20 - SEXTA-FEIRA 1° DE ABRIL – DOMINGO 3 DE ABRIL


Miriam Wu ficou uma hora com Sonja Modig. Já no final do interrogatório, Bublanski retornou à sala e sentou-se, escutando calado. Miriam Wu o cumprimentou educadamente, mas continuou a falar com Sonja.

Por fim, Modig olhou para Bublanski e perguntou se ele tinha alguma pergunta a acrescentar. Bublanski balançou a cabeça.

—Então declaro encerrado o interrogatório de Miriam Wu. São 13h09. Desligou o gravador.

—Ouvi dizer que houve um problema com o inspetor Faste - disse Bublanski.

—Ele estava meio desconcentrado - explicou Sonja Modig com voz neutra.

—Ele é um idiota - disse Miriam Wu.

—O inspetor Faste tem muitos méritos, mas não é, sem dúvida, o mais indicado para interrogar uma moça - disse Bublanski, olhando nos olhos de Miriam Wu. —É óbvio que eu não deveria ter deixado isso para ele. Peço que me desculpe.

Miriam Wu pareceu surpresa.

—Desculpas aceitas. Eu também fui meio difícil no começo.

Bublanski fez um gesto descartando suas palavras. Olhou para ela.

—Posso agora fazer umas perguntas fora do protocolo? Sem o gravador. —Mas é claro.

—Quanto mais escuto falar na Lisbeth Salander, mais perplexo fico. A imagem que me passam as pessoas que a conhecem é incompatível com a imagem transmitida pelos papéis e documentos médico-legais do Serviço Social.

—Ah, é?

—Seria bacana se você conseguisse responder de forma objetiva, sem rodeios.

—Vamos lá.

—O laudo psiquiátrico feito quando Lisbeth Salander completou dezoito anos dá a entender que ela é mentalmente retardada e deficiente.

—Bobagem. A Lisbeth deve ser mais inteligente que nós dois juntos.

—Ela não terminou a escola, não há nenhum boletim que mostre que ela sabe ler e escrever.

—A Lisbeth Salander lê e escreve muito melhor que eu. Ela às vezes se distrai rabiscando umas fórmulas matemáticas. Álgebra pura. Complicado demais para mim.

—Matemática?

—É uma espécie de hobby dela. Bublanski e Modig ficaram quietos.

—Hobby? - perguntou Bublanski depois de alguns instantes.

—Acho que são equações. Nem sei o que significam aqueles símbolos. Bublanski suspirou.

—O Serviço Social fez um relatório depois que ela foi detida no parque de Tantolunden na companhia de um homem de idade, quando ela tinha dezessete anos. Ficou subentendido que ela se prostituía.

—Lisbeth, puta? Que baboseira. Não sei nada sobre o trabalho dela, mas não me surpreende nem um pouco ela ter trabalhado na Milton Security.

—Como é que ela ganha a vida?

—Não sei.

—Ela é lésbica?

—Não. A Lisbeth transa comigo, mas isso não quer dizer que seja homossexual. Acho que ela nem está segura da sua orientação sexual. Eu diria que ela é bissexual.

—Vocês usam algemas e esse tipo de coisa... Lisbeth Salander tem alguma propensão ao sadismo, ou como é que você a descreveria?

—Acho que você entendeu tudo errado. A gente às vezes usa as algemas como encenação, não tem nada a ver com sadismo, violência ou abuso. É um jogo.

—Já aconteceu de ela ficar violenta com você?

—Não. Eu é que tendo a ser a dominadora nos nossos jogos. Miriam exibiu seu sorriso inocente.

A reunião da tarde, às quinze horas, se encerrou com o primeiro desentendimento sério daquela investigação. Bublanski resumiu a situação e em seguida explicou que sentia necessidade de ampliar as pesquisas.

—Desde o primeiro dia, concentramos toda a nossa energia em encontrar Lisbeth Salander. Ela é altamente suspeita - e com bases objetivas -, mas a imagem que fazemos dela se choca com resistências por parte de todos que convivem com ela hoje em dia. Nem o Armanskij nem o Blomkvist, e agora nem Miriam Wu, vêem nela uma assassina psicopata. Por isso, eu gostaria que a gente ampliasse um pouco a maneira de ver as coisas e começasse a pensar em outros culpados em potencial, ou na possibilidade de Salander ter um cúmplice, ou de ela simplesmente ter estado presente quando foram disparados os tiros.

A colocação de Bublanski desencadeou uma discussão acirrada, na qual ele se deparou com a firme oposição de Hans Faste e Steve Bohman, da Milton Security. Ambos defendiam que a explicação mais simples costuma ser a melhor e que considerar um segundo culpado eqüivalia a aderir francamente à tese do grande complô.

—A Salander até podia não estar sozinha na hora dos tiros, mas não temos nenhum vestígio de um cúmplice.

—Pronto, agora só falta voltar para a pista policial do Blomkvist! - disse Hans Faste duramente.

Sonja Modig foi a única que apoiou Bublanski no debate. Curt Bolinder e Jerker Holmberg limitaram-se a fazer comentários vagos. Niklas Eriksson, da Milton Security, não disse uma palavra durante toda a discussão. Finalmente, o procurador Ekström levantou a mão.

—Bublanski, imagino que você também não pretende riscar a Salander da investigação.

—Não, é evidente que não. Temos as impressões digitais dela. Mas até agora procuramos exaustivamente um motivo e não achamos. Eu queria que a gente raciocinasse sobre outras eventuais pistas. Será que mais pessoas poderiam estar envolvidas? Será que existe afinal alguma relação com o livro sobre comércio sexual que o Dag Svensson estava escrevendo? O Blomkvist tem razão quando diz que muitas pessoas mencionadas no livro teriam motivos para matar.

—E o que você está pensando em fazer? - perguntou Ekström.

—Queria que dois de vocês se dedicassem a descobrir assassinos alternativos. Sonja... e você, Niklas, trabalhem juntos nisso.

—Eu? - perguntou Niklas Eriksson, surpreso.

Bublanski o escolhera por ser o mais jovem e, talvez, o mais capaz de um raciocínio não ortodoxo.

