24. SEGUNDA-FEIRA – 11 DE JULHO


Eram seis horas da manhã de segunda-feira quando Susanne Linder, da Milton Security, ligou para Mikael Blomkvist no seu TIO azul.

— Você não dorme nunca? — perguntou Mikael, mal e mal acordado. Espiou Rosa Figuerola, já de pé e vestida com uma bermuda esporte, mas ainda sem a camiseta.

— Durmo. Mas fui acordada pelo guarda da noite. O alarme silencioso que instalamos no seu apartamento disparou às três da manhã.

— Ah, é?

— Aí precisei ir até lá ver o que estava acontecendo. Não é coisa simples. Você poderia dar uma chegada na Milton Security agora de manhã? Ou melhor, a gora mesmo?

— A coisa está ficando séria — disse Dragan Armanskij.

Passava um pouco das oito horas quando se reuniram diante de uma tela na sala de reuniões da Milton Security. Estavam presentes Armanskij, Mikael Blomkvist e Susanne Linder. Armanskij também mandara chamar Johan Frâklund, de sessenta e dois anos, antigo inspetor criminal da polícia de Solna, que dirigia a unidade de intervenção da Milton, e o ex-inspetor criminal Steve Bohman, de quarenta e oito anos, que acompanhara o caso Salander desde o começo. Todos refletiam sobre o vídeo que Susanne Linder acabava de exibir.

— O que se vê é o Jonas Sandberg abrindo a porta do apartamento de Mikael Blomkvist às 3h17. Ele tem suas próprias chaves... Lembrem que Faulsson, o chaveiro, fez um molde das chaves de Blomkvist há algumas semanas, quando ele e o Gõran Mârtensson entraram no apartamento.

Armanskij, semblante sério, meneou a cabeça.

— O Sandberg fica no apartamento pouco mais de oito minutos. Nesse período, ele faz o seguinte: vai até a cozinha, pega um saco plástico e enche esse saco com alguma coisa. Depois, desparafusa a grade de um vão que tem lá na sua sala, Mikael. E coloca o saco lá dentro.

— Humm — disse Mikael Blomkvist.

— O fato de ele pegar um saco na sua cozinha é muito revelador.

— É um saco de mini-pães do Konsum — disse Mikael. — Eu sempre uso para guardar queijo e coisas desse tipo.

— Eu também faço isso lá em casa. O que é revelador, obviamente, é o saco ter as suas impressões digitais. Em seguida, ele pega um SMP velho na lixeira de papéis do hall de entrada. Usa uma página do jornal para enrolar um objeto que ele coloca no alto do armário.

— Humm — fez Mikael novamente.

— Mesma coisa. O jornal tem suas impressões digitais.

— Entendo — disse Mikael Blomkvist.

— Eu entrei no seu apartamento por volta das cinco horas. Encontrei isto aqui. No vão da sua sala há neste momento cento e oitenta gramas de cocaína. Peguei um grama como amostra, aqui está.

Ela colocou um saco plástico para perícia em cima da mesa.

— E dentro do armário, o que tem lá? — perguntou Mikael.

— Cerca de cento e vinte mil coroas em dinheiro.

Armanskij fez sinal para que Susanne Linder parasse o vídeo. Olhou para Frâklund.

— E assim Mikael Blomkvist está envolvido com o tráfico de cocaína — disse Frâklund, afável. — Ao que parece, eles começaram a se preocupar com o que o Blomkvist estaria aprontando.

— É um contra-ataque — disse Mikael Blomkvist.

— Contra-ataque?

— Eles descobriram os guardas da Milton em Morgongâva ontem à noite.

Ele relatou o que Rosa Figuerola lhe contara sobre a excursão de Sandberg a Morgongâva.

— Garoto safado — disse Steve Bohman.

— Mas por que agora?

— Eles devem estar preocupados com o que a Millennium poderá provocar quando o julgamento tiver início — disse Fraklund. — Se o Blomkvist for preso por tráfico de drogas, a credibilidade dele diminui consideravelmente.

Susanne Linder meneou a cabeça. Mikael Blomkvist parecia hesitar.

— Bem, como é que a gente vai lidar com isso? — perguntou Ar-manskij.

— Por enquanto, a gente não faz nada — sugeriu Fraklund. — Temos várias cartas na manga. Temos uma excelente documentação provando que o Sandberg plantou provas no seu apartamento, Mikael. Vamos deixar a armadilha se fechar. A gente vai poder provar sua inocência na hora e, além disso, teremos mais uma prova de uma atitude criminosa da Seção. Eu adoraria ser o procurador quando esses engraçadinhos passarem pelo banco dos réus.

— Não sei — disse Mikael Blomkvist devagar. — O julgamento começa depois de amanhã. A Millennium deve sair na sexta-feira, no terceiro dia da audiência. Se eles quiserem me pegar por tráfico de cocaína, vai ter que ser antes... e eu não vou poder me explicar antes de a revista sair. Ou seja, corro o risco de ser preso e perder o começo do julgamento.

— Em outras palavras, você tem bons motivos para sair de circulação esta semana — propôs Armanskij.

— Bem... eu tenho um trabalho para fazer com a TV4, e também estou preparando outras coisas. Realmente, não é uma boa hora...

— Por que bem agora? — Susanne Linder perguntou de repente.

— O que você quer dizer? — perguntou Armanskij.

— Eles tiveram três meses para jogar o Blomkvist na lama. Por que estão agindo bèm agora? O que quer que eles façam, não vão conseguir impedir a publicação.

Todos permaneceram em silêncio por um momento.

— Pode ser que eles não estejam entendendo o que você vai publicar Mikael — disse Armanskij devagar. — Eles sabem que você está tramando alguma coisa..., mas talvez achem que você só está com o relatório de Bjõrck de 1991.

Mikael assentiu lentamente com a cabeça.

— Eles não se deram conta de que você pretende denunciar toda a Seção. Sendo só o relatório do Bjõrck, basta criar um clima de desconfiança em torno de você. As suas eventuais revelações vão se perder no meio da sua prisão e indiciamento. Superescândalo. O famoso jornalista Mikael Blomkvist preso por tráfico de drogas. De seis a oito anos de prisão.

— Posso ficar com duas cópias do filme da câmera de vigilância? — perguntou Mikael.

— O que você pretende fazer?

— Uma cópia vai para o Edklinth. E eu devo encontrar o pessoal da TV4 daqui a três horas. Acho que seria legal se a gente estivesse pronto para jogar isso na tevê quando a tempestade desabar.

