10. SÁBADO - 7 DE MAIO – QUINTA-FEIRA - 12 DE MAIO


Mikael Blomkvist largou a pasta com os resultados da pesquisa enviada pelo freelancer Daniel Olofsson, de Gõteborg. Olhou, pensativo, pela janela e contemplou o fluxo de transeuntes na Gõtgatan. Gostava demais da localização da Míllennium. A Gõtgatan era cheia de vida a qualquer hora do dia ou da noite, e quando se sentava diante da janela nunca se sentia realmente sozinho ou isolado.

Estava estressado, embora não estivesse às voltas com nenhuma urgência. Continuara trabalhando obstinadamente nos textos com que pretendia montar a edição de verão da Millennium, mas acabara percebendo que seu material era tão vasto que nem um número temático seria suficiente. Diante outra vez da mesma situação em que se vira no caso Wennerstrõm, decidira publicar um livro com aquelas informações. Já tinha material suficiente para mais de cento e cinqüenta páginas e calculava que o livro todo teria entre trezentas e trezentas e cinqüenta páginas.

A parte mais simples estava pronta. Descrevera os assassinatos de Dag Svensson e Mia Bergman, contando como acabara sendo ele quem descobrira os corpos. Explicara por que tinham suspeitado de Lisbeth Salander. Reservou um capítulo inteiro de trinta e sete páginas para detonar violentamente de um lado, tudo o que a mídia havia escrito sobre Lisbeth Salander e, de outro, o procurador Richard Ekstrõm — e indiretamente toda a investigação conduzida pela polícia. Depois de algumas ponderações, suavizara a crítica a Bublanski e seus colegas. Isso depois de assistir a um vídeo de uma entrevista coletiva de Ekstrõm que revelava de maneira evidente como Bublanski estava pouquíssimo à vontade e obviamente descontente com as conclusões precipitadas de Ekstrõm.

Depois desses dramáticos acontecimentos iniciais, Mikael voltava no tempo para contar a chegada de Zalachenko à Suécia, a infância de Lisbeth Salander e os fatos que a tinham conduzido para trás das grades da Sankt Stefan, em Uppsala. Tomava especial cuidado em acabar com o dr. Peter Teleborian e com o falecido Gunnar Bjõrck. Apresentava a avaliação psiquiátrica legal de 1991 e explicava por que Lisbeth Salander se tornara uma ameaça para funcionários anônimos do Estado que haviam tomado para si a missão de proteger o dissidente russo. Reproduzia extensos trechos da correspondência entre Teleborian e Bjõrck.

Ele revelava a nova identidade de Zalachenko e seu campo de atividade como gângster em tempo integral. Descrevia seu assistente Ronald Nieder-mann, o rapto de Miriam Wu e a intervenção de Paolo Roberto. Por fim, fazia um resumo do desenlace em Gosseberga, onde Lisbeth Salander fora enterrada viva depois de levar uma bala na cabeça, e explicava por que um policial fora morto desnecessariamente, quando Niedermann já havia sido capturado.

Depois disso, sua história já não era tão fácil de ser contada. O problema de Mikael era que ela ainda continha muitas lacunas. Gunnar Bjõrck não agira sozinho. Por trás dos elementos havia necessariamente um grupo importante e influente que dispunha de recursos. Senão teria sido impossível. Acima de tudo, ele concluíra que o modo como Lisbeth Salander havia sido tratada, desrespeitando-se seus direitos mais elementares, não podia ter sido autorizado pelo governo ou pela direção da Sapo. Chegava a essa conclusão não por uma confiança absoluta no poder do Estado, mas por sua fé na natureza humana. Uma operação daquele calibre jamais teria permanecido secreta se tivesse alguma raiz política. Alguém teria tido contas para acertar com °utro alguém e já teria aberto a boca, e há muitos anos a mídia teria enfiado o nariz no caso Zalachenko.


Ele imaginava o clube Zalachenko como um grupelho de ativistas anônimos. O problema é que ele era incapaz de identificar qualquer um deles, a não ser, talvez, Gõran Mârtensson, quarenta anos, policial em missão secreta que passava o tempo seguindo Mikael Blomkvist.

A idéia era o livro estar impresso e pronto para ser distribuído no dia em que teria início o julgamento de Lisbeth Salander. Com Christer Malm, ele planejava uma edição de bolso envolta em celofane e vendida como suplemento do número de verão da Millennium, cujo preço seria um pouco maior. Ele dividira as tarefas entre Henry Cortez e Malu Eriksson, que iam preparar textos sobre a história da Sapo, sobre o caso do IB, o serviço secreto de informações militares cuja existência fora revelada em 1973 por dois colegas da revista Folket i Bild/Kulturfront, e outros casos semelhantes.

Pois ele agora tinha a certeza de que seria aberto um processo contra Lisbeth Salander.

O procurador Richard Ekstrõm a indiciara por golpes e ferimentos agravados no caso Magge Lundin, e golpes e ferimentos agravados acompanhados de tentativa de homicídio no caso Karl Axel Bodin, aliás Alexander Zalachenko.

A data do julgamento ainda não estava marcada, mas Mikael pegara no ar o comentário de alguns colegas. Aparentemente Ekstrõm previa o julgamento para julho, dependendo do estado de saúde de Lisbeth Salander. Mikael adivinhava a sua intenção. Um julgamento no meio do verão sempre chamava menos atenção que em outras épocas do ano.

Ele franziu a testa e olhou pela janela de sua sala na redação da Millennium.

Essa história ainda não acabou. A conspiração contra Lisbeth continua. E a única explicação para os telefones sob escuta, a agressão a Annika e o roubo do relatório Salander de 1991. E, quem sabe, para o assassinato de Zalachenko.

