27 - QUARTA-FEIRA 6 DE ABRIL


Estava um dia esplêndido de primavera quando Mikael, no carro de Erika Berger, tomou a estrada de Nynàs em direção ao sul. Já se podia vislumbrar certa tendência para o verde nos campos negros e o ar estava repleto de um calor real. Um tempo perfeito para esquecer todos os problemas e tirar alguns dias de descanso na cabana de Sandhamm.

Ele tinha marcado com Gunnar Björck por volta da uma da tarde, mas como estava adiantado parou em Dalarõ para tomar um café e ler os jornais. Não havia se preparado para o encontro. Björck tinha algo para revelar e Mikael estava firmemente determinado a não sair de Smädalarö sem descobrir algumas coisas sobre Zala. Coisas que poderiam ajudá-lo a avançar.

Björck recebeu-o no pátio. Parecia mais desafiador e seguro de si do que dois dias antes. O que você está aprontando, meu chapa? Mikael evitou apertar sua mão.

—Posso te fornecer informações sobre Zala - disse Gunnar Björck. —Mas tenho umas condições.

—Estou ouvindo.

—Meu nome não pode ser mencionado na reportagem da Millennium.

Björck pareceu surpreso. Blomkvist aceitara facilmente e sem discutir o ponto para o qual previra uma discussão mais demorada. Era o seu único trunfo. Informações sobre os assassinatos em troca de anonimato. E Blomkvist aceitava suprimir, sem dificuldades, o que deveria constituir uma manchete.

—Estou falando sério - disse Björck, desconfiado. —Quero isso por escrito, preto no branco.

—Posso colocar preto no branco, se você faz questão, mas um documento desses não vale um tostão furado. Você infringiu a lei e sabe disso. Na verdade, a minha obrigação seria denunciá-lo à polícia. Você sabe de coisas que eu quero obter e está usando isso para comprar o meu silêncio. Eu já tinha pensado nessa possibilidade, e aceito. Estou facilitando as coisas para o seu lado, comprometendo-me a não citar o seu nome na Millennium. Ou você confia em mim, ou não confia.

Björck refletiu.

—E eu também tenho uma condição - prosseguiu Mikael. —O preço do meu silêncio é você me contar tudo o que sabe. Se eu descobrir que está me escondendo alguma coisa, nosso acordo fica anulado. Aí eu ponho você em todas as manchetes do país, como fiz com o Wennerstrôm.

Björck estremeceu ao se lembrar disso.

—Está bem - disse. —Não tenho escolha. Você me garante que o meu nome não vai ser citado na Millennium e eu digo quem é Zala. E para isso exijo ser protegido enquanto fonte.

Ele estendeu a mão. Mikael apertou-a. Acabava de prometer que iria dissimular uma infração à lei, o que em si não o perturbava. Só estava prometendo que ele próprio e a Millennium não escreveriam nada sobre Björck. Dag Svensson já escrevera em seu livro toda a história de Björck. E o livro de Dag Svensson seria publicado. Mikael estava firmemente decidido a se empenhar para que fosse.

O alerta foi lançado ao posto de polícia de Strângnãs às 15h 18. O chamado chegou direto no PABX do posto, sem passar pela central de socorro. O proprietário de uma casa de campo a leste de Stallarholmen, um certo Õberg, relatava que tinha ouvido um tiro e fora conferir no local. Encontrara dois homens gravemente feridos. Um deles talvez nem tão ferido, mas sentindo muita dor. E, a propósito, a casa era de Nils Bjurman. Quer dizer, o Dr. Nils Bjurman assassinado de que os jornais tanto haviam falado.

A polícia de Strángnàs tivera uma manhã cheia devido a um amplo controle rodoviário no território da comuna, já previsto de longa data. À tarde, a vigilância do tráfego fora interrompida quando uma mulher de cinquenta e sete anos fora morta por seu companheiro na residência do casal, em Finninge. Quase ao mesmo tempo, irrompera um incêndio num prédio de Storgãrdet, com uma vítima, e, como a cereja do bolo, dois carros tinham colidido de frente na altura de Vargholmen, estrada de Enkõping. Os alertas se sucederam num intervalo de poucos minutos e, com isso, boa parte do efetivo policial de Strángnàs estava indisponível.

Mas o oficial de plantão no posto, uma mulher, tinha acompanhado os acontecimentos em Nykvarn de manhã e percebeu que havia ali alguma relação com aquela Lisbeth Salander procurada por toda parte. Estando Nils Bjurman ligado à mesma investigação, ela tirou suas conclusões. E tomou três providências. Despachou para Stallarholmen, com urgência, o único veí­culo de intervenção disponível em Strángnàs naquele dia cheio. Ligou para seus colegas de Södertálje e pediu ajuda. A polícia de Södertãlje não estava menos assoberbada, já que grande parte de seus recursos concentrava-se nas escavações em torno de um armazém incendiado ao sul de Nykvarn, mas um possível elo entre Nykvarn e Stallarholmen fez que o oficial de plantão em Södertálje imediatamente despachasse dois carros para Stallarholmen, como reforço ao veículo de intervenção de Strángnàs. Por fim, a policial de plantão no posto de Strángnàs pegou o telefone e chamou o inspetor Jan Bublanski, em Estocolmo. Conseguiu contatá-lo no celular.

Bublanski estava na Milton Security, numa difícil discussão com o diretor Dragan Armanskij e seus dois colaboradores, Frãklund e Bohman. O colaborador Niklas Eriksson brilhava pela ausência.