Rosa Figuerola desligou o leitor de DVD e deixou o controle remoto em cima da mesa. Estavam no escritório provisório da Fridhemsplan.

— Cocaína — disse Edklinth. — Eles estão pegando pesado! Rosa Figuerola pareceu hesitar. Olhou de esguelha para Mikael.

— Não estou gostando nada disso — falou. — Tem todo o jeito de uma ação impensada. Eles devem saber muito bem que você não vai deixar de se defender se te mandarem para a cadeia por tráfico de drogas.

— Claro — disse Mikael.

— Mesmo que você seja condenado, eles correm um sério risco de as pessoas acreditarem em você. E os seus colegas da Millennium não vão ficar quietos.

— Além do quê, isso tudo está saindo caro — disse Edklinth. — Então eles dispõem de um orçamento suficiente para aparecer assim de repente com cento e vinte mil coroas mais o que custou a coca.

— Eu sei — disse Mikael. — Mas o plano deles é muito bom. Eles imaginam que a Lisbeth Salander vai ser mandada para um hospital psiquiátrico e que eu vou desaparecer num turbilhão de acusações. Também devem estar imaginando que todas as atenções vão se concentrar na Sapo, e não na Seção Como ponto de partida não é nada mal.

— Mas como eles vão convencer a Narcotráficos a fazer uma busca na sua casa? Quero dizer, uma denúncia anônima não basta para arrombarem a porta de um jornalista célebre. E, para a coisa funcionar, você tem que se transformar em um suspeito nesses próximos dias.

— Bem, não conhecemos o cronograma deles — disse Mikael. Sentia-se cansado e gostaria que tudo já tivesse acabado. Levantou-se.

— Aonde você vai? — perguntou Rosa Figuerola. — Queria saber onde posso te encontrar nos próximos dias.

— Vou passar na TV4 no início da tarde. E às seis vou comer um cordeiro salteado no Samirs Gryta com a Erika Berger. Vamos preparar uns releases para a imprensa. Mais tarde, imagino que eu vá estar na redação.

Os olhos de Rosa Figuerola se estreitaram um pouco ao ouvir o nome de Erika Berger.

— Quero que você mantenha contato durante o dia. De preferência, que mantenha um contato direto até o julgamento começar.

— Certo. Quem sabe eu não me mudo para a sua casa por alguns dias — disse Mikael de brincadeira, sorrindo.

O semblante de Rosa Figuerola endureceu. Ela olhou rapidamente para Edklinth.

— A Rosa está certa — disse Edklinth. — O melhor seria você ficar meio escondido até tudo isso acabar. Se a Narcotráficos te pegar, fique calado até o início do julgamento.

— Calma — disse Mikael. — Não pretendo entrar em pânico nem pôr nada a perder. Vocês cuidam da sua parte que eu cuido da minha.

A Moça da TV4 mal conseguia disfarçar a excitação diante do material em vídeo que Mikael Blomkvist lhe entregara. Mikael sorriu ao ver seu deleite. Tinham passado uma semana trabalhando como condenados para editar um material sobre a Seção que fosse compreensível para a televisão. Tanto o produtor para o qual ela trabalhava como o chefe de Atualidades da TV4 tinham percebido o tamanho do furo. O programa fora produzido no maior sigilo, e por apenas alguns profissionais. Tinham aceitado a exigência de Mikael de só levar a matéria ao ar na noite do terceiro dia do julgamento. Decidiram lançá-la numa edição especial do noticiário.

Mikael fornecera uma boa quantidade de imagens fixas para que ela pudesse usar, mas em televisão nada melhor que imagens em movimento E aquele vídeo absolutamente nítido que mostrava um policial identificado plantando cocaína no apartamento de Mikael Blomkvist a deixara simplesmente alucinada.

— Isso aqui é televisão de primeira — disse ela. — Na vinheta: A Sapo plantando cocaína no apartamento do jornalista.

— A Sapo não... a Seção — corrigiu Mikael. — Não cometa o erro de confundir uma com a outra.

— Mas o Sandberg trabalha na Sapo — ela protestou.

— Sim, só que, concretamente, ele deve ser considerado um agente infiltrado. Você deve deixar essa diferença muito clara.

— Certo. Quem está na berlinda é a Seção. E não a Sapo. Mikael, você poderia me explicar como é que você está sempre envolvido em matérias polêmicas? Você tem razão. Isso aqui vai fazer mais barulho do que o caso Wennerstróm.

— Acho que eu tenho algumas habilidades. Parece ironia do destino, mas essa história também começa com um caso Wennerstróm. Quero dizer, com aquele caso de espionagem dos anos 1960.

Às quatro horas, Erika Berger ligou. Estava reunida com a Tidningsutgivarna para comunicar aos dirigentes de imprensa seu ponto de vista sobre as demissões previstas no SMP, operação que provocara um conflito sindical sério depois que ela deixara o jornal. Ela avisou que chegaria atrasada ao Samirs Gryta, provavelmente por volta de seis e meia.

Jonas Sandberg ajudou Fredrik Clinton a passar da cadeira de rodas para a cama da sala de repouso que constituía o centro de comando do QG da Seção na Artillerigatan. Clinton estava voltando da diálise, que tinha se prolongado por toda a tarde. Sentia-se com cem anos e esgotado. Mal dormira nos últimos dias e desejava que aquilo tudo acabasse logo. Nem bem tinha se acomodado na cama quando Georg Nystrõm juntou-se a eles.

Clinton reuniu suas energias.

— Está tudo ajeitado? — perguntou.

Georg Nystrõm fez um gesto de assentimento com a cabeça.

— Acabo de encontrar com os irmãos Nikoliç — disse. — Vai custar cinqüenta mil.

— Podemos pagar — disse Clinton. Puta merda, se eu ainda fosse jovem.

Ele virou a cabeça e examinou alternadamente Georg Nystrõm e Jonas Sandberg.

— Sem escrúpulos? — ele perguntou. Ambos balançaram a cabeça.

— Quando? — perguntou Clinton.

— Nas próximas vinte e quatro horas — disse Nystrõm. — Está difícil descobrir onde o Blomkvist se meteu, mas na pior das hipóteses eles vão agir na frente da redação.

Clinton aquiesceu.

— Talvez tenhamos uma brecha já no fim da tarde, daqui a umas duas horas — disse Jonas Sandberg.

— Ah, é?

— A Erika Berger ligou há pouco tempo. Eles vão jantar no Samirs Gryta. E um restaurante que fica para os lados da Bellmansgatan.