Só que ele não tinha provas.

Com a concordância de Malu Eriksson e Christer Malm, Mikael decidira que as edições Millennium também iriam publicar o livro de Dag Svensson sobre o tráfico de mulheres, de olho no julgamento. Era melhor apresentar o pacote inteiro de uma vez; não havia por que esperar para publicá-lo. Pelo contrário — em nenhum outro momento o livro despertaria mais interesse. Malu assumira a redação final do livro de Dag Svensson, ao passo que Henry Cortez assessorava Mikael na redação do livro sobre o caso Salander. Lottie Karim e Christer Malm (contra a sua vontade) também tinham virado assistentes de redação temporários da Millennium, uma vez que Monika Nilsson era a única jornalista disponível. O resultado dessa carga extra de trabalho sobrecarregou a redação da Millennium, e Malu Eriksson contratara vários free-lancers para redigir os textos. Ia custar caro, mas eles não tinham escolha.

Mikael anotou num post-it que precisava acertar a questão dos direitos autorais do livro com a família de Dag Svensson. Ele se informara que os pais de Dag moravam em Orebro e eram seus únicos herdeiros. Em princípio, não precisava de autorização para publicar o livro com o nome de Dag Svensson, mas mesmo assim pretendia ir até Orebro conversar com eles para obter seu aval. Vinha adiando o tempo todo essa visita por andar muito ocupado, mas já era mais do que na hora de acertar esse detalhe.

Depois disso, restavam apenas dezenas de outros detalhes! Alguns estavam ligados ao modo de se referir a Lisbeth Salander nos textos. Para definir isso de uma vez por todas, seria obrigado a ter uma conversa particular com ela e obter sua autorização para contar a verdade, ou pelo menos a verdade parcial. E essa conversa particular era impossível de conseguir, já que Lisbeth estava sob prisão cautelar e proibida de receber visitas.

Nesse aspecto, Annika Giannini não lhe era de nenhuma ajuda. Ela seguia escrupulosamente o regulamento em vigor e não tinha a intenção de transmitir recados sigilosos de Mikael Blomkvist. Annika também não lhe contava sobre o que ela e sua cliente conversavam, com exceção de episódios relativos à maquinação contra ela, para os quais Annika precisava de ajuda. Era frustrante, mas correto. Mikael, portanto, ignorava totalmente se Lisbeth revelara a Annika que seu ex-tutor a violentara e que ela se vingara tatuando-lhe uma mensagem gritante na barriga. Enquanto Annika não abordasse o assunto, Mikael tampouco poderia fazê-lo.

O isolamento de Lisbeth Salander constituía, antes de mais nada, uma autêntica complicação. Ela era perita em informática, uma hacker, o que Mikael sabia, mas Annika não. Mikael prometera a Lisbeth nunca revelar seu segredo e mantivera a promessa. O problema era que, no momento, ele próprio estava necessitadíssimo de suas competências técnicas.

Logo, precisava estabelecer de alguma maneira um contato com Lisbeth Salander.

Suspirou, voltou a abrir a pasta de Daniel Olofsson e separou duas folhas. Uma era uma ficha do cadastro de passaportes em nome de Idris Ghidi, nascido em 1950. Era um homem de bigode, pele morena e cabelo preto grisalho nas têmporas.

O outro documento era o resumo que Daniel Olofsson fizera do passado de Idris Ghidi.

Ghidi era um refugiado curdo que viera do Iraque. Daniel Olofsson ob-tivera mais dados decisivos sobre Idris Ghidi do que sobre qualquer outro funcionário. A explicação desse desequilíbrio era que, durante algum tempo, Idris Ghidi gozara de certa notoriedade na mídia e constava nos arquivos da imprensa.

Nascido na cidade de Mossul, no norte do Iraque, Idris Ghidi se formara em engenharia e participara do grande boom econômico dos anos 1970. Em 1984, começara a lecionar na escola técnica de Mossul. Não estava ligado a nenhuma atividade política conhecida. Infelizmente, era curdo e, por definição, um criminoso potencial no Iraque de Saddam Hussein. Em outubro de 1987, o pai de Idris Ghidi foi preso, sob suspeita de ativismo curdo. Não foi dada nenhuma pista sobre a natureza de seu crime. Foi executado como traidor da pátria, provavelmente em janeiro de 1988. Dois meses depois, a polícia secreta iraquiana foi buscar Idris Ghidi, que estava começando a dar uma aula sobre a resistência dos materiais aplicada à construção de pontes. Foi levado para uma prisão fora de Mossul, onde durante onze meses foi submetido a torturas ferozes que pretendiam fazê-lo confessar. Idris Ghidi não entendia direito o que esperavam que ele confessasse, de modo que a tortura se prolongou.

Em março de 1989, um tio de Idris Ghidi pagou uma quantia equivalente a cinqüenta mil coroas suecas para o chefe local do Partido Baas, decerto uma espécie de compensação suficiente pelos estragos que Idris Ghidi causara ao Estado iraquiano. Dois dias depois, ele foi solto e entregue ao tio. Pesava trinta e nove quilos e não conseguia caminhar. Antes de soltá-lo, haviam quebrado seu quadril esquerdo com uma grande quantidade de golpes, para impedi-lo de andar por aí e cometer futuras besteiras.