A reação de Bublanski foi ordenar que Curt Bolinder fosse com urgência até a casa de campo de Bjurman. E que levasse Hans Faste junto, caso conseguisse encontrá-lo. Depois de pensar um pouco, Bublanski ligou também para Jerker Holmberg, que ainda estava ao sul de Nykvarn, e tinha, portanto, uma distância menor a percorrer. Holmberg tinha novas informações.

—Estava para te ligar. Acabam de identificar o corpo da escavação.

—Não é possível. Não tão cedo.

—Tudo fica mais fácil quando os presuntos fazem a gentileza de ficar com a carteira no bolso, e uma identidade plastificada.

—Certo. Quem é?

—É um conhecido nosso. Kenneth Gustafsson, de quarenta e quatro anos, domiciliado em Eskilstuna. Seu apelido era Vagabundo. Isso te lembra alguma coisa?

—Claro. Evidente. Quer dizer então que o Vagabundo estava enterrado em Nykvarn. Não lidei diretamente com esse malandro, mas parece que ele operou um bocado nos anos 1990. Pertencia à fauna dos traficantes, dos pequenos ladrões e viciados.

—Ele mesmo. Pelo menos é a identidade dele que está dentro da carteira. Os legistas vão tratar da identificação definitiva. Vão passar trabalho para juntar os pedaços. O cara está todo em peças avulsas, cinco ou seis partes pelo menos.

—Humm. Paolo Roberto contou que o loirinho com quem ele lutou tinha ameaçado a Miriam Wu com uma serra elétrica.

—O recorte pode mesmo ter sido feito com serra elétrica. Não olhei de perto. Acabam de começar as escavações em outros pontos. Estão montando a barraca.

—Muito bem. Jerker, eu sei que você teve um dia cheio, mas daria para você passar por aqui no final da tarde?

—Está certo. Mas primeiro vou dar um pulo em Stallarholmen. Bublanski desligou e esfregou os olhos.

O destacamento de Strãngnás chegou à casa de campo de Bjurman às 15h44. No caminho de acesso, literalmente colidiram com um homem que tentava deixar o local numa Harley Davidson instável, que foi se cravar na dianteira do camburão. Não foi um choque muito violento. Os policiais desembarcaram e reconheceram Benny Nieminen, de trinta e sete anos, assassino conhecido do meio policial nos anos 1990. Nieminen não parecia muito em forma, e puseram-lhe as algemas. Ao fechá-las em seus pulsos, os policiais descobriram, com alguma surpresa, que sua jaqueta de couro estava rasgada nas costas. Bem no meio, faltava um quadrado de cerca de vinte centímetros por vinte, o que causava uma impressão bastante curiosa. Benny Nieminen não quis comentar o fato.

Em seguida, percorreram os cerca de duzentos metros até a casa. Lá, encontraram um ex-estivador chamado Oberg colocando uma bandagem de apoio no pé de um tal de Carl-Magnus Lundin, de trinta e seis anos e chefe do nem tão desconhecido grupo de delinquentes do MC Svavelsjõ.

O comandante do veículo de intervenção era o inspetor Nils-Henrik Johansson. Ele desceu, ajeitou o cinturão e contemplou a triste figura estendida no chão. Proferiu a clássica fala policial.

—O que está acontecendo aqui?

O estivador aposentado interrompeu seus cuidados ao pé de Magge Lundin e dirigiu um rápido olhar para Johansson.

—Fui eu que liguei.

—O senhor falou em tiros.

—Falei que ouvi um tiro, vim ver e topei com esses caras. Este aqui levou uma bala no pé e uma bela de uma surra. Acho que precisa de uma ambulância.

Oberg dirigiu o olhar para o camburão.

—Ah, vocês pegaram o outro canalha. Estava fora do ar quando cheguei, mas não parecia ferido. Depois de um tempo, ele se recuperou e não quis ficar.

Jerker Holmberg chegou com os policiais de Södertálje quando a ambulância estava deixando o local. O destacamento de Strángnàs lhe fez um breve resumo do que tinha observado. Nem Lundin nem Nieminen quiseram explicar o motivo de sua presença no local. Lundin, aliás, não estava em condições de falar.

—Ou seja, dois motoqueiros de macacão de couro, uma Harley Davidson, um ferimento a bala e nenhuma arma. Entendi tudo direito? - perguntou Holmberg.

O comandante Johansson assentiu com a cabeça. Holmberg refletiu um instante.

—É de se supor que eles não vieram os dois numa moto.

—Acho que ser um mero passageiro é visto como pouco viril, no meio deles - disse Johansson.

—Nesse caso, está faltando uma moto. Também está faltando a arma, o que nos leva a concluir que um terceiro bandido já se mandou.

—Parece plausível.

—O que nos deixa com um problema lógico. Se os dois cavalheiros de Svavelsjõ chegaram cada um numa moto, falta também o veículo utilizado pelo terceiro elemento. Ele não pode ter saído com seu próprio veículo e mais a moto. E é meio longe vir a pé da estrada de Strángnàs para cá.

—A menos que o terceiro elemento morasse na casa.

—Humm - fez Jerker Holmberg. —Essa casa pertencia ao falecido doutor Bjurman, que definitivamente não mora mais aí.

—Também pode ter havido um quarto elemento, que teria ido embora de carro.

—Mas então por que não foram embora juntos? Tenho a impressão de que esta história não se limita ao roubo de uma Harley Davidson, embora elas sejam muito cobiçadas.

