9. QUARTA-FEIRA - 4 DE MAIO


Por volta do meio-dia da quarta-feira, três dias depois de Erika Berger ter assumido o cargo de redatora-chefe no SMP, ainda sob a orientação do redator-chefe Hâkan Morander, ele morreu. Ele passara a manhã no aquário enquanto Erika, acompanhada do assistente de redação Peter Fredriksson, participava de uma reunião com a equipe de Esportes para conhecer os colaboradores e avaliar como a editoria funcionava. Fredriksson tinha quarenta e cinco anos e, como Erika Berger, era relativamente novo no SMP. Fazia apenas quatro anos que trabalhava no jornal. Era taciturno, de modo geral competente e agradável, e Erika já resolvera contar com os conhecimentos de Fredriksson quando assumisse o comando do barco. Ela gastava boa parte de seu tempo tentando definir em quem confiar e quem integrar de imediato no seu novo esquema. Fredriksson, definitivamente, era um dos candidatos. Estavam retornando à área central da redação quando viram, no aquário, Hâkan Morander se levantar e se aproximar da porta.

Parecia estupefato.

Então ele se curvou e agarrou o encosto de uma cadeira por alguns segundos, desabando em seguida no chão.

Já estava morto quando a ambulância chegou.


O clima da redação durante a tarde foi confuso. O presidente do conselho administrativo, Magnus Borgsjõ, chegou por volta das duas horas e reuniu todos os colaboradores para uma rápida homenagem. Falou sobre Morander, que dedicara os últimos quinze anos de sua vida ao jornal, e sobre o preço que o jornalismo às vezes cobrava. Propôs um minuto de silêncio. Depois olhou inseguro à sua volta, como se não soubesse direito como continuar.

Morrer no local de trabalho não é comum — é mesmo bastante raro. É de bom-tom se retirar para morrer. Desaparecer na aposentadoria ou no sistema de saúde e um dia, de repente, virar assunto de conversa na cafeteria da empresa. "Por falar nisso, você viu que o velho Karlsson morreu na sexta-feira? E, do coração. O sindicato decidiu mandar uma coroa de flores para o enterro." Morrer no local de trabalho, na frente dos colegas, incomoda muito mais. Erika percebeu o choque que pairava sobre a redação. O SMP estava sem leme. De repente, se deu conta de que diversos funcionários olhavam para ela. A carta desconhecida.

Sem ter sido convidada e sem saber de fato o que dizer, deu uma tossidinha, um passo à frente e falou com voz forte e segura.

— Conheci o Hâkan Morander há apenas três dias. E pouco tempo, mas, pelo pouco que pude observar, posso dizer com toda a sinceridade que gostaria de ter tido a oportunidade de conhecê-lo melhor.

Fez uma pausa quando viu, pelo canto do olho, que Borgsjõ a observava. Parecia surpreso por ela ter tomado a palavra. Ela deu mais um passo à frente. Não sorria. Você não pode sorrir. Iria parecer insegura. Ela ergueu um pouco a voz.

— O falecimento repentino de Morander vai criar problemas aqui na redação. Estava previsto que eu o sucedesse daqui a dois meses, e eu gostava da idéia de ter mais tempo para absorver a experiência dele.

Percebeu que Borgsjõ abria a boca para falar.

— Mas não é assim que vai ser, e durante algum tempo nós vamos passar por algumas mudanças. Acontece que o Morander era redator-chefe de um jornal diário, e esse jornal terá de sair amanhã. Neste momento, temos nove horas até a última impressão, e quatro horas até a última prova da página dos editoriais. Posso perguntar... quem de vocês era o melhor amigo e confidente de Morander?

Houve um breve silêncio enquanto os funcionários se entreolhavam. Por fim, Erika escutou uma voz à sua esquerda.

— Acho que era eu. Gunder Storman, tenho sessenta e um anos, sou assistente de redação da página dos editoriais e estou há trinta e cinco anos no SMP.

— Alguém precisa escrever o obituário do Morander. Não posso fazer isso... seria muita presunção da minha parte. Você se sente capaz de escrever esse texto?

Gunder Storman hesitou um instante, depois assentiu com a cabeça.

— Eu me encarrego disso.

— Vamos usar a página dos editoriais inteira e tirar todo o resto. Gunder concordou com a cabeça.

— Precisamos de fotos...

Ela olhou à direita para o editor de fotografia, Lennart Torkelsson. Ele fez um sinal de assentimento com a cabeça.

— Precisamos pôr mãos à obra. Pode haver alguma turbulência nos próximos dias. Quando eu precisar de ajuda para tomar decisões, vou consultá-los e confiar na competência e experiência de vocês. Vocês sabem como fazer este jornal, ao passo que eu ainda vou ter que passar algum tempo no banco da escola.

Voltou-se para Peter Fredriksson, o assistente de redação.

— Peter, o Morander comentou que tinha absoluta confiança em você. Você será o meu mentor nos próximos dias, e vai ficar um pouco mais atarefado que de costume. Vou te pedir para ser meu conselheiro. Tudo bem para você?