— Berger... — disse Clinton, escandindo as sílabas.

— Só espero que ela... — disse Georg Nystrõm.

— Não seria necessariamente ruim — interrompeu Jonas Sandberg.

— Então, resumindo: Blomkvist constitui a maior ameaça para nós e é provável que ele publique alguma coisa no próximo número da Millennium. Já que não podemos impedir a publicação, temos que acabar com a credibilidade dele. Se ele for morto no que parece ser um acerto de contas e depois a polícia encontrar droga e dinheiro no apartamento dele, o inquérito vai tirar certas conclusões.

Clinton concordou com a cabeça.

— Acontece que Erika Berger é amante do Blomkvist — disse Sandberg, destacando bem as palavras. — É casada e infiel. Se ela também morrer de forma violenta, isso levará a mais um monte de especulações.

Clinton e Nystrõm trocaram um olhar. Sandberg era um gênio em criar cortinas de fumaça. Ele aprendia depressa. Mas tanto Clinton como Nystrõm tiveram um instante de dúvida. Sandberg sempre tinha aquele jeito despreocupado quando se tratava de decidir sobre a vida e a morte. Isso não era bom O assassinato era uma decisão extrema que não podia ser tomada só porque a oportunidade surgia. Não era uma solução pronta, e sim uma saída a se recorrer apenas quando não houvesse alternativa.

Clinton balançou a cabeça.

Danos colaterais, pensou. De repente, sentiu-se enojado com o encaminhamento de todo aquele caso.

Depois de uma vida inteira a serviço da nação, aqui estamos nós como meros assassinos. Zalachenko fora necessário. Bjõrck fora... lamentável, mas Gullberg estava certo. Bjõrck teria cedido. Blomkvist era... provavelmente necessário. Mas Erika Berger não passava de uma testemunha inocente.

Deu uma olhada de esguelha em Jonas Sandberg. Esperava que o rapaz não evoluísse para a psicopatia.

— E os irmãos Nikoliç, o que eles estão sabendo?

— Nada. Quero dizer, sobre a gente. Eu fui o único que estive com eles, usei outra identidade e eles não têm como chegar até mim. Eles acham que o assassinato está ligado ao tráfico de mulheres.

— E depois do assassinato, o que os irmãos Nikoliç vão fazer?

— Vão deixar a Suécia imediatamente — disse Nystrõm. — Como aconteceu depois do Bjõrck. Se a investigação da polícia não der em nada, eles vão poder voltar, discretamente, algumas semanas mais tarde.

— E o plano?

— Modelo siciliano. Eles vão simplesmente se aproximar do Blomkvist, descarregar a arma nele e dar no pé.

— Arma?

— Eles têm uma automática. Não sei o tipo.

— Espero que não espirrem sangue pelo restaurante todo...

— Não se preocupe. Eles são do tipo tranqüilo e sabem o que têm de fazer. Mas se a Berger estiver sentada na mesma mesa que o Blomkvist...

Danos colaterais.

— Escutem — disse Clinton. — E importante que o Wadensjõõ não saiba do nosso envolvimento nisso. Principalmente se a Erika Berger acabar sendo uma das vítimas. Ele já está a ponto de rebentar de tão tenso. Tenho a impressão de que vamos precisar aposentá-lo quando isso tudo acabar.

Nystrõm assentiu.

— Isso significa que, quando recebermos a notícia da morte do Blomkvist vamos ter que fazer um jogo de cena. Vamos convocar uma reunião de emergência e fingir que estamos atônitos. Vamos especular sobre quem poderia estar por trás do homicídio, mas sem falar nada sobre a droga etc, até a polícia descobrir as evidências.

Mikael Blomkvist despediu-se da Moça da TV4 pouco antes das cinco horas. Tinham passado a tarde revisando os pontos ainda obscuros do material, e em seguida Mikael havia sido maquiado e concedera uma extensa entrevista.

Tinham-lhe feito uma pergunta que ele tivera dificuldade em responder de forma coerente, e na qual eles haviam insistido várias vezes.

Como funcionários do Estado chegaram a ponto de cometer assassinatos?

Mikael se fizera essa mesma pergunta muito antes da Moça da TV4. A Seção deve ter visto em Zalachenko uma enorme ameaça incrível, mas essa não era uma resposta satisfatória. A resposta que ele acabou dando tampouco era satisfatória.

— A única explicação que me ocorre é que, com o passar do tempo, a Seção foi se transformando em uma seita, no sentido real da palavra. Eles ficaram iguais à seita de Knutsby, ao pastor Jim Jones e a pessoas desse tipo. Eles escrevem suas próprias leis, nas quais a noção de bem e de mal não tem mais importância, e parecem estar completamente afastados da sociedade.

— Como uma espécie de doença mental?

— Essa sua definição não está totalmente errada.

Ele pegou o metrô para Slussen e se deu conta de que era cedo demais para ir ao Samirs Gryta. Demorou-se algum tempo na praça de Sôdermalm. Estava preocupado, mas, por outro lado, a vida voltara a ter sentido. Só quando Erika Berger reassumira a Millennium é que ele se deu conta de como ela lhe fizera falta. De um modo catastrófico. E o fato de o leme estar de novo nas mãos dela não criara nenhum conflito interno, pelo contrário. Malu estava felicíssima por recuperar seu cargo de assistente de redação, sentia-se exultante por a vida (como ela dizia) ter voltado ao seu curso normal.

O retorno de Erika também tornara evidente o déficit de pessoal nos três meses anteriores. Erika tivera de voltar às pressas e, com a ajuda de Malu Eriksson, conseguira dominar boa parte do trabalho de organização que havia se acumulado e sido deixado um pouco para lá. De uma boa reunião de redação saíra a decisão de que a Millennium precisava crescer e contratar pelo menos um colaborador, provavelmente dois. Não tinham, porém, a menor idéia de onde buscar recursos para tanto.

Por fim, Mikael comprou os jornais da tarde e entrou no Java da Hornsgatan para tomar um café e fazer hora até se encontrar com Erika.

A procuradora Ragnhild Gustavsson, do Ministério Público, largou seus óculos de leitura sobre a mesa de reuniões e observou os presentes. Tinha cinqüenta e oito anos e cabelos grisalhos curtos que emolduravam um rosto rechonchudo e riscado de rugas. Ela havia sido procuradora por vinte e cinco anos e trabalhava no Ministério Público desde o início dos anos 1990.

