29 - QUARTA-FEIRA 6 DE ABRIL – QUINTA-FEIRA 7 DE ABRIL


Lisbeth Salander tremia de raiva. De manhã, tinha tranqüilamente ido até a casa de campo de Bjurman. Não ligava o computador desde a noite anterior e, durante o dia, estivera ocupada demais para ouvir o noticiário. Estava preparada para a confusão de Stallarholmen ocasionar umas manchetes, mas foi pega totalmente de surpresa pela tempestade que desabou sobre ela com as notícias da tevê.

Miriam Wu estava no hospital de Söder, rebentada por um gigante loiro que a raptara em frente à sua casa na Lundagatan. Seu estado era considerado grave.

Paolo Roberto a salvara. Como ele tinha ido parar no armazém de Nykvarn era um mistério. Foi entrevistado ao sair do hospital, mas não quis fazer nenhuma declaração. Pelo seu rosto, até dava para supor que estava saindo de dez rounds disputados com as mãos atadas às costas.

Tinham sido desenterrados no mato os despojos de duas pessoas, na mesma área para onde Miriam Wu havia sido levada. A polícia comunicava que no final do dia fora descoberto um terceiro ponto que seria escavado. Talvez ainda houvesse outros túmulos no terreno.

Em seguida, a caçada a Lisbeth Salander.

O cerco se fechava em volta dela. Durante o dia, a polícia a localizara numa aldeia de veraneio nas proximidades de Stallarholmen. Estava armada e era perigosa. Tinha atirado num dos Hell’s Angel, talvez em dois. A agressão se dera na casa de campo de Nils Bjurman. A polícia acreditava que ela conseguira furar o cerco e deixar a região.

O chefe do inquérito preliminar, Richard Ekström, deu uma coletiva de imprensa. Suas respostas foram evasivas. Não, não podia dizer se Lisbeth Salander tinha alguma relação com os Hell’s Angels. Não, não podia confirmar que Lisbeth Salander tinha sido vista no armazém de Nykvarn. Não, nada indicava que se tratasse de um acerto de contas entre gângsteres. Não, não estava definido que Lisbeth Salander era a única culpada dos assassinatos de Enskede - a polícia jamais afirmara que era ela a assassina - disse Ekström. Só estavam à sua procura para ouvir o que ela tinha a dizer sobre o caso.

Lisbeth Salander franziu o cenho. Aparentemente, alguma coisa acontecera nos bastidores da investigação policial.

Ela correu para a internet e leu, para começar, as páginas dos jornais, e depois entrou sucessivamente no disco rígido do procurador Ekström, no de Dragan Armanskij e no de Mikael Blomkvist.

A caixa postal de Ekström continha várias mensagens interessantes, notadamente um memorando enviado pelo inspetor Jan Bublanski às 17h22. Era sucinto e bastante crítico quanto à maneira como Ekström vinha conduzindo o inquérito preliminar. O e-mail terminava com o que decerto devia ser considerado um ultimato. Bublanski procedia por pontos. Exigia (a) que a inspetora Sonja Modig fosse imediatamente reintegrada à sua equipe, (b) que fosse alterada a orientação da investigação no sentido de obter culpados alternativos para os assassinatos de Enskede e (c) que se abrisse uma verdadeira investigação sobre o misterioso indivíduo conhecido pelo nome de Zala.

[As acusações contra Lisbeth Salander baseiam-se num único e pesado indício - suas impressões digitais na arma do crime. Isso constitui de fato, como você sabe muito bem, uma prova de que ela manipulou a arma, mas não uma prova de que ela a usou, e muito menos de que a apontou para as vítimas.

Na atual situação, sabemos que outros atores estão envolvidos nessa tragédia, que a polícia de Södertalje descobriu dois corpos enterrados e vai cavar um terceiro ponto. O tal depósito pertence a um primo de Carl-Magnus Lundin. A mim parece evidente que Lisbeth Salander, não obstante a sua violência e qualquer que seja o seu perfil psicológico, não tem nada a ver com isso tudo.]

Bublanski concluía declarando que, se suas exigências não fossem atendidas, se sentiria obrigado a se retirar das investigações, o que não faria sem um certo alarde. Ekström lhe respondera que fizesse o que achasse melhor.