Ele fez que sim com a cabeça. O que mais poderia fazer? Voltou-se novamente para o Editorial.

— Outra coisa... hoje de manhã o Morander estava redigindo o editorial. Gunder, você poderia ver no computador dele se ele tinha acabado? Mesmo que não esteja totalmente pronto, vamos publicá-lo. É o último editorial de Hâkan Morander e seria vergonhoso não publicá-lo. O jornal em que estamos trabalhando hoje ainda é o jornal de Hâkan Morander.

Silêncio.

— Se vocês sentirem necessidade de fazer uma pausa para pensar nele, façam, sem culpa nenhuma. Vocês sabem quais são os deadlines.

Silêncio. Ela reparou que algumas pessoas meneavam de leve a cabeça em sinal de aprovação.

— Bem, ao trabalho todo mundo — disse ela em voz baixa.

Jerker Holmberg afastou as mãos num gesto de impotência. Jan Bublanski e Sonja Modig estavam com uma expressão cética e Curt Bolinder com uma expressão neutra. Os três contemplavam o resultado do inquérito preliminar que Holmberg concluíra naquela manhã.

— Nada? — disse Sonja Modig. Ela parecia surpresa.

— Nada — disse Holmberg, balançando a cabeça. — O relatório do legista chegou hoje de manhã. Nada indica que não tenha sido mesmo suicídio por enforcamento.

Seus olhares percorreram as fotografias tiradas na sala da casa de campo de Smâladarõ. Tudo indicava que Gunnar Bjõrck, chefe-adjunto da Brigada dos Estrangeiros da Sapo, prendera uma corda no gancho do lustre, passara-a em volta do pescoço e, resolutamente, chutara o banquinho a uma distância de vários metros. O médico-legista tinha hesitado quanto à hora exata da morte, mas acabara definindo que fora na tarde de 12 de abril. Bjõrck fora encontrado no dia 17 por Curt Bolinder. Bublanski tentara entrar em contato com Bjõrck várias vezes, acabara se irritando e mandara Bolinder ir buscá-lo.

Em algum momento entre essas datas, o gancho se soltara do teto com o peso, e o corpo caíra no chão. Bolinder vira Bjõrck através de uma janela e dera o alerta. Bublanski e os outros que foram até o local tinham, de saída, considerado a casa como o cenário de um crime; tiveram a impressão que Bjõrck tinha sido garroteado por alguém. Em seguida, a equipe técnica descobriu o gancho no teto. Coubera a Jerker Holmberg a tarefa de estabelecer de que modo Bjõrck tinha morrido.

— Nada indica que tenha havido um crime nem que Bjõrck estivesse com alguém naquele momento — disse Holmberg.

— O lustre...

— O lustre tem as digitais do proprietário da casa — que o instalou há dois anos — e as do próprio Bjõrck. O que mostra que ele tirou a lâmpada.

— De onde saiu a corda?

— Do mastro do pavilhão atrás da casa. Alguém cortou mais de dois metros da corda. Havia uma faca no peitoril da janela, em frente à porta do terraço. O proprietário diz que a faca era dele. Ele geralmente a guardava numa caixa de ferramentas debaixo da pia. As digitais de Bjõrck estão tanto no cabo e na lâmina como na caixa de ferramentas. .— Humm — fez Sonja Modig.

— Qual era o tipo de nó? — perguntou Curt Bolinder.

— Eram nós comuns. O nó corrediço propriamente dito não passa de um simples laço. Essa talvez seja a única coisa meio estranha. O Bjõrck velejava e sabia dar nós de verdade. Mas vai saber se um homem prestes a se suicidar se dá ao trabalho de pensar em nós.

— Alguma droga?

— Segundo o laudo toxicológico, no sangue de Bjõrck há vestígios de analgésicos potentes. São remédios vendidos com receita e que tinham sido prescritos para ele. Também há vestígios de álcool, mas uma quantidade mínima. Ou seja, ele estava praticamente sóbrio.

— O médico-legista escreveu que ele estava com algumas escoriações.

— Uma, de três centímetros de comprimento, na face externa do joelho esquerdo. Um arranhão. Pensei nisso, mas pode ter acontecido de mil maneiras... ele pode, por exemplo, ter esbarrado numa cadeira ou algo do gênero.

Sonja Modig ergueu uma foto que mostrava o rosto deformado de Bjõrck. O nó corrediço penetrara a pele com tal profundidade que já não se enxergava a corda propriamente dita. Seu rosto apresentava um inchaço grotesco.

— Dá para afirmar que ele ficou pendurado ali várias horas, quase vinte e quatro, antes de o gancho ceder. O sangue se concentrou, de um lado, na cabeça, onde o nó corrediço não permitiu que ele fluísse para o resto do corpo, e de outro, nas extremidades inferiores. Quando o gancho cedeu, ele bateu com a caixa torácica na quina da mesa de jantar. Mas essa lesão ocorreu muito tempo depois da morte.

— Que jeito escroto de morrer — disse Curt Bolinder.