—Você vai trabalhar com a Modig. Revejam tudo o que a gente já sabe e tentem descobrir o que deixamos passar. Faste, você, o Curt Bolinder e o Bohman, continuem procurando a Salander. É a prioridade absoluta.

—O que eu devo fazer? - perguntou Jerker Holmberg.

—Você vai se focar no doutor Bjurman. Examine o apartamento dele mais uma vez. Veja se não deixamos escapar alguma coisa. Perguntas?

Ninguém tinha nenhuma pergunta.

—Muito bem. Vamos ser discretos sobre o aparecimento da Miriam Wu. Ela pode ter mais coisa para nos contar e não quero que a mídia se jogue em cima dela.

O procurador Ekström aprovou o plano de Bublanski.

—Bem - disse Niklas Eriksson, fitando Sonja Modig. —Você é que é da polícia, então você é que decide o que vamos fazer.

Estavam no corredor em frente à sala de reuniões.

—Acho que vamos começar conversando mais uma vez com o Mikael Blomkvist - disse ela. —Mas antes tenho que dar uma palavrinha com o Bublanski. Como hoje é sexta à tarde, e eu não trabalho sábado e domingo, vamos começar só na segunda-feira. Aproveite o fim de semana para refletir sobre o que já temos.

Deram-se até-logo. Sonja Modig entrou na sala de Bublanski no momento em que ele se despedia do procurador Ekström.

—Você teria um minuto?

—Sente-se.

—Faste me deixou tão furiosa que me descontrolei.

—Ele me disse que você o agrediu. Acho que sei o que aconteceu. Foi por isso que entrei na sala para apresentar minhas desculpas a Miriam.

—Ele disse que eu queria ficar a sós com a Miriam porque ela me excitava.

—Prefiro que a gente não entre em detalhes. Mas isso preenche todos os quesitos de assédio sexual. Acho. Você quer dar queixa?

—Enfiei a mão na cara dele. É suficiente.

—Está certo. Se entendi bem, ele te fez perder a paciência.

—Exatamente.

—O Hans Faste tem um problema com mulheres de personalidade forte.

—É, eu percebi.

—Você é uma mulher de personalidade forte e uma excelente policial.

—Obrigada.

—Eu agradeceria se você parasse de espancar o pessoal da equipe.

—Isso não vai se repetir. Não tive tempo para examinar a sala do Dag Svensson na Millennium hoje.

—A gente já estava mesmo atrasado nessa parte. Vá para casa e aproveite o fim de semana. Na segunda-feira você recomeça com energia renovada.

Niklas Eriksson parou na estação central para tomar um café no bar do George. Sentia-se estranhamente desmoralizado. Estivera a semana inteira esperando que Lisbeth Salander fosse detida a qualquer momento. Caso ela opusesse resistência à prisão, com alguma sorte um policial compassivo poderia inclusive enchê-la de balas.

E ele gostava dessa fantasia.

O problema é que Salander continuava à solta. Como se não bastasse, Bublanski agora ainda começava a especular sobre culpados alternativos. A situação não estava avançando na direção certa.

Ele já achava insuportável estar subordinado a Steve Bohman - era o sujeito mais chato e mais destituído de imaginação que havia na Milton -, e não é que agora, ainda por cima, via-se subordinado a Sonja Modig?

Era ela quem mais questionava a pista Salander e, provavelmente, quem azia Bublanski hesitar. Ele se perguntou se esse cara que chamavam de Bubolha não teria um caso com aquela cretina. Não seria surpresa. Ela faz o que quer com ele. De todos os tiras envolvidos na investigação, Faste era o único que tinha peito de falar o que pensava.

Niklas Eriksson refletiu.

De manhã, ele e Bohman tinham tido uma rápida conversa com Armanskij e Frãklund, na Milton. Uma semana de investigação não trouxera nenhum resultado e Armanskij estava frustrado por ninguém ter achado uma explicação para os assassinatos. Frãklund insinuara que a Milton Security precisava se questionar sobre a utilidade da missão - Bohman e Eriksson teriam mais a fazer do que ficar oferecendo colaboração gratuita às forças da ordem.

Armanskij refletira um momento e então decidira que Bohman e Eriksson prosseguiriam por mais uma semana. Se não houvesse resultado, interromperiam o projeto.

Em outras palavras, Niklas Eriksson tinha um prazo de uma semana antes que a porta da investigação se fechasse. Estava em dúvida sobre seus próximos passos.

Instantes depois pegou o celular e ligou para Tony Scala, um jornalista freelancer que escrevia bobagens numa revista masculina e com quem Niklas Eriksson já cruzara várias vezes. Trocados os cumprimentos, declarou que tinha informações sobre os assassinatos de Enskede. Explicou de que maneira se vira de repente no meio da investigação policial mais espinhosa dos últimos anos. Como previsto, Scala mordeu a isca, já que isso podia significar uns frilas para um jornal mais importante. Marcaram encontro para dali uma hora no café Aveny, na Kungsgatan.

O traço mais marcante de Tony Scala é que ele era gordo. Muito gordo.

—Se você quer que eu lhe repasse informações, tenho duas condições.

—Pode falar!

—Primeiro a Milton Security não pode ser mencionada no texto. O nosso papel é de meros consultores, e se a Milton for mencionada alguém poderia desconfiar que estou na origem do vazamento.

—Mas não deixa de ser um furo a Salander ter trabalhado na Milton.

—Só faxina e coisas do gênero - interrompeu Eriksson. —Não tem nada de furo.

—Certo.

—Segundo, você vai ter que redigir a matéria de modo que pareça que uma mulher é que está por trás do vazamento.

—Por quê?

—Para desviar as suspeitas de mim.

—Está bem. O que você pode me contar?

—A amiguinha lésbica da Salander acaba de aparecer.

—Uau! A tal que estava no contrato do apartamento da Lundagatan e andava sumida?

—A Miriam Wu. Isso vale alguma coisa?

—Se vale. Onde ela estava?

—No exterior. Garante que não tinha nem ouvido falar dos assassinatos.

—Ela é suspeita de alguma coisa?