Refletiu um instante, então pediu que o destacamento mandasse dois agentes procurar um veículo abandonado em alguma trilha florestal das redondezas, e também bater à porta das casas próximas para perguntar se alguém tinha visto algo fora do comum.

—Nesta época do ano não mora muita gente por aqui - disse o comandante do destacamento, prometendo, porém, fazer o possível.

Depois, Holmberg abriu a porta da casa, que não fora trancada. Deparou imediatamente com os arquivos deixados na mesa da cozinha, contendo a investigação de Bjurman sobre Lisbeth Salander. Sentou-se e se pôs a folheá-los, estupefato.

Jerker Holmberg estava com sorte. Apenas trinta minutos depois de começar a operação porta a porta entre as poucas casas habitadas, toparam com Anna Viktoria Hansson, de setenta e dois anos, que passara aquele dia de primavera limpando um jardim na bifurcação da aldeia de veraneio. Sim, ela tinha vista boa. Sim, vira uma garota baixinha de jaqueta escura passando por ali a pé, por volta do meio-dia. Mais ou menos umas três da tarde, dois homens passaram de moto, fazendo uma barulheira daquelas. E pouco depois a garota tinha passado de volta, numa das motos. E depois chegaram os carros da polícia.

Enquanto Jerker Holmberg recebia esse relatório, Curt Bolinder chegou à casa de campo.

—Como é essa história? - ele perguntou. Jerker Holmberg fitou o colega com ar deprimido.

—Não sei bem de que jeito te explicar isso tudo - respondeu Holmberg.

—Jerker, você está querendo que eu engula que a Lisbeth Salander apareceu na casa do Bjurman e, sozinha, deu no dirigente do MC Svavelsjõ a maior surra da vida dele? - perguntou Bublanski, no telefone.

Sua voz parecia exasperada.

—Ora, pois se ela foi treinada pelo Paolo Roberto...

—Cale a boca, Jerker.

—Estou só repassando os fatos. Magnus Lundin ferido com uma bala no pé. Periga ficar manco o resto da vida. A bala saiu pelo lado do calcanhar.

—Pelo menos ela não atirou na cabeça.

—Não deve ter sido necessário. Se entendi direito o pessoal da brigada, Lundin está com ferimentos graves no rosto, o maxilar estourado e dois dentes quebrados. Os paramédicos temiam uma concussão cerebral. Além do ferimento no pé, está com muita dor no baixo-ventre.

—Como vai o Nieminen?

—Parece ter saído ileso. Mas, segundo o velho que nos chamou, quando ele chegou lá o Nieminen estava estatelado no chão, sem sentidos. Não conseguia falar nada, mas se recobrou depois de algum tempo e estava tentando deixar o local quando a polícia de Strãngnás apareceu.

Pela primeira vez em muito tempo, Bublanski ficou totalmente mudo.

—Um detalhe misterioso... - disse Jerker Holmberg.

—O que foi agora?

—Não sei como descrever isso. A jaqueta de couro do Nieminen... é, ele chegou lá de moto.

—Sim?

—Está em mau estado.

—Como assim, em mau estado?

—Falta um pedaço. Alguém recortou um quadrado de mais ou menos vinte centímetros nas costas. Bem no lugar onde fica o logotipo do MC Svavelsjõ.

Bublanski ergueu as sobrancelhas.

—Por que a Lisbeth Salander iria recortar um pedaço da jaqueta? Como troféu?

—Não faço a menor idéia. Mas pensei numa coisa - disse Jerker Holmberg.

—O quê?

—O Magnus Lundin tem uma barriga enorme, é loiro e usa rabo de cavalo. Um dos caras que raptaram a amiga de Salander, a Miriam Wu, era loiro, tinha rabo de cavalo e uma barriga de bebedor de cerveja.

Fazia anos que Lisbeth Salander não sentia aquela sensação vertiginosa, desde quando experimentara uma queda livre no parque de diversões de Grõna Lund. Tinha dado três voltas e poderia ter dado mais três se não estivesse sem dinheiro.

Constatou também que uma coisa era pilotar uma Kawasaki 125, que na verdade não passava de uma bicicleta motorizada melhorada, e outra, bem diferente, era controlar uma Harley Davidson de 1450 cilindradas. Os primeiros trezentos metros na pista florestal de Bjurman, de manutenção precária, valeram todas as montanhas-russas do mundo. Sentiu-se um autêntico giroscópio. Por pouco não se espatifou na floresta umas duas vezes, mas conseguiu retomar a tempo o controle da máquina. Tinha a impressão de estar cavalgando um alce assustado.

Além disso, o capacete teimava em escorregar o tempo todo sobre seus olhos, embora o tivesse forrado com um pedaço de couro recortado na jaqueta grossa de Benny Nieminen.

Temendo não conseguir lidar com o peso da moto, achou melhor não parar. Era baixinha demais para poder apoiar um pé no chão e tinha medo que a Harley caísse. Nesse caso, jamais teria forças suficientes para erguê-la.

Ficou mais fácil quando entrou na pista mais larga que levava à aldeia de veraneio. Minutos depois, quando pegou a estrada de Strángnàs, atreveu-se a soltar uma mão do guidão para ajeitar o capacete. Então acelerou com tudo. Fez o trajeto até Södertálje em tempo recorde, com um sorriso maravilhado grudado no rosto o tempo inteiro. Pouco antes de Södertálje, cruzou com dois carros com as luzes giratórias acesas, sirenes a toda.