No disco rígido de Dragan Armanskij, Lisbeth achou outras informações, mas essas a deixaram um tanto perplexa. Uma breve troca de e-mails com o departamento contábil esclarecia que Niklas Eriksson estava deixando a empresa. Receberia o proporcional de férias e os três meses de indenização por demissão. Um e-mail endereçado ao vigia determinava que, tão logo entrasse no prédio, Eriksson fosse obrigatoriamente escoltado até sua sala para pegar seus objetos pessoais, e em seguida conduzido para fora. Um e-mail para o setor técnico determinava que solicitassem a Eriksson sua chave mestra.

O mais interessante, porém, era uma troca de e-mails entre Dragan Armanskij e Frank Alenius, o advogado da Milton Security. Dragan perguntava qual a melhor maneira de representar Lisbeth Salander, caso ela fosse presa. A princípio, Alenius respondia que não havia nenhum motivo para a Milton se comprometer na defesa de uma ex-funcionária acusada de assassinato - o fato de a empresa se envolver num caso desses podia passar uma imagem negativa. Armanskij retrucava, furioso, que a afirmação de que Lisbeth Salander teria cometido assassinato ainda precisava ser provada e que a questão era apoiar uma ex-funcionária que ele, Dragan Armanskij, considerava inocente.

Lisbeth abriu o disco rígido de Mikael Blomkvist e constatou que não havia nada escrito, ele nem sequer abrira o computador desde o dia anterior bem cedo. Não havia nada de novo.

Steve Bohman depositou a pasta em cima da mesa de reuniões, na sala de Dragan Armanskij. Sentou-se pesadamente. Fráklund pegou a pasta, abriu-a e pôs-se a ler. Dragan Armanskij estava em frente à janela, contemplando a cidade velha.

—Acho que essas são as últimas informações que vou poder passar. Estou fora da investigação a partir de hoje - disse Bohman.

—Não é culpa sua - disse Frãklund.

—Não, não é culpa sua -repetiu Armanskij, sentando-se.

Ele reunira, numa pilha sobre a mesa, todo o material fornecido por Bohman naquelas quase duas semanas.

—Você fez um bom trabalho, Steve. Falei com o Bublanski. Ele chegou a lamentar estar te perdendo, mas não teve escolha, por causa do Eriksson.

—Tudo bem. Eu me dei conta de que estou bem melhor aqui do que em Kungsholmen.

—Você pode nos dar um resumo da situação?

—Bem, se o objetivo era achar Lisbeth Salander, fracassamos lamentavelmente. Foi uma investigação caótica, com conflitos no nível da direção, e Bublanski talvez não tenha tido controle absoluto das averiguações.

—Hans Faste...

—O Hans Faste é um canalha. Mas o problema não é só o Faste e uma investigação caótica. O Bublanski fez questão de que todas as possibilidades fossem examinadas com o maior cuidado. O fato é que a Salander tem mesmo talento para apagar as pistas atrás de si.

—Mas a sua tarefa não era só pegar a Salander - interrompeu Armanskij.

—Não, e ainda bem que não informaram o Niklas Eriksson da minha segunda tarefa quando começamos. De fato, eu também assumi ser seu informante e espião, e cuidar para que a Salander não viesse a ser enforcada caso fosse inocente.

—E qual é, hoje, a sua opinião?

—Quando a gente começou, eu tinha certeza de que ela era culpada. Hoje já não sei mais. Surgiram tantas contradições...

—Sim?

—...que já não a considero a principal suspeita. Estou mais inclinado a concordar com o Mikael Blomkvist.

—Isso significa que precisamos achar culpados alternativos. Vamos repassar toda a investigação desde o começo - disse Armanskij, e serviu café para os participantes da reunião.

Lisbeth Salander vivia uma das piores noites de sua vida. Lembrou-se do momento em que jogara a bomba incendiaria pelo vidro do carro de Zalachenko. A partir daquele momento, seus pesadelos tinham cessado e ela experimentara uma verdadeira paz interior. Com o passar dos anos, outros problemas haviam surgido, mas eles sempre diziam respeito a ela mesma, e Lisbeth soubera administrá-los. Agora, porém, tratava-se de Mimmi.

Mimmi estava no hospital de Söder com o corpo todo quebrado. Mimmi era inocente. Não tinha nada a ver com essa história. Seu único crime era conhecer Lisbeth Salander.

Lisbeth se amaldiçoou. Era culpa sua. Deixou-se tomar pelo sentimento de culpa. Tinha mantido em segredo seu próprio endereço e pensara cuidadosamente em se proteger de todas as maneiras possíveis. E depois instalara Mimmi no endereço que todo mundo conhecia. Como pudera ser inconsciente a esse ponto? Era como se ela própria a tivesse moído de pancadas. Sentia-se tão infeliz que seus olhos se encheram de lágrimas. Lisbeth Salander não chora nunca. Enxugou as lágrimas.