Idris Ghidi ficou entre a vida e a morte durante várias semanas. Quando finalmente sentiu-se um pouco melhor, seu tio o levou para um sítio a seiscentos quilômetros de Mossul. Ele refez as energias durante o verão até ficar forte o bastante para reaprender a andar de muletas de modo mais ou menos aceitável. Sabia perfeitamente que nunca se restabeleceria por completo. A questão agora era o que ele faria dali em diante. Em agosto, seus dois irmãos foram presos pela polícia secreta. Jamais tornaria a vê-los. Deviam estar enterrados em algum lugar nos subúrbios de Mossul. Em setembro, seu tio descobriu que a polícia secreta de Saddam Hussein estava novamente procurando Idris Ghidi. Ele então resolveu procurar um atravessador anônimo, que, por uma quantia equivalente a trinta mil coroas, fez Idris Ghidi cruzar a fronteira turca e, com um passaporte falso, levou-o para a Europa.

Idris Ghidi aterrissou no aeroporto de Arlanda, em Estocolmo, em 19 de outubro de 1989. Não falava uma palavra de sueco, mas tinham lhe explicado que ele deveria se apresentar na polícia de fronteiras e imediatamente pedir asilo político, o que ele fez usando um inglês precário. Foi transferido para um centro de refugiados em Upplands-Vãsby, e ali passou os dois anos seguintes, até que o Ministério da Imigração concluiu que não havia motivos suficientes para Idris Ghidi obter um visto de residência na Suécia.

A essa altura, Ghidi já havia aprendido a falar sueco e recebido tratamento médico para o seu quadril esmagado. Passara por duas cirurgias e conseguia se locomover sem muletas. Nesse meio-tempo, houvera o "não" dos moradores de Sjõbo aos imigrantes, alguns centros de refugiados tinham sido alvo de atentados e Bert Karlsson fundara o Partido Nova Democracia.

O motivo exato pelo qual Idris Ghidi constava nos arquivos da imprensa era que, no último instante, um novo advogado reunira a imprensa para explicar a situação. Outros curdos que viviam na Suécia se mobilizaram a favor de Idris Ghidi, entre os quais alguns membros da combativa família Baksi. Houve reuniões de protesto, e abaixo-assinados foram enviados ao ministro da Imigração, Birgit Friggebo. A repercussão na mídia foi tanta que o Ministério da Imigração acabou modificando sua decisão. Ghidi obteve um visto de residência e um emprego no reino da Suécia. Em janeiro de 1992, deixou o centro de refugiados de Upplands-Vãsby na condição de homem livre.

Ao deixar o centro de refugiados, um novo desafio aguardava Idris Ghidi. Ele precisava encontrar trabalho enquanto ainda fazia fisioterapia no seu quadril destruído. Idris Ghidi logo iria descobrir que o fato de ele ter uma sólida formação como engenheiro civil, com anos de experiência e diplomas legalmente reconhecidos não queria dizer nada. Nos anos que se seguiram trabalhou como entregador de jornais, lavador de pratos, gari e motorista de táxi. Viu-se obrigado a pedir demissão do emprego de entregador de jornais Simplesmente não conseguia subir escadas no ritmo necessário. Gostava do trabalho de taxista, mas havia dois problemas. Não conhecia minimamente a rede viária de Estocolmo e não conseguia ficar imóvel mais de uma hora seguida sem que a dor no quadril se tornasse insuportável.

Em maio de 1998, Idris Ghidi se mudou para Gõteborg. Um parente distante se compadecera de sua situação e lhe oferecera um emprego fixo numa firma de limpeza. Como Idris Ghidi não podia trabalhar em tempo integral, deram-lhe um serviço de meio período como chefe de uma das equipes de faxineiros do Hospital Sahlgrenska, que terceirizava os serviços. Seu trabalho, fácil e metódico, consistia em lavar o piso de alguns setores, entre eles o 11C, seis dias por semana.

Mikael Blomkvist leu o resumo de Daniel Olofsson e examinou a foto de Idris Ghidi no cadastro de passaportes. Em seguida, abriu o site dos arquivos de imprensa e selecionou vários que haviam servido de base para o resumo de Olofsson. Leu atentamente e depois passou um bocado de tempo refletindo. Acendeu um cigarro. A proibição de fumar na redação fora rapidamente abolida depois da saída" de Erika Berger. Henry Cortez chegava a deixar um cinzeiro sobre sua mesa, à vista de todos.

Por fim, Mikael pegou a folha A4 que Daniel Olofsson produzira sobre Anders Jonasson. Leu o texto, e sulcos profundos foram marcando sua testa.

Mikael Blomkvist não estava vendo o carro com a placa KAB nem tinha a sensação de estar sendo seguido, mas preferiu não dar chance ao azar na segunda-feira, quando foi da livraria universitária à entrada secundária da loja de departamentos NK, saindo em seguida pela porta principal. Para conseguir vigiar alguém dentro de uma loja de departamentos, só sendo um super-homem. Desligou os dois celulares e foi a pé até a Praça Gustaf Adolf. Entrou na galeria, passou em frente ao Hotel do Parlamento e penetrou na cidade velha. Até onde podia avaliar, não estava sendo seguido. Deu várias voltas pelas pequenas vielas até chegar ao endereço que queria e bateu à porta da editora Svartvitt.

Eram duas e meia da tarde. Mikael não avisara que ia aparecer, mas o redator Kurdo Baksi estava lá e seu rosto se iluminou ao ver Mikael Blomkvist.

- Ora, como vai — disse Baksi cordialmente. — Por que não vem mais nos visitar?

- Aqui estou — disse Mikael.

- Sim, mas deve fazer uns três anos, no mínimo, desde a última vez.

Apertaram-se as mãos.