O mais sensato, evidentemente, teria sido abandonar a Harley em Södertálje e deixar que Irene Nesser pegasse o trem de subúrbio para Estocolmo, mas Lisbeth Salander não soube resistir à tentação. Tomou cuidado para não ultrapassar o limite de velocidade, enfim, não muito, mas continuava com a impressão de estar em queda livre. Só quando chegou à altura de Àlvsjõ é que ela pegou o acesso para o parque de Exposições de Estocolmo, onde estacionou sem derrubar o monstrengo. Com dor na alma, abandonou a moto, junto com o capacete e o pedaço de couro da jaqueta de Benny Nieminen, e foi a pé para a estação. Sentia frio. Desceu na estação seguinte, voltou a pé para casa e foi depressa se esticar na banheira.

—O nome dele é Alexander Zalachenko - disse Gunnar Björck. —Mas ele não existe de fato. Não vai encontrá-lo no registro civil.

Zala. Alexander Zalachenko. Enfim um nome.

—Quem é ele, e como posso encontrá-lo?

—Não é uma pessoa que a gente tem vontade de encontrar.

—Acredite, tenho muita, muita vontade de me encontrar com ele.

—O que eu vou te passar agora são informações consideradas segredo de Estado. Se souberem que fui eu que contei, fico sujeito a uma condenação pesada. É um dos maiores segredos da Defesa Nacional sueca. Você vai entender por que é tão importante que eu seja protegido como fonte.

—Eu já fiz isso, não fiz?

—Você tem idade para lembrar da guerra fria. Mikael meneou a cabeça. Vamos, fale logo!

—Alexander Zalachenko nasceu em 1940 em Estalingrado, na Ucrâ­nia, que na época pertencia à União Soviética. Ele tinha um ano de idade quando foi lançada a Operação Barbarossa, com a ofensiva alemã no fronte do Leste. Os pais de Zalachenko morreram ambos na guerra. Pelo menos, é o que Zalachenko acredita. Nem ele sabe o que aconteceu durante a guerra. Suas primeiras lembranças são de um orfanato uraliano.

Mikael meneou a cabeça para mostrar que estava acompanhando.

—O orfanato ficava numa cidade de guarnição e era mantido pelo Exército Vermelho. Pode-se dizer que Zalachenko teve uma formação militar bastante precoce. Isso foi durante os piores anos do stalinismo. Depois da queda da União Soviética, foram encontradas pilhas de documentos comprovando a realização de diversos experimentos no sentido de criar um esquadrão de soldados de elite especialmente treinados e recrutados entre os órfãos a cargo do Estado. Zalachenko era um deles.

Mikael meneou outra vez a cabeça.

—Resumindo. Com cinco anos de idade, ele foi colocado num colégio militar. Lá, perceberam que ele era muito inteligente. Quando fez quinze anos, em 1955, foi transferido para uma escola militar em Novossibirsk, onde, com outros dois mil alunos, passou por um treinamento equivalente ao das spetsnaz, as unidades de elite russas.

—Certo. Um soldadinho valoroso.

—Em 1958, já com dezoito anos, foi mandado para Minsk a fim de receber a formação especial do GRO. Sabe o que era o GRO?

—Acho que sim.

—Literalmente, significa Glavnoe razvedivatelnoe oupravlenie, o serviço de informações e ação militar diretamente subordinado ao mais alto comando militar do Exército. Não confundir o GRO com a KGB, que era a polícia secreta civil.

—Eu sei.

—Nos filmes de James Bond, os grandes espiões que atuam no estrangeiro são, em geral, caras da KGB. Na verdade, a KGB era antes de mais nada um serviço de segurança interno do regime que geria campos de prisioneiros na Sibéria e eliminava os opositores do regime com uma bala na nuca nos porões da Lubianka. Quem respondia pela espionagem e pelas operações além das fronteiras era em geral o pessoal do GRO.

—Isso está ficando com cara de aula de história. Continue.

—Aos vinte anos, Alexander Zalachenko obteve sua primeira nomeação no estrangeiro. Foi mandado para Cuba. Era uma fase de treinamento, ele na época só tinha a patente correspondente ao alferes. Mas permaneceu lá dois anos, e viveu a crise cubana e a invasão da Baía dos Porcos.

—Certo.

—Em 1963, voltou para Minsk a fim de prosseguir sua formação. Então foi nomeado, primeiro na Bulgária, depois na Hungria. Em 1965, foi promovido a tenente e obteve seu primeiro posto na Europa Ocidental, em Roma, onde serviu durante um ano. Foi sua primeira missão under cover. Era, portanto, um civil com um passaporte falso e sem nenhum contato com a embaixada.

Mikael meneou a cabeça. Sem querer, estava começando a ficar fascinado.

—Em 1967, foi transferido para Londres. Lá, organizou a execução de um desertor da KGB. Nos dez anos seguintes, tornou-se um dos melhores agentes do GRO. Pertencia à legítima elite dos soldados políticos dedicados. Tinha sido adestrado desde menino. Fala fluentemente pelo menos seis línguas. Já se fez passar por jornalista, fotógrafo, designer, marinheiro... o que você puder imaginar. Era especialista na arte da sobrevivência, especialista em camuflagem e manobras diversionistas. Tinha seus próprios agentes e organizava ou efetuava suas próprias operações. Muitas eram missões de eliminação, das quais boa parte se deram no Terceiro Mundo, mas ele lidou igualmente com chantagem, ameaças ou qualquer tipo de ação que seus superiores queriam que ele efetuasse. Em 1969, passou a capitão, em 1972 a comandante e, em 1975, foi promovido a tenente-coronel.