Por volta das dez e meia, estava tão febril que não conseguia mais ficar no apartamento. Vestiu o casaco e se esgueirou noite adentro. Andou por ruas secundárias até chegar à Ringvágen, onde ficou parada em frente ao acesso do hospital de Söder. Tinha vontade de ir até o quarto de Mimmi, acordá-la e dizer que tudo ia acabar bem. Então avistou a luz azul de uma viatura para os lados de Zinken e entrou numa rua transversal antes que a vissem.

Voltou para casa pouco depois da meia-noite. Estava com frio, despiu-se e foi para a cama. Não conseguia dormir. À uma da manhã, levantou-se e, nua, atravessou o apartamento mergulhado no escuro. Entrou no quarto de hóspedes, no qual instalara uma cama e uma cômoda e onde nunca mais pusera os pés. Sentou-se no chão, encostada na parede, e fitou a escuridão. Lisbeth Salander com um quarto de hóspedes. Isso é uma piada? Ficou ali até as duas horas, tremendo de frio. Então se pôs a chorar. Não se lembrava de já ter chorado algum dia.

* * *

Às duas e meia, Lisbeth Salander tinha tomado um banho e se vestido. Ligou a cafeteira, preparou uns sanduíches e foi para o computador. Entrou no disco rígido de Mikael Blomkvist. Estava intrigada por ele não ter atualizado seu diário da investigação, mas não tinha tido energia para pensar no assunto durante a noite.

O diário continuava sem abrir, e ela foi dar uma olhada na pasta [LISBETH SALANDER]. Descobriu em seguida um documento novo intitulado [LISBETH-IMPORTANTE]. Verificou as propriedades do documento. Tinha sido criado à 00h52. Clicou duas vezes e leu a mensagem.

[Lisbeth, entre imediatamente em contato comigo. Esta história é pior do que tudo que eu podia imaginar. Estou sabendo quem é Zalachenko e acho que sei o que aconteceu. Conversei com Holger Palmgren. Entendi qual o papel de Teleborian e por que era importante trancar você na psiquiatria infantil. Acho que sei quem matou o Dag e a Mia. Acho que sei por que, mas estão me faltando umas peças essenciais deste quebra-cabeça. Não entendo qual o papel do Bjurman. ME LIGUE IMEDIATAMENTE, PODEMOS SOLUCIONAR ISSO TUDO. Mikael]

Lisbeth leu duas vezes o documento. O Super-Blomkvist tinha se esforçado. Primeiro da classe. Um danado de um primeiro da classe. Ele ainda acreditava que era possível resolver o que quer que fosse.

Ele queria o bem. Queria ajudar.

Não entendia que, o que quer que viesse a acontecer, para ela a vida estava acabada.

Sua vida tinha acabado antes de ela completar treze anos. Não existia solução nenhuma.

Abriu um novo documento e tentou redigir uma resposta para Mikael Blomkvist, mas os pensamentos rodopiavam dentro de sua cabeça... havia tantas coisas que ela queria dizer.

Lisbeth Salander estava apaixonada. Era de morrer de rir.

Ele jamais saberia. Ela jamais lhe daria o gostinho de achar graça no que ela sentia por ele.

Arrastou o documento para a lixeira e fitou a tela vazia. Mas ele também não merecia um silêncio completo de sua parte. Ele permanecera fiel no seu canto do ringue, feito um valente soldadinho. Ela criou um novo documento e escreveu uma linha só.

[Obrigada por ter sido meu amigo.]

Antes de mais nada, ela tinha que tomar algumas decisões logísticas. Precisava de um meio de transporte. Usar o Honda cor de vinho estacionado na Lundagatan era tentador, mas estava descartado. Nada no laptop do procurador Ekström indicava que alguém da investigação descobrira que ela havia comprado um carro, na certa porque a compra era tão recente que ela nem tivera tempo de mandar os papéis de emplacamento e do seguro. Mas Mimmi talvez tivesse dado com a língua nos dentes ao ser interrogada pelos tiras. Lisbeth não podia apostar no silêncio dela e sabia que a Lundagatan estava sob vigilância.

A polícia sabia que ela tinha uma moto, e a moto era ainda mais complicada de pegar na Lundagatan. Além disso, depois de alguns dias de um calor quase estivai, estava previsto um tempo instável com chuva, e ela não tinha muita vontade de sair de moto por estradas escorregadias.

