24 - TERÇA-FEIRA 5 DE ABRIL
Per-Ake Sandström, jornalista freelancer, quarenta e sete anos, voltou para casa, em Solna, pouco depois da meia-noite. Estava um pouco alto e sentia uma bola de pânico se formando em sua barriga. Per-Ake Sandström estava pura e simplesmente com medo.
Ia fazer quinze dias que Dag Svensson tinha sido assassinado em Enskede. Sandström assistira, estupefato, ao noticiário na tevê no dia seguinte. Experimentara uma onda de alívio e esperança - Svensson estava morto e, com ele, talvez também o livro sobre tráfico de mulheres com que pretendia denunciá-lo como delinquente sexual. Droga, uma maldita puta além da conta e lá estava ele encrencado até o pescoço.
Ele odiava Dag Svensson. Tinha suplicado, rastejado diante daquele escroto.
Um dia depois dos assassinatos, ficara eufórico demais para conseguir pensar com lucidez. Só no dia seguinte começou a raciocinar. Se o Dag Svensson estava trabalhando num livro em que ele ia ser citado como estuprador com tendências pedófilas, então não era improvável que a polícia começasse a bisbilhotar seus pequenos deslizes. Caramba... ele podia se tornar suspeito dos assassinatos.
O pânico diminuíra um pouco quando o rosto de Lisbeth Salander aparecera em todos os jornais do país. Quem será essa Lisbeth Salander? Nunca tinha ouvido falar. Mas os tiras manifestamente a consideravam suspeita e, de acordo com o procurador, os assassinatos estavam prestes a ser solucionados. O interesse por ele talvez não chegasse a se materializar. Mas ele sabia, por experiência própria, que os jornalistas sempre guardam seus documentos e anotações. Millennium. Uma revista de merda com uma reputação totalmente superestimada. Era igual às outras. Bisbilhotavam, vituperavam e atingiam os outros.
Ignorava em que pé estava o andamento do livro. Não sabia o que é que eles sabiam. Não tinha para quem perguntar. A sensação era a de estar dentro de um vazio.
No decorrer da semana, seu comportamento oscilara entre o pânico e a embriaguez. Os tiras não tinham vindo procurá-lo. Quem sabe - se desse uma sorte incrível - conseguisse se sair dessa. Se não desse sorte, sua vida estava acabada.
Enfiou a chave na fechadura e girou-a. No instante em que abriu a porta, escutou um ruído atrás de si e sentiu uma dor paralisante na parte inferior das costas.
Gunnar Björck ainda não tivera tempo de ir dormir, quando o telefone tocou. Estava sentado de roupão e pijama na escuridão da cozinha, remoendo seu dilema. No decorrer da sua longuíssima carreira, nunca estivera nem perto de uma situação tão inextricável.
De início, pensou em não atender o telefone. Olhou para o relógio e viu que era mais de meia-noite. Mas o telefone continuou tocando e, depois do décimo toque, ele não resistiu. Podia ser importante.
—Aqui é o Mikael Blomkvist - ele ouviu dizer do outro lado da linha. Que droga.
—Já passa da meia-noite. Eu estava dormindo.
—Sinto muito. Mas achei que você ia se interessar pelo que eu tenho para falar.
—O que é que você quer?
—Amanhã, às dez horas, vou dar uma coletiva de imprensa sobre os assassinatos de Dag Svensson e Mia Bergman.
Gunnar Björck engoliu em seco.
—Pretendo relatar detalhes do livro sobre comércio sexual que o Dag Svensson estava terminando de escrever. O único cliente que eu vou citar é você.
—Você prometeu me dar um tempo... Ouviu o pânico na própria voz e parou.
—Já se passaram vários dias. Você prometeu me ligar depois do feriado da Páscoa. Amanhã é terça-feira. Ou você fala, ou minha coletiva fica mesmo para amanhã.
—Se você der essa coletiva, nunca vai saber nada sobre Zala.
—Pode ser. Mas aí não vai ser mais problema meu. Você vai ter que falar com os investigadores oficiais. E com a imprensa do país inteiro, claro.
Não havia nenhum espaço para negociação.
Aceitou se encontrar com Mikael Blomkvist, e conseguiu adiar o encontro para a quarta-feira. Uma pequena trégua. Mas ele estava pronto. Ia apostar todas as fichas, ou vai ou racha.
Sandström não saberia dizer quanto tempo ficou desacordado, mas quando voltou a si estava deitado no chão da sala. Seu corpo inteiro doía e ele não conseguia se mexer. Levou algum tempo para perceber que suas mãos estavam presas às costas com o que parecia ser uma fita adesiva e seus pés, amarrados. Havia um pedaço de fita colado em sua boca. As luzes da sala estavam acesas e as persianas, baixadas. Era incapaz de entender o que tinha acontecido.