Apenas três semanas tinham transcorrido desde que ela fora repentinamente chamada ao gabinete oficial do procurador-geral da nação para encontrar-se com Torsten Edklinth. Naquele dia, estava encerrando alguns casos rotineiros e preparando-se para umas férias de seis semanas na sua casa de campo de Husarõ. Em vez disso, fora incumbida de conduzir uma investigação sobre um grupo de funcionários de alto nível do Estado, reunidos por enquanto sob o termo "a Seção". Todos os seus planos de férias tinham sido rapidamente abandonados. Descobrira que aquela seria sua principal tarefa por tempo indeterminado e tinham-lhe deixado quase inteiramente livre para organizar ela própria seu trabalho e tomar as decisões necessárias.

— Esse caso vai ser uma das investigações criminais mais espetaculares da história da Suécia — dissera o procurador-geral da nação.

Ela não tinha como não concordar.

Em seguida, fora tendo surpresa atrás de surpresa quando Torsten Edklinth lhe fez um resumo do caso e da investigação que ele realizara por ordem do primeiro-ministro. A investigação não estava concluída, mas ele achava que tinha chegado a um ponto em que precisava apresentar o caso a um procurador.

Primeiro ela quis ter uma visão do conjunto do material que Torsten

Edklinth lhe repassara. Mas à medida que a extensão dos crimes cometidos começou a se definir, percebeu que tudo o que ela estava fazendo e todas as decisões que iria tomar seriam julgados pelos futuros livros de história. A partir daí, passou a dedicar cada minuto do seu dia a tentar formar uma visão coerente daquela lista quase inconcebível de crimes com que estava lidando. Era um caso único na história do direito sueco e, já que se tratava de desenterrar atos criminosos que vinham sendo cometidos havia pelo menos trinta anos, compreendeu a necessidade de uma organização muito estrita do trabalho. Lembrou-se dos agentes italianos que investigaram oficialmente a máfia e de como eles tiveram de trabalhar quase clandestinamente para sobreviver aos anos 1970 e 1980. Entendia que Edklinth tivesse sido obrigado a agir em segredo. Ele não sabia em quem confiar.

A primeira providência de Ragnhild Gustavsson foi chamar três colaboradores do Ministério Público. Escolheu gente que ela conhecia fazia anos. Em seguida, contratou um historiador conhecido do Conselho de Prevenção da Criminalidade para esclarecê-la sobre o surgimento das polícias de segurança ao longo das décadas. Por fim, nomeou Rosa Figuerola para comandar de forma oficial as investigações.

Assim, o inquérito sobre a Seção assumira um caráter constitucional. Já era possível tratá-lo como uma investigação policial qualquer, mesmo tendo sido decretado seu sigilo.

Durante as duas últimas semanas, a procuradora Gustavsson convocara uma considerável quantidade de pessoas para interrogatórios formais, porém muito discretos. Além de Edklinth e Figuerola, ela falara com os inspetores Bublanski, Sonja Modig, Curt Bolinder e Jerker Holmberg. Em seguida, com Mikael Blomkvist, Malu Eriksson, Henry Cortez, Christer Malm, Annika Giannini, Dragan Armanskij, Susanne Linder e Holger Palmgren. Com exceção dos funcionários da Millennium, que por princípio não respondiam a perguntas que pudessem comprometer a proteção de suas fontes, todos ofereceram obsequiosamente provas e relatórios detalhados.

Ragnhild Gustavsson não tinha gostado nada, nada quando lhe foi apresentado um cronograma definido pela Millennium que indiretamente a obrigava a se decidir pela prisão de determinado número de pessoas numa data determinada. De sua parte, calculava que iria precisar de vários meses até alcançar aquele estágio da investigação. Nesse caso específico, porém, não tivera escolha. Mikael Blomkvist, da revista*. M/7/ennzum, mostrara-se irredutível. Não estava subordinado a nenhum decreto ou regulamento oficial e sua intenção era publicar a matéria no terceiro dia do julgamento de Lisbeth Salander. Ragnhild Gustavsson, portanto, fora obrigada a se adaptar e, simultaneamente, a agir para que suspeitos e provas eventuais não tivessem tempo de desaparecer. Blomkvist, diga-se, gozava do surpreendente apoio de Edklinth e Figuerola, e, aos poucos, a procuradora foi percebendo que o modelo blomkvistiano tinha lá suas vantagens. Como procuradora, ela iria poder contar com a bem orquestrada mãozinha da imprensa de que precisaria para conduzir a acusação. Além disso, o processo seria tão rápido que a delicada investigação não teria tempo de vazar pelos corredores da administração e chegar aos ouvidos da Seção.

— Para o Blomkvist, antes de mais nada trata-se de fazer justiça a Lisbeth Salander. Desmascarar a Seção é mera conseqüência — constatou Rosa Figuerola.

O julgamento de Lisbeth Salander começaria dali a dois dias, na quarta--feira, e a reunião desta segunda tinha por objetivo revisar todo o material disponível e distribuir tarefas.

Treze pessoas participavam da reunião. Do Ministério Público, Ragnhild Gustavsson trouxera seus dois colaboradores mais próximos. Da Proteção à Constituição, estava presente a chefe das investigações, Rosa Figuerola, com seus colegas Stefan Bladh e Niklas Berglund. O diretor da Proteção à Constituição, Torsten Edklinth, participara como observador.

Ragnhild Gustavsson decidira, contudo, que um caso daquela importância não poderia, por uma questão de credibilidade, se limitar à Sapo. Motivo pelo qual chamara o inspetor Jan Bublanski e sua equipe, Sonja Modig, Jerker Holmberg e Curt Bolinder, da polícia comum. Eles vinham trabalhando no caso Salander desde a Páscoa e conheciam perfeitamente a história. Além disso, solicitara a presença da procuradora Agneta Járvas e do inspetor Marcus Ackerman, de Gõteborg. A investigação sobre a Seção tinha uma ligação direta com o inquérito sobre o assassinato de Alexander Zalachenko.

Quando Rosa Figuerola mencionou que o ex-primeiro-ministro Thorbjõrn Fãlldin deveria eventualmente ser chamado para testemunhar, Jerker Holmberg e Sonja Modig se mexeram na cadeira, incomodados.

Durante cinco horas, eles examinaram, um por um, nomes de pessoas identificadas como ativas na Seção, o que os fez concluir que a lei estava sendo infringida e que seria preciso efetuar algumas prisões. Sete pessoas ao todo, foram identificadas e relacionadas com o apartamento da Artillerigatan. Outras nove pessoas identificadas estariam ligadas à Seção, mas nunca apareciam na Artillerigatan. Trabalhavam sobretudo na Sapo, em Kungsholmen, porém já tinham se encontrado com um ou outro membro ativo da Seção.

