

—Não. Aparentemente, não tinha o menor interesse pelas filhas. Mal as cumprimentava. A mãe em geral as mandava para o quarto quando o Zalachenko chegava, e elas não podiam sair sem permissão. Uma ou outra vez pode ter acontecido de ele dar um tapa em Lisbeth ou na irmã, mas era mais porque elas estavam atrapalhando ou no meio do caminho. A violência era toda dirigida à mãe.

—Puta merda. Coitada da Lisbeth. Holger Palmgren assentiu com a cabeça.

—A Lisbeth me contou isso cerca de um mês antes de eu sofrer o derrame. Era a primeira vez que ela falava abertamente sobre o que havia acontecido. Eu tinha acabado de decidir que daria um basta àquela bobagem de tutela. A Lisbeth é tão inteligente como qualquer um de nós, e eu estava me preparando para rediscutir o caso dela no tribunal de instâncias. Aí sofri o derrame... e quando acordei, estava aqui.

Fez um gesto largo com o braço. Uma enfermeira bateu à porta e entrou com o café. Palmgren se manteve calado até ela sair do quarto.

—Há coisas que não entendo nessa história. Agneta Salander foi obrigada a ir para o hospital uma dúzia de vezes. Li o dossiê dela. Era manifestamente vítima de maus-tratos severos e o Serviço Social teria de ter intervindo. Mas nada aconteceu. A Lisbeth e a Camilla eram encaminhadas para eles quando a mãe estava hospitalizada, mas assim que ela tinha alta voltava para casa para esperar pelo próximo round. A única explicação que me ocorre é que a rede de proteção social inteira falhou em sua missão e que a Agneta tinha medo demais para fazer qualquer coisa além de esperar pelo seu torturador. Então, alguma coisa aconteceu. A Lisbeth chama isso de Todo o Mal.

—E o que vem a ser isso?

—Fazia vários meses que Zalachenko não aparecia. Lisbeth acabava de completar doze anos. Estava começando a acreditar que ele tinha sumido de vez. O que, evidentemente, não era o caso. Um dia ele voltou. Primeiro, Agneta fechou Lisbeth e a irmã no quarto. Em seguida, teve relações com o Zalachenko. E depois ele começou a espancá-la. Sentia prazer em torturá-la. Só que dessa vez não eram duas criancinhas que estavam fechadas no quarto... As meninas tiveram outra reação. Camilla tinha verdadeiro pânico de que alguém descobrisse o que acontecia em casa. Reprimia tudo e fazia de conta que não via que a mãe era maltratada. Quando os golpes cessavam, Camilla costumava ir fazer um carinho no pai como se estivesse tudo muito bem.

—Era o jeito dela de se proteger.

—É. Mas a Lisbeth era de outro calibre. Dessa vez, ela interrompeu a sessão de violência. Foi até a cozinha, pegou uma faca e enfiou-a no ombro de Zalachenko. Ela o apunhalou cinco vezes, até que ele conseguiu tomar a faca e lhe dar um soco. Os cortes não foram fundos, mas ele começou a sangrar feito um porco, e deu no pé.

—Isso é bem a cara da Lisbeth. Palmgren riu.

—É. É melhor não deixar Lisbeth Salander nervosa. A atitude dela com as pessoas à sua volta é: se alguém a ameaça com um revólver, ela consegue um revólver maior. É o que me assusta tanto neste caso agora.

—Todo o Mal foi isso?

—Não. Agora vão acontecer duas coisas. Mas eu não consigo entender. O Zalachenko saiu suficientemente ferido para precisar ir até o hospital. Deveria ter havido uma investigação policial.

—Mas?

—Mas até onde sei não houve absolutamente nada. Lisbeth afirma que um homem foi falar com Agneta. Não sabe o que eles disseram nem quem ele era. Depois disso, a mãe disse a Lisbeth que o Zalachenko tinha perdoado tudo.