Percebeu sons que pareciam vir de seu escritório. Ficou imóvel e escutou, ouviu uma gaveta se abrindo e fechando. Um assalto? Escutou um barulho de papel, alguém vasculhava suas gavetas.
Uma eternidade depois, escutou passos atrás de si. Tentou virar a cabeça, mas não enxergou ninguém. Fez um esforço para se manter calmo.
De repente, alguém passou um cordão de algodão forte por cima de sua cabeça. Um nó corrediço apertou seu pescoço. O pânico por pouco não o fez soltar o esfíncter. Ergueu os olhos e viu a corda correr até uma roldana pendurada no gancho onde normalmente ficava o lustre da sala. Então seu inimigo entrou no seu campo de visão. A primeira coisa que viu foi um par de botinas pretas.
Não sabia exatamente o que esperava, mas o choque não poderia ter sido maior quando ergueu o olhar. De início, não reconheceu a psicopata demente cuja foto vinha enfeitando todos os quiosques desde o feriado da Páscoa. Tinha cabelos pretos curtos e não se parecia com a foto dos jornais. Estava inteiramente vestida de preto - jeans, jaqueta curta de algodão aberta, camiseta e luvas pretas.
Mas o que mais o assustou foi seu rosto. Ela estava maquiada. Usava batom preto, delineador e uma sombra verde-escura vulgar e ostensiva. O restante do rosto estava todo branco. Atravessando o rosto na diagonal, do lado esquerdo da testa ao lado direito do queixo, passando pelo nariz, havia um largo risco vermelho.
Era uma máscara grotesca. Ela parecia completamente louca.
O cérebro de Sandström resistiu. Estava mergulhado em plena irrealidade.
Lisbeth Salander pegou o cordão e puxou. Ele sentiu a corda afundar no pescoço e, por alguns segundos, não conseguiu respirar. Então lutou para retomar apoio nos pés. Com a roldana, ela não precisava fazer nenhum esforço para obrigá-lo a ficar ereto. Quando ele ficou bem aprumado sobre os pés, ela parou de içá-lo e enrolou a corda em volta do cano do aquecedor, travando-a com um nó.
Então deixou-o ali e sumiu de seu campo de visão. Ficou ausente por mais de quinze minutos. Quando voltou, puxou uma cadeira e sentou-se bem à sua frente. Ele procurou não olhar para aquele rosto maquiado de forma grotesca, mas não conseguiu resistir. Ela pôs uma pistola em cima da mesa. A dele. Ela a achara na caixa de sapatos do guarda-roupa. Uma Colt 1911 Government. Uma pequena arma ilegal que ele tinha desde muitos anos, comprada por impulso de um amigo que a estava vendendo, e que nunca usara, nem para testes. Diante de seus olhos, ela puxou o carregador e colocou uma bala. Per-Âke Sandström por pouco não desmaiou. Obrigou-se a cruzar o olhar com o dela.
—Nunca vou entender por que os homens sempre têm necessidade de guardar lembrancinhas das suas perversões - disse ela.
Tinha uma voz suave, mas glacial. Falava com uma voz baixa, mas clara. Ergueu uma foto que ela tinha imprimido do disco rígido dele.
—Imagino que se trate da estoniana Ines Hammujàrvi, dezessete anos, originária da aldeia de Riepalu, perto de Narva. Foi divertido com ela?
Uma pergunta retórica. Per-Ake Sandström não podia responder. Sua boca continuava selada com a fita adesiva e seu cérebro, incapaz de formular uma resposta. A foto mostrava... caramba, para que fui guardar essas fotos?
—Você sabe quem eu sou? Faça um sinal com a cabeça. Per-Ake Sandström meneou a cabeça.
—Você é um porco sádico, um canalha estuprador. Ele não se moveu.
—Faça um sinal com a cabeça.
Ele meneou a cabeça. Súbito, seus olhos se encheram de lágrimas.
—Vamos estabelecer as regras - disse Lisbeth Salander. —Na minha opinião, você deveria ser executado imediatamente. Você sair vivo ou não daqui esta noite, para mim dá no mesmo. Entendeu?
Ele meneou a cabeça.
—A esta altura, você necessariamente já sabe que eu sou louca e adoro matar gente. Sobretudo homens.
Ela apontou para os jornais vespertinos dos últimos dias, que ele tinha guardado numa pilha em cima da mesa.
—Vou tirar a fita adesiva da sua boca. Se você gritar ou erguer a voz, zapeio você com isso aqui.
Brandiu um cassetete elétrico.