—Como ele veio parar na Suécia?

—Estou chegando lá. Com o passar dos anos, foi se envolvendo com corrupção e juntou, aqui e ali, um pequeno pé-de-meia. Bebia demais e se metia em muitas histórias com mulheres. Seus superiores estavam a par, mas ele ainda era um dos favoritos e fizeram vista grossa enquanto tudo não passou de coisas sem importância. Em 1976, foi enviado numa missão na Espanha. Não vou entrar em detalhes, mas ele tomou um porre e fez um belo de um estrago. A missão fracassou e, de repente, ele caiu em desgraça e recebeu ordem de voltar para a Rússia. Optou por ignorar essa ordem e acabou numa situação ainda pior. O GRO ordenou a um adido militar da embaixada em Madri que entrasse em contato com ele e lhe desse uns conselhos. Alguma coisa simplesmente desandou na conversa e Zalachenko matou o homem da embaixada. Com isso, já não tinha escolha. Não podia voltar atrás e resolveu saltar às pressas do trem em movimento.

—Entendo.

—Desertou na Espanha, forjando uma pista que parecia levar a Portugal e, eventualmente, a um acidente de barco. Também plantou uma pista sugerindo que fugira para os Estados Unidos. Na verdade, optou por se refugiar no país mais improvável da Europa. Veio para a Suécia, entrou em contato com a Säpo e pediu asilo político. O que, na verdade, foi muito bem pensado, já que a probabilidade de um esquadrão da morte da KGB ou do GRO ir procurar por ele aqui era praticamente nula.

Gunnar Björck calou-se.

—E então?

—O que faz um governo quando um dos maiores espiões da União Soviética de repente resolve jogar tudo para o alto e pedir asilo político na Suécia? Foi bem na época em que estávamos com um governo de direita, e, aliás, esse foi um dos primeiros casos que tratamos com o novo primeiro-ministro, políticos, medrosos como são, tentaram, é claro, se livrar dele o mais rápido possível, mas também não podiam mandá-lo de volta para a União Soviética. Teria sido um escândalo colossal. Em vez disso, tentaram mandá-lo para s Estados Unidos ou Inglaterra, mas o Zalachenko recusou. Não gostava os Estados Unidos e, segundo ele, a Inglaterra era um país em que a União Soviética mantinha agentes de informação de primeiríssimo nível. Ele não queria ir para Israel porque não gostava de judeus. Portanto, resolveu que iria se estabelecer na Suécia mesmo.

Aquilo tudo parecia tão inverossímil que Mikael se perguntou vagamente se Gunnar Björck não estaria enrolando.

—E ele acabou ficando na Suécia?

—Exatamente.

—E isso tudo nunca veio a público?

—Foi, por muitos anos, um dos segredos militares mais bem guardados a Suécia. Ocorre que Zalachenko era muito útil para nós. Durante certo período, no final dos anos 1970 e início dos 1980, ele foi a joia da coroa dos desertores, mesmo se comparado ao que acontecia além das fronteiras sueis. Nunca o chefe de operações de um dos comandos de elite do GRO tinha desertado.

—Isso quer dizer que ele tinha informações para nos vender?

—Exato. Ele manejava bem seus trunfos e destilava informações quando era mais favorável para ele. Informações suficientes para que pudéssemos identificar um agente no quartel-general da OTAN em Bruxelas; um agente ilegal em Roma; o contato de uma rede de espiões em Berlim; o nome dos assassinos profissionais que ele contratara em Ankara ou Atenas. Ele não sabia muito sobre a Suécia, mas detinha informações sobre operações no exterior que podíamos igualmente repassar em troca de outras coisas. Ele era a nossa mina de ouro.

—Em outras palavras, vocês passaram a colaborar com ele.

—Conseguimos uma nova identidade para ele, só tivemos que oferecer um passaporte e algum dinheiro, depois ele se virou sozinho. Ele tinha sido treinado exatamente para isso.

Mikael calou-se alguns instantes a fim de digerir essas informações. Então ergueu os olhos para Björck.

—Você mentiu na última vez em que estive aqui.

—Como assim?

—Você disse que tinha conhecido Bjurman no clube de tiro da polícia nos anos 1980. Na verdade, vocês se conheceram bem antes.

Gunnar Björck meneou a cabeça, pensativo.

—Foi uma reação automática. Isso tudo é confidencial e não havia motivo para eu contar como conheci o Bjurman. Foi só quando você perguntou sobre o Zala que eu fiz a relação.

—Conte como foi.

—Eu tinha trinta e três anos e trabalhava na Säpo havia três. Bjurman tinha vinte e seis e acabava de se formar. Conseguiu um emprego na instrução de alguns casos jurídicos da Säpo. Na verdade, era mais um estágio. O Bjurman era de Karlskrona, o pai dele trabalhava no serviço de informação militar.

—E aí?