— Não tenho tanto certeza. A corda era tão fina que penetrou profundamente a pele e deteve o fluxo sangüíneo. Ele deve ter perdido a consciência em poucos segundos e morreu em um ou dois minutos.

Bublanski fechou o inquérito preliminar com cara de nojo. Não estava gostando nem um pouco. Não gostava nada de Zalachenko e Bjõrck terem morrido no mesmo dia. Um, eliminado por um justiceiro demente, e o outro por suas próprias mãos. Mas, qualquer que fosse a especulação, não se podia negar o fato de que o exame da cena do crime em nada corroborava a tese de que alguém teria ajudado Bjórck a morrer.

— Ele vinha sofrendo uma pressão enorme — disse Bublanski. — Sabia que o caso Zalachenko estava sendo desmantelado, que ele próprio corria o risco de ser pego por infringir a lei de remuneração de serviços sexuais e também de ficar exposto na mídia. Estava doente e convivia com uma dor crônica fazia já algum tempo... Não sei. Eu gostaria que ele tivesse deixado uma carta ou algo assim.

— Muitos candidatos ao suicídio não escrevem cartas de despedida.

— Eu sei. Tudo bem. Não temos escolha. Vamos arquivar o Bjórck.


Erika Berger foi incapaz de se instalar de imediato na cadeira de Morander dentro do aquário e separar os objetos pessoais dele. Combinou com Gunder Storman que ele falaria com a viúva e pediria que ela viesse pegar o que pertencera ao marido quando fosse conveniente para ela.

Por enquanto, contentou-se em abrir um pequeno espaço de trabalho no meio do oceano da redação, onde colocou seu laptop e assumiu o comando. Foi um caos. Mas três horas depois de ela prontamente assumir o leme do SMP, a página do editorial estava no prelo. Gunder Storman redigira quatro colunas sobre a vida e a obra de Hâkan Morander. A página estava montada em torno de uma foto de Morander, no centro, com seu editorial inacabado à esquerda e uma série de fotos na parte inferior. A diagramação estava precária, mas tinha um toque de emoção que tornava as imperfeições aceitáveis.

Pouco antes das seis da tarde, Erika percorria os títulos da primeira página e discutia alguns textos com o chefe de redação, quando Borgsjõ apareceu e tocou seu ombro. Ela ergueu os olhos.

— Eu queria falar com você.

Foram juntos até a máquina de café na sala dos funcionários.

— Eu só queria dizer que gostei muito da maneira como você assumiu o comando hoje. Acho que surpreendeu a todos nós.

— É que eu não tinha muito por onde escapar. Mas as coisas vão ficar meio instáveis até eu pegar o jeito.

— A gente sabe.

— A gente?

— Quero dizer, tanto os funcionários como a direção. Especialmente a direção. Mas depois de tudo que aconteceu hoje estou mais do que convencido de que você é a pessoa de que precisamos. Caiu como sopa no mel e teve de assumir as rédeas numa situação muito difícil.

Erika por pouco não enrubesceu, coisa que não acontecia desde seus catorze anos.

— Posso lhe dar um conselho?

— Naturalmente.

— Ouvi dizer que haveria divergências entre você e o chefe de Atualidades, o Lukas Holm.

— Nós discordamos quanto à orientação do texto .sobre a proposta fiscal do governo. Ele tinha opinado demais na página de Atualidades. A gente deve manter a neutralidade quando se trata de informação bruta. As opiniões ficam para as páginas dos editoriais. E, por falar nisso: pretendo escrever um editorial de vez em quando, mas como não milito em nenhum partido político vamos ter de decidir quem vai assumir a frente dos editoriais.

— O Storman pode cuidar disso até segunda ordem — disse Borgsjõ. Erika deu de ombros.

— Quem você escolher para mim está bom. Mas, a princípio, precisa ser alguém que responda pelas posições do jornal.

— Entendo. O que eu queria dizer é que seria bom você deixar certa margem de manobra para o Holm. Ele já está há tempos no SMP e faz quinze anos que é chefe de Atualidades. Ele sabe o que faz. Às vezes se mostra meio obtuso, mas é praticamente indispensável.

— Sei disso. O Morander me falou. Mas no que diz respeito à nossa política de atualidades, tenho a impressão que eu vou precisar colocá-lo na linha. Afinal, vocês me contrataram para renovar o jornal.

Borgsjõ balançou a cabeça, pensativo.

— Está bem. O jeito é ir resolvendo os problemas à medida que eles aparecerem.

Annika Giannini estava não só cansada como irritada na quarta-feira à noite, quando pegou o X2000 na estação central de Gõteborg para voltar a Estocolmo. Tinha a impressão de estar morando no trem naquele último mês. A família fora relegada a segundo plano. Foi buscar um café no vagão--restaurante e, ao retornar ao seu lugar, abriu a pasta que continha as anotações de sua última entrevista com Lisbeth Salander. Ela também era uma das razões de seu cansaço e irritação.

Ela está escondendo coisas, pensou Annika Giannini. Essa idiota não está me dizendo a verdade. E o Mike também está me ocultando alguma coisa. Só Deus sabe o que eles estão aprontando.