—Por enquanto não. Foi interrogada hoje, deixaram ela ir embora há três horas.

—Ahã. Você acredita na história dela?

—Acho que é uma tremenda de uma enrolona. Ela sabe de alguma coisa.

—Estou anotando.

—Mas dê uma verificada no passado dela. Afinal, é uma mulher que pratica sexo sadomasô com a Salander.

—E você sabe disso, é?

—Ela confessou no interrogatório. Encontraram algemas, roupas de couro, chicotes e essa coisa toda durante as buscas.

Os chicotes já eram um pouco de exagero. Bem, era pura mentira, mas a safada da china na certa já tinha brincado com chicote também.

—Está brincando? - disse Tony Scala.

* * *

Paolo Roberto foi um dos últimos visitantes a sair da biblioteca na hora de ela fechar. Passara a tarde lendo exaustivamente tudo que se escrevera sobre a caçada a Lisbeth Salander.

Ao sair na Sveavãgen, sentiu-se desanimado e inquieto. E faminto. Entrou num McDonald’s, pediu um hambúrguer e sentou-se a um canto.

Lisbeth Salander tripla assassina. Não conseguia acreditar. Aquela menininha frágil e completamente doida. A questão era se ele deveria cuidar disso. E, nesse caso, fazendo o quê?

Miriam Wu pegou um táxi para voltar à Lundagatan e entrou no seu apartamento recentemente renovado para contemplar o desastre. Os armários, caixas e gavetas da cômoda tinham sido esvaziados, e seu conteúdo, separado. Havia pó de impressões digitais por todo o apartamento. Seus brinquedos sexuais particularmente íntimos estavam jogados numa pilha em cima da cama. Até onde conseguia avaliar, não faltava nada.

Sua primeira providência foi ligar para o SOS-chaveiro de Södermalm para mandar instalar uma fechadura nova. O chaveiro chegaria em menos de uma hora.

Ligou a cafeteira e sentou-se no meio do desastre balançando a cabeça. Lisbeth, Lisbeth, no que é que você foi se meter?

Pegou o celular e tentou ligar para o número de Lisbeth mas deparou com a mensagem de que o número estava indisponível. Ficou um bom tempo sentada à mesa da cozinha tentando organizar os pensamentos. A Lisbeth Salander que ela conhecia não era uma assassina mentalmente desequilibrada, contudo Miriam não a conhecia muito bem. Lisbeth era tórrida na cama, sem dúvida, mas também sabia se mostrar fria feito um peixe quando seu humor se alterava.

Ponderou que não decidiria no que acreditar antes de ver Lisbeth e ouvir uma explicação. Sentiu-se, de súbito, a ponto de começar a chorar e atirou-se, compulsiva, na faxina.

Às sete da noite, estava com uma fechadura nova e o apartamento já tinha readquirido seu aspecto habitual. Tomou um banho e acabava de se sentar na cozinha, vestindo um robe oriental de seda preta e dourada, quando tocaram a campainha. Foi abrir a porta e se viu diante de um homem excepcionalmente gordo, um tanto desalinhado e de barba malfeita.

—Olá, Miriam, eu sou Tony Scala, jornalista. Você poderia me responder umas perguntas?

Ele vinha acompanhado de um fotógrafo, que lhe desfechou um flash em pleno rosto.

Miriam Wu chegou a pensar num dropkick e um cotovelo no nariz, mas teve presença de espírito para perceber que só dariam fotos ainda mais saborosas.

—Você viajou com a Lisbeth Salander? Sabe onde ela está? Miriam Wu bateu a porta e trancou-a com a fechadura nova. Tony Scala ergueu a portinhola da correspondência e falou pela fresta.

—Miriam, mais cedo ou mais tarde você vai ter que falar com a imprensa. Eu posso te ajudar.

Ela cerrou o punho e bateu com força na portinhola. Tony Scala soltou um grito de dor. Então ela correu para o quarto e se deitou na cama, fechando os olhos. Lisbeth, quando eu puser as mãos em você, eu te estrangulo.

Depois da visita a Smädalarö, Mikael Blomkvist tinha passado a tarde na casa de outro cliente que Dag Svensson pretendia denunciar. Com isso, percorrera seis dos trinta e sete nomes no final da semana. O último citado era um juiz aposentado que morava em Tumba e que, em várias ocasiões, atuara em casos de prostituição. O canalha do juiz, e isso por um lado era reconfortante, não tinha negado os fatos, nem ameaçado, nem pedido compaixão. Pelo contrário, reconhecera sem rodeios que sim, claro, tinha comido as putas do Leste europeu. Não, não se arrependia. A prostituição era uma profissão honrada, e ele achava que tinha prestado um favor às garotas ao ser cliente delas.

Mikael estava passando por Liljeholmen quando Malu Eriksson ligou, por volta das dez da noite.

—Oi - disse Malu. —Você viu a edição on-line daquele tabloide sensacionalista?

—Não, o que foi?

—A amiga da Lisbeth Salander acaba de voltar.

—O quê? Quem?

—Miriam Wu, a lésbica que mora no apartamento da Lundagatan. Wu, pensou Mikael. Salander-Wu afixado na porta.

—Obrigado. Estou indo para lá.

Miriam Wu acabara desligando o telefone fixo e o celular. Às sete e meia, a notícia havia sido publicada nos sites de um dos jornais matutinos. Pouco depois, o Aftonblatet tinha ligado e, três minutos mais tarde, foi a vez do Expressen lhe pedir uma declaração. Na tevê, Aktuellt deu a notícia sem citar o nome de Miriam, mas às nove nada menos que dezesseis repórteres de diferentes mídias já tinham tentado entrevistá-la.

Em duas ocasiões, tinham tocado a campainha. Miriam Wu não abriu a porta e apagou as luzes do apartamento. Estava com ganas de quebrar o nariz do próximo jornalista que viesse perturbá-la. Por fim, ligou o celular e telefonou para uma amiga que morava em Hornstull, um trajeto que ela podia fazer a pé, e pediu para dormir na casa dela.

Transpôs a porta do prédio que dava na Lundagatan menos de cinco minutos antes de Mikael Blomkvist estacionar e tocar, em vão, a campainha de seu apartamento.