Claro, ela poderia alugar um carro em nome de Irene Nesser, mas isso implicava algum risco. Sempre havia a possibilidade de alguém reconhecê-la, e o nome de Irene Nesser ficar queimado. O que seria uma catástrofe, já que representava sua única possibilidade de deixar o país.

Então sua boca exibiu uma contração que pretendia ser um sorriso. Havia, evidentemente, outra possibilidade. Ligou o computador e entrou na rede da Milton Security, navegou até a frota de veículos administrada por uma secretária na recepção da empresa. A Milton Security dispunha de noventa e cinco veículos, a maioria carros de vigilância com o logotipo da empresa. A maior parte ficava em diferentes estacionamentos da cidade. Mas também havia alguns carros à paisana que podiam ser utilizados, quando necessário, para deslocamentos de trabalho. Esses carros ficavam na garagem da sede da Milton, do lado Slussen. Praticamente na esquina da rua.

Verificou o arquivo dos funcionários e escolheu Marcus Hedin, que acabava de sair de férias por quinze dias. Deixara o número de telefone de um hotel nas Ilhas Canárias. Ela alterou o nome do hotel e inverteu os algarismos do telefone de contato. Depois, inseriu uma observação dizendo que a última medida de Hedin antes de sair de férias fora levar um dos carros para o conserto, mencionando uma embreagem encrencada. Escolheu um Toyota Corolla automático que ela já tinha usado uma vez e alertou que o carro estaria de volta em uma semana.

Por fim, entrou no sistema e desprogramou as câmeras de vigilância nos locais onde teria de passar. Entre quatro e meia e cinco horas, elas retransmitiriam o filme da meia hora anterior, só que com o horário atualizado.

Pouco antes das quatro, sua mochila estava pronta. Continha duas mudas de roupa, duas bombas lacrimogêneas e o cacetete elétrico carregado. Olhou as duas armas que tinha angariado. Deixou de lado a Colt 1991 Government de Sandström e escolheu a P-83 Wanad polonesa de Benny Nieminen, com uma bala a menos no carregador. Era mais fina e se adaptava melhor à sua mão. Enfiou-a no bolso da jaqueta.

Lisbeth desligou o Powerbook, mas deixou-o no mesmo lugar em cima da mesa. Tinha transferido o conteúdo do disco rígido para um backup criptografado na internet, apagando em seguida todo o disco rígido com um programa criado por ela que tornava impossível a reconstituição do conteúdo. Achava que não ia precisar do PowerBook, que só iria atrapalhá-la. Em vez disso, levou seu Palm Tungsten de bolso.

Olhou ao redor. Teve a sensação de que nunca mais voltaria ao apartamento da Fiskaregatan e se deu conta de que estava deixando atrás de si segredos que talvez fosse melhor destruir. Então consultou o relógio e viu que não lhe restava muito tempo. Deu uma última olhada e apagou a luz do escritório.

Foi a pé até a Milton Security, entrou pela garagem e pegou o elevador para chegar aos escritórios. Não cruzou com ninguém nos corredores vazios e não foi difícil pegar a chave do carro no armário da recepção, que não estava trancado.

Trinta segundos depois, estava de volta à garagem, abrindo o Corolla com o controle remoto. Jogou a mochila no banco do passageiro e ajustou a posição do banco do motorista e do retrovisor. Usou sua antiga chave mestra para abrir a porta da garagem.

Um pouco antes das quatro e meia, deixou Söder Málarstrand pela ponte de Vãsterbron. O dia começava a raiar.

Mikael Blomkvist acordou às seis e meia. Não tinha ligado o despertador e só dormira três horas. Levantou-se, ligou o iBook e abriu a pasta [LISBETH SALANDER]. Viu imediatamente a breve resposta dela.

[Obrigada por ter sido meu amigo.]

Mikael sentiu um arrepio percorrer-lhe as costas. Não era a resposta que ele esperava. Mais parecia uma despedida. Lisbeth Salander sozinha contra o resto do mundo. Foi até a cozinha ligar a cafeteira, depois ao banheiro. Vestiu um jeans enxovalhado e se deu conta de que não tinha tido tempo de lavar roupa nas últimas semanas - não lhe restava uma só camisa limpa. Vestiu um moletom por baixo do paletó cinza.

Enquanto preparava sanduíches na cozinha, vislumbrou de repente um reflexo metálico na bancada, entre o microondas e a parede. Franziu o cenho e usou um garfo para puxar um molho de chaves.