Mikael Blomkvist conhecia Kurdo Baksi desde os anos 1980. Mikael fora um dos que tinham ajudado Baksi quando ele lançara a Svartvitt, que eles ainda imprimiam à noite e às escondidas na Federação dos Sindicatos. Kurdo fora flagrado por Per-Erik-Astrõm, o futuro caçador de pedófilos do Radda Bamen. Certa noite, Astrõm entrou na gráfica da Federação e deu com pilhas de páginas do primeiro número da Svartvitt e com um Kurdo Baksi totalmente sem graça. Astrõm contemplou a diagramação horrorosa da primeira página e declarou que não era daquele jeito que se fazia a droga de uma revista. Em seguida, desenhou o logotipo que apareceria no cabeçalho da Svartvitt por quinze anos, até a revista ser enterrada e sucedida pela editora Svarvitt. Na época, Mikael encerrava um período odioso como responsável pelo setor de atualidades na Federação — sua única e exclusiva passagem por essa área. Per-Erik Astrõm o convencera a corrigir as provas da Svartvitt e a dar uma mãozinha na redação dos textos. A partir daí, Kurdo Baksi e Mikael Blomkvist se tornaram amigos.

Mikael Blomkvist sentou-se num sofá enquanto Kurdo Baksi ia buscar café na máquina do corredor. Conversaram durante algum tempo, como é natural quando as pessoas não se vêem há muito, mas a todo momento eram mterrompidos pelo celular de Kurdo. Ele tinha breves diálogos em curdo, ou quem sabe em turco, ou árabe, ou sabe Deus em que outra língua que Mikael não entendia. Toda vez que Mikael fora à editora Svartvitt tinha sido a mesma coisa. Gente ligando do mundo inteiro para falar com Kurdo.

— Meu caro Mikael, você parece preocupado. O que o traz aqui? — Perguntou Kurdo Baksi por fim.

— Você poderia desligar o celular por uns cinco minutos para a gente Poder falar em paz?

Kurdo desligou o celular.

—- É o seguinte... preciso de um favor. Um favor importante, e ainda por cima tem que ser rápido e não pode ser comentado fora desta sala.

— Diga.

— Em 1989, um refugiado curdo chamado Idris Ghidi chegou à Suécia vindo do Iraque. Quando ameaçaram expulsá-lo, a sua família, Kurdo, o ajudou, e é graças a ela que ele acabou conseguindo um visto de permanência. Não sei se quem o ajudou foi seu pai ou alguma outra pessoa da família.

— Foi meu tio, Mahmut Baksi, quem ajudou o Idris Ghidi. Eu conheço o Idris. O que houve com ele?

— Ele agora trabalha em Gõteborg. Preciso da sua ajuda para um serviço simples. Eu pago.

— Que tipo de serviço?

— Você confia em mim, Kurdo?

— Mas é claro. Sempre fomos amigos.

— Trata-se de um serviço especial. Muito especial. Não quero dizer em que ele consiste, mas garanto a você que não é nada ilegal e que não vai criar nenhum problema para você nem para o Idris Ghidi.

Kurdo Baksi fitou Mikael Blomkvist atentamente.

— Entendo. Mas você não quer me dizer do que se trata.

— Quanto menos você souber, melhor. Mas preciso que você me ponha em contato com o Idris, para que ele ouça o que eu tenho a dizer.

Kurdo refletiu um instante. Então foi até sua mesa e abriu uma caderneta. Procurou um pouco até encontrar o número do telefone de Idris Ghidi. Pegou o fone. A conversa se deu em curdo. Pela expressão de Kurdo, Mikael percebeu que ela começou com as frases e os preâmbulos rituais de gentileza. Depois, ficou sério e explicou o que queria. Passado um momento, virou-se para Mikael.

— Quando você quer se encontrar com ele?

— Na sexta à tarde, se possível. Pergunte se posso ir à casa dele. Kurdo falou mais um pouco e encerrou a ligação.

— O Idris Ghidi mora em Angered — disse Kurdo Baksi. — Você tem o endereço?

Mikael fez que sim com a cabeça.

— Ele vai te esperar em casa, na sexta-feira, às cinco da tarde.

— Obrigado, Kurdo — disse Mikael.

— Ele trabalha no Hospital Sahlgrenska, na limpeza — disse Kurdo Baksi.

- Eu sei — disse Mikael.

- Soube pelos jornais que você está envolvido nesse caso Salander.

___ É verdade.

— Andaram atirando nela. .— Isso mesmo.

— É interessante que ela esteja justamente no Sahlgrenska.

— Isso também é verdade.

Kurdo Baksi também não tinha nascido ontem.

Percebeu que Blomkvist tramava algo suspeito, era a especialidade dele. Conhecia Mikael desde os anos 1980. Nunca tinham sido muito próximos, mas Mikael sempre atendera quando Kurdo lhe pedira algum favor. Nos últimos anos, tinha acontecido de eles tomarem uma ou outra cerveja juntos, quando se cruzavam numa festa ou num bar.

— Será que eu não estou me envolvendo em alguma coisa que eu deveria saber? — perguntou Kurdo.

— Você não está se envolvendo em nada. Seu papel é apenas fazer o favor de me apresentar um conhecido seu. E repito... o que eu vou pedir para o Idris Ghidi fazer não é ilegal.

Kurdo assentiu com a cabeça. Esta garantia lhe bastava. Mikael se levantou.

— Fico te devendo essa.

— Uma vez eu, outra você... a gente está sempre se devendo algum favor — disse Kurdo Baksi.

Henry Cortez pôs o fone no gancho e tamborilou tão ruidosamente os dedos na beira da mesa que Monika Nilsson, irritada, ergueu uma sobrancelha e lançou-lhe um olhar mortífero. Notou que ele estava profundamente imerso em seus pensamentos. Estava com os nervos à flor da pele e resolveu não descontar em Henry.