Bublanski ligou para Sonja Modig pouco depois das dez horas do sá­bado. Ela dormira até as nove e depois brincara um pouco com as crianças antes que o marido as levasse à loja do bairro para fazer as compras semanais de balas e chocolates.

—Já leu os jornais de hoje?

—Não. Faz só uma hora que acordei e fiquei cuidando das crianças. Aconteceu alguma coisa?

—Alguém da equipe está deixando vazar informações para a imprensa.

—A gente já sabia disso. Há alguns dias alguém entregou o relatório médico-legal de Salander.

—Foi o procurador Ekström.

—Ah, é?

—Sim. Claro. Mesmo que ele jamais admita. Ele está tentando aumentar o interesse no caso, porque lhe convém. Mas desta vez é diferente. Um jornalista chamado Tony Scala falou com um policial que lhe passou uma série de informações sobre a Miriam Wu. Entre outras coisas, detalhes do que foi dito no interrogatório de ontem. Coisas que a gente tinha decidido não divulgar. Com essa, o Ekström ficou furibundo.

—Que droga.

—O jornalista não cita nomes. A fonte é descrita como alguém que ocupa “uma posição central na investigação”.

—Puta merda - disse Sonja Modig.

—A certa altura da matéria, entende-se que se trata de uma mulher. Sonja Modig ficou em silêncio uns vinte segundos, tempo para assimilar a informação. Ela era a única mulher da equipe.

—Bublanski... eu não disse uma palavra sequer para jornalista nenhum. Não conversei sobre essa investigação com ninguém fora aqui do corredor. Nem com o meu marido.

—Acredito em você. Em nenhum momento achei que você fosse a responsável pelo vazamento. Mas, infelizmente, é o que o procurador Ekström está achando. E o Hans Faste, que é quem ficou de plantão neste fim de semana, está, é claro, aproveitando para aumentar a história com suas insinuações.

Sonja Modig sentiu-se, de repente, completamente arrebentada.

—E agora, o que vai acontecer?

—O Ekström vai exigir que você seja afastada da investigação enquanto analisam a acusação.

—Isso é loucura. Como é que eu vou provar...

—Você não vai ter que provar nada. O investigador é que vai ter que provar.

—Eu sei, mas... que droga. Essa investigação vai levar quanto tempo?

—Ela já aconteceu.

—O quê?

—Eu lhe fiz uma pergunta. Você respondeu que não deixou vazar nenhuma informação. Isso significa que a investigação está concluída e que só preciso escrever meu relatório. Nos vemos segunda, às nove, na sala do Ekström para avaliar isso tudo.

—Obrigada, Bublanski.

—De nada.

—Só tem um problema.

—Eu sei.

—Se não fui eu, outro membro da equipe deixou vazar a informação.

—Quem você sugere?

—Num primeiro impulso, fico tentada a achar que é o Faste... mas sem acreditar de fato.

—Concordo com você. Mas ele também sabe ser um completo idiota, e ontem estava simplesmente irado.

Bublanski gostava de caminhar, dependendo de como estava o tempo e do tempo de que dispunha. Era um dos poucos exercícios físicos que ele se concedia. Morava na Katarina Bangata, em Södermalm, não muito longe da redação da Millennium nem da Milton Security, onde Lisbeth Salander trabalhara, e não muito longe também da Lundagatan, onde ela tinha morado. Além disso, podia ir a pé à sinagoga da Sankt Paulsgatan. Na tarde de sábado, saiu para caminhar e passou por todos esses lugares.

No início do passeio, sua mulher, Agnes, o acompanhou. Estavam casados havia vinte e três anos e ele tinha sido fiel sem o mínimo desvio durante todos aqueles anos.

Fizeram uma parada na sinagoga e conversaram com o rabino. Bublanski era judeu polonês, ao passo que a família de Agnes - amplamente dizimada em Auschwitz - era originária da Hungria.

Depois disso, se separaram - Agnes tinha umas compras para fazer e seu marido preferia continuar o passeio. Precisava ficar sozinho e caminhar para refletir sobre aquela difícil investigação. Reavaliou as medidas que havia tomado desde que ela fora parar na sua mesa na manhã da Quinta-feira Santa, ou seja, fazia nove dias, e não percebeu grandes falhas.

A não ser pelo erro de não ter imediatamente mandado alguém até a redação da Millennium para revistar a sala de Dag Svensson. Quando afinal resolvera fazê-lo - ele próprio efetuara a verificação -, Mikael Blomkvist já tinha feito a faxina e tirado sabe Deus o quê.

Outro erro foi a investigação ter passado ao largo do carro que Lisbeth Salander havia comprado. Jerker Holmberg, no entanto, relatara que o carro não continha nada de interessante. Tirando esse carro esquecido, porém, a investigação estava tão correta como seria de se esperar.

Parou em frente a um quiosque de jornais na Zinkensdamm e contemplou pensativo, uma manchete. A foto de Lisbeth Salander estava reduzida ao tamanho de uma vinheta, pequena mas reconhecível, no canto superior, e a ênfase estava nas notícias mais frescas.

A POLÍCIA INVESTIGA UMA TURMA DE LÉSBICAS SATÂNICAS

Comprou o jornal e o folheou até a página em que se via a foto de cinco garotas no final da adolescência, vestidas de preto, jaquetas de couro com ilhoses, jeans rasgados e camisetas supercolantes. Uma das meninas brandia uma bandeira com um pentagrama e outra fazia um gesto com o indicador e o dedo mínimo. Leu a legenda. Lisbeth Salander frequentava um grupo de death metal que tocava em pequenos clubes. Em 1996, o grupo homenageava a Church of Satan e seu grande sucesso era uma música intitulada “Etiquette of Evil”.

O nome das Evil Fingers não era citado e os rostos estavam desfocados. No entanto, quem conhecesse os membros do grupo de rock não teria dificuldade em reconhecer as meninas.