—Perdoado?

—Foram as palavras dela. De repente, Mikael entendeu.

Björck. Ou um dos colegas de Björck. Era preciso fazer a limpeza atrás do Zalachenko. Que canalha! Ele fechou os olhos.

—O que foi? - perguntou Palmgren.

—Acho que sei o que aconteceu. E desta vez alguém vai pagar por isso. Mas continue.

—O Zalachenko ficou meses sem aparecer. Lisbeth esperava por ele e se preparava. Matava aula o tempo todo para vigiar a mãe. Morria de medo que Zalachenko a machucasse. Tinha doze anos e se sentia responsável por aquela mãe que não ousava procurar a polícia e não conseguia romper com Zalachenko, ou que talvez não percebesse a gravidade da situação. Mas, justamente no dia em que o Zalachenko voltou, a Lisbeth estava na escola. Chegou em casa quando ele estava saindo do apartamento. Ele. não disse nada. Apenas riu. A Lisbeth entrou e deparou com a mãe desacordada no chão da cozinha.

—E o Zalachenko não encostou na Lisbeth?

—Não. Ela o alcançou quando ele já estava entrando no carro. Ele baixou o vidro, provavelmente para lhe dizer alguma coisa. A Lisbeth tinha se preparado. Jogou dentro do carro uma caixa de leite que ela tinha enchido de gasolina. E então riscou um fósforo.

—Meu Deus!

—Duas vezes ela tentou matar o pai. Desta vez, houve conseqüências. Um homem ardendo feito uma tocha dentro de um carro na Lundagatan não podia passar despercebido.

—Seja como for, ele sobreviveu.

—O Zalachenko ficou muito mal, com queimaduras graves. Teve que amputar um pé. Ficou com o rosto seriamente queimado, e com queimaduras no corpo inteiro. E Lisbeth acabou na psiquiatria infantil do Sankt Stefan.

Embora já soubesse de cor cada palavra, Lisbeth Salander releu atentamente os documentos a seu respeito que tinha encontrado na casa de campo de Bjurman. Depois acomodou-se no recanto da janela e abriu a cigarreira que Miriam Wu lhe dera de presente. Acendeu um cigarro e contemplou Djurgârden. Descobrira detalhes sobre sua vida que não conhecia.

Tantas peças do quebra-cabeça estavam se encaixando que ela chegou a ficar gelada. O que a interessava antes de mais nada era o relatório policial redigido por Gunnar Björck em fevereiro de 1991. Não poderia afirmar quem era Björck entre todos os adultos que haviam falado com ela, mas julgava saber quem ele era. Apresentara-se com outro nome. Sven Jansson. Lembrava-se de cada nuança de seu rosto, de cada palavra dita e de cada gesto dele nas três ocasiões em que se encontraram.

Tinha sido um caos completo.

Dentro do carro, Zalachenko ardia feito uma tocha. Tinha conseguido abrir a porta e rolar para a calçada, mas sua perna ficara presa no cinto de segurança em meio ao fogo. Algumas pessoas acorreram e abafaram as chamas. Os bombeiros chegaram para apagar o incêndio do carro. Veio a ambulância, e ela tentou convencer os paramédicos a deixar Zalachenko para lá e ir cuidar de sua mãe. Eles a rechaçaram. Veio a polícia e algumas testemunhas apontaram para ela. Ela tentou explicar o que havia acontecido, mas teve a impressão de que ninguém a escutava, e de repente se viu no banco traseiro de um carro da polícia, e tinham se passado minutos, minutos e mais minutos que quase viraram uma hora, antes que a polícia finalmente entrasse no apartamento e encontrasse sua mãe.

Agneta Sofia Salander estava desacordada. Tinha lesões cerebrais. O primeiro de uma longa série de derrames fora desencadeado pelas pancadas. Ela nunca viria a se recuperar.