—Nem eu nem o Bjurman, diga-se, estávamos capacitados para lidar com um homem como o Zalachenko, mas ele nos contatou no dia das eleições, em 1976. A delegacia estava praticamente deserta - tinham todos saído no feriado, ou estavam em serviço de vigilância e coisas do gênero. E foi exatamente quando o Zalachenko escolheu entrar na delegacia de Norrmalm para declarar que estava pedindo asilo político e queria falar com alguém da Säpo. Säpo citou nenhum nome. Eu estava de plantão, achei que se tratava de um refugiado comum, então chamei o Bjurman para instruir o caso comigo. Foi lá, na delegacia de Norrmalm, que conhecemos o Zalachenko. Björck esfregou os olhos.

—Ele ficou ali sentado, contando calmamente e de forma bem neutra como se chamava, quem era e no que trabalhava. Bjurman tomava nota. Passado algum tempo me dei conta de quem estava ali na minha frente e caí das nuvens. Então interrompi a entrevista e, mais que depressa, levei o Zalachenko e o Bjurman para longe da polícia oficial. Não sabia o que fazer, então reservei um quarto no Hotel Continental e o acomodei lá. Deixei o Bjurman de baby-sitter e desci até a recepção para telefonar para o meu chefe.

Súbito, ele caiu na gargalhada.

—Lembrei várias vezes dessa nossa atitude, de legítimos amadores. Mas enfim, foi assim que aconteceu.

—Quem era o seu chefe?

—Não interessa. Não pretendo citar mais ninguém.

Mikael deu de ombros e deixou passar esse detalhe sem discutir.

—Tanto eu como o meu chefe entendemos que tínhamos de agir no maior sigilo e envolver o menor número possível de pessoas no caso. O Bjurman não tinha nada a ver com a história — que estava muito além do nível dele - mas, uma vez que já estava a par, era melhor mantê-lo do que envolver mais uma pessoa. E imagino que o mesmo raciocínio se aplicava a um júnior como eu. Ao todo, sete pessoas ligadas à Säpo sabiam da existência de Zalachenko.

—E hoje, quantas pessoas sabem dessa história?

—De 1976 até o início dos anos 1990... umas vinte pessoas no total, do governo, do Estado-maior e da Säpo.

—E depois do início dos anos 1990? Björck deu de ombros.

—Assim que a União Soviética se esfacelou, ele deixou de ter qualquer interesse para nós.

- Mas o que aconteceu com Zalachenko depois que ele se instalou na Suécia?

Björck permaneceu tanto tempo calado que Mikael começou a se remexer na cadeira.

—Para ser bem sincero... O Zalachenko se transformou numa estrela e todos os envolvidos no caso construímos nossa carreira em cima disso. Entenda, também era um trabalho em tempo integral. Fui nomeado mentor de Zalachenko na Suécia, e nos dez primeiros anos a gente deve ter se encontrado, se não diariamente, pelo menos várias vezes por semana. Foram os anos mais cruciais, quando ele estava cheio de informações novas. Mas também tinha a ver com ficar de olho nele.

—Como assim?

—O Zalachenko era uma víbora. Podia ser incrivelmente encantador como incrivelmente paranóico, doido. Passava por períodos de bebedeira, e se tornava violento. Em mais de uma oportunidade, tive de intervir à noite para ajeitar as confusões em que ele se metia.

—Por exemplo...?

—Por exemplo, ele ia a um restaurante, brigava com alguém e quebrava a cara dos dois seguranças que tentavam acalmá-lo. Era um homem meio baixinho e magro, mas tivera uma ótima formação no corpo a corpo e algumas vezes, infelizmente, exibia toda a sua competência. Aconteceu inclusive de eu ter de buscá-lo na delegacia.

—Estou achando esse cara meio pirado. Afinal, estava se arriscando a chamar a atenção. Não me parece muito profissional.

—Mas ele era assim. Não tinha cometido nenhum crime na Suécia e nunca era interrogado ou detido por motivo nenhum. Nós lhe fornecemos um pasSäporte sueco, uma carteira de identidade e um nome sueco. E a Säpo pagava para ele um apartamento num subúrbio de Estocolmo. Ele também recebia da Säpo um salário para ficar permanentemente à nossa disposição. Mas não podíamos proibir que ele frequentasse restaurantes ou tivesse seus rolos com as mulheres. Só nos restava fazer a faxina depois que ele passava. Essa foi minha missão até 1985, quando fui transferido e meu sucessor assumiu o bastão como guia de Zalachenko.

—E qual era o papel do Bjurman nisso tudo?

—Para ser sincero, Bjurman era um peso. Não era especialmente brilhante, e era o homem errado no lugar errado. Fora envolvido no caso Zalachenko por mero acaso. Ele só participou bem no início, e em raras ocasiões, quando precisávamos lidar com algumas formalidades jurídicas. O meu chefe resolveu o problema com o Bjurman.

—Como?

—Da maneira mais simples. O Bjurman conseguiu um emprego fora da polícia, num escritório de advocacia que era, por assim dizer, próximo...

—Klang & Reine.

Gunnar Björck lançou a Mikael um olhar cortante. Então meneou a cabeça.

—Intelectualmente falando o Bjurman não era aquilo tudo, mas se saiu bem. Ao longo dos anos, sempre efetuou algumas missões, pequenas investigações, coisas assim, para a Säpo. De modo que ele também, de certa forma, construiu sua carreira em torno do Zalachenko.

—E onde está o Zala atualmente? Björck hesitou um instante.

—Não sei. Depois de 1985 meu contato com ele foi se espaçando, e faz quase doze anos que não o vejo. A última coisa que eu soube é que ele saiu da Suécia em 1992.

—Mas, manifestamente, está de volta. O nome dele surgiu num contexto envolvendo armas, drogas e tráfico de mulheres.