Monika Nilsson sabia que Blomkvist andava de segredos com Cortez, Malu Eriksson e Christer Malm em razão do caso Salander, enquanto esperavam que ela e Lottie Karim fizessem o grosso do trabalho para o próximo numero de uma revista que, na verdade, estava sem direção desde a saída de


Erika Berger. Não havia o que criticar em Malu, mas ela não tinha nem a experiência nem o peso de Erika Berger. E Cortez não passava de um garoto.

A irritação de Monika Nilsson não vinha de ela se sentir excluída ou querer estar no lugar deles — era, aliás, a última coisa que ela iria querer. Seu trabalho consistia em observar o governo, o Parlamento e o funcionalismo pela Millennium. Gostava desse trabalho e conhecia todos os seus meandros. Também estava envolvida em muitas outras tarefas, entre outras coisas escrever uma coluna semanal para um jornal sindical e um trabalho voluntário para a Anistia Internacional. Isso era inconciliável com o cargo de redatora--chefe da Millennium, que a levaria a trabalhar no mínimo doze horas por dia, além de sacrificar fins de semana e feriados.

Tinha, porém, a impressão de que algo mudara na Millennium. Não estava reconhecendo a revista. E não conseguia detectar o que soava errado.

Como sempre, Mikael Blomkvist vinha tendo um comportamento irresponsável, sumindo em suas viagens misteriosas e entrando e saindo quando bem entendesse. Claro, ele era co-proprietário da Millennium e tinha o direito de decidir o que queria fazer, mas era legítimo exigir dele um mínimo de responsabilidade.

Christer Malm era o outro coproprietário, mas não ajudava mais do que quando estava de férias. Era, sem dúvida alguma, muito talentoso e já assumira o posto de redator-chefe quando Erika estava de licença ou ocupada, porém de modo geral só organizava o que já havia sido decidido pelos outros. Era brilhante em tudo que se relacionava com criação gráfica e diagramação, mas completamente inútil para planejar uma revista.

Monika Nilsson franziu o cenho.

Não, estava sendo injusta. O que a irritava era alguma coisa ter acontecido na redação. Mikael trabalhava com Malu e Henry, e os demais ficavam, de certa forma, excluídos. Eles tinham formado uma panelinha e se trancavam na sala de Erika... de Malu, e saíam de lá sem dizer uma palavra. Sob a direção de Erika, tudo era coletivo. Monika não entendia o que acontecera, mas entendia que estava sendo deixada de lado.

Mikael estava trabalhando no caso Salander e não deixava escapar uma palavra sobre o assunto. Isso, porém, não era novidade. Ele tampouco dissera alguma coisa na época do caso Wennerstrõm — a própria Erika não soubera de nada —, mas desta vez tinha Henry e Malu como confidentes.

Em suma, Monika estava irritada. Estava precjsando de férias. Precisando de distância. Viu Henry Cortez vestir seu casaco de veludo cotelê.

— Vou dar uma volta — disse ele. — Você pode dizer para a Malu que eu vou ficar fora por umas duas horas?

— O que houve?

— Acho que talvez eu tenha descoberto alguma coisa. Um superfuro. Sobre vasos sanitários. Preciso conferir uns detalhes, mas, se estiver tudo certo, vamos ter um texto legal para o número de junho.

— Vasos sanitários? — espantou-se Monika Nilsson, enquanto ele saía.

Erika Berger cerrou os dentes e largou devagar o texto sobre o futuro julgamento de Lisbeth Salander. Não era longo, duas colunas, destinado à página 5 com as atualidades nacionais. Eram três e meia da tarde de uma quinta-feira. Fazia doze dias que ela estava trabalhando no SMP. Pegou o telefone e ligou para o chefe de Atualidades, Lukas Holm.

— Olá, é a Berger. Você poderia procurar o jornalista Johannes Frisk e vir com ele agora mesmo até a minha sala, por favor?

Ela desligou e esperou pacientemente até Holm chegar ao aquário, seguido por Johannes Frisk. Erika olhou o relógio.

— Vinte e dois — disse ela.

— O quê? — disse Holm.

— Vinte e dois minutos. Você precisou de vinte e dois minutos para se levantar de sua mesa, percorrer os quinze metros que te separam da mesa de Johannes Frisk e se dignar a vir até aqui.

— Você não falou que era urgente. Estou razoavelmente ocupado.

— Eu não falei que era urgente. Falei que era para você buscar o Johannes Frisk e vir até a minha sala. Eu disse "agora mesmo", o que queria dizer imediatamente, e não hoje à noite ou na semana que vem, ou quando fosse conveniente para você tirar a bunda da cadeira.

— Ei, eu estou achando...

— Feche a porta.

Ela esperou Lukas Holm fechar a porta atrás de si. Erika o observou em silêncio. Ele era, sem dúvida, um chefe de Atualidades particularmente competente, cujo papel era cuidar para que as páginas do SMP sempre trouxessem bons textos, compreensíveis e organizados no espaço definido durante a reunião da manhã. Lukas Holm, de fato, fazia diariamente malabarismo com uma quantidade gigantesca de tarefas. E fazia isso sem deixar cair nenhuma bola.

O problema é que ele ignorava sistematicamente as decisões de Erika Berger. Por quase duas semanas, ela tentara achar um jeito de conseguir trabalhar com ele. Argumentara com cordialidade, experimentara ordens diretas, o estimulara a pensar de forma diferente e, no geral, fizera de tudo para ele entender qual a concepção que ela tinha do jornal.

Nada disso funcionara.