Lisbeth compreendeu de repente por que ninguém lera o relatório policial, por que Holger Palmgren não conseguira lhe pôr as mãos e por que hoje o procurador Richard Ekström, que comandava a caçada contra ela, não tinha acesso a ele. O relatório não fora redigido pela polícia comum. Fora escrito por um idiota da Säpo. Havia nele carimbos indicando que a investigação era considerada confidencial com base na lei de segurança nacional.

Alexander Zalachenko tinha trabalhado para a Säpo.

Não se tratava de uma investigação. Tratava-se do abafamento de um caso. Zalachenko era mais importante que Agneta Salander. Não podia ser identificado ou denunciado. Zalachenko não existia.

Zalachenko não era o problema - o problema era Lisbeth Salander, a garota maluca que ameaçava detonar um dos maiores segredos da nação.

Um segredo de que ela não tinha nenhum conhecimento. Pôs-se a raciocinar. Zalachenko conhecera sua mãe quase em seguida quando chegara à Suécia. Tinha se apresentado com seu verdadeiro nome. Ainda não ganhara um nome de fachada nem a identidade sueca. O que explicava Lisbeth não ter encontrado seu nome em nenhum registro oficial naqueles anos todos. Ela sabia o seu nome verdadeiro. Mas o Estado sueco lhe dera um novo nome.

Ela captou a idéia geral. Se Zalachenko fosse indiciado por golpes e ferimentos agravados, o advogado de Agneta Salander ia começar a sondar o passado dele. Onde é que o senhor trabalha, senhor Zalachenko? Qual o seu verdadeiro nome?

Se Lisbeth Salander ficasse no Serviço Social, alguém talvez começasse a fuçar. O que também aconteceria se o atentado com coquetel Molotov fosse minuciosamente investigado, embora ela fosse jovem demais para ser indiciada. Imaginou as manchetes dos jornais. O relatório precisava, portanto, ser redigido por uma pessoa de confiança. E, depois, arquivado como top secret e muito bem enterrado, para que ninguém pudesse encontrá-lo. E Lisbeth Salander também tinha de ser tão bem enterrada que ninguém pudesse achá-la.

Gunnar Björck.

Sankt Stefan.

Peter Teleborian.

A explicação a deixou fora de si.

Prezado Estado... Vou ter uma conversinha com você caso um dia eu descubra com quem devo falar.

Perguntou-se rapidamente o que o ministro de Assuntos Sociais iria achar se um coquetel Molotov atravessasse as portas do seu ministério. Na falta de responsáveis, porém, Peter Teleborian era um bom substituto. Anotou mentalmente que teria que cuidar muito bem do caso dele assim que resolvesse todo o resto.

Mas ela ainda não entendia todos os meandros. Zalachenko reaparecera de repente depois de todos esses anos. Corria o risco de ser denunciado por Dag Svensson. Dois tiros. Dag Svensson e Mia Bergman. Uma arma que tinha as impressões digitais dela...

Zalachenko, ou quem ele enviara para executar a sentença, evidentemente não podia saber que ela achara o revólver na gaveta de Bjurman e o manipulara. Isso tinha sido puro acaso, mas para ela estava claro desde o começo que devia haver um vínculo entre Bjurman e Zala.

Mesmo assim, algo não estava colando naquela história. Ficou refletindo e experimentando, uma por uma, as peças do quebra-cabeça.

Só existia uma resposta plausível.

Bjurman.

Bjurman tinha feito uma investigação sobre ela. Estabelecera o elo entre ela e Zalachenko. E voltara-se para Zalachenko.

Ela tinha um filme que mostrava Bjurman violentando-a. Era a sua espada na nuca de Bjurman. Bjurman devia ter imaginado que Zalachenko poderia obrigar Lisbeth a revelar onde estava o filme.

