12. DOMINGO 15 DE MAIO – SEGUNDA-FEIRA 16 DE MAIO


O delegado Torsten Edklinth, chefe do serviço de Proteção à Constituição na DGPN/Sapo, beliscou o lóbulo da orelha e contemplou, pensativo, o presidente da respeitada empresa de segurança privada Milton Security, que havia ligado e, sem preâmbulos, insistido que ele fosse jantar em sua casa, em Lindingõ, no domingo. Ritva, a mulher de Armanskij, servira uma deliciosa carne salteada. Eles tinham comido e conversado educadamente. Edklinth se perguntava o que Armanskij teria em mente. Após o jantar, Ritva se retirara para a frente da tevê e os deixara a sós à mesa de jantar. Armanskij começara a contar a história de Lisbeth Salander.

Edklinth girava lentamente sua taça de vinho tinto.

Dragan Armanskij não era nenhum maluco. Isso ele sabia.

Conheciam-se havia doze anos, desde que uma deputada de esquerda recebera uma série de ameaças de morte anônimas. Ela relatara os fatos ao presidente do grupo do seu partido, o qual informara o setor de segurança do Parlamento. Tratava-se de ameaças escritas, vulgares, contendo informações que indicavam que o autor anônimo conhecia certos aspectos pessoais da vida da deputada. A Sapo então se debruçara sobre a história e, durante as averiguações, a deputada fora mantida sob proteção.


Naquela época, Proteção à Pessoa era o setor da Sapo com orçamento mais magro. Seus recursos eram limitados. A área era encarregada da proteção da família real e do primeiro-ministro, além de, individualmente, ministros e presidentes de partidos políticos, quando houvesse necessidade. Como essas necessidades costumam extrapolar as verbas, na prática a maioria dos políticos suecos carece de uma proteção pessoal rigorosa. A deputada ficava sob vigilância durante algumas aparições oficiais, mas era abandonada no fim de sua jornada de trabalho, ou seja, na hora em que era mais provável que um biruta partisse para a agressão. A desconfiança da deputada em relação à capacidade da Sapo de protegê-la só fora crescendo.

Ela morava numa mansão em Nacka. Certa noite, ao voltar tarde para casa depois de uma contenda na Comissão de Finanças, descobriu que alguém tinha arrombado as portas do terraço, penetrado na sala, pixado as paredes com expressões de cunho sexual degradantes e em seguida ido ao seu quarto se masturbar. Ela pegara imediatamente o telefone e pedira que a Milton Security cuidasse de sua segurança pessoal. Não informou a Sapo sobre a decisão e, no dia seguinte, enquanto ela dava uma palestra numa escola de Táby, houve um confronto entre os agentes do Estado e os agentes privados.

Na época, Torsten Edklinth era chefe-adjunto interino da Proteção à Pessoa. Detestava, instintivamente, situações em que hooligans privados eram encarregados de executar tarefas que os hooligans pagos pelo Estado supostamente deveriam executar. Admitia, porém, que a deputada tinha todos os motivos para estar descontente — sua cama manchada era uma prova suficiente da ineficiência do Estado. Em vez de se começar a comparar seus talentos recíprocos, Edklinth se acalmara e marcara um almoço com o dono da Milton Security, Dragan Armanskij. Concluíram que a situação era sem dúvida mais séria do que a Sapo de início imaginara e que seria o caso de reforçar a proteção à deputada. Edklinth era sensato o bastante para perceber que não só os homens de Armanskij tinham a competência exigida para a tarefa, como possuíam uma formação no mínimo equivalente e um equipamento técnico superior. Tinham resolvido o problema entregando à equipe de Armanskij a responsabilidade pela proteção pessoal, ao passo que a Polícia de Segurança se encarregaria da investigação propriamente dita e pagaria a conta.

Os dois homens tinham descoberto também que se apreciavam mutuamente e trabalhavam bem em conjunto. Com o passar dos anos, haviam tornado a se encontrar em outras colaborações. Edklinth, portanto, nutria imenso respeito pela competência profissional de Dragan Armanskij, e quando este o convidou para jantar, pedindo que tivessem uma conversa confidencial estava absolutamente disposto a ouvi-lo.

Em compensação, não estava preparado para que Armanskij lhe jogasse no colo uma bomba com o pavio aceso.

— Se entendi direito, você está afirmando que a Polícia de Segurança anda envolvida numa atividade claramente criminosa.

— Não — disse Armanskij. — Você não entendeu nada. Estou afirmando que algumas pessoas, funcionários da Polícia de Segurança, andam envolvidos nessa atividade. Não acredito nem por um segundo que eles tenham o aval da direção da Sapo ou qualquer outra forma de autorização do Estado.

Edklinth olhou para as fotografias de Christer Malm que mostravam o homem subindo num carro cujas placas começavam com as letras KAB.

— Dragan... você não está de brincadeira comigo?

— Bem que eu gostaria que fosse brincadeira. Edklinth refletiu um instante.

— E como você supõe que eu vou me sair dessa?

No dia seguinte, Torsten Edklinth limpava cuidadosamente seus óculos, enquanto refletia. Tinha cabelos grisalhos, orelhas grandes e uma fisionomia enérgica. No momento, porém, sua fisionomia estava mais perplexa do que enérgica. Encontrava-se em sua sala no Palácio da Polícia, na ilhota de Kungsholmen, e passara boa parte da noite ruminando as conclusões a serem tiradas da informação fornecida por Dragan Armanskij.