As duas páginas seguintes se concentravam em Miriam Wu e vinham ilustradas com a fotografia de um show no Berns do qual ela participara. Na foto, Miriam estava com os seios à mostra e usando uma boina de oficial russo. A foto tinha sido tirada de baixo para cima. Como o das meninas do Evil Fingers, seu rosto estava desfocado. Era citada como “a mulher de trinta e um anos”.

A amiga de Salander, autora de textos sobre lésbicas e sadomasoquismo, é conhecida nos bares descolados de Estocolmo. Não procurou esconder que flertava com mulheres e gostava de dominar sua parceira.

O repórter tinha inclusive achado uma tal de Sara, que, segundo ele, tinha sido paquerada pela amiga de Salander. O namorado de Sara tinha ficado “perturbado” pela tentativa. A matéria esclarecia que o grupo era uma variante feminista suspeita e elitista da periferia do movimento gay e que se expressava, entre outras coisas, num “bondage workshop” durante a Gay Pride. De resto, o texto fundamentava-se em citações de um artigo de Miriam Wu de seis anos antes que poderia eventualmente ser qualificado de provocador, publicado num fanzine feminista e desencavado por um repórter. Bublanski percorreu o texto e em seguida jogou o tabloide numa lixeira.

Refletiu algum tempo sobre Hans Faste e Sonja Modig. Dois investigadores competentes. Faste, porém, era um problema. Mexia com os nervos das pessoas. Bublanski percebeu que precisaria ter uma conversa com Faste, mas achava difícil acreditar que o vazamento de informações viera dele.

Ao erguer os olhos, percebeu que estava na Lundagatan, em frente ao prédio de Lisbeth Salander. Um ato irrefletido, porém revelador. Aquela mulher o deixava perplexo.

Subiu os degraus da passarela que conduzia ao alto da Lundagatan e ficou um bom tempo apoiado na balaustrada, pensando na história de Mikael Blomkvist sobre Lisbeth ter sido agredida. Era uma história que também não levava a coisa alguma. Ninguém tinha dado queixa, não havia nenhum nome nem uma descrição consistente. Blomkvist afirmava que não conseguira ver o número da placa do furgão que deixara o local.

Isso se a história tivesse realmente acontecido.

Ou seja, mais um impasse.

Bublanski contemplou o Honda cor de vinho que tinha ficado esse tempo todo estacionado na rua. De repente, viu Mikael Blomkvist caminhando em direção à porta do prédio.

Miriam Wu acordou tarde, toda enrolada nos lençóis, e quase entrou em pânico ao sentar-se na cama e se ver num quarto desconhecido.

Ela aproveitara o assédio da mídia como desculpa para ligar para uma amiga e pedir abrigo. Mas também tinha fugido, ela sentia isso muito bem, porque de repente teve medo que Lisbeth Salander fosse bater à sua porta.

O interrogatório da polícia e as matérias nos jornais a tinham abalado mais do que ela teria imaginado. É claro que ela tomara a decisão de não julgar Lisbeth antes que esta pudesse explicar o que tinha acontecido, mas ainda assim começava a acreditar que ela era culpada.

Deu uma olhada em Viktoria Viktorsson, trinta e sete anos, apelido Dobrevê, que era cem por cento lésbica. Estava deitada de bruços e resmungava dormindo. Miriam Wu se esgueirou até o banheiro e tomou um banho. Em seguida foi comprar pão. Só que no caixa da loja próxima ao café Cinnamon, na Verkstadsgatan, seu olhar bateu nas manchetes dos jornais. Voltou correndo para se refugiar no apartamento de Dobrevê.

Mikael Blomkvist passou pelo Honda cor de vinho e parou diante do prédio de Lisbeth Salander, digitou o código e entrou. Ficou dois minutos lá dentro e depois saiu. Ninguém em casa? Blomkvist olhou para os dois lados da rua, aparentemente indeciso. Bublanski o observava, pensativo.

O que o preocupava era que, caso Blomkvist tivesse mentido sobre a agressão na Lundagatan, era de se pensar que estava fazendo um jogo que, na pior das hipóteses, poderia significar que ele, de algum modo, era cúmplice dos assassinatos. Mas caso tivesse falado a verdade - e não havia nenhum motivo para duvidar de sua palavra - significava que havia uma equação oculta naquela tragédia. O que significava que havia outros protagonistas além dos que estavam visíveis, e que o assassinato poderia se revelar algo muito mais complicado do que o simples gesto de uma garota mentalmente desequilibrada em surto de loucura.

Quando Blomkvist começou a andar em direção a Zinkensdamm, Bublanski o chamou. Ele parou, avistou o policial e foi ao seu encontro. Apertaram-se as mãos embaixo da escada.

—Olá, Blomkvist. Procurando a Lisbeth Salander?

—Não. Estou procurando a Miriam Wu.

—Ela não está. A imprensa foi informada, não sei por quem, que ela reapareceu.

—O que ela tinha para contar?

Bublanski fitou atentamente Mikael Blomkvist. O Super-Blomkvist.

—Vamos caminhar um pouco? - propôs Bublanski. —Preciso de um café.

Passaram em frente à igreja de Högalid em silêncio. Bublanski o levou ao café Lillasyster, na ponte de Liljeholmen, e pediu um espresso duplo com uma colher de leite frio, ao passo que Mikael pediu um caffè latte. Sentaram-se na área de fumantes.

-—Fazia tempo que eu não pegava um caso tão frustrante - disse Bublanski. —Posso conversar com você sem acabar lendo metade do que vou dizer no Expressen de amanhã de manhã?

—Eu não trabalho para o Expressen.

—Você sabe o que eu quero dizer.

—Bublanski, não acredito que a Lisbeth seja culpada.

—E está investigando por conta própria? É por isso que chamam você de Super-Blomkvist?

Mikael sorriu.

—E me parece que chamam você de inspetor Bubolha. Bublanski deu um sorriso amarelo.

—Por que não acredita que a Salander seja culpada?

—Não sei nada sobre esse tutor, mas ela simplesmente não tinha motivo para matar o Dag e a Mia. Principalmente a Mia. A Lisbeth detesta homens que odeiam mulheres, e a Mia estava justamente acuando uma grande quantidade de clientes sexuais. O que a Mia estava fazendo tinha tudo a ver com os interesses da Lisbeth. A Lisbeth tem ética.