— Esta coisa feia manda ver setenta e cinco mil volts. E depois, mais ou menos uns sessenta mil, se eu já usei uma vez e não recarreguei. Entendido?
Ele pareceu hesitar.
—Isso significa que os seus músculos param de funcionar. Foi o que você sentiu ali na porta, quando entrou.
Ela sorriu.
—Isso significa que as suas pernas não vão mais te aguentar e você vai enforcar a si próprio. E depois de acabar com você, eu vou me levantar e sair do apartamento, é simples.
Ele meneou a cabeça. Oh, meu Deus, ela é louca, uma legítima assassina. De repente, à sua revelia, lágrimas começaram a escorrer incontrolavelmente pelas suas faces. Ele fungou.
Ela se levantou e arrancou a fita adesiva. Seu rosto grotesco ficou a apenas poucos centímetros do seu.
—Fique quieto - disse ela. —Nem uma palavra. Se falar sem ser convidado, acabo com você.
Ela esperou até ele parar de fungar e olhar para ela.
—Você só tem uma chance de sair vivo daqui esta noite - disse ela. —Uma chance, não duas. Vou fazer uma série de perguntas. Se você responder, te deixo viver. Se me entendeu, faça que sim com a cabeça.
Ele fez que sim com a cabeça.
—Se você se negar a responder a uma pergunta, eu te aniquilo. Entendeu?
Ele meneou a cabeça.
—Se mentir ou responder com evasivas, eu te aniquilo. Ele meneou a cabeça.
—Não vou negociar com você. Não vou te dar uma segunda chance. Ou você responde imediatamente às minhas perguntas, ou morre. Se eu ficar satisfeita com as suas respostas, você sai vivo daqui. É simples assim.
Ele meneou a cabeça. Acreditava nela. Não tinha escolha.
—Por favor - disse. —Eu não quero morrer... Ela o fitou com gravidade.
—Você decide se vai viver ou morrer. Mas acaba de transgredir a primeira regra, que é: você não tem o direito de falar sem a minha autorização.
Ele apertou os lábios. Caramba, ela é completamente doente.
Mikael Blomkvist se sentia a tal ponto frustrado e febril que já não sabia o que fazer. Por fim, vestiu o casaco e um cachecol, andou ao acaso até Sõdra Station, passou em frente do prédio da Bofill, e acabou na redação da Millennium, na Götgatan. Estava tudo apagado e calmo. Não acendeu nenhuma luz, mas ligou a cafeteira, quedou-se em frente à janela olhando para a rua lá embaixo enquanto esperava a água escorrer pelo filtro. Tentava colocar ordem nas suas idéias. Até onde ele percebia, a investigação sobre os assassinatos de Dag Svensson e Mia Bergman era um mosaico quebrado, e alguns pedaços eram discerníveis ao passo que outros faltavam totalmente.
Em algum ponto desse mosaico, havia um desenho. Dava para adivinhá-lo, mas não para ver. Faltavam pedaços demais.
Foi assaltado pela dúvida. Ela não é uma louca assassina, pensou, como um tipo de lembrete. Ela escrevera que não havia matado Dag e Mia. E ele acreditava. Mas mesmo assim, de algum modo incompreensível, ela estava intimamente ligada ao enigma dos assassinatos.
Pôs-se lentamente a revisar a teoria que vinha defendendo desde o dia em que entrara no apartamento de Enskede. Para ele era óbvio que a reportagem de Dag Svensson sobre tráfico de mulheres era o único motivo plausível para os assassinatos de Dag e Mia. Agora, tardiamente, começava a aceitar a afirmação de Bublanski de que isso não explicava o assassinato de Bjurman.
Salander tinha escrito para ele deixar os clientes sexuais para lá e se concentrar em Zala. Como? O que ela queria dizer? Mulherzinha complicada. Por que não podia dizer as coisas de forma compreensível?
Mikael voltou à copa e se serviu de café numa caneca com o logotipo da Esquerda Jovem. Sentou-se no sofá, no meio da redação, pôs os pés na mesa de centro e acendeu um cigarro clandestino.
Bjórck estava na lista dos clientes sexuais. Bjurman era ligado a Salander. Não podia ser por acaso que tanto Bjurman como Bjórck tinham trabalhado na Säpo. E que um relatório policial sobre Salander tinha sumido.
Poderia haver mais de um motivo?
Ficou um momento parado e deteve-se nessa idéia. Inverteu a perspectiva.
Será que Lisbeth Salander poderia ser o motivo?
Mikael reteve aquela idéia que ele não conseguia formular em palavras. Havia ali uma coisa inexplorada, mas ele não conseguia explicar a si mesmo por que Lisbeth Salander poderia ser o motivo dos assassinatos. Teve a sensação fugaz de uma revelação a ponto de brotar.