—Não que eu devesse ficar surpreso suspirou Björck. - Mas nada prova que seja o mesmo Zala, pode ser algum outro.

—A probabilidade de aparecerem dois Zala nessa história deve ser microscópica. Qual era o nome sueco dele?

Björck encarou Mikael.

—Isso eu não pretendo revelar.

—Você prometeu não criar caso.

—Você queria saber quem era o Zala. Eu contei. Mas não pretendo lhe entregar a última peça do quebra-cabeça sem ter certeza de que você vai cumprir sua parte no trato.

—O Zala provavelmente cometeu três assassinatos e a polícia está perseguindo uma inocente. Você está muito enganado se acha que eu vou largar do seu pé antes de saber o nome do Zala.

—Como você sabe que a Lisbeth Salander não é a assassina?

—Eu sei.

Gunnar Björck sorriu para Mikael. Sentiu-se, de repente, muito mais seguro.

—Eu acho que o assassino é o Zala - disse Mikael.

—Errado. O Zala não matou ninguém.

—Como você sabe?

—Porque o Zala tem atualmente sessenta e cinco anos e está bastante debilitado. Teve um pé amputado e caminha com dificuldade. Ele não foi até Odenplan ou Enskede para atirar em ninguém. Se fosse cometer um assassinato, teria primeiro que chamar uma ambulância.

Malu Eriksson sorriu educadamente para Sonja Modig.

—Isso você tem que perguntar ao Mikael.

—Está bem.

—Não posso conversar sobre a investigação dele com você.

—Mas se o tal Zala é um possível culpado...

—É com o Mikael que você deve falar sobre isso - repetiu Malu. —Posso te ajudar a pegar as informações do trabalho do Dag Svensson, mas não da nossa própria investigação.

Sonja Modig suspirou.

—Eu entendo o princípio. O que você pode me dizer sobre as pessoas desta lista?

—Só o que o Dag Svensson escreveu nada sobre as fontes. Mas acho que posso revelar que o Mikael entrou em contato com uma dúzia dessas pessoas e as eliminou da lista. Talvez isso ajude.

Sonja Modig meneou a cabeça, hesitante. Não, não ajuda. A polícia vai ter que procurar cada um deles e realizar um interrogatório formal. Um juiz. Três advogados. Vários políticos e jornalistas... e alguns colegas. Vai ser uma festa. Sonja Modig ponderou que a polícia deveria ter cuidado daquela lista já no dia seguinte aos assassinatos.

Seu olhar bateu num nome da lista. Gunnar Björck.

—Esse nome está sem endereço.

—É.

—Por quê?

—Ele trabalha na Säpo, o endereço dele é sigiloso. Mas no momento está de licença médica. O Dag Svensson não conseguiu encontrá-lo.

—E vocês, conseguiram? – perguntou Sonja Modig, sorrindo.

—Pergunte ao Mikael.

Sonja Modig fitou a parede acima da mesa de Dag Svensson. Refletiu.

—Eu posso lhe fazer uma pergunta pessoal?

—Pois não.

—Aqui na Millennium, quem vocês acham que é o assassino dos seus amigos e do doutor Bjurman?

Malu Eriksson não disse nada. Gostaria que Mikael Blomkvist estivesse ali para lidar com aquelas perguntas. Era desagradável ser inquirida daquele jeito, mesmo sendo absolutamente inocente. Mais desagradável ainda era não poder explicar em que pé estavam as conclusões da Millennium. Nisso, escutou a voz de Erika Berger atrás de si.

—Partimos do princípio de que os assassinatos visavam impedir a divulgação de uma das denúncias em que o Dag Svensson vinha trabalhando. Mas não sabemos quem atirou. O Mikael está se concentrando num desconhecido chamado Zala.

Sonja Modig se virou e olhou para a diretora da Millennium. Erika Berger ofereceu uma caneca de café para Malu e outra para Sonja. Uma ostentava o logotipo do sindicato dos funcionários e a outra, dos democrata-cristãos. Erika Berger sorriu educadamente. Em seguida, voltou para sua sala.

Retornou três minutos depois.

—Modig. O seu chefe acaba de telefonar. Seu celular está desligado. E para você ligar para ele.

O incidente na casa de campo de Bjurman desencadeou a tarde toda, uma atividade febril. Foi lançado um alerta nacional com a informação de que Lisbeth Salander enfim dera sinal de vida. O alerta informava que ela provavelmente estava se locomovendo numa Harley Davidson pertencente a Magge Lundin. Esclarecia que Salander estava armada e tinha atirado numa pessoa em frente a uma casa de campo perto de Stallarholmen.

A polícia colocou barreiras nos acessos a Strángnàs e Mariefred, e em todos os acessos a Södertálje. Os trens de subúrbio entre Södertálje e Estocolmo foram revistados à noite durante várias horas. Porém, nenhuma moça baixinha, com ou sem Harley Davidson, foi encontrada.

Só por volta das dezenove horas é que um carro de polícia encontrou uma Harley abandonada, estacionada em frente ao Parque de Exposições de Estocolmo em Àlvsjõ, o que transferiu as investigações de Södertálje para Estocolmo. De Àlvsjõ também chegou a notícia de que um pedaço de jaqueta de couro com o logotipo do mc Svavelsjõ havia sido encontrado. O achado levou o inspetor Bublanski a empurrar os óculos para a testa e contemplar, aborrecido, a escuridão lá fora, em Kungsholmen.