—Eu não consegui formar uma opinião sobre ela. Um caso psiquiátrico pesado ou uma investigadora competente?

—A Lisbeth é diferente. É tremendamente antissocial, mas não há nada de errado com a cabeça dela. Pelo contrário. Eu diria que ela é muito mais inteligente que nós dois juntos.

Bublanski suspirou. Mikael Blomkvist estava falando igual à Miriam Wu.

—Seja como for, ela tem que ser detida. Não posso entrar em detalhes, mas temos provas técnicas de que ela estava no local do crime, e ela está diretamente ligada à arma do crime.

Mikael assentiu com a cabeça.

—Imagino que isso signifique que vocês encontraram as digitais dela. Mas não significa que ela atirou.

Bublanski balançou a cabeça.

—O Dragan Armanskij também tem suas dúvidas. É cauteloso demais para dizer isso claramente, mas ele também está tentando provar a inocência dela.

—E você? O que acha?

—Eu sou tira. Prendo as pessoas e as interrogo. No momento, a situação da Lisbeth Salander me parece bastante complicada. Assassinos já foram condenados com provas muito mais frágeis.

—Você não respondeu à minha pergunta.

—Não sei. Se ela for inocente... quem, na sua opinião, teria interesse em matar tanto o tutor como os seus amigos?

Mikael pegou um maço de cigarros e o estendeu a Bublanski, que balançou a cabeça. Não queria mentir para a polícia e supunha que deveria mencionar suas reflexões sobre o homem chamado Zala. Também deveria falar sobre o delegado Gunnar Björck, da Säpo.

Mas Bublanski e seus colegas também tinham acesso ao material de Dag Svensson contendo o arquivo [ZALA]. Só precisavam lê-lo. Em vez disso, avançavam feito um tanque de guerra, revelando toda a intimidade de Lisbeth Salander para a mídia.

Ele tinha uma idéia, mas não sabia no que ia dar. Não queria mencionar Björck antes de ter certeza. Zalachenko. Era esse o elo, tanto com Bjurman como com Dag e Mia. O único problema era que Björck não tinha falado nada.

—Deixe eu fuçar mais um pouco, e aí te apresento uma teoria alternativa.

—Que não seja uma pista que aponte para a polícia. Mikael sorriu.

—Não. Ainda não. O que a Miriam Wu disse?

—Mais ou menos o mesmo que você. Elas tinham um caso. Ele espreitou a reação de Mikael.

—Isso não me diz respeito - disse Mikael.

—A Miriam Wu e a Salander se frequentaram durante três anos. A Miriam não sabe nada do passado de Salander nem sabe onde ela trabalha. Difícil de engolir. Mas acho que ela falou a verdade.

—A Lisbeth é extremamente fechada - disse Mikael. Ficaram um instante em silêncio.

—Você tem o telefone da Miriam Wu?

—Tenho.

—Pode me passar?

—Não.

—Por quê?

—Mikael, trata-se de uma investigação policial. Não precisamos de investigadores particulares com teorias bizarras.

—Ainda não tenho nenhuma teoria. Mas acredito que a solução do enigma está no material do Dag Svensson.

—Você provavelmente não vai ter dificuldade em obter o telefone da Miriam Wu se se esforçar um pouco.

—Provavelmente. Mas é mais simples perguntar a quem já sabe. Bublanski suspirou. Mikael sentiu-se, de súbito, profundamente irritado com ele.

—Será que os policiais são mais inteligentes que as pessoas comuns que você chama de investigadores particulares? - perguntou.

—Não, acho que não. Mas a polícia tem uma formação, e sua missão é investigar os crimes.

—As pessoas comuns também têm uma formação - disse Mikael, devagar. —E pode acontecer de um investigador particular ser muito mais competente que um policial para investigar um crime.

—Isso é você quem diz.

—Estou convencido disso. Veja o caso de Joy Rahman. Os policiais ficaram cinco anos sentados de olhos fechados, enquanto Rahman, que era inocente, estava preso pelo assassinato de uma idosa. Ainda estaria preso se uma professora não tivesse passado anos fazendo uma investigação séria. E ela fez isso sem todos os recursos de que você dispõe. Não só provou que ele era inocente como também apontou um indivíduo que, ao que tudo levava a crer, era o verdadeiro assassino.

—O caso Rahman acabou virando uma questão de prestígio. O procurador se negava a escutar os fatos.

Mikael Blomkvist contemplou demoradamente Bublanski.

—Bublanski... Vou te dizer uma coisa. Neste exato momento, o caso Salander também já virou uma questão de prestígio. Eu afirmo que ela não matou o Dag e a Mia. E vou provar. Vou descobrir um assassino alternativo e quando isso acontecer, vou escrever uma matéria que você e seus colegas vão achar superdoída de ler.

A caminho de casa, Bublanski sentiu necessidade de debater o assunto com Deus, mas, em vez de ir à sinagoga, foi à igreja católica da Folkungagatan. Escolheu um banco lá no fundo e ficou ali sentado tranqüilo por mais de uma hora. Como judeu, teoricamente não tinha nada a fazer numa igreja, mas era um lugar sereno onde ele volta e meia aparecia quando precisava organizar os pensamentos. Achava que a igreja era um lugar como outro qualquer para refletir, e tinha certeza que Deus não se incomodava. Além disso, nesse aspecto havia uma grande diferença entre o catolicismo e o judaísmo. Ele ia à sinagoga para buscar a companhia de outras pessoas. Os católicos iam à igreja porque queriam ficar em paz com Deus. A igreja convidava ao silêncio e exigia que os visitantes fossem deixados em paz.

Ele pensou sobre Lisbeth Salander e Miriam Wu. E pensou sobre o que Erika Berger e Mikael Blomkvist estariam ocultando. Estava convencido de que eles sabiam alguma coisa sobre Salander que não tinham contado. Perguntou-se que tipo de “pesquisa” Lisbeth Salander fizera para Mikael Blomkvist. Em dado momento, ponderou que Salander havia trabalhado com Blomkvist pouco antes de ele trazer o caso Wennerström à luz, mas acabou eliminando essa possibilidade. Lisbeth Salander não tinha simplesmente nenhuma ligação com aquele tipo de drama e parecia fora de cogitação que tivesse contribuído de algum modo. Por maior que sua competência fosse investigar pessoas.