Um texto recusado por ela à tarde aparecia no jornal à noitinha, quando ela voltava para casa. E que excluímos um texto e ficamos com uma lacuna que tínhamos que preencher de qualquer maneira, ele dizia.

O título escolhido por Erika de repente era rejeitado e substituído por outro bem diferente. Nem sempre era ruim, mas isso acontecia sem que ela fosse consultada. Acontecia, inclusive, de maneira provocativa e ostensiva.

Sempre se tratava de ninharias. A reunião da redação prevista para as catorze horas era adiantada para as 13h50 de uma hora para outra, sem que ela fosse informada, a maioria das decisões já estava tomada quando ela por fim chegava. Oh, me desculpe... esqueci completamente de te avisar.

Era muito difícil para Erika Berger entender por que Lukas Holm assumia essa atitude em relação a ela, mas o fato é que as conversas cordiais e as reprimendas discretas não funcionavam. Até então, achara melhor não discutir o problema na presença de outros colaboradores da redação, procurando limitar sua irritação às conversas pessoais e confidenciais. Nada surtira efeito, de modo que chegara a hora de se expressar mais claramente, dessa vez na presença do colaborador Johannes Frisk, garantia de que o teor da conversa se espalharia por toda a redação.

— A primeira coisa que eu disse quando comecei a trabalhar aqui foi que tenho um particular interesse por tudo o que diz respeito a Lisbeth Salander. Expliquei que queria ser informada de todos os artigos que estivessem previstos e que queria olhar e aprovar tudo o que fosse ser publicado. Já lembrei você disso pelo menos uma dúzia de vezes, sendo que a última vez foi na reunião da redação de sexta-feira passada. Que parte dessa instrução você não entendeu?

— Todos os textos previstos ou já na fase de redação estão nas pautas diárias na intranet. Eles são sistematicamente enviados para o seu computador. Você é informada o tempo todo.

— Balela. Quando recebi o SMP na minha caixa de correspondência hoje de manhã, encontrei três colunas sobre a Salander e o acompanhamento do caso de Stallarholmen no espaço nobre de Atualidades.

— Era o texto da Margareta Orring. Ela é frila e só mandou o texto ontem lá pelas sete da noite.

— A Margareta Orring ligou para oferecer o artigo ontem às onze da manhã. Você aceitou e encomendou o trabalho por volta das onze e meia. E não disse uma palavra sobre assunto na reunião das duas da tarde.

— Mas ele consta na pauta do dia.

— Ah, é? Na pauta do dia consta o seguinte: "Margareta Orring, entrevista com a procuradora Martina Fransson. Cf. apreensão de entorpecentes em Sõdertãlje".

— O assunto de base era uma entrevista com a Martina Fransson a respeito de uma apreensão de esteroides anabolizantes, que resultou na prisão de um membro do MC Svavelsjõ.

— Tá bom! E na pauta do dia não aparece uma palavra sobre o MC Svavelsjõ nem sobre o fato de que o artigo iria se articular em torno de Magge Lundin e Stallarholmen e, portanto, em torno de Lisbeth Salander.

— Imagino que a coisa tenha se definido no decorrer da entrevista...

— Lukas, não sei qual o motivo, mas você está mentindo para mim enquanto olha nos meus olhos. Eu falei com a Margareta Orring, que escreveu o texto. Ela lhe explicou muito claramente qual era o assunto central da entrevista.

— Sinto muito, mas acho que não entendi que ela ia focar na Salander. Acontece que recebi o texto muito tarde, já de noite. O que eu devia fazer? Jogar tudo fora? E um bom texto, esse da Orring.

— Nesse ponto nós concordamos. E um texto excelente. E chegamos à sua terceira mentira em mais ou menos três minutos. Porque a Orring entregou o texto às três e vinte da tarde, ou seja, muito antes das seis horas, quando eu saí.

— Berger, eu não estou gostando do seu tom.

— Ótimo. Então posso dizer que eu também não gosto do seu tom, nem dos seus pretextos, nem das suas mentiras.

— Quem ouve até pode achar que eu estou armando algum tipo de conspiração contra você.

— Você ainda não respondeu a minha pergunta. E agora mais esta: hoje chega à minha mesa este texto do Johannes Frisk. Não lembro de termos falado sobre ele na reunião das duas horas. Como pode um dos nossos jornalistas ter passado o dia trabalhando sobre a Salander sem que eu estivesse á par?

johannes Frisk se remexeu na cadeira. Teve o bom senso de permanecer calado.

— Mas afinal... a gente está produzindo um jornal. Deve haver centenas de textos que você não conhece. Aqui no SMP a gente tem uma rotina, e cabe a cada um se adaptar a ela. Não tenho nem tempo nem condições de me deter em certos textos específicos.

— Eu não lhe pedi que se detivesse em certos textos específicos. Eu exigi, primeiro, ser informada de tudo o que diz respeito ao caso Salander e, segundo, poder endossar tudo o que fosse publicado sobre o assunto. Então vou repetir a pergunta: que parte dessa instrução você não entendeu?

Lukas Holm suspirou e exibiu uma expressão atormentada.

— Está bem — disse Erika Berger. — Então vou ser mais clara ainda. Não tenho a intenção de ficar discutindo. Vamos ver se você entende a seguinte mensagem. Se essa situação se repetir, tiro você da editoria de Atualidades. Vai ser o maior bafafá, e depois disso você vai ficar redigindo a página Família, ou Lazer, ou algo assim. Não posso ficar com um editor de Atualidades em quem não confio, ou com quem não posso trabalhar, e que passa o tempo todo boicotando as minhas decisões. Está entendido?

Lukas Holm fez um gesto de mãos para expressar como achava um delírio as acusações de Erika Berger.