Então percebeu que estava cansado demais, jogou o café na pia e foi para casa dormir. No escuro de seu quarto, retomou o fio da idéia e ficou acordado por mais duas horas, tentando entender o que ele queria dizer.
Lisbeth Salander acendeu um cigarro e se acomodou confortavelmente na cadeira à sua frente. Cruzou as pernas, a direita sobre a esquerda, e encarou-o. Per-Áke Sandström nunca tinha visto um olhar tão intenso. Quando ela voltou a falar, sua voz continuava baixa.
—Você visitou Ines Hammujãrvi pela primeira vez, no apartamento dela em Norsborg, em janeiro de 2003. Ela acabava de completar dezesseis anos. Por que foi até lá?
Per-Ake Sandström não sabia o que responder. Nem sabia explicar como aquilo tudo começara e por que ele... Ela ergueu o cacetete elétrico.
—Eu... eu não sei. Eu queria a Ines. Ela era tão linda.
—Linda?
—É. Ela era linda.
—E você achou que isso te dava o direito de amarrar e comer a mulher.
—Ela concordou. Juro. Ela concordou.
—Você pagou?
Per-Ake Sandström mordeu a língua.
—Não.
—Por que não? Ela era uma puta. Em geral, as putas são pagas.
—Ela era um... era um presente.
—Um presente? - repetiu Lisbeth Salander. Sua voz assumiu de repente um tom perigoso.
—Ela foi oferecida em troca de um favor que eu tinha feito para uma pessoa.
—Per-Ake... - disse Lisbeth Salander num tom suave. —Você não está tentando evitar a minha pergunta?
—Eu juro. Vou responder tudo o que você quiser. Não vou mentir.
—Muito bem. Que favor e para quem?
—Eu trouxe esteroides anabolizantes para a Suécia. Eu tinha ido à Estônia fazer umas reportagens, estava com uns amigos, e trouxe os comprimidos no carro. Viajei com um homem chamado Harry Ranta. Mas ele não estava no meu carro.
—Como é que você conheceu esse Harry Ranta?
—Conheço o Harry há anos. Desde os anos 1980. Era um amigo, só isso. A gente saía para tomar uns tragos juntos.
—E foi o Harry Ranta que te ofereceu a Ines Hammujãrvi de... presente?
—Sim... não, desculpe, isso foi depois, aqui em Estocolmo. Foi o irmão dele, Atho Ranta.
—Quer dizer que o Atho Ranta veio bater na sua porta perguntando se você estava a fim de ir a Norsborg comer a Ines?
—Não... eu estava numa... tinha uma festa em... droga, não lembro onde era...
De repente, pôs-se a tremer de forma incontrolável, sentiu que os joelhos começavam a ceder e teve que se enrijecer para conseguir ficar de pé.
—Responda tranqüilamente sem entrar em pânico - disse Lisbeth Salander. —Não vou te enforcar só porque você precisa de um tempo para concatenar as idéias. Mas se eu perceber que você está escorregando, aí... pof!
Ela alçou as sobrancelhas e adotou um ar angelical. Até onde era possível vislumbrar um anjo por trás daquela máscara grotesca.
Per-Ake Sandström meneou a cabeça. Engoliu em seco. Estava com sede, sua boca estava super-ressecada e sentia a corda apertando o seu pescoço.
—Aí... não interessa o lugar onde você estava enchendo a cara. Como foi que Atho Ranta te ofereceu a Ines?
—A gente estava falando de... a gente... eu disse que queria... De repente, começou a chorar descontroladamente.
—Você disse para ele que queria uma daquelas putas. Ele meneou a cabeça.
—Eu estava bêbado. Ele disse que ela precisava... precisava...
—Precisava do quê?
—Atho disse que ela precisava de um corretivo. Ela estava criando problemas. Não fazia o que ele queria.
—E o que ele queria que ela fizesse?
—Que ela trabalhasse na rua para ele. Ele me propôs... Eu estava bêbado e não sabia o que estava fazendo. Eu não queria... Desculpe.
Ele fungou.
—Não é para mim que você tem que pedir desculpa. Então você se ofereceu para ajudar o Atho a dar um corretivo na Ines e vocês foram até a casa dela.
—Não foi bem assim.
—Então conta como foi. Por que você foi com o Atho até a casa da Ines?
Ela brincou com o cacetete elétrico equilibrado em seus joelhos. Ele se pôs a tremer.
—Eu fui na casa da Ines porque eu a queria. Ela estava lá e estava à venda. Ines morava na casa de uma amiga do Harry Rant. Não lembro o nome dela. Atho amarrou a Ines na cama e eu... eu fiz amor com ela. O Atho ficou olhando.