Afastou-se da janela e foi pegar o CD na gaveta da escrivaninha, no qual escrevera “Bjurman” com a caneta-marcador. Não tinha sequer guardado o CD numa capinha. Não o tinha assistido desde que o mostrara em pré-estreia há Bjurman dois anos antes. Segurou-o um instante, e em seguida guardou-o de volta na gaveta.

Bjurman fora um idiota. Se tivesse cuidado da vida dele, ela o teria deixado em paz desde que conseguisse reverter sua tutela. Já o Zalachenko nunca o teria deixado em paz. Bjurman se tornaria para todo sempre o cãozinho de estimação de Zalachenko. O que não deixava de ser um merecido castigo.

A rede de Zalachenko. Tentáculos que se estendiam até o mc Svavelsjõ.

O gigante loiro.

Ele era a chave.

Precisava encontrá-lo e obrigá-lo a revelar onde Zalachenko se escondia.

Acendeu mais um cigarro e contemplou o castelo de Skeppsholmen. Deslocou o olhar para as montanhas-russas do parque de diversões de Grõna Lund. Súbito, falou consigo mesma em voz alta. Imitou uma voz que tinha ouvido um dia num filme da tevê.

Daaaaddyyyyy, I am coming to get yoooou.

Se alguém escutasse, diria que ela era louca de atar. Às sete e meia da noite, ligou a tevê para ver as últimas notícias da caça a Lisbeth Salander. Teve o maior choque de sua vida.

Bublanski conseguiu localizar Hans Faste no celular pouco antes das vinte horas. Não foram gentilezas que eles trocaram pela rede de telecomunicações. Bublanski não perguntou a Faste onde ele tinha estado apenas comunicou-lhe friamente os acontecimentos do dia.

Faste estava abalado.

Cansara-se daquele circo que estava a delegacia e fizera uma coisa que nunca tinha feito antes em serviço. Furioso, fora até o centro da cidade. Desligara o celular e se sentara num pub da Estação Central, onde tomara duas cervejas, fervendo de raiva.

Depois, voltou para casa, tomou uma ducha e caiu no sono. Estava precisando dormir.

Acordou a tempo de assistir Rapport, e seus olhos quase saltaram das órbitas quando viu o noticiário. Um cemitério em Nykvarn. Lisbeth Salander tinha atirado no chefe do mc Svavelsjõ. Caçada humana pelos subúrbios da zona sul. O cerco estava se fechando.

Ligou o celular.

O diacho do Bublanski telefonou quase em seguida, informando que a partir daquele momento a investigação passava oficialmente a procurar outro culpado também. E mandou-o substituir Jerker Holmberg no exame do local do crime em Nykvarn. Bem agora que a investigação Salander chegava ao fim, Faste ia juntar guimba de cigarro no meio do mato. E a Salander ia ficar para os outros.

O que o MC Svavelsjõ estava fazendo nessa história?

Afinal, talvez houvesse algum nexo no que aquela puta de uma lésbica da Modig falava.

Não, não era possível.

Tinha que ser a Salander.

Queria ser ele a prendê-la. Tinha tanta vontade de prendê-la que apertou o celular até quase machucar a mão.

Holger Palmgren observou calmamente Mikael Blomkvist, que andava de lá para cá em frente à janela do pequeno quarto. Eram cerca de sete e meia da noite e fazia quase uma hora que eles estavam conversando sem interrupção. Por fim, Palmgren bateu na mesa para chamar a atenção de Mikael.

—Sente-se, ou vai gastar a sola dos sapatos - disse, passando a tratá-lo por “você”.

Mikael se sentou.

—Quantos segredos - disse ele. —Eu não tinha percebido qual era o elo até você me contar sobre o passado de Zalachenko. Só tinha visto as avaliações do estado de Lisbeth declarando que ela era psicologicamente perturbada.

—Peter Teleborian.

—Ele só pode ter um tipo de acordo com o Björck. Deve ser alguma espécie de colaboração.

Mikael meneou a cabeça, pensativo. O que quer que acontecesse, Peter Teleborian seria objeto de uma investigação jornalística.