— Entendeu? Ou não?

— Estou escutando.

— Eu perguntei se você entendeu ou não.

— Você acha mesmo que vai se safar desse jeito? Esse jornal só sai porque eu e outras peças desta engrenagem nos matamos de trabalhar. O conselho administrativo vai...

— O conselho vai fazer o que eu mandar. Estou aqui para renovar o jornal. Tenho uma missão expressa, que a gente negociou juntos com o maior cuidado e que me dá o direito de fazer mudanças de peso na redação no nível das chefias. Posso me desfazer do supérfluo e contratar sangue novo quando eu quiser. E, Holm, para mim você está começando a parecer cada vez mais supérfluo.

Ela se calou. Holm cruzou o olhar com o seu. Parecia furioso.

— É só isso — disse Erika Berger. — Sugiro que você reflita seriamente no que acabamos de falar.

— Não tenho a intenção...

— Só depende de você. É só. Pode se retirar.

Ele deu meia-volta e saiu do aquário. Ela o viu atravessar o formigueiro da redação e desaparecer na sala dos funcionários. Johannes Frisk se levantou para ir atrás dele.

— Você fica, Johannes. Sente-se.

Ela pegou o texto dele e o percorreu com os olhos mais uma vez.

— Pelo que entendi, você está aqui como substituto.

— Sim. Faz cinco meses, esta é a minha última semana.

— Quantos anos você tem?

— Vinte e sete.

— Lamento ter te colocado nesta briga entre mim e o Holm. Me fale sobre o seu artigo.

— Me passaram uma informação hoje de manhã e eu comuniquei ao Holm. Ele falou para eu tocar em frente.

— Certo. Quer dizer que, no momento, a polícia está trabalhando com a hipótese de que a Lisbeth Salander estaria envolvida numa venda de esteróides anabolizantes. O seu artigo tem alguma relação com o texto de ontem, sobre Sõdertãlje, que também falava em anabolizantes?

— Não sei, pode ser. Essa história de anabolizantes surgiu da relação dela com o boxeador. O Paolo Roberto e os amigos dele.

— Porque o Paolo Roberto usa anabolizantes?

— O quê? Não, claro que não. Tem mais a ver com o ambiente do boxe. A Salander treina boxe com uns caras meio suspeitos num clube do Sõder. Mas essa é a visão da polícia, não a minha. Foi em algum ponto por aí que surgiu a idéia de que ela estaria metida com a venda de anabolizantes.

— Portanto o artigo não se fundamenta em nada, a não ser num boato à toa?

— Não é um boato, é uma hipótese que a polícia está considerando. Se eles estão certos ou errados, aí já não faço idéia.

— Perfeito, Johannes. Quero que você saiba que o que eu estou conversando com você agora não tem nada a ver com a minha relação com o Lukas Holm. Acho você um excelente jornalista. Escreve bem e é atento aos detalhes. Em suma, esse artigo que você escreveu está muito bom. Meu único problema é que não acredito numa só palavra do conteúdo dele.

— Posso garantir que ele está absolutamente correto.

— Vou te explicar por que esse artigo traz um erro fundamental. Quem lhe passou a informação?

— Uma fonte policial.

— Quem?

Johannes Frisk hesitou. Sua reticência era instintiva. Como qualquer jornalista no mundo inteiro, ele não gostava de revelar suas fontes. Por outro lado, Erika Berger era a redatora-chefe e, portanto, uma das poucas pessoas que podiam exigir que ele desse essa informação.

— Um policial da Brigada Criminal chamado Hans Faste.

— Foi ele que ligou ou você?

— Ele.

Erika Berger suspirou.

— E por que você acha que ele te ligou?

— Eu o entrevistei várias vezes durante a caçada à Salander. Ele sabe quem eu sou.

— E ele sabe que você tem vinte e sete anos, que é um jornalista substituto e que pode ser útil quando ele quiser plantar informações que o procurador gostaria de divulgar.

— Sim, entendo. Mas, veja bem, eu recebo uma informação de um investigador, vou tomar um café com o Faste e o que ele me conta é isso. Reproduzo fielmente a história dele. Então, o que devo fazer?

— Tenho certeza de que você transcreveu tudo corretamente. O certo teria sido você levar a informação para o Lukas Holm, que me procuraria para explicar a situação, e assim a gente decidiria juntos como encaminhar o caso.

- Entendo. Mas eu...

- Você entregou o material ao Holm, que é o chefe de Atualidades.

- Você fez o certo. O Holm é que pisou na bola. Mas vamos dar uma analisada no seu texto. Primeiro, por que o Faste quer que essa informação se torne pública?

Johannes Frisk deu de ombros.

— Isso quer dizer que você não sabe ou que não está nem aí?

— Que eu não sei.

— Tudo bem. Se eu disser que o seu artigo é mentiroso e que a Salander não tem nada a ver com esteróides anabolizantes, você vai responder o quê?

— Que eu não posso provar o contrário.

— Exato. Isso quer dizer que, segundo você, a gente pode publicar um artigo que talvez seja mentiroso só porque não temos nada em contrário.

— Não, a gente tem uma responsabilidade jornalística. Mas sempre se deve achar um equilíbrio. Não dá para deixar de publicar alguma coisa que uma fonte afirma expressamente.

— Essa é uma filosofia. A gente também pode se perguntar por que a fonte quer divulgar essa informação. Deixe eu explicar por que dei ordem para que tudo o que diz respeito à Salander passe pela minha mesa. Tenho informações particulares sobre esse assunto que mais ninguém aqui no SMP tem. O jurídico foi informado de que eu detenho essas informações e que não posso discuti-las com eles. A Millennium vai publicar uma matéria e, por contrato, não posso revelar nada ao SMP, embora eu esteja trabalhando aqui. Obtive essa informação na qualidade de diretora da Millennium e, no momento, estou numa situação delicada. Você entende o que quero dizer?