—Não... Você não fez amor com ela. Você estuprou. Ele não respondeu.
—Não foi?
Ele meneou a cabeça.
—O que disse a Ines?
—Não disse nada.
—Ela protestou?
Ele balançou a cabeça.
—Quer dizer que ela achou legal ser amarrada e comida por um gordo nojento de cinquenta anos.
—Ela estava bêbada. Não estava nem aí. Lisbeth Salander deu um suspiro resignado.
—Certo. E depois disso você continuou visitando a Ines.
—Ela era tão... ela me queria.
—Conta outra!
Ele lançou um olhar desesperado para Lisbeth Salander. Então meneou a cabeça.
—Eu... eu estuprava. Harry e Atho tinham me dado autorização. Eles queriam que ela... que ela fosse domada.
—Você pagou para eles? Ele meneou a cabeça.
—Quanto?
—Era um preço de amigo. Eu tinha ajudado no contrabando.
—Quanto?
—No total, algumas notas de mil.
—Numa das fotos, a Ines está aqui no seu apartamento.
—Harry mandou ela vir. Ele fungou de novo.
—Ou seja, por umas cédulas de mil, você ganhou uma mulher com quem podia fazer o que bem entendesse. Quantas vezes você a estuprou?
—Não sei... algumas vezes.
—Certo. Quem é o chefe desse bando?
—Eles vão me matar se eu disser.
—E eu com isso? Neste momento, eu sou um problema bem maior para você do que os irmãos Ranta.
Ela levantou o cacetete elétrico.
—Atho é o chefe. É o mais velho. Harry é o homem do terreno.
—Quem mais faz parte do bando?
—Só conheço o Harry e o Atho. A garota do Atho também participa. E um cara que eles chamam de... não lembro. Olle alguma coisa. É sueco. Não sei quem é. É viciado e presta alguns favores.
—A garota do Atho?
—Silvia. É uma puta.
Lisbeth ficou um instante em silêncio, refletindo. Então ergueu os olhos.
—Quem é Zala?
Per-Ake Sandström empalideceu visivelmente. A mesma pergunta tão repisada por Dag Svensson. Ele ficou tanto tempo sem dizer nada que notou que a louca estava começando a se irritar.
—Eu não sei - disse. —Não sei quem ele é. Lisbeth Salander se aborreceu.
—Até aqui você se comportou direitinho. Não desperdice a sua chance - disse ela.
—Juro por tudo que é mais sagrado. Não sei quem ele é. Esse jornalista que você matou...
Calou-se, percebendo de súbito que talvez não fosse uma boa idéia evocar a orgia assassina dela em Enskede.
—Sim?
—Ele me perguntou a mesma coisa. Eu não sei. Se soubesse, diria. Juro. É uma pessoa que o Atho conhece.
—Você já falou com ele?
—Um minuto só, por telefone. Falei com um cara que dizia se chamar Zala. Ou melhor, ele falou comigo.
—A troco do quê?
Per-Ake Sandström pestanejou. Gotas de suor rolaram dos seus olhos e ele sentiu ranho escorrendo pelo queixo.
—Eu... eles queriam que eu fizesse mais um favorzinho para eles.
—Essa sua história está começando a se enredar - alertou Lisbeth Salander.
—Eles queriam que eu fizesse outra viagem até Tallinn para trazer um carro pronto. Anfetaminas. Eu não quis.
—Não quis por quê?
—Era demais. Eles eram verdadeiros gângsteres. Eu queria me afastar. Eu tinha o meu trabalho.
—Você quer dizer que era apenas um gângster ocasional.
—Não sou assim, de verdade - disse ele, miserável.
—Ah, é?
Sua voz vinha carregada de tanto desprezo que Per-Ake Sandström fechou os olhos.
—Continue. Como é que o Zala veio parar nessa história?
—Um legítimo pesadelo.
Ele se calou e, súbito, suas lágrimas voltaram a rolar. Mordeu o lábio com tanta força que se cortou e começou a sangrar.
—Está se enredando - disse Lisbeth Salander, em voz clara.
—O Atho insistiu comigo várias vezes. O Harry me avisou, disse que o Atho estava começando a ficar bravo e não sabia o que poderia acontecer. Por fim, topei me encontrar com o Atho. Foi em agosto do ano passado. Fui com o Harry até Norsborg...
Sua boca se mexia, mas as palavras se extinguiram. Os olhos de Lisbeth Salander viraram duas fendas. Ele recobrou a voz.
—O Atho estava enlouquecido. Ele é muito brutal. Você não faz idéia da brutalidade dele. Disse que era tarde demais para eu cair fora e que se eu não fizesse o que ele estava mandando, não ia sair vivo. Queria me dar uma demonstração.