—Lisbeth pediu que eu ficasse longe dele. Disse que ele era do mal. Holger Palmgren fitou-o com atenção.

—Quando ela disse isso?

Mikael ficou quieto. Então sorriu e olhou para Palmgren.

—Mais segredos. Caramba. Eu me comuniquei com ela enquanto ela estava foragida. Pelo computador. Mensagens sucintas e herméticas da parte dela, mas o tempo todo me orientando na direção certa.

Holger Palmgren suspirou.

—E é claro que você não contou isso à polícia - disse ele.

—Não. Não exatamente.

—Oficialmente, você também não contou para mim. Mas ela entende bastante de informática.

Você nem imagina o quanto.

—Confio muito na capacidade que ela tem de se virar. Ela até pode viver modestamente, mas é uma batalhadora.

Nem tão modestamente. Ela roubou quase três bilhões de coroas. Não vai morrer de fome. Tem um cofre cheio de moedas de ouro, igual ã Píppi Meialonga.

—O que eu não entendo - disse Mikael - é por que você não tomou nenhuma atitude nesses anos todos.

Holger Palmgren deu outro suspiro. Sentia-se imensamente triste.

—Eu fracassei - disse. —Quando fui indicado como seu administrador ad hoc, ela era só mais uma no meio de um batalhão de jovens problemáticos. Tive dezenas deles. Foi o Bengt Brâdhensjõ quem me confiou essa missão, quando era chefe do Serviço Social. A Lisbeth já estava em Sankt Stefan na época e eu nem sequer estive com ela no primeiro ano. Falei umas vezes com o Teleborian e ele me explicou que ela era psicótica e estava recebendo todos os cuidados possíveis e imagináveis. Naturalmente, acreditei. Mas falei também com o Jonas Beringer, que, na época, era chefe do setor. Não creio que ele estivesse envolvido nessa história. Fez uma avaliação a pedido meu, e concordamos em tentar reinseri-la na sociedade por meio de uma família adotiva. Ela estava com quinze anos.

—E a partir daí você a acompanhou por todos esses anos?

—Não o suficiente. Briguei por ela depois do episódio do metrô. Eu já a conhecia melhor e gostava muito dela. Ela tinha personalidade. Consegui evitar que fosse internada. O compromisso que conseguimos firmar com as autoridades foi que ela seria declarada incapaz e eu me tornaria seu tutor.

—Também não dá para supor que o Björck tenha conseguido influenciar a decisão do tribunal. Isso teria chamado a atenção. Ele queria que ela fosse trancafiada e, para alcançar seus fins, tentou passar uma imagem bem negativa dela através das avaliações psiquiátricas, graças, entre outros, ao Teleborian, na esperança de que o tribunal tomasse a decisão lógica. Em vez disso, o tribunal adotou o seu ponto de vista.

—Eu nunca achei que ela devia ser colocada sob tutela. Mas, para ser sincero confesso que não me esforcei muito para tentar reverter essa decisão. Eu deveria ter agido com mais vigor, e mais cedo. Mas eu gostava muito da Lisbeth e... ficava o tempo todo adiando. Estava com casos demais para cuidar. Depois, acabei caindo doente.

Mikael assentiu com a cabeça.

—Não acho que tenha motivos para se recriminar. Você é uma das poucas pessoas que a apoiaram nesses anos todos.

—O problema era que eu não sabia que tinha de intervir. A Lisbeth era minha cliente, mas nunca mencionou o Zalachenko. Depois que teve alta no Sankt Stefan, ela precisou de vários anos para demonstrar umas migalhas de confiança em mim. Só depois do processo é que eu senti que, aos poucos, ela estava começando a se comunicar comigo para além das formalidades obrigatórias.

—Como foi que ela passou a falar no Zalachenko?