— Sim.

— E o que eu sei através Millennium me autoriza, sem hesitação, a declarar que esse artigo é mentiroso e visa prejudicar a Lisbeth Salander antes do julgamento.

— E difícil prejudicar mais a Lisbeth Salander. Com todas as revelações que já foram feitas sobre ela...

— Revelações que são, na maioria, mentirosas e deturpadas. O Hans Faste é uma das principais fontes de todas essas revelações de que Lisbeth Salander seria uma lésbica paranóica e violenta que mexe com satanismo e sadomasoquismo. E a mídia engoliu a versão do Faste apenas porque ele é uma fonte aparentemente séria e porque sempre é divertido escrever sobre sexo Agora ele está enveredando por outra linha de tiro, que pretende condenar a Lisbeth Salander perante a opinião pública, e ele quer que o SMP contribua nessa divulgação. Lamento, mas não sob o meu comando.

— Entendo.

— Tem certeza? Ótimo. Então posso resumir o meu discurso numa só frase. A sua missão como jornalista é questionar e manter um olhar crítico, e não repetir tolamente qualquer declaração, mesmo que ela venha de um figurão das altas esferas administrativas. Você é um redator de primeira, mas seu talento não vai ter valor nenhum se você se esquecer da sua missão.

— Certo.

— Pretendo invalidar este artigo.

— Tudo bem.

— Ele não se sustenta. Não acredito no que ele diz.

— Entendo.

— Isso não significa que eu não confie em você.

— Obrigado.

— Por isso vou te mandar de volta para a sua mesa com a proposta de um outro artigo.

— Ah, é?

— Tem a ver com o meu contrato com a Millennium. Eu não posso revelar o que sei sobre o caso da Lisbeth Salander. Ao mesmo tempo, sou redatora-chefe de um jornal que está sujeito a dar uma tremenda pisada na bola, já que a redação não dispõe das mesmas informações que eu.

— Humm.

— Isso não é bom. Estamos numa situação única, que só diz respeito à Salander. Por isso resolvi escolher um jornalista e guiá-lo na direção certa para a gente não ficar com cara de bobo quando a Millennium sair.

— E você acha que a Millennium vai publicar algo excepcional sobre a Salander?

— Eu não acho. Eu sei. A Millennium está preparando um furo que vai dar uma reviravolta completa no caso Salander, e eu fico doida por não poder publicar a matéria. Porém isso é impossível.

— Mas você disse que vai rejeitar o meu texto porque sabe que ele esta errado. - Então significa que você já está sabendo que existe alguma coisa no caso que os outros jornalistas deixaram passar.

- Exato.

- Me desculpe, mas é difícil acreditar que a mídia sueca inteirinha

tenha caído numa armadilha dessas...

- A Lisbeth Salander foi vítima de uma perseguição da mídia. Em casos assim, as regras deixam de ter valor e qualquer bobagem pode ir parar na primeira página.

— Você está dizendo que a Salander não é o que aparenta ser.

— Tente imaginar que ela é inocente das acusações que estão lhe fazendo, que a imagem dela, construída pelas manchetes sensacionalistas, é falsa e que estão envolvidas forças bem diferentes das que se viram até agora.

— Você está dizendo que esse é o caso? Erika Berger fez que sim com a cabeça.

— E isso significa que o que eu acabo de escrever faz parte da campanha que tem sido feita contra ela.

— Exato.

— Mas você não pode dizer o porquê disso tudo?

— Não.

Johannes Frisk cocou a cabeça. Erika Berger esperou que ele terminasse de pensar.

— Está bem... o que você quer que eu faça?

— Volte para a sua mesa e comece a pensar num outro artigo. Não precisa se estressar, mas pouco antes de começar o julgamento eu queria publicar um texto longo, talvez de duas páginas, que analisasse a veracidade de todas as afirmações que já foram feitas sobre a Lisbeth Salander. Para começar, leia todos os artigos que saíram na imprensa, faça uma lista de tudo o que foi dito sobre ela e questione todas as afirmações, uma por uma.

— Ahã...

— Pense como repórter. Descubra quem está espalhando essa história, por que ela se espalhou e quem pode se beneficiar com ela.

— O detalhe é que não sei se ainda vou estar no SMP quando o julgamento começar. Como eu disse, esta é a minha última semana como substituto.

Erika pegou uma pasta de plástico da gaveta da escrivaninha, tirou de lá de dentro um papel e o colocou diante de Johannes Frisk.

— Já prorroguei a sua substituição por mais três meses. Esta semana você continua normalmente, e volta a se apresentar na segunda-feira que vem.

— Hum...

— Quer dizer, isso se você estiver interessado em continuar aqui.

— Claro que sim.

— Você foi contratado para um serviço de investigação fora do trabalho normal da redação. Vai trabalhar diretamente sob as minhas ordens. Será o nosso enviado especial no julgamento Salander.

— O chefe de Atualidades vai estrilar...

— Não se preocupe com o Holm. Já falei com o chefe do jurídico, e ele vai cuidar para que não haja problema com eles. Mas você vai meter o nariz nos bastidores, em vez de ficar levantando informações comuns. Está bem assim?

— Está ótimo.

— Bem... então era isso. Até segunda.

Ela fez um sinal para que ele se retirasse. Quando tornou a levantar os olhos, percebeu que Lukas Holm olhava para ela do outro lado do polo central. Ele baixou os olhos e fingiu não vê-la.


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