Considerando-se que não houvera nenhuma comunicação entre seu irmão e sua cliente, as manobras deles — se é que havia manobra — deviam ser fruto de algum acordo tácito e natural. Ela não sabia do que se tratava, mas supunha ser algo que Mikael Blomkvist julgava importante esconder.

Temia que fosse alguma questão moral, o ponto fraco de seu irmão. Ele era amigo de Lisbeth Salander. Annika o conhecia muito bem e sabia que ele era leal até as raias da estupidez com aqueles que classificava definitivamente como amigos, mesmo que o amigo em questão fosse insuportável e estivesse errado de A a Z. Ela também sabia que Mikael era capaz de tolerar muitas bobagens, mas que havia uma fronteira que não podia ser ultrapassada. Em que ponto exatamente se situava essa fronteira, isso variava de acordo com a pessoa, mas ela sabia que duas ou três vezes Mikael rompera com amigos próximos porque eles tinham se comportado de um jeito que ele considerava imoral ou inaceitável. Nesses casos, ficava intransigente. A ruptura era total, definitiva e irrevogável. Mikael nem atendia mais o telefone, mesmo que a pessoa em questão estivesse ligando para se ajoelhar aos seus pés e pedir perdão.

Annika Giannini sabia muito bem o que Mikael Blomkvist tinha em mente. Em compensação, não fazia idéia do que se passava pela cabeça de Lisbeth Salander. Em alguns momentos, tinha a impressão de que nela reinava o vazio absoluto.

Mikael insinuara que Lisbeth Salander podia se mostrar explosiva e extremamente reservada com as pessoas à sua volta. Antes de conhecê-la, Annika pensava que seria uma situação passageira e que tudo era uma questão de confiança. Mas constatara, depois de um mês de convívio — embora as duas primeiras semanas não contassem, já que Lisbeth estava muito fraca para conversar —, que a comunicação quase sempre se dava num sentido só.

Annika também reparara que Lisbeth Salander às vezes parecia mergulhada em uma profunda depressão e não manifestava nenhum interesse aparente em resolver sua situação e seu futuro. Parecia simplesmente não entender — ou não estava nem aí — que para Annika a única possibilidade de oferecer uma defesa adequada era se inteirar dos fatos. Ela não podia trabalhar no escuro.

Lisbeth Salander era teimosa e fechada. Fazia longas pausas para pensar e em seguida expressava com precisão o pouco que dizia. Com freqüência não respondia a coisa alguma, ou às vezes respondia de repente a uma pergunta que Annika fizera vários dias antes. Durante os interrogatórios da polícia, Lisbeth Salander ficara sentada em sua cama sem dizer uma palavra, o olhar fixo à frente. Salvo uma exceção, não trocara nenhuma palavra com os policiais. A exceção foi quando o inspetor Marcus Ackerman lhe perguntou o que ela sabia sobre Ronald Niedermann; ela então olhara para ele e respondera às perguntas com precisão. Assim que ele mudou de assunto, ela se desinteressara totalmente e voltara a olhar fixo para a frente.

Annika estava preparada para que Lisbeth não dissesse nada à polícia. Por princípio, ela não falava com autoridades. O que, no atual caso, era compreensível. Embora Annika tivesse repetidamente encorajado sua cliente a responder as perguntas da polícia, no fundo estava muito satisfeita com o silêncio compacto de Salander. O motivo era simples. Era um silêncio coerente. Assim não poderiam acusá-la de nenhuma mentira ou raciocínios contraditórios capazes de causar má impressão no processo.

Mesmo preparada, porém, para o silêncio, Annika se perturbou ao ver o quanto ele era inabalável. Quando ficaram a sós, perguntou a Lisbeth por que ela se negava tão ostensivamente a falar com a polícia.

— Eles vão desvirtuar tudo o que eu disser e usar contra mim.

— Mas se você não se explicar, vai ser condenada.

— Azar, que seja. Não tenho nada a ver com esta confusão. Se eles quiserem me condenar, não é problema meu.

Para Annika, Lisbeth Salander fora contando aos poucos, mesmo que tivesse sido preciso arrancar dela, quase tudo que se passara em Stallarholmen. Tudo, menos uma coisa. Ela não explicou como Magge Lundin levara uma bala no pé. Por mais que Annika perguntasse e implorasse, Lisbeth Salander apenas a encarou com um ar cínico e esboçou seu sorriso enviesado.

Ela também contou o que acontecera em Gosseberga. Mas sem mencionar por que tinha ido atrás do pai. Teria ido lá para matá-lo — como sugeria a procuradora — ou para tentar fazê-lo cair em si? Do ponto de vista jurídico a diferença era considerável.

Quando Annika tocou no assunto do antigo tutor, o advogado Nils Bjurman, Lisbeth mostrou-se ainda mais lacônica. Sua resposta-padrão era que ela não o matara e que isso tampouco constava nas acusações que lhe faziam.

E quando Annika chegou ao ponto central de toda a trama, o papel desempenhado pelo Dr. Peter Teleborian em 1991, Lisbeth se transformou numa compacta parede de silêncio.