— No momento, é impossível dizer até onde se estende essa conspiração. Não sabemos em que circunstâncias essas pessoas se encontram com Wadensjõõ ou com outro membro qualquer. Podem ser informantes ou podem ter sido levadas a acreditar que estão trabalhando para investigações internas ou algo assim. Fica, portanto, a dúvida sobre o envolvimento delas, e essa dúvida só será resolvida quando pudermos ouvi-las. São, além disso, pessoas que só notamos durante as semanas de vigilância; pode haver outras pessoas implicadas que ainda não conhecemos.

— Mas o secretário-geral e o chefe do orçamento...

— Não podemos afirmar com segurança que eles trabalham para a Seção.

Eram seis horas da tarde de segunda-feira quando Ragnhild Gustavsson resolveu fazer um intervalo de uma hora para que todos pudessem comer alguma coisa antes de voltarem à reunião.

Quando todos estavam se levantando e começando a se movimentar, Jesper Thoms, o colaborador de Rosa Figuerola na unidade de intervenção da Proteção à Constituição, pediu atenção para comunicar o que surgira de novo nas últimas horas de investigação.

— O Clinton esteve na diálise boa parte do dia e voltou para a Artillerigatan por volta das três horas. O único que fez alguma coisa diferente foi o Georg Nystrõm, só que não temos bem certeza do que foi.

— Ah, é? — disse Rosa Figuerola.

— Hoje, à uma e meia da tarde, o Nystrõm foi até a estação central se encontrar com dois sujeitos. Eles foram a pé até o hotel Sheraton e tomaram um café no bar. A conversa durou pouco mais de vinte minutos, e em seguida o Nystrõm voltou para a Artillerigatan.

— Humm. E quem eram esses sujeitos?

— Não sabemos. São umas caras novas. Dois homens na faixa dos trinta anos, com jeito de quem vem do Leste europeu. Infelizmente, nosso investigador os perdeu de vista quando pegaram o metrô.

— Ah, é? — disse Rosa Figuerola, cansada.

— Tiramos umas fotos deles — disse Jesper Thoms, passando-lhe uma seqüência de fotografias.

Ela examinou aqueles rostos, que via pela primeira vez.

— Certo, obrigada — disse, e, deixando as fotos em cima da mesa de reuniões, levantou-se para ir buscar alguma coisa para comer.

Curt Bolinder, que estava a seu lado, baixou os olhos para as fotos.

— Puta merda! — disse ele. — Os irmãos Nikoliç estão metidos nisso? Rosa Figuerola se deteve.

— Quem?

— Esses dois aqui são uns verdadeiros bandidos — disse Curt Bolinder. — Tomi e Miro Nikoliç.

— Você conhece?

— Conheço. São dois irmãos, eles vêm de Huddinge. Sérvios. Já vigiamos os dois em várias ocasiões, quando eles tinham seus vinte anos, na época eu estava na Brigada Antigangue. O mais perigoso dos dois é o Miro Nikoliç. Aliás, faz um ano que está sendo procurado por violências agravadas. Eu pensei que eles tivessem voltado para a Sérvia e virado políticos ou coisa do gênero.

— Políticos?

— É. Eles estiveram na Iugoslávia na primeira metade dos anos 1990 para dar uma mãozinha na faxina étnica. Trabalhavam para o chefão da máfia, o Arkan, que mantinha uma espécie de milícia fascista particular. Eles tinham a fama de ser shooters.

— Shooters?

— Matadores de aluguel. Circulavam entre Belgrado e Estocolmo. O tio deles tem um restaurante em Norrmalm, onde eles oficialmente trabalhavam de vez em quando. Tivemos várias indicações de que teriam participado de pelo menos dois assassinatos, ligados a acertos de conta internos, naquela guerra dos cigarros dos iugoslavos, mas nunca conseguimos prendê-los por motivo nenhum.

Rosa Figuerola, calada, olhou para as fotos da investigação. Então ficou lívida. Fitou Torsten Edklinth.

— O Blomkvist! — ela exclamou, em pânico. — Eles não vão se contentar em detonar a reputação dele. Vão matá-lo e deixar que a polícia encontre a cocaína durante o inquérito e tire suas próprias conclusões.

Edklinth encarou-a fixamente.

— Ele ia se encontrar com a Erika Berger no Samirs Gryta — disse Rosa Figuerola. Ela tocou no ombro de Curt Bolinder. — Você está armado?

— Estou...

— Venha comigo.

Rosa Figuerola saiu correndo da sala de reuniões. Sua sala ficava três portas adiante no corredor. Destrancou a porta e pegou sua arma de serviço na gaveta da mesa. Desrespeitando o regulamento, deixou a porta de sua sala escancarada enquanto corria para os elevadores. Curt Bolinder ficou um segundo indeciso.

— Vá — disse Bublanski. — Sonja... vá com eles.

Mikael Blomkvist chegou ao Samirs Gryta às 18h20. Erika Berger acabava de sentar-se a uma mesa vazia ao lado do bar, perto da entrada. Ele beijou-a no rosto. Pediram uma boa cerveja e um salteado de cordeiro cada um, e a cerveja logo foi servida.

— Como estava a Moça da TV4? — perguntou Erika Berger.

— Vistosa como sempre. Erika Berger riu.

— Se você não se cuidar, ela vai acabar virando uma obsessão. Já pensou, uma mulher resistindo ao charme de Blomkvist?

— Um monte de mulheres resistiu nesses anos todos — disse Mikael Blomkvist. — Como foi seu dia?

— Um desperdício. Mas aceitei participar de um debate sobre o SMP no Clube dos Articulistas. Foi minha última contribuição para essa história.

— Maravilha.

— Você não sabe como é sensacional estar de volta à Mülennium — disse ela.

— E você nem imagina como é maravilhoso ter você de volta. Ainda estou todo emocionado.

— Ir para o trabalho voltou a ser uma coisa legal.

— Humm.

— Estou feliz.

— E eu preciso ir ao banheiro — disse Mikael levantando-se.

Deu alguns passos e por pouco não esbarrou num homem de uns trinta anos que acabava de entrar no restaurante. Mikael notou que ele tinha a aparência de alguém do Leste europeu e que o encarava. Então viu a metralhadora.

Estavam passando por Riddarholmen quando Torsten Edklinth ligou avisando que nem Mikael Blomkvist nem Erika Berger estavam atendendo o celular. Decerto tinham desligado seus aparelhos para jantar em paz.