—Sim?
—Me obrigaram a ir com eles. Fomos na direção de Södertálje. Atho me mandou usar um capuz. Um saco que ele me amarrou na cabeça, tapando os meus olhos. Eu estava morto de medo.
—Com que então você viajou com um saco na cabeça. E o que aconteceu depois?
—O carro parou. Não sei onde.
—Em que lugar eles te puseram o saco?
—Pouco antes de Södertãlje.
—E depois, quanto tempo levaram para chegar?
Talvez... talvez pouco mais de meia hora. Eles me tiraram do carro. Era uma espécie de armazém.
—Continue.
—Harry e Atho me fizeram entrar. Havia luz lá dentro. A primeira coisa que eu vi foi um pobre coitado no piso de cimento. Estava amarrado. Tinha sido tremendamente espancado.
—Quem era?
—O nome dele era Kenneth Gustafsson. Mas isso eu só soube depois. Eles não pronunciaram o nome dele.
—O que aconteceu?
—Tinha um homem lá. O homem mais alto que eu já vi. Era imenso. Puro músculo.
—Me descreva esse cara.
—Loiro. Parecia mesmo o diabo em pessoa.
—O nome dele?
—Ele não disse.
—Certo. Um gigante loiro. Quem mais estava lá?
—Um outro homem. Loiro também. Com um rabo de cavalo. Magge Lundin.
—E quem mais?
—Só eu, o Harry e o Atho.
—Continue.
—O loiro... quer dizer, o gigante, me passou uma cadeira. Não disse uma palavra. O Atho era quem falava. Disse que o cara que estava no chão era um dedo-duro. Ele queria que eu visse o que acontecia com quem criava caso.
Per-Àke Sandstróm chorava sem se conter.
—Está se enredando de novo - disse Lisbeth Salander.
—O loiro levantou o cara do chão e o colocou numa cadeira na minha frente. A gente estava a um metro um do outro. Eu podia olhar dentro dos olhos dele. O gigante ficou atrás dele e pôs as mãos em volta do pescoço do cara. E ele... ele...
—Estrangulou o cara - interrompeu Lisbeth, para ajudá-lo.
—Sim... não... ele apertou até matar. Acho que quebrou a nuca dele com as mãos. Escutei a nuca se quebrar e ele morreu ali, na minha frente.
Per-Ake Sandström oscilava preso na corda. Suas lágrimas corriam a cântaros. Ele nunca tinha contado isso a ninguém. Lisbeth lhe concedeu um minuto para se refazer.
—E depois?
—O outro homem, o do rabo de cavalo, ligou uma serra elétrica e cortou a cabeça e as mãos dele. Quando acabou, o gigante chegou perto de mim. Pôs as mãos em volta do meu pescoço. Tentei me soltar. Usei toda a minha força, e ele não se mexeu um milímetro sequer. Mas não me estrangulou... só ficou com as mãos ali um bocado de tempo. Enquanto isso, o Atho pegou o celular e ligou para alguém. Falava em russo. Depois disse que o Zala queria falar comigo e segurou o telefone no meu ouvido.
—E o que disse o Zala?
—Só disse que fazia questão que eu fizesse o favor que o Atho tinha pedido. Perguntou se eu ainda estava querendo cair fora. Prometi ir até Tallinn buscar o carro com as anfetaminas. Eu não tinha escolha.
Lisbeth ficou um bom tempo em silêncio. Pensativa, contemplava o jornalista que fungava, pendurado na corda; parecia estar refletindo sobre alguma coisa.
—Me descreva a voz dele.
—A voz... não sei. Parecia bem normal.
—Voz baixa, clara?
—Baixa. Comum. Áspera.
—Vocês falaram em que língua?
—Sueco.
—Algum sotaque?
—Sim... um pouco, talvez. Mas ele falava bem o sueco. Atho e ele falavam em russo.
—Você entende russo?
—Um pouco. Não tudo. Só um pouco.
—O que o Atho falou para ele?
—Só disse que a demonstração tinha acabado. Mais nada.
—Você contou isso tudo para alguém?
—Não.
—Para o Dag Svensson?
—Não... não.
—O Dag Svensson esteve aqui. Sandström fez que sim com a cabeça.
—Não ouvi.
—Sim.
—Por quê?
—Ele sabia que eu tinha... as putas.
—O que ele perguntou?
—Ele queria saber...
—Sim?
—Zala. Perguntou sobre Zala. Foi na segunda visita.
—Segunda visita?
—Ele já tinha me contatado duas semanas antes de morrer. Foi a primeira vez que veio aqui. Depois ele voltou, dois dias antes que você... que ele...
—Antes que eu atirasse nele?
—Isso.