Esta história não vai dar certo, constatou Annika. Se a Lisbeth não confiar em mim, vamos perder a causa. Preciso falar com o Mikael.

Lisbeth Salander estava sentada na beira da cama, olhando pela janela. Dali ela via a fachada que ficava do outro lado do estacionamento. Permanecera imóvel, sem ser incomodada, durante mais de uma hora depois que Annika Giannini se levantara e fora embora batendo a porta, furiosa. A dor de cabeça tinha voltado, mas inofensiva e distante. Em compensação, sentia-se pouco à vontade.

Estava irritada com Annika Giannini. De um ponto de vista pragmático, podia entender por que sua advogada a pressionava para obter detalhes sobre seu passado. Racionalmente, entendia por que Annika precisava dispor de todos os fatos. Mas não tinha a menor vontade de falar sobre seus sentimentos ou suas ações. Achava que sua vida só dizia respeito a si mesma. Não tinha culpa se seu pai era um sádico patológico e um assassino. Não tinha culpa se seu irmão era um legítimo açougueiro. E, graças a Deus, ninguém sabia que era seu irmão, pois do contrário seria mais um ponto contra ela na avaliação psiquiátrica que tinha pela frente. Ela não matara Dag Svensson e Mia Bergman. Não era ela que tinha designado um tutor que se revelara um porco e que a violentara.

No entanto, era a vida dela que eles queriam revirar, e era dela que vinham exigir explicações e desculpas por ter se defendido.

Queria ser deixada em paz. Afinal, ela é que era obrigada a conviver consigo mesma. Não esperava que ninguém se tornasse seu amigo. Essa Maldita Annika Giannini provavelmente estava do seu lado, mas era uma amizade profissional, já que ela era uma advogada. O Maldito Super-Blomkvist estava lá fora, em algum lugar — Annika não falava muito sobre o irmão e Lisbeth nunca perguntava. Não esperava que ele se desdobrasse particularmente por ela agora que o assassinato de Dag Svensson estava solucionado e que ele fechara a sua matéria.

Perguntava-se o que Dragan Armanskij pensava a seu respeito depois de tudo o que acontecera.

Perguntava-se como Holger Palmgren via a situação.

Segundo Annika Giannini, ambos estavam do seu lado, mas isso eram apenas palavras. Eles nada podiam fazer para resolver seus problemas pessoais.

Perguntava-se o que Miriam Wu sentia por ela.

Perguntava-se o que ela sentia por si mesma, e acabou se dando conta de que a vida lhe inspirava, antes de mais nada, indiferença.

De súbito, foi interrompida pelo vigia da Securitas, que enfiou a chave na fechadura e fez entrar o Dr. Anders Jonasson.

— Boa noite, senhorita Salander. Como está se sentindo?

— Tudo bem — disse ela.

Ele conferiu sua ficha e constatou que Lisbeth não tinha mais febre. Ela se acostumara com as visitas dele, que aconteciam duas ou três vezes por semana. Em meio a todas as pessoas que a manipulavam e tocavam, ele era o único em quem ela sentia um pouco de confiança. Em nenhum momento tivera a impressão de que ele a olhava atravessado. Entrava no quarto, conversava um pouco e observava como estava seu corpo. Não fazia perguntas sobre Ronald Niedermann ou Alexander Zalachenko, nem sobre sua eventual loucura, e não perguntava por que a polícia a mantinha a sete chaves. Parecia se interessar exclusivamente pela condição de seus músculos, pela recuperação de seu cérebro e por seu estado geral. Desde o começo ele a tratara por você", e ela também o tratava por "você"; parecia natural.

Além disso, ele tinha literalmente fuçado seu cérebro. Uma pessoa que fazia isso merecia ser tratada com respeito. Ela se deu conta, para sua imensa surpresa, que achava as visitas de Anders agradáveis, ainda que ele a tocasse e analisasse os gráficos da temperatura.

— Posso dar uma olhada em você?

Ele realizou o exame rotineiro, examinou suas pupilas, escutou sua respiração, tomou seu pulso e conferiu a pressão.

— Como é que eu estou? — ela perguntou.

— Está a caminho da recuperação total, isso é certo. Mas deve se esforçar mais nos exercícios físicos. E está cocando a casquinha na cabeça. Tem que parar com isso.

Ele fez uma pausa.

— Posso fazer uma pergunta pessoal?

Ela o olhou com o rabo do olho. Ele esperou até que ela dissesse sim com a cabeça.

— Essa tatuagem, o dragão... eu não vi inteira, mas dá para perceber que é imensa e cobre boa parte de suas costas. Por que você fez isso?

— Você não viu o dragão? Ele sorriu de repente.

— Quero dizer, eu vi de longe, mas quando você esteve totalmente nua na minha frente eu estava mais preocupado em deter as hemorragias e extrair as balas do seu corpo, com coisas assim.

— Por que você quer saber?

— Pura curiosidade.

Lisbeth Salander refletiu por um bom tempo. Por fim, olhou para ele.