Rosa Figuerola soltou um palavrão e atravessou a praça de Sõdermalm a quase oitenta quilômetros por hora, a mão grudada na buzina. Quando fez violentamente a curva da Hornsgatan, Curt Bolinder precisou se segurar na porta. Ele tinha puxado sua arma e conferia se estava carregada. Sonja Modig fazia o mesmo no banco de trás.

— Vamos ter que pedir reforços — disse Curt Bolinder. — Com os irmãos Nikoliç não se brinca.

Rosa Figuerola concordou.

— Vamos fazer o seguinte — disse ela. — Eu e a Sonja vamos entrar direto no Samirs Gryta, na esperança de que estejam lá. Curt, você, que conhece os irmãos, fica do lado de fora de olho bem aberto.

— Certo.

— Se estiver tudo tranqüilo, levamos imediatamente o Blomkvist e a Berger para o carro, e para Kungsholmen. Se sentirmos qualquer coisa no ar, ficamos no restaurante e pedimos reforços.

— Certo — disse Sonja Modig.

Rosa Figuerola ainda estava na Hornsgatan quando o rádio do painel começou a chiar.

Todas as unidades. Alerta de tiroteio na Tavastgatan, em Sõdermalm. Tiroteio no restaurante Samirs Gryta.

De repente, Rosa Figuerola sentiu seu estômago se torcer.

Erika Berger viu Mikael Blomkvist esbarrar num homem de uns trinta anos enquanto ia até o banheiro, que ficava perto da entrada. Ela franziu o cenho sem saber direito por quê. Tinha a impressão de que o desconhecido fitava Mikael com uma expressão surpresa. Perguntou-se se não seria algum conhecido dele.

Então viu o homem dar um passo para trás e largar uma sacola no chão. De início, ela não entendeu o que via. Ficou paralisada quando percebeu que ele apontava uma arma automática para Mikael.

Mikael Blomkvist reagiu sem pensar. Segurou o cano com a mão esquerda e apontou-o para o teto. Por um microssegundo, a boca da arma passou diante de seu rosto.

Naquele lugar minúsculo, o crepitar da pistola-metralhadora foi ensurdecedor. Uma chuva de gesso e vidro do lustre pulverizado desabou sobre Mikael enquanto Miro Nikoliç soltava uma rajada de uma dezena de balas. Por um instante, Mikael Blomkvist olhou nos olhos do homem que queria a sua morte.

Então Miro Nikoliç deu um passo para trás. Arrancou a arma das mãos de Mikael, que, pego de surpresa, soltou o cano. Mikael percebeu de repente que sua vida corria perigo. Sem pensar, jogou-se sobre o agressor em vez de se esconder. Mais tarde, saberia que se tivesse agido de outra forma, se tivesse se abaixado ou recuado, teria sido morto no ato. Mais uma vez, conseguiu segurar o cano da arma. Usou todo o seu peso para encurralar o homem contra a parede. Ainda escutou seis ou sete tiros sendo disparados e pressionou desesperadamente a metralhadora tentando apontar o cano para o chão.

Erika Berger se abaixou instintivamente quando veio a segunda rajada de tiros. Caiu e bateu a cabeça numa cadeira. Então se encolheu no chão, ergueu os olhos e viu os três buracos que as balas tinham deixado na parede, no lugar exato em que ela estava sentada no minuto anterior.

Abalada, virou a cabeça e viu Mikael Blomkvist lutando com o homem perto da entrada. Estava caído de joelhos, segurando a metralhadora com as duas mãos e tentando apoderar-se dela. Viu o agressor lutando para se soltar Com o punho, batia sem parar no rosto e na têmpora de Mikael.

Rosa Figuerola freou bruscamente em frente ao Samirs Gryta, abriu a porta do carro com violência e correu para o restaurante. Estava com a Sig Sauer na mão quando notou o carro estacionado bem em frente ao restaurante.

Viu Tomi Nikoliç ao volante e apontou a arma para o rosto dele do outro lado do vidro.

— Polícia. Mostre as mãos! — gritou. Tomi Nikoliç levantou as mãos.

— Saia do carro e deite no chão — ela berrou com a voz cheia de raiva. Virou a cabeça e olhou rapidamente para Curt Bolinder. — O restaurante — disse.

Curt Bolinder e Sonja Modig atravessaram a rua o mais rápido possível.

Sonja Modig pensou em seus filhos. Ia contra todas as normas policiais correr para um prédio de arma na mão sem uma boa retaguarda no local, sem colete à prova de balas e sem uma visão total da situação...

Então ela ouviu o som de um tiro disparado dentro do restaurante.

Mikael Blomkvist conseguira enfiar o dedo médio entre o gatilho e o protetor do gatilho, quando Miro Nikoliç recomeçou a atirar. Ouviu um vidro se quebrando atrás dele. Sentiu uma dor atroz quando o atirador acionou o gatilho várias vezes seguidas, prensando seu dedo; mas enquanto o dedo estivesse ali os tiros não podiam ser disparados. Os socos choviam na lateral de seu rosto e ele de repente se sentiu com quarenta e cinco anos e realmente com um péssimo condicionamento físico.

Eu não vou conseguir. Isto precisa acabar.

Foi seu primeiro pensamento racional desde que vira o homem com a metralhadora.

Cerrou os dentes e enfiou ainda mais o dedo atrás do gatilho.

Então, inclinando-se e pressionando o piso com os pés, jogou o ombro no corpo do matador. Soltou a mão direita da metralhadora e ergueu o cotovelo para se proteger dos golpes. Miro Mikoliç começou a bater em sua axila e nas costelas. Por um segundo, ficaram mais uma vez face a face.

No momento seguinte, Mikael sentiu que afastavam o matador dali Sentiu uma última dor fulgurante no dedo e avistou a figura imensa de Curt Bolinder. Bolinder levantou Miro Nikoliç literalmente pela pele do pescoço e bateu sua cabeça contra a parede. Miro Nikoliç desabou feito um pacote flácido.

— Deitado — ouviu Sonja Modig gritar. — Polícia. Fique deitado! Virou a cabeça e a viu de pé, pernas afastadas e segurando a arma com ambas as mãos, enquanto tentava formar uma idéia da caótica situação. Por fim, ergueu a arma para o teto e voltou o olhar para Mikael Blomkvist.

— Você está ferido? — perguntou.

Mikael olhou para ela, destruído. O nariz e as sobrancelhas sangravam.