—E então ele fez perguntas sobre o Zala?
—Sim.
—E o que você falou?
—Nada. Eu não podia falar nada. Admiti que tinha falado com ele por telefone. Só isso. Não falei nada sobre o monstro loiro nem sobre o que eles fizeram com o Gustafsson.
—Certo. O que o Dag Svensson te perguntou exatamente?
—Eu... ele queria saber do Zala. Só isso.
—E você não falou nada?
—Nada de interessante. Na verdade, eu não sei de nada.
Lisbeth Salander ficou um instante em silêncio. Ele estava evitando dizer alguma coisa. Mordeu, pensativa, o lábio inferior. Sim, claro.
—Para quem você contou sobre as visitas do Dag Svensson? Sandström empalideceu.
Lisbeth sacudiu o cacetete elétrico.
—Liguei para o Harry Ranta.
—Quando?
Ele engoliu em seco.
—Na noite em que o Dag Svensson veio aqui pela primeira vez.
Ela continuou o interrogatório por mais meia hora, mas logo percebeu que ele só tinha repetições e mais alguns detalhes soltos a oferecer. Por fim, levantou-se e pôs a mão na corda.
—Você deve ser o canalha mais miserável que eu já conheci - disse Lisbeth Salander. —O que você fez com a Ines merece pena de morte. Mas prometi que você ia viver se respondesse às minhas perguntas. Sempre cumpro as minhas promessas.
Ela se inclinou e desfez o nó. Per-Âke Sandström desabou lamentavelmente no chão. Seu alívio chegava a ser eufórico. Do assoalho, viu que ela punha um banco em cima da mesinha, subia em cima e desprendia a roldana. Juntou a corda e colocou-a numa mochila. Desapareceu no banheiro, onde ficou uns dez minutos. Ele ouviu a água correndo. Quando voltou, estava sem maquiagem.
Seu rosto parecia nu e desencardido.
—Você mesmo pode se soltar. Largou uma faca de cozinha no chão.
Ele escutou ela fazer uns ruídos no hall durante vários minutos. Parecia estar trocando de roupa. Depois, ouviu a porta se abrir e se fechar. Só meia hora depois conseguiu cortar a fita adesiva. Ao sentar-se no sofá da sala, descobriu que ela tinha levado o seu Colt 1911 Government.
Lisbeth Salander só chegou em casa às cinco da manhã. Tirou a peruca de Irene Nesser e foi imediatamente se deitar, sem ligar o computador para ver se Mikael Blomkvist solucionara o enigma do relatório policial desaparecido.
Acordou às nove horas e passou a terça-feira coletando dados sobre os irmãos Atho e Harry Ranta.
Atho Ranta possuía uma ficha criminal lamentável. Cidadão finlandês, mas originário de uma família estoniana, chegara à Suécia em 1971. Entre 1972 e 1978, trabalhara como marceneiro na construção civil. Despedido depois de ser flagrado roubando numa obra, foi condenado a sete meses de prisão. De 1980 a 1982, trabalhou para uma empresa bem menor. Foi despedido depois de chegar várias vezes bêbado ao trabalho. No restante dos anos 1980, ganhara a vida como segurança de cabaré, técnico numa empresa de manutenção de caldeiras, lavador de pratos e vigia numa escola. Fora mandado embora de todos esses empregos depois de aparecer razoavelmente bêbado ou se envolver em todo tipo de briga. Seu trabalho de vigia se encerrou poucos meses depois de ser contratado, quando uma professora registrou queixa contra ele por assédio sexual e comportamento ameaçador.
Em 1987, foi condenado a pagar uma multa e a três meses de prisão por roubo de carro, condução em estado de embriaguez e receptação. No ano seguinte, foi multado por porte ilegal de armas. Em 1990, condenado por um delito contra a moral e os bons costumes, de natureza não especificada no registro criminal. Em 1991, processado por ameaças, mas absolvido. No mesmo ano, condenado a multa e a uma pena de prisão condicional por contrabando de álcool. Em 1992, pegou três meses por golpes e ferimentos numa amiga, e ameaças à irmã desta última. Então se manteve na linha até 1997, quando foi condenado por receptação e golpes e ferimentos agravados. Dessa feita, pegou dez meses de prisão.
Seu irmão caçula, Harry, viera encontrá-lo na Suécia em 1982, para trabalhar nos anos 1980 como controlador de estoque. Sua ficha criminal mostrava que fora condenado em três ocasiões. Em 1990, por fraude em seguros; em 1992, a dois anos por golpes e ferimentos agravados, receptação, roubo, roubo agravado e estupro. Expulso para a Finlândia, voltou à Suécia em 1996, quando foi novamente condenado a dez meses de prisão por golpes e ferimentos agravados e estupro. Recorreu, e a corte de apelação seguiu a linha de defesa de Harry Ranta, absolvendo-o da acusação de estupro. Em contrapartida, a condenação por golpes e ferimentos foi mantida e ele cumpriu seis meses. Em 2000, Harry Ranta foi mais uma vez acusado por ameaças e estupro; a queixosa, porém, voltou atrás e o caso foi arquivado.