— Eu fiz por um motivo pessoal sobre o qual não estou a fim de falar. Anders Jonassoji meditou sobre a resposta, depois meneou a cabeça, pensativo.

— Certo. Desculpe ter perguntado.

— Quer dar uma olhada nela? Ele pareceu surpreso.

— Quero, por que não?

Ela virou de costas e tirou a camisola pela cabeça. Posicionou-se de modo a que a claridade vinda da janela batesse em suas costas. Ele observou que o dragão cobria boa parte do lado direito das costas. Começava na escapula, na altura do ombro, e acabava numa cauda na parte inferior do quadril. Era lindo, executado pela mão de um profissional. Uma verdadeira obra de arte.

Passados alguns instantes, ela virou a cabeça.

— Satisfeito?

— E muito bonito. Mas deve ter doído à beca.

— E — ela admitiu. — Doeu.

Anders Jonasson deixou o quarto de Lisbeth Salander levemente desconcertado. Estava satisfeito com a recuperação dela. Mas não conseguia entender aquela garota estranha. Não precisava de um mestrado em psicologia para concluir que ela não estava mentalmente muito bem. O modo como ela falava com ele era educado, mas repleto de uma áspera desconfiança. Sabia que ela também era educada com o restante da equipe, porém se fechava como ostra quando a polícia aparecia. Metia-se dentro da carapaça e sempre estabelecia uma distância entre ela e os outros.

A polícia a pusera em prisão cautelar e um procurador pretendia indiciá-la por tentativa de homicídio e golpes e ferimentos agravados. Ele duvidava seriamente que uma garota tão miúda e com uma constituição tão frágil tivesse tido a força física necessária para esse tipo de ato violento, mesmo porque as agressões tinham sido contra homens adultos.

Ele perguntara sobre o dragão principalmente para poder conversar algo mais pessoal com ela. Não estava de fato interessado em saber por que ela se enfeitara daquele jeito exagerado, mas imaginava que se ela optara por marcar seu corpo com uma tatuagem daquele tamanho é porque aquilo tinha para ela bastante importância. Conclusão, era um bom assunto para iniciar uma conversa.

Ele adquirira o hábito de ir vê-la várias vezes por semana. As visitas, na verdade, ficavam fora do seu expediente, e a Dra. Helena Endrin é que era a médica dela. Mas Anders Jonasson era o chefe do serviço de traumatologia e estava extremamente satisfeito com sua própria contribuição na noite em que Lisbeth Salander chegara ao pronto-socorro. Tomara a decisão certa ao optar por extrair a bala e, até onde podia avaliar, ela não tivera seqüelas do ferimento a bala, como lapsos de memória, funções corporais diminuídas ou qualquer outra deficiência. Se a recuperação continuasse assim, ela deixaria o hospital sem mais complicações que uma cicatriz no couro cabeludo. Já quanto à cicatriz formada em sua alma, ele não saberia dizer.

Ao voltar para a sua sala, deparou com um homem de casaco escuro esperando por ele, encostado na parede ao lado da porta. Tinha cabelos emaranhados e uma barba bem-cuidada.

— Doutor Jonasson?

— Sim.

— Bom dia. Meu nome é Peter Teleborian. Sou médico-chefe da clínica psiquiátrica de Sankt Stefan, em Uppsala.

— Sim, estou reconhecendo o senhor.

— Bem, eu gostaria de ter uma conversa particular com o senhor, se tiver um instante livre.

Anders Jonasson destrancou a porta de sua sala.

— O que posso fazer pelo senhor? — perguntou.

— É sobre uma de suas pacientes. Lisbeth Salander. Preciso vê-la.

— Humm. Nesse caso, terá de pedir autorização à procuradora. Ela está sob prisão cautelar, proibida de receber visitas. Todas as visitas também devem ser comunicadas de antemão para a advogada da Salander...

— Sim, sim, eu sei disso. Achei que nós dois pudéssemos dispensar toda essa burocracia. Sou médico, portanto o senhor pode, sem nenhum problema, me dar acesso a ela por motivos médicos.

— Sim, talvez se justifique. Mas não estou vendo a relação.

— Durante vários anos fui o psiquiatra de Lisbeth Salander, quando ela esteve internada na Sankt Stefan, em Uppsala. Eu a acompanhei até ela completar dezoito anos, quando o Tribunal de Instâncias a reconduziu à sociedade, embora sob tutela. Talvez seja bom eu enfatizar que naturalmente me opus a essa decisão. Depois a deixaram sair por aí sem rumo, e aí está o resultado.

— Entendo — disse Anders Jonasson.

— Ainda me sinto bastante responsável por ela e queria ter a oportunidade de avaliar o agravamento de sua condição nesses dez últimos anos.

— Agravamento?

— Comparado a quando ela recebia tratamento especializado na adolescência. Pensei que poderíamos pensar numa solução adequada, cá entre nós, como médicos.