— Acho que um dedo quebrou — disse ele, e sentou-se no chão.

Rosa Figuerola recebeu ajuda da Brigada de Sõdermalm menos de um minuto depois de ter feito Tomi Nikoliç se deitar na calçada. Ela se identificou e deixou que os policiais fardados cuidassem do prisioneiro, correndo ela própria para o restaurante. Ao chegar à porta parou, tentando avaliar a situação.

Mikael Blomkvist e Erika Berger estavam sentados no chão. Mikael tinha sangue no rosto e parecia em estado de choque. Rosa soltou um suspiro de alívio. Ele estava vivo. Então franziu a testa quando viu Erika Berger passar o braço pelos ombros dele.

Sonja Modig estava agachada, examinando a mão de Blomkvist. Curt Bolinder punha as algemas em Miro Nikoliç, que parecia ter sido atropelado por um trem expresso. Avistou, no chão, um policial militar do Exército sueco.

Ergueu os olhos e viu os funcionários do restaurante chocados, clientes apavorados e um cenário de louças quebradas, cadeiras e mesas viradas e outros estragos causados pelos inúmeros tiros. Sentiu cheiro de pólvora. Mas não via nenhum morto ou ferido no local. Os policiais da viatura de apoio entraram' empunhando armas. Ela estendeu a mão e tocou no ombro de Curt Bolinder. Ele se levantou.

— Você disse que Miro Nikoliç estava sendo procurado?

— Isso mesmo. Violências agravadas, há cerca de um ano. Uma briga em Hallunda.

— Certo. Nós vamos fazer o seguinte. Eu vou sumir rapidinho com o Blomkvist e a Berger. Você fica. Versão oficial: você e a Sonja Modig vieram jantar aqui juntos, você reconheceu o Nikoliç do tempo que passou na Brigada Antigangue. Tentou interpelá-lo, ele puxou a arma e começou a atirar feito doido. Você o prendeu.

Curt Bolinder pareceu surpreso.

— Não vai colar... há testemunhas.

— As testemunhas vão dizer que umas pessoas brigaram e deram uns tiros. O importante é a minha história colar até saírem os jornais de amanhã à tarde. Portanto, a versão é que os irmãos Nikoliç foram presos por acaso porque você os reconheceu.

Curt Bolinder contemplou o caos ao seu redor. Então concordou rapidamente com a cabeça.

Rosa Figuerola abriu caminho na rua em meio à multidão de policiais e acomodou Mikael Blomkvist e Erika Berger no banco de trás do seu carro. Virou-se para o comandante e falou com ele em voz baixa por uns trinta segundos. Fez um sinal na direção do carro em que estavam Mikael e Erika. O comandante pareceu perturbado, mas acabou assentindo com a cabeça. Ela dirigiu até Zinkensdamm, estacionou e virou-se para trás.

— Você está muito machucado?

— Levei alguns socos. Meus dentes continuam no lugar. Estourei o dedo.

— Vamos para o pronto-socorro de Sankt Gõran.

— O que aconteceu? — perguntou Erika Berger. — Quem é você?

— Me desculpem — disse Mikael. — Erika, essa é a Rosa Figuerola. Ela trabalha na Sapo. Rosa, essa é a Erika Berger.

— Eu imaginei — disse Rosa Figuerola com uma voz sem expressão. Ela não encarava Erika Berger.

— Eu e a Rosa nos conhecemos durante as investigações. Ela é o meu contato na Sapo.

— Entendo — disse Erika Berger, que de repente começou a tremer por causa do choque.

Rosa Figuerola observou Erika Berger.

— O que aconteceu? — perguntou Mikael.

— A gente entendeu errado o lance da cocaína — disse Rosa Figuerola. — Achamos que eles tinham preparado uma armadilha para te comprometer. Na verdade, a intenção deles era te matar e deixar a polícia encontrar a cocaína durante o exame técnico do seu apartamento.

— Que cocaína? — perguntou Erika Berger. Mikael fechou os olhos por um instante.

— Me leve para Sankt Gõran — disse.

— Presos? — exclamou Fredrik Clinton. Sentiu um ligeiro aperto no coração.

— Achamos que não há perigo — disse Georg Nystrõm. — Parece que foi puro acaso.

— Acaso?

— O Miro Nikoliç estava sendo procurado por uma história antiga de golpes e ferimentos. Um tira da Segurança Pública o reconheceu e prendeu quando ele entrou no Samirs Gryta. O Nikoliç entrou em pânico e tentou escapar atirando.

— E o Blomkvist?

— Não se envolveu no incidente. Nem sabemos se ele estava no Samirs Gryta na hora da prisão.

— Porra, eu não acredito — disse Fredrik Clinton. — O que os irmãos Nikoliç sabem?

— Sobre nós? Nada. Eles acham que o Bjõrck e o Blomkvist eram serviços ligados ao tráfico de mulheres.

— Mas eles sabem que o alvo era o Blomkvist?

— Sabem, mas eles não vão sair contando que aceitaram um serviço. Vão ficar'bem quietinhos até o julgamento. Vão ser condenados por porte ilegal de armas e, imagino, por agressão a um agente do governo.

— Autênticos amadores — disse Clínton.

— É, eles pisaram mesmo na bola. Só nos resta deixar o Blomkvist à solta por enquanto, mas nada está perdido.

Eram onze da noite quando Susanne Linder e dois saradões da proteção pessoal da Milton Security vieram buscar Mikael Blomkvist e Erika Berger em Kungsholmen.

— Pode-se dizer que você realmente não perde uma — disse Susanne Linder para Erika Berger.

— Pois é... — respondeu Erika com voz neutra.

Só dentro do carro, a caminho do hospital de Sankt Góran, é que Erika se deu conta do que havia acontecido. De repente concluiu que tanto ela como Mikael Blomkvist por pouco não haviam sido mortos.

Mikael ficou uma hora no pronto-socorro, tempo para que cuidassem do seu rosto, tirassem uma radiografia e enfaixassem seu dedo médio esquerdo. Tinha uma contusão grave na ponta do dedo e provavelmente iria perder a unha. O ferimento mais sério, por ironia do destino, ocorrera durante a intervenção de Curt Bolinder, quando ele puxara Miro Nikoliç para trás. O dedo de Mikael ficara preso no protetor do gatilho e se quebrara na hora. Sentia uma dor insuportável, mas sua vida certamente não corria risco.