Bublanski estava preocupado.

Não gostava daquela certeza absoluta que Mikael Blomkvist tinha da inocência de Salander. Que ele próprio, como policial, tivesse alguma dúvida, era uma coisa - duvidar era a sua função. Coisa bem diferente era Mikael Blomkvist lançar um desafio como investigador particular.

Não gostava de investigadores particulares. Em geral eles vinham com teorias conspiratórias, excelentes para alimentar manchetes de jornais, mas que, no mais das vezes, acabavam redundando num trabalho extra e totalmente inútil para os policiais.

Esta investigação por assassinato já se tornara a mais maluca que ele já tinha realizado. Sentia que, de algum modo, estava perdendo as estribeiras. Uma investigação de assassinato deve seguir uma linha de conclusões lógicas.

Quando um jovem de dezessete anos é encontrado apunhalado na Mariatorget, há que identificar as turmas de skinheads ou as gangues de adolescentes que estavam nos arredores da praça e da Sõdra Station uma hora antes. Existem amigos, conhecidos, testemunhas e, rapidamente, suspeitos.

Quando um homem de quarenta e dois anos é apagado com três tiros de pistola num bar de Skàrholmen e descobre-se que ele era um faz-tudo da máfia iugoslava, há que tentar descobrir qual dos jovens novatos está tentando assumir o controle do contrabando de cigarros.

Quando uma mulher de vinte e seis anos, de um ambiente respeitável e de vida pacata, é encontrada estrangulada em seu apartamento, há que tentar descobrir quem era o seu namorado ou a última pessoa com quem ela conversou no café na noite da véspera.

Bublanski chefiara tantas investigações desse tipo que poderia realizá-las até dormindo.

A investigação atual até havia começado muito bem. Tinham achado um principal suspeito já nas primeiras horas. Lisbeth Salander era perfeita para o papel - um caso psiquiátrico comprovado com incontroláveis surtos de violência a vida inteira. Concretamente, só faltava pegá-la, obter uma confissão ou, dependendo das circunstâncias, mandá-la para uma sala acolchoada. Mas então tudo desandara.

Salander não morava em seu endereço. Tinha amigos como Dragan Armanskij e Mikael Blomkvist. Mantinha uma relação com uma lésbica declarada adepta do sexo com algemas e que desencadeava o entusiasmo da mídia numa situação já suficientemente inflamada. Tinha dois milhões e meio de coroas na sua conta bancária e nenhum emprego conhecido. E agora Blomkvist ainda vinha com teorias sobre tráfico de mulheres e outras conspirações - e ele, na condição de jornalista famoso, tinha realmente condições de criar um caos completo na investigação por meio de um único artigo bem colocado.

E, sobretudo, a principal suspeita revelava-se impossível de achar, embora fosse uma tampinha, com um aspecto físico peculiar e tatuagens no corpo inteiro. Os assassinatos já completavam duas semanas e eles ainda não tinham a menor sombra de uma pista de onde ela poderia estar.

* * *

Gunnar Björck, em licença médica por causa de uma hérnia de disco, chefe-adjunto da Säpo, passara vinte e quatro miseráveis horas depois que Mikael Blomkvist atravessara sua porta. Uma dor surda e permanente instalara-se em suas costas. Ficara andando pela casa que tinham lhe emprestado, incapaz de relaxar ou de tomar qualquer iniciativa. Tentava raciocinar, mas as peças do quebra-cabeça teimavam em não se encaixar.

Ele não conseguia entender os meandros daquela história.

Quando tivera notícia do assassinato de Nils Bjurman, no dia seguinte à descoberta do corpo do advogado, tinha ficado atônito. Mas não ficara surpreso quando Lisbeth Salander fora apontada, quase de imediato, como a principal suspeita e começaram a caçá-la. Escutou com atenção cada palavra do que foi dito na tevê e saiu para comprar todos os jornais que conseguisse encontrar, lendo conscienciosamente cada palavra das diversas reportagens.

Não duvidava nem por um instante que Lisbeth Salander fosse uma desequilibrada mental capaz de matar. Não tinha nenhum motivo para questionar sua culpabilidade ou as conclusões do inquérito policial; pelo contrário, tudo o que sabia sobre Lisbeth Salander sugeria que ela era uma psicopata. Ele quase tinha dado um telefonema a fim de colaborar na investigação com conselhos apropriados, ou pelo menos para verificar se estava sendo conduzida de forma correta, mas depois concluíra que o caso não lhe dizia mais respeito. Já não era da sua alçada, e havia gente competente para administrá-lo. Sem falar que um telefonema seu poderia despertar a indesejável atenção que ele justamente queria evitar. Resolvera relaxar e seguir acompanhando as notícias de modo mais distante.

A visita de Mikael Blomkvist viera transtornar por completo a sua tranqüilidade. Jamais lhe passara pela cabeça que a orgia assassina de Salander pudesse envolvê-lo pessoalmente - que uma das vítimas fosse um cretino de um jornalista prestes a denunciar a Suécia inteira.

E muito menos imaginara que o nome de Zala poderia ressurgir como uma granada sem pino no meio da história, e menos ainda que Mikael Blomkvist conhecia esse nome. Era tão incrível que ultrapassava qualquer tentativa de entendimento.

No dia seguinte à visita de Mikael, pegara o telefone e ligara para o seu ex-chefe, setenta e oito anos e residente em Laholm. Precisava dar um jeito de tentar entender a história sem dar a perceber que estava ligando por motivos outros que não mera curiosidade e preocupação profissional. A conversa foi relativamente breve.

—É o Björck. Imagino que você tenha lido os jornais.

—De fato. Ela voltou.

—E não mudou muito.

—Isso já não nos diz respeito.

—Então você não acha que...

—Não, não acho. Isso tudo está morto e enterrado. Ninguém vai fazer a relação.