As chaves de Lisbeth Salander, que ele encontrara depois da agressão na Lundagatan e colocara em cima do micro-ondas, junto com a bolsa. Deviam ter caído. Com isso, tinha deixado de entregá-las com a bolsa para Sonja Modig.

Fitou o molho de chaves. Três chaves grandes e três pequenas. As maiores correspondiam à entrada de um prédio e de um apartamento com duas fechaduras. O apartamento dela. Não correspondiam às fechaduras da Lundagatan. Droga, onde é que ela estava morando?

Olhou mais de perto as três chaves menores. Uma delas devia ser da Kawasaki. A outra era uma típica chave de armário ou roupeiro. Ergueu a terceira. Havia o número 24914 gravado em cima. A informação o pegou de chofre.

Uma caixa postal. Lisbeth Salander tem uma caixa postal.

Passou em revista, na lista telefônica, as agências de correio do bairro de Södermalm. Ela tinha morado na Lundagatan. A agência de Ringen não ficava muito longe. Quem sabe a da Hornsgatan. Ou a da Roseralundsgatan.

Desligou a cafeteira, deixou o café da manhã para lá, pegou a BMW de Erika Berger e foi direto para a Rosenlundsgatan. A chave não entrou. Seguiu até a agência de correio da Hornsgatan. A chave encaixou perfeitamente na caixa postal n°- 24914. Abriu-a e encontrou vinte e duas cartas, que ele enfiou no bolso externo da maleta do computador.

Continuou rodando pela Hornsgatan, estacionou em frente ao Cine do Bairro e foi tomar café da manhã no Copacabana. Enquanto esperava seu caffè latte, examinou as cartas uma a uma. Eram todas endereçadas à Wasp Enterprises. Nove cartas tinham sido postadas na Suíça, oito nas Ilhas Caimãs, uma nas Ilhas Anglo-Normandas e quatro em Gibraltar. Sem nenhum pudor, abriu os envelopes. Os vinte e um primeiros continham extratos bancários e diversos resumos e avisos de operações. Mikael Blomkvist constatou que Lisbeth Salander estava montada na grana.

A vigésima segunda carta era mais volumosa. O endereço estava escrito a mão. O envelope trazia um logotipo impresso indicando o remetente, um endereço na Buchanan House, Queensway Quay, em Gibraltar. O papel timbrado da carta mostrava que fora enviada por Jeremy S. MacMillan, Solicitor. A letra era caprichada.

Jeremy S. MacMillan Solicitor

Dear Ms Salander,

This is to confirm that the final payment of your property has been concluded as of january 20. As agreed, I’m enclosing copies of all documentation but will keep the original set. I trust this will be to your satisfaction.

Let me add that I hope everything is well with you, my dear. I very much enjoyed the surprise visit you made last summer and, must say, I found your presence refreshing. I’m looking forward to, if needed, be of additional service. Yours faithfully,

J. S. M.*

A carta datava de 24 de janeiro. Lisbeth Salander, aparentemente, não verificava sua caixa postal com muita freqüência. Mikael deu uma olhada nos documentos anexos. Era o contrato de venda de um apartamento na Fiskaregatan, número 9, em Mosebacke.

Em seguida, por pouco não engasgou com o café. O custo da aquisição era de vinte e cinco milhões de coroas, pagas em duas prestações com um ano de intervalo.

Lisbeth Salander viu um homem moreno e forte abrir a porta lateral da Auto-Expert em Eskilstuna. Tratava-se de uma garagem de estacionamento e oficina de reparos, mas também de uma autolocadora. Uma dessas empresas comuns que se vê em qualquer lugar. Faltavam dez para as sete e, de acordo com uma placa na porta principal, a loja só abria às sete e meia. Ela atravessou a rua, abriu a porta lateral e seguiu o homem dentro da loja. Ele a ouviu e se virou.

—Refik Alba? - ela perguntou.

—Sim. Quem é você? Ainda não está aberto.

Ela ergueu a P-83 Wanad de Benny Nieminen e a apontou para o rosto dele, segurando a pistola com as duas mãos.

* Jeremy S. MacMillan Advogado.

Prezada Srta. Salander,

Escrevo-lhe para confirmar que a quitação final da sua propriedade foi concluída em 20 de janeiro. Conforme combinado, envio em anexo cópia de toda a documentação, os originais ficam conosco. Espero que fique satisfeita.

Permita-me acrescentar, minha cara, que desejo que esta a encontre bem. Apreciei muitíssimo a visita surpresa que nos fez no último verão e, devo dizer, achei sua presença muito agradável. Será um prazer, caso necessário, poder servi-la no futuro.