— A propósito, antes que eu me esqueça... O senhor talvez possa me esclarecer um aspecto que não entendi direito, quero dizer, cá entre nós, como médicos. Quando ela deu entrada aqui no Sahlgrenska, pedi um exame clínico extenso. Um colega pediu que eu desse uma olhada na investigação médico-legal relativa a Lisbeth Salander. Que era assinada pelo doutor Jesper H. Lõderman.

— Exato. Eu fui o orientador de Jesper em seu doutorado.

- Entendo. Mas observei que essa investigação médico-legal está extremamente vaga.

— Ah,é?

— Não apresenta nenhum diagnóstico, lembra mais a análise convencional de um paciente que se recusa a falar. Peter Teleborian deu uma risada.

— É, ela não é fácil. Como a investigação demonstrou, ela se negava categoricamente a participar das entrevistas com o Lõderman. Por isso ele viu-se obrigado a se expressar em termos tão vagos. Ele foi muito correto.

— Entendo. Mesmo assim, recomendou que ela fosse internada.

— Com base no passado dela. Temos total experiência sobre a doença dela, que se estende por vários anos.

— Pois então, é isso que não consigo entender direito. Quando ela deu entrada aqui, tentamos conseguir a ficha dela na Sankt Stefan. Mas ainda não foi enviada.

— Sinto muito. E um arquivo considerado sigiloso por decisão do Tribunal de Instâncias.

— Sei. E como é que a gente, aqui no Sahlgrenska, pode dar a ela o tratamento adequado sem termos acesso a esse arquivo? Acontece que, hoje, nós é que somos os médicos responsáveis por ela.

— Tratei da Lisbeth Salander desde que ela tinha doze anos e acho que nenhum médico na Suécia sabe tanto sobre a doença dela quanto eu.

— Que é...?

— Ela sofre de um grave desequilíbrio psíquico. Como o senhor sabe, a psiquiatria não é uma ciência exata. Não gosto de me sentir limitado por um diagnóstico preciso. Mas ela tem alucinações manifestas com traços esquizofrênicos paranóicos muito claros. Acrescente-se a isso períodos maníaco-depressivos, e que ela carece de empatia.

Anders Jonasson perscrutou o Dr. Peter Teleborian durante uns dez segundos antes de fazer um gesto incisivo de mãos.

— Não vou contestar o seu diagnóstico, doutor Teleborian, mas o senhor nunca considerou a possibilidade de um diagnóstico mais simples?

— Como assim?

— A síndrome de Asperger, por exemplo. Claro, eu não a submeti a nenhum exame psiquiátrico, mas, se me perguntassem, minha primeira opinião seria alguma forma de autismo. O que explicaria sua incapacidade em se subjugar às convenções sociais.

— Lamento, mas os pacientes de Asperger não costumam atear fogo nos pais. Acredite, nunca deparei com uma sociopata tão claramente definida.

— O que eu vejo é uma pessoa fechada em si mesma, mas não uma sociopata paranóica.

— Ela é manipuladora ao extremo — disse Peter Teleborian. — Ela se comporta como acha que o senhor gostaria que se comportasse.

Anders Jonasson franziu imperceptivelmente o cenho. Peter Teleborian estava, de repente, contrariando sua própria avaliação de Lisbeth Salander. E se havia uma coisa que ele não percebia nela era a manipulação. Pelo contrário; era uma pessoa que mantinha uma imperturbável distância dos outros e não demonstrava nenhuma emoção. Tentou conciliar o quadro traçado por Teleborian com a idéia que ele próprio formara de Lisbeth Salander.

— O senhor esteve muito pouco com ela, e quando seus ferimentos a condenaram à prostração. Eu assisti às suas crises de violência e ao seu ódio desmedido. Passei anos tentando ajudar Lisbeth Salander. Por isso estou aqui. Proponho uma colaboração entre o Sahlgrenska e a Sankt Stefan.

— Em que tipo de colaboração o senhor está pensando?

— Vocês estão cuidando dos problemas físicos, e estou certo de que ela terá o melhor tratamento possível. Mas estou muito preocupado com o estado psíquico dela, e gostaria de intervir rapidamente. Estou pronto para oferecer todo o auxílio que estiver ao meu alcance.

— Entendo.

— Para começar, preciso ver a Lisbeth para avaliar seu estado.

— Entendo, mas, infelizmente, não posso fazer nada pelo senhor.

— Como assim?

— É como eu disse, ela está detida. Se quiser começar um tratamento psiquiátrico, precisa entrar em contato com a procuradora Jervas, que é quem toma as decisões nesses casos, e isso deve ser feito com a concordância da advogada Annika Giannini. Como se trata de uma avaliação psiquiátrica legal, o senhor precisa ser designado pelo Tribunal de Instâncias.

— Eram justamente esses trâmites burocráticos todos que eu queria evitar.

— É, mas como eu sou o responsável por ela e ela vai comparecer diante de um tribunal num futuro próximo, teremos que justificar todas as medidas que tomarmos. De modo que é necessário seguir os trâmites burocráticos.

— Entendo. Sendo assim, devo informá-lo que o procurador Richard Ekstrõm, de Estocolmo, já solicitou que eu faça uma avaliação psiquiátrica legal na época do julgamento.