Aquele dia se transformara numa total escuridão. O sequestro da amiga de Salander, a intervenção de Paolo Roberto, mais um incêndio criminoso e delinquentes enterrados nas matas de Södertálje. E, para encerrar, um caos incompreensível em Stallarholmen.

Bublanski foi até a sala grande de trabalho e examinou um mapa de Estocolmo e redondezas. Seu olhar passou de Stallarholmen para Nykvarn, depois para Svavelsjõ, detendo-se em Àlvsjõ, as quatro localidades que, por motivos totalmente distintos, tinham entrado na história. Então pôs o olhar em Enskede e suspirou. Tinha a desagradável sensação de que a polícia estava quilômetros atrás do desenrolar dos fatos. Não conseguia entender nada. Quaisquer que fossem os bastidores dos assassinatos de Enskede eram muito mais complexos do que eles tinham pensado inicialmente.

Mikael Blomkvist nada sabia dos acontecimentos dramáticos de Stallarholmen. Deixou Smädalarö por volta das três da tarde. Parou num posto de gasolina para tomar um café, enquanto tentava resumir a situação.

Mikael estava bastante frustrado. Björck lhe fornecera muitos detalhes que o deixaram estupefato, mas também se negara categoricamente a lhe entregar a última peça do quebra-cabeça, relativa à identidade sueca de Zalachenko. Mikael se sentia enganado. A história terminava de repente e Björck recusava-se a revelar seu final.

—Nós temos um trato - insistiu Mikael.

—E eu cumpri a minha parte. Contei quem é o Zalachenko. Se quiser mais informações, vamos ter de redefinir o trato. Preciso de garantias de que meu nome será deixado de fora e de que não vai haver nenhum desdobramento.

—Mas como eu posso lhe dar essas garantias? Não sou o dono da investigação policial, e mais cedo ou mais tarde eles vão chegar até você.

— O que me preocupa não é a investigação policial. O que eu quero são garantias de que você nunca vai me denunciar por causa das putas.

Mikael notou que Björck parecia mais preocupado em ocultar sua ligação com o comércio do sexo do que por ter passado informações tidas como segredo de Estado. Isso revelava um bocado sobre sua personalidade.

—Já prometi não escrever uma só palavra sobre você e essa história.

—Mas agora quero garantias de que nunca vai citar meu nome em relação com o Zalachenko.

Mikael não tinha a menor intenção de oferecer esse tipo de garantia. Ele até podia dar a Björck o tratamento de uma fonte anônima na trama de fundo, mas não tinha como garantir anonimato absoluto. Por fim, ambos haviam concordado em refletir um ou dois dias e então retomar a conversa.

Mikael tomava o seu café no posto de gasolina quando sentiu que havia alguma coisa bem ali, ao alcance de sua mão. Tão próximo que era quase um vulto, sem que ele conseguisse, porém, focalizar a imagem. Então ocorreu-lhe que talvez outra pessoa pudesse lançar alguma luz sobre aquela história. Mikael estava nas proximidades do Centro de Reeducação de Ersta. Consultou o relógio, levantou-se rapidamente e foi fazer uma visita a Holger Palmgren.

Gunnar Björck estava preocupado. O encontro com Mikael Blomkvist deixara-o completamente esgotado. Suas costas doíam como nunca. Tomou três analgésicos e se deitou no sofá da sala. Os pensamentos rodopiavam em sua cabeça. Depois de uma hora, levantou-se, pôs água para ferver e pegou uns saquinhos de chá. Sentou-se à mesa da cozinha e ficou matutando.

Será que podia confiar em Blomkvist? Ele jogara todos os seus trunfos e agora dependia da boa vontade do infeliz daquele jornalista. Mas ele preservara a informação mais importante. A identidade de Zala e seu verdadeiro papel nos acontecimentos. Uma carta decisiva que ele guardava na manga.

Como é que ele tinha se metido naquela encrenca? Não era nenhum criminoso. Só tinha pago por algumas putas. Era solteiro. Aquela fedelha desgraçada de dezesseis anos nem sequer tinha fingido que gostava dele. Olhara para ele cheia de nojo.

Cretina. Se ao menos ela não fosse tão jovem. Se tivesse mais de vinte e um anos, ele não estaria naquela confusão. A mídia ia acabar com ele se descobrisse a história. Blomkvist também o detestava. Nem tentava disfarçar. Zalachenko.

Um cafetão. Que ironia. Ele tinha comido umas putas do Zalachenko. Mas Zalachenko era esperto o bastante para ficar na moita. O Bjurman e a Salander. E o Blomkvist. Uma saída.

Depois de refletir durante uma hora, foi até seu escritório e pegou o pedaço de papel com o número de telefone que ele anotara quando de uma visita ao seu local de trabalho no início da semana. Não era só isso que ele omitira a Mikael Blomkvist. Sabia exatamente onde se encontrava Zalachenko, mas fazia doze anos que não falava com ele. E não tinha a menor vontade de voltar a falar.

Mas Zalachenko era uma raposa esperta. Compreenderia o problema. Saberia sumir da face da terra. Ir se aposentar no exterior. Desastre mesmo seria ele ser preso. Então tudo era capaz de desabar.

Hesitou um bocado antes de pegar o telefone e discar o número.

—Olá. É o Sven Jansson - disse.

Um pseudônimo que ele não usava havia muito tempo. Zalachenko se lembrava muito bem dele.

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