Atenciosamente, J. S. M.

—Estou sem ânimo para conversar, e com pressa. Quero ver o seu registro de carros alugados. Quero ver agora. Você tem dez segundos.

Refik Alba tinha quarenta e dois anos. Era curdo, nascido em Diyarbakir, e já tivera sua cota de armas. Ficou paralisado. Então compreendeu que se uma maluca entrava na sua sala segurando uma pistola, não havia muito que discutir.

—Está no computador - disse ele.

—Ligue-o. Ele obedeceu.

—O que tem atrás desta porta? - ela perguntou enquanto o computador era iniciado e a tela começava a brilhar.

—É só um depósito.

—Abra a porta.

Ela avistou uns macacões de trabalho.

—Está bem. Entre tranqüilamente aí dentro, assim não vou precisar te machucar.

Ele obedeceu sem protestar.

—Pegue o seu celular, ponha no chão e empurre para mim. Ele fez o que ela mandou.

—Muito bem. Agora feche a porta.

Era um PC antigo com Windows 95 e um disco rígido de 280 MB. Levou uma eternidade para abrir o documento do Excel com o arquivo das locações. Constatou que o Volvo branco conduzido pelo gigante loiro tinha sido alugado duas vezes. Em janeiro, por duas semanas, e depois a partir de de março. Ainda não fora devolvido. Ele pagava toda semana por um aluguel de longa duração.

O nome dele era Ronald Niedermann.

Ela examinou as pastas da prateleira acima do computador. Na lombada de uma delas, estava caprichadamente escrito DOCUMENTOS DE IDENTIDADE. Ela pegou a pasta e folheou até chegar a Ronald Niedermann. Ao alugar o carro, em janeiro, ele apresentara o passaporte e Refik Alba apenas fizera uma fotocópia. Lisbeth reconheceu de imediato o gigante loiro. De acordo com o passaporte, ele era alemão, tinha trinta e cinco anos e nascera em Hamburgo. O fato de Refik Alba ter feito uma cópia do passaporte indicava que Ronald Niedermann era um cliente comum, e não um conhecido que só tinha tomado o carro emprestado.

Bem embaixo, Refik Alba anotara um número de celular e o endereço de uma caixa postal em Göteborg.

Lisbeth guardou o arquivo no lugar e desligou o computador. Olhou ao redor e viu no chão uma cunha de borracha que servia para manter a porta da frente trancada na posição aberta. Pegou-a, aproximou-se do armário e bateu na porta com o cano da pistola.

—Você aí dentro, está me ouvindo?

—Sim.

—Sabe quem eu sou? Silêncio.

Ele deve ser cego se não me reconheceu.

—Está certo. Você sabe quem eu sou. Está com medo de mim?

—Estou.

—Não precisa ter medo, seu Alba. Não vou lhe fazer nenhum mal. Estou quase acabando. Desculpe o transtorno.

—Hã... Está bem.

—Você tem ar suficiente aí dentro para respirar?

—Sim... a propósito, o que está procurando?

—Queria conferir se uma certa mulher alugou um carro aqui há dois anos - ela mentiu. — Não consegui achar o que eu estava procurando. Mas não é culpa sua. Vou embora daqui a uns minutinhos.

—Certo.

—Vou enfiar esse troço de borracha debaixo da porta para bloqueá-la. A porta é fininha, você vai conseguir arrombar, só que vai levar um tempo. Não precisa chamar a polícia. Não vai me ver nunca mais, pode abrir a loja hoje normalmente e fazer de conta que este incidente não aconteceu.

A probabilidade de ele não chamar a polícia era praticamente zero, mas não custava sugerir que ele pensasse em outra alternativa. Ela deixou a loja e voltou para o seu Toyota Corolla emprestado na esquina da rua, e ali rapidamente se transformou em Irene Nesser.

Estava irritada por não ter achado o verdadeiro endereço do gigante loiro, de preferência na região de Estocolmo, em vez de uma caixa postal do outro lado da Suécia. Mas era a única pista que ela tinha. Bem, então toca para Göteborg.

Rodou até o acesso para a E20 e em Arboga seguiu na direção oeste. Ligou o rádio, mas acabava de perder o noticiário e, caindo numa estação comercial, escutou alguém cantar putting out fire with gasoline. Não sabia que era David Bowie cantando e não conhecia aquela música, mas entendeu que eram palavras proféticas.

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