—Mas é que se trata de Bjurman, e não de um qualquer. Imagino que ele não se tornou tutor dela por acaso.

Houve um silêncio do outro lado da linha.

—Não, não foi por acaso. Há três anos, parecia uma boa idéia. Quem poderia prever o que está acontecendo?

—O que o Bjurman sabia?

O chefe, de repente, deu uma risadinha.

—Você sabe como ele era. Não era exatamente um ator nato.

—Quero dizer... ele sabia da ligação? Existe alguma coisa nos documentos dele que poderia levar a...

—Não, claro que não. Entendo o que você quer saber, mas não precisa se preocupar. Salander sempre foi um fator incontrolável nessa história. Demos um jeito de o Bjurman conseguir esse cargo, mas foi só porque nos convinha ter um tutor no qual a gente pudesse ficar de olho. Era melhor que um sujeito desconhecido. Se ela tivesse começado a falar, ele teria procurado a gente. Agora está tudo acabando da melhor maneira possível.

—Como assim?

—Ora, quando tudo isso terminar, a Salander vai ficar no hospital psiquiátrico um bocado de tempo.

—Vamos supor que sim.

—Logo, não há com que se preocupar. Você pode ficar tranqüilo aí na sua licença médica.

Mas isso era justamente o que Gunnar Björck não conseguia fazer. Por culpa de Mikael Blomkvist. Sentou-se à mesa da cozinha e ficou contemplando a angra de Jungfrufjárden enquanto tentava fazer um balanço da sua situação. Estava ameaçado pelos dois lados.

Mikael Blomkvist ia denunciá-lo como cliente de prostituição. Havia o perigo iminente de ele terminar sua carreira de policial preso por infringir a lei do comércio sexual.

Porém ainda mais grave era Mikael Blomkvist estar atrás de Zalachenko. De algum modo, Zalachenko estava envolvido na história. O que, de novo, levava diretamente a Björck.

O seu ex-chefe parecia convencido de que não havia nada de comprometedor nos documentos deixados por Bjurman. Estava enganado. Havia o relatório de 1991. E ele, Gunnar Bjórck, é que entregara o relatório a Bjurman.

Tentou visualizar sua conversa com Bjurman mais de nove meses atrás. Tinham se encontrado na cidade velha. Bjurman ligara para ele uma tarde, no trabalho, e o convidara para tomarem uma cerveja. Tinham conversado sobre tiro com pistola e uma porção de outras coisas, mas Bjurman o tinha contatado por um motivo específico. Precisava de um favor. Fizera algumas perguntas sobre Zalachenko...

Björck se levantou e se aproximou da janela da cozinha. Naquele dia, tinha bebido um pouco além da conta. Bastante até. O que Bjurman tinha lhe pedido?

—A propósito... estou com um caso em que um velho conhecido resolveu reaparecer...

—Ah, é? Quem?

—Alexander Zalachenko. Lembra dele?

—Se lembro. Não é uma pessoa que se esqueça facilmente.

—O que foi feito dele?

Teoricamente, aquilo não dizia respeito a Bjurman. Seria até o caso de ficar de olho nele só por estar perguntando... não fosse o fato de ele ser o tutor de Lisbeth Salander. Ele disse que precisava do relatório antigo. E eu dei a ele.

Cometera um erro monumental. Partira do pressuposto de que Bjurman já estava por dentro - o contrário teria sido simplesmente impensável. E Bjurman colocara as coisas como uma simples tentativa de pegar um atalho em meio à lentidão da burocracia, em que tudo trazia o selo top secret e poderia levar meses. Principalmente num caso envolvendo Zalachenko.

Eu dei a ele o relatório, ainda com o selo top secret Bjurman, porém, tinha um motivo justo e compreensível, e não era homem de vacilar. Um idiota, sem dúvida, mas que sempre soubera ficar de bico calado. Que problema poderia haver... depois de tantos anos?

Bjurman o tinha enrolado. Dera a entender que se tratava de formalidades burocráticas. Quanto mais pensava no assunto, mais convencido ficava de que Bjurman escolhera as palavras com perfeita precisão e extrema prudência.

O que ele estava buscando? E por que Salander o tinha matado?

Mikael Blomkvist foi mais quatro vezes até a Lundagatan naquele sábado, na esperança de topar com Miriam Wu, mas esta brilhava pela ausência.

Passou boa parte do dia no Café da Hornsgatan com seu iBook, e releu a correspondência eletrônica de Dag Svensson endereçada à Millennium. se, assim como o conteúdo da pasta [ZALA]. Nas últimas semanas antes do assassinato, Dag Svensson fora dedicando cada vez mais tempo a pesquisas sobre Zala.

Mikael teria adorado poder ligar para Dag Svensson e perguntar por que o arquivo [Irina P.] estava dentro da pasta dedicada a Zala. A única conclusão plausível a que ele conseguia chegar era que Dag suspeitava que Zala fosse o assassino de Irina.

Por volta das cinco da tarde, Bublanski ligara de repente para lhe dar o telefone de Miriam Wu. Mikael não entendeu o que poderia ter levado o policial a mudar de idéia, mas assim que teve o número em mãos começou a ligar mais ou menos de meia em meia hora. Somente por volta das onze da noite, quando ligou o celular, é que ela atendeu. A conversa foi rápida.

—Boa noite, Miriam. Meu nome é Mikael Blomkvist.

—E quem é você, que já vem de novo me encher o saco?

—Sou jornalista, trabalho para uma revista chamada Millennium. Miriam Wu expressou seus sentimentos com muita veemência.

—Ah, sei. O Blomkvist, aquele. Pois vá se danar, jornalistazinho do inferno!

E cortou a ligação antes que Mikael tivesse chance de pronunciar uma só palavra para explicar o que queria. Amaldiçoou intimamente Tony Scala e tentou ligar de novo. Ela não atendeu. Em desespero de causa, mandou uma mensagem de texto para o celular dela.

Por favor. É importante.

Ela não respondeu.

No sábado à noite bem tarde, já quase no domingo, Mikael desligou o computador, despiu-se e foi para a cama. Sentia-se frustrado. Teria gostado que Erika Berger estivesse com ele.

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