Ela obteve os endereços mais recentes dos dois: Atho Ranta morava em Norsborg e Harry em Alby.
Paolo Roberto sentiu-se frustrado quando, pela cinquentésima vez, digitou o número de Miriam Wu e deu caixa postal. Tinha ido ao endereço da Lundagatan várias vezes por dia desde que aceitara a missão de se encontrar com ela. A porta do apartamento permanecia fechada.
Deu uma olhada no relógio. Oito e pouco da noite de terça-feira. Em algum momento ela teria que voltar para casa. Ele entendia o desejo de Miriam Wu de se manter afastada, mas a imprensa já tinha se acalmado um pouco. Ele ponderou que, em vez de ficar indo e vindo, poderia se instalar em frente ao prédio dela para o caso de ela aparecer, mesmo que só para pegar uma muda de roupa ou sabe Deus o quê. Encheu uma garrafa com café e preparou uns sanduíches. Antes de sair de casa, fez o sinal da cruz diante de um crucifixo.
Estacionou a uns trinta metros da porta do prédio da Lundagatan e recuou o banco para dar mais espaço para as pernas. Ligou o rádio num volume baixo e grudou no painel uma foto de Miriam Wu recortada de um jornal vespertino. Achava aquela garota um avião. Contemplou pacientemente os raros transeuntes. Miriam Wu nunca estava entre eles.
A cada dez minutos, tentava ligar. Desistiu por volta das nove horas, quando seu celular o alertou de que a bateria estava para acabar.
Per-Ake Sandström passou a terça-feira num estado próximo da apatia. Tinha dormido no sofá da sala, incapaz de ir até a cama e incapaz de conter os súbitos acessos de choro que o acometiam regularmente. Na terça de manhã, fora até o Monopólio dos Espirituosos, no centro de Solna, para comprar um quarto de litro de aquavit, depois voltara para o seu sofá e bebera mais ou menos metade do conteúdo.
Só à noite começou a ter consciência do seu estado e se pôs a pensar no que poderia fazer. Queria nunca ter ouvido falar nos irmãos Atho e Harry Ranta e nas suas putas. Não conseguia entender como tinha sido tão idiota e se deixado levar para aquele apartamento de Norsborg, onde Atho havia amarrado, de pernas abertas, Ines Hammujãrvi, de dezesseis anos e altamente drogada, desafiando-o depois a ver quem tinha a ereção maior. Tinham se alternado, e ele ganhou o concurso executando, durante a noitada, quantidade de performances sexuais de diversos tipos.
Em dado momento, Ines Hammujárvi voltara a si e começara a reclamar. Então Atho ficara meia hora batendo nela e fazendo-a beber, e quando ela se acalmara, Atho convidara Per-Ake a prosseguir seus exercícios.
Maldita puta.
Como ele tinha sido idiota.
Não podia contar com nenhuma compaixão por parte da Millennium. Eles viviam desse tipo de escândalo.
Ele morria de medo daquela louca da Salander. Para não falar no monstro loiro. Ele não podia se dirigir à polícia.
Não podia se virar sozinho. Seria ilusão achar que os problemas iam sumir por si sós.
Só restava uma tênue alternativa para obter um pouquinho de simpatia e, quem sabe, algum tipo de solução. Percebeu que era uma tábua de salvação bem frágil.
Mas era sua única possibilidade.
À tarde, se armou de coragem e discou o número do celular de Harry Ranta. Ninguém atendeu. Continuou tentando ligar para Harry Ranta até as dez da noite, e então desistiu. Depois de pensar algum tempo (e se fortalecer com a aquavit que ainda restava), ligou para Atho Ranta. Silvia, a companheira de Atho, atendeu. Foi informado de que os irmãos Ranta estavam de férias em Tallinn. Não, Silvia não sabia como entrar em contato com eles. Não, não tinha idéia de quando eles voltavam - estavam na Estônia por tempo indeterminado.
Silvia parecia satisfeita.
Per-Ake Sandström deixou-se cair no sofá. Não saberia dizer se estava abatido ou aliviado por Atho não estar em casa e, assim, não precisar se explicar. Mas a mensagem era clara. Por diversos motivos, os irmãos Ranta tinham baixado a bola e estavam dando um tempo em Tallinn. O que não contribuiu para acalmar Per-Ake Sandström.