—Imagino que, apesar de tudo, ela estava começando a confiar em mim. Além disso, eu já tinha aventado várias vezes a possibilidade de mandar suspender a tutela. Ela pensou sobre o assunto por alguns meses. Depois, ligou um dia para marcar um encontro. Tinha terminado de pensar. E então me contou toda a história do Zalachenko e a interpretação dela sobre o que tinha acontecido.

—Entendo.

—Então talvez entenda que, para mim, esse era um prato e tanto para digerir. Foi quando comecei a remexer nessa história. E não consegui sequer achar o Zalachenko num registro civil sueco. Tinha horas em que era difícil saber se ela não estava inventando aquilo tudo.

—Quando você sofreu o derrame, o tutor passou a ser o Bjurman. Certamente não foi por acaso.

—Não foi. Não sei se algum dia vamos conseguir provar, mas tenho a impressão de que se cavoucarmos bem fundo vamos achar... o sujeito, quem quer que seja ele, que ficou no lugar do Björck cuidando da faxina do caso Zalachenko.

—Não me parece nada difícil entender a recusa absoluta da Lisbeth em falar com psicólogos e autoridades - disse Mikael. —Toda vez que ela tentou, as coisas só pioraram. Ela tentou explicar o que tinha acontecido para dezenas de adultos e ninguém a escutou. Tentou, sozinha, salvar a vida da mãe e defendê-la de um psicopata. Acabou fazendo a única coisa que podia fazer. E em vez de ouvir um “você fez bem” e “você é uma boa menina”, foi trancafiada num asilo de doidos.

—Não é assim tão simples. Espero que você perceba que existe algo estranho com a Lisbeth - disse Palmgren com ar grave.

—O que você quer dizer?

—Você deve saber que ela teve um bocado de problemas na infância, dificuldades escolares e tudo mais.

—Os jornais repetiram isso à exaustão. Eu com certeza também teria tido uma escolaridade difícil se tivesse tido a infância dela.

—Os problemas da Lisbeth vão bem além daqueles do seu ambiente familiar. Li todas as avaliações psiquiátricas sobre ela e não há um diagnóstico sequer. Mas acho que nós dois concordamos que a Lisbeth Salander não é uma pessoa igual às outras. Você já jogou xadrez com ela?

—Não.

—Ela tem memória fotográfica.

—Isso eu sei. Deu para perceber na convivência com ela.

—Certo. Ela adora enigmas. Uma vez, quando veio me visitar no Natal, dei uns problemas de um teste de inteligência da Mensa para ela resolver. Um teste desses que mostram cinco símbolos similares e a gente tem que definir qual é o sexto símbolo.

—Ah, sei.

—Eu mesmo tinha tentado fazer esse teste e acertei mais ou menos à metade. E fiquei duas noites quebrando a cabeça. Ela deu uma olhada no papel e respondeu corretamente a todas as perguntas.

—Certo - disse Mikael. —A Lisbeth é uma menina muito especial.

—Ela tem muita dificuldade em se comunicar com os outros. Pensei numa modalidade da síndrome de Asperger, ou algo assim. Se você ler a descrição clínica dos portadores da síndrome de Asperger, algumas coisas têm tudo a ver com a Lisbeth, mas outras não.

Calou-se por alguns instantes.

—Ela não é nem um pouco perigosa para quem a deixa em paz e a trata com respeito.

Mikael assentiu com a cabeça.

—Mas ela é violenta, sem dúvida - disse Palmgren em voz baixa. —Quando provocada ou ameaçada, pode revidar com extrema violência.

Mikael meneou a cabeça mais uma vez.

—A questão é saber o que a gente faz agora - disse Holger Palmgren.

—A gente agora tem que achar o Zalachenko - respondeu Mikael. Nisso, o Dr. Sivarnandan bateu na porta.

—Espero não estar atrapalhando. Mas se estão interessados na Lisbeth Salander, vale a pena ligar a tevê e assistir o Rapport.

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