Mikael só foi sentir o impacto de tudo aquilo quase duas horas depois, quando chegou à Proteção à Constituição da Sapo para fazer um relatório ao inspetor Bublanski e à procuradora Ragnhild Gustavsson. De repente, começou a tremer da cabeça aos pés e se sentiu tão cansado que por pouco não dormiu entre uma pergunta e outra. Discutiram um pouco o assunto.

— Não sabemos o que eles pretendem fazer — disse Rosa Figuerola. — Não sabemos se eles queriam dar um fim apenas no Blomkvist ou se a Berger também seria morta. Não sabemos se eles vão tentar de novo nem se mais alguém da Millennium está ameaçado... E por que não matar a Salander, que representa a verdadeira ameaça à Seção?

— Enquanto o Mikael estava sendo atendido, liguei para o pessoal da Millennium para contar o que tinha acontecido — disse Erika Berger. — Eles vão sair um pouco de circulação até a revista ser publicada. A redação vai ficar vazia.

A primeira reação de Torsten Edklinth tinha sido pedir de imediato proteção pessoal para Mikael Blomkvist e Erika Berger. Depois, ele e Rosa Fi-guerola ponderaram que talvez não fosse a melhor coisa chamar a Brigada de Proteção à Pessoa da Sapo.

Erika Berger resolvera o problema declarando que não queria nenhuma proteção policial. Pegou o telefone, ligou para Dragan Armanskij e explicou a situação. Assim, Susanne Linder foi chamada de volta ao trabalho, às pressas, tarde da noite.

Mikael Blomkvist e Erika Berger foram instalados no piso superior de uma safe house situada pouco depois de Drottningholm, na estrada do centro de Ekerõ. Era uma casa grande dos anos 1930, com vista para o mar, um jardim espetacular, construções anexas e cercada de terras. A propriedade pertencia à Milton Security, mas era ocupada por Martina Sjõgren, de sessenta e oito anos, viúva de Hans Sjõgren, um antigo e fiel funcionário, morto num acidente quinze anos antes. Durante uma missão, ele caíra sobre o piso apodrecido de uma casa abandonada na região de Sala. Depois do enterro, Dragan Armanskij conversara com Martina Sjõgren e a contratara como intendente e administradora da propriedade. Ela morava de graça num anexo do térreo e mantinha o primeiro piso em ordem para ocasiões como aquelas, que ocorriam algumas vezes ao ano, quando a Milton Security precisava abrigar pessoas que, por motivos reais ou imaginários, temiam por sua segurança.

Rosa Figuerola acompanhou-os. Deixou-se cair numa cadeira da cozinha e aceitou o café que Martina Sjõgren lhe servia, enquanto Erika Berger e Mikael Blomkvist iam se instalar no andar de cima e Susanne Linder verificava os alarmes e o equipamento eletrônico de vigilância em volta da propriedade.

— Temos escovas de dentes e artigos de higiene pessoal na cômoda em frente ao banheiro — gritou Martina Sjõgren na escada.

Susanne Linder e os dois guarda-costas da Milton Security se acomodaram num cômodo do andar térreo.

— Eu ainda não parei desde que me acordaram às quatro da manhã — disse Susanne Linder. — Vocês podem montar um rodízio, mas me deixem dormir pelo menos uma hora.

— Pode dormir a noite toda, a gente cuida disso — disse um dos agentes.

— Obrigada — disse Susanne Linder, e foi se deitar.

Rosa Figuerola escutou, distraída, os guarda-costas ligarem os sensores de movimento no jardim e jogarem no palitinho para ver quem ficaria com o primeiro turno do plantão. O perdedor preparou um sanduíche e se instalou numa sala de televisão ao lado da cozinha. Rosa Figuerola examinou as xícaras de café floridas. Ela também estava de pé desde muito cedo e também se sentia esgotada. Estava pensando em voltar para casa quando Erika Berger desceu e serviu-se de uma xícara de café. Sentou-se do outro lado da mesa.

— O Mikael desabou no sono assim que se deitou.

— Uma reação à adrenalina — disse Rosa Figuerola.

— O que vai acontecer agora?

— Vocês vão ficar bem quietinhos por alguns dias. Daqui a uma semana vai estar tudo acabado, seja qual for o fim da história. Como está se sentindo?

— Ufa. Ainda meio abalada. Não é todo dia que acontece uma coisa assim. Acabo de ligar para o meu marido para explicar por que não vou para casa hoje.

— Humm.

— Eu sou casada com...

— Eu sei com quem você é casada.

Silêncio. Rosa Figuerola esfregou os olhos e bocejou.

— Preciso ir para casa dormir — disse.

— Por favor, pare com essa bobagem e vá se deitar com o Mikael — disse Erika.

Rosa Figuerola olhou para ela.

— Está tão na cara assim? — perguntou. Erika balançou a cabeça, negando.

— O Mikael falou alguma coisa...

— Não falou nada. Ele costuma ser bastante discreto sobre suas namoradas. Mas às vezes ele é um livro aberto. E você, quando olha para mim, é descaradamente hostil. Vocês estão tentando esconder alguma coisa.

— É por causa do meu chefe — disse Rosa Figuerola.

— O seu chefe?

— O Torsten Edklinth ficaria furioso se soubesse de mim e do Mikael...

— Entendo. Silêncio.

— Eu não sei o que está havendo entre você e o Mikael, mas eu não sou uma rival — disse Erika.

— Não é?

— O Mikael e eu somos amantes de vez em quando. Mas não sou casada com ele.

— Pelo que entendi, vocês têm um relacionamento especial. Ele falou de você quando estávamos em Sandhamm.

— Ele levou você para Sandhamm? Então é coisa séria.

— Não brinque comigo.

— Rosa... eu espero que você e o Mikael... vou procurar ficar no meu lugar.

— E se você não conseguir? Erika Berger deu de ombros.

— A ex-mulher dele caiu em depressão quando o Mikael foi infiel comigo. Botou ele para fora. Por culpa minha. Enquanto o Mikael estiver solteiro e disponível, não pretendo ter nenhum escrúpulo. Mas prometi a mim mesma que se ele se envolvesse seriamente com alguém eu me afastaria.

— Não sei se me arrisco a investir nessa relação.

— O Mikael é especial. E você está apaixonada por ele.

— Acho que sim.

— Então não o ponha logo contra a parede. E agora vá se deitar.

Rosa refletiu um pouco. Então subiu ao piso superior, despiu-se e deitou-se na cama junto de Mikael. Ele resmungou alguma coisa e pôs o braço em sua cintura.

Erika Berger ficou um bom tempo a sós na cozinha com seus pensamentos. Sentiu-se, de repente, profundamente infeliz.


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