— Melhor assim. Quer dizer que o senhor vai obter uma autorização para visita sem que a gente precise contornar o regulamento.

— Mas enquanto tratamos da burocracia, existe o perigo de o estado dela se agravar. Só o que me interessa é a saúde dela.

— A mim também — disse Anders Jonasson. — E, cá entre nós, posso adiantar que não vejo nela o menor sinal de qualquer tipo de doença psíquica. Ela está bastante machucada e passando por um grande estresse. Mas não acredito, de maneira alguma, que seja esquizofrênica ou sofra de fobias paranóicas.

O Dr. Peter Teleborian ainda passou um bom tempo tentando fazer Anders Jonasson mudar de idéia. Quando afinal entendeu que estava perdendo tempo, levantou-se bruscamente e se despediu.

Anders Jonasson demorou-se algum tempo contemplando a cadeira na qual Teleborian estivera sentado. Claro, era comum que outros médicos o procurassem para dar conselhos ou opiniões sobre um tratamento. Mas eram quase sempre pacientes que já tinham um médico responsável por algum tipo de tratamento em curso. Nunca vira nenhum psiquiatra aparecer daquele jeito, feito um óvni, e insistir para ter acesso a uma paciente passando por cima do regulamento, paciente essa que ele, aparentemente, já não tratava havia muitos anos. Depois de alguns instantes, Anders Jonasson consultou o relógio e viu que eram quase sete da noite. Pegou o telefone e ligou para Martina Karlgren, a psicóloga de plantão que o Sahlgrenska oferecia aos pacientes da traumatologia.

— Olá. Imagino que já tenha encerrado seu dia de trabalho. Estou atrapalhando?

— Não se preocupe. Estou em casa, mas não estou fazendo nada de especial.

— São umas dúvidas aqui que eu tenho. Você conversou com a nossa paciente Lisbeth Salander. Poderia me dizer que impressão teve dela?

— Olhe, estive três vezes com ela, propondo uma conversa. Ela recusou, gentil, mas firmemente.

— Que impressão ela lhe passa?

— Em que sentido?

— Martina, eu sei que você não é psiquiatra, mas é uma pessoa experiente e sensata. Que impressão ela lhe passa?

Martina Karlgren hesitou um instante.

— Não sei bem o que dizer. Estive com ela duas vezes pouco depois que foi internada. Estava tão mal que não tivemos de fato nenhum contato. Depois disso, fiz uma visita há mais ou menos uma semana, a pedido da Helena Endrin.

— Por que a Helena pediu que você falasse com ela?

— A Lisbeth Salander está em recuperação. Passa a maior parte do tempo deitada, olhando para o teto. A Endrin queria que eu desse uma olhada nela.

— E como foi?

— Eu me apresentei. Conversamos alguns minutos. Perguntei como ela estava e se sentia necessidade de ter alguém para conversar. Ela disse que não. Perguntei se eu podia ajudar em alguma coisa. Ela pediu que eu lhe conseguisse um maço de cigarros.

— Ela estava irritada ou hostil? Martina Karlgren refletiu um instante.

— Não, não dá para dizer isso. Estava calma, mas mantinha uma distância enorme. Levei seu pedido para eu conseguir cigarros mais como uma brincadeira do que como algo sério. Perguntei se ela queria ler alguma coisa, se eu podia levar uns livros. De início, ela não quis, mas depois perguntou se eu tinha alguma revista científica sobre genética e pesquisas sobre o cérebro.

— Sobre o quê?

— Genética.

— Genética?

— É. Eu disse que havia uns livros mais genéricos sobre o assunto na nossa biblioteca. Ela não se interessou. Disse que já tinha lido alguns livros a respeito e citou algumas obras mais básicas das quais eu nunca tinha ouvido falar. Ou seja, ela estava mais interessada na pesquisa científica nessa área.

— Ah, é? — disse Anders Jonasson, estupefato.

— Eu disse que decerto não haveria livros tão especializados na biblioteca do hospital, que havia mais Philip Marlowe do que literatura científica, mas que eu ia tentar conseguir alguma coisa para ela.

— E conseguiu?

— Peguei emprestados uns exemplares da Nature e do New England Journal of Medicine. Ela ficou satisfeita e me agradeceu pelo esforço.

— Mas essas revistas são um bocado áridas, trazem principalmente artigos científicos e pesquisa pura.

— Ela está lendo com muito interesse. Anders Jonasson ficou um instante sem voz.

— Como você avalia o estado psíquico dela?

— Ela é fechada. Não conversou nada pessoal comigo.

— Você tem a impressão de que ela é psiquicamente perturbada, maníaco-depressiva ou paranóica?

— Não, de jeito nenhum. Nesse caso, eu teria dado o alerta. Ela é especial, sem dúvida, tem problemas sérios e está passando por um estresse enorme. Mas é calma e objetiva, e parece capaz de administrar a situação.

— Ótimo.

— Por que está perguntando? Aconteceu alguma coisa?

— Não, nada. É só que eu não consigo formar uma imagem precisa sobre ela.


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