Eram reflexões pouco agradáveis. A Sapo era uma instituição sueca que, com raras exceções, todos os partidos consideravam de um valor inestimável para o país. Mas também era uma instituição de que todos pareciam desconfiar, responsabilizando-a pelos mais variados e descabidos planos conspiratórios. Era inegável que os escândalos tinham sido muitos, sobretudo nos anos 1970, com os radicais de esquerda, quando certos... disparates constitucionais haviam de fato ocorrido. Mas depois de cinco comissões públicas de inquérito sobre a Sapo, duramente criticada, surgira uma nova geração de funcionários. Elementos trabalhadores, recrutados nas brigadas financeiras, de armas e fraudes da polícia comum — policiais acostumados a investigar crimes de verdade e não fantasias políticas.

A Sapo se modernizara, e a ênfase fora direcionada para a Proteção à Constituição. Sua missão, tal como estabelecida nas diretrizes governamentais, era prevenir e contornar ameaças à segurança interna do país. Em outras palavras, impedir toda atividade ilegal que se utilize de violência, ameaças ou constrangimento com o objetivo de alterar nossa Constituição, levando órgãos políticos ou autoridades decisórias a tomar decisões orientadas ou impedir o cidadão de desfrutar das liberdades e dos direitos que a Constituição lhe garante.

A missão de Proteção à Constituição era, portanto, defender a democracia sueca de complôs antidemocráticos reais ou imaginados. Estes últimos eram esperados, principalmente, de anarquistas e nazistas. Anarquistas, porque eles insistiam em praticar a desobediência civil provocando incêndios criminosos nas lojas de peles. Nazistas, porque eram nazistas e, portanto, por definição, adversários da democracia.

Formado inicialmente em direito, Torsten Edklinth começara sua carreira como procurador, trabalhando em seguida na Sapo por vinte e um anos. Primeiro em campo, como administrador da Proteção à Pessoa, depois na Proteção à Constituição, onde ascendera da análise e direção administrativa até a poltrona de chefe de gabinete. Em outras palavras, era o chefe supremo da área policial da defesa da democracia sueca. O delegado Torsten Edklinth considerava-se um democrata. Nesse sentido, a definição era simples. A Constituição era votada pelo Parlamento, e sua missão era zelar para que ela se mantivesse intacta.

A democracia sueca se fundamenta numa única lei, que pode ser resumida em três letras: YGL, abreviação de yttrandefrihetsgrundlagen, a lei fundamental sobre liberdade de expressão. A YGL estabelece o direito imprescritível de dizer, ter como opinião, pensar e acreditar em qualquer coisa. Esse direito é concedido a todos os cidadãos suecos, do nazista mais retardado ao anarquista apedrejador, passando por todos os intermediários.

Todas as outras leis fundamentais, como por exemplo a Constituição, não passam de floreios de ordem prática em torno da liberdade de expressão. A YGL, por conseguinte, é a lei que garante a sobrevivência da democracia. Edklinth julgava que sua principal tarefa era defender a liberdade que os suecos tinham de pensar e dizer exatamente o que queriam, mesmo ele não partilhasse um segundo sequer com o teor desses pensamentos e declarações.

Tal liberdade, no entanto, não significa que tudo seja permitido, o que alguns xiitas da liberdade de expressão, notadamente pedófilos e grupos racistas procuram fazer valer no debate da política cultural. Toda democracia tem seus limites, e os limites da YGL são regulados pela lei da liberdade de imprensa, a tryckfrihetsfõrordningen, ou TF, que em princípio define quatro restrições dentro da democracia. E proibido publicar pornografia envolvendo crianças e determinadas cenas de violência sexual, qualquer que seja o nível artístico reivindicado pelo autor. E proibido estimular a revolta e incitar o crime. E proibido difamar e caluniar um concidadão. E é proibido incitar o ódio racial.

A liberdade de imprensa também foi ratificada pelo Parlamento e constitui uma restrição à democracia social e democraticamente aceitável, ou seja, o contrato social que estabelece os padrões de uma sociedade civilizada. Em essência, a legislação assegura que ninguém tem o direito de perseguir ou humilhar outro ser humano.

Posto que a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa são garantidas por leis, há que haver uma autoridade que assegure a obediência a essas leis. Na Suécia, essa função é partilhada por duas instituições, cabendo a uma delas, o justitiekanslern, ou JK, o chanceler da justiça, autuar judicialmente os contraventores da liberdade de imprensa.

Nesse aspecto, Torsten Edklinth estava longe de se sentir satisfeito. Achava o JK muitíssimo condescendente no tocante às autuações judiciais referentes a infrações diretas cometidas contra a Constituição sueca. O JK costumava retrucar que o princípio da democracia tinha tamanha importância que só em casos extremos ele podia intervir e mover um processo. Tal atitude, porém, vinha sendo mais e mais contestada nos últimos anos, principalmente depois que o secretário-geral do comitê de Helsinque na Suécia, Robert Hârdh, desenterrara um relatório analisando a falta de iniciativa do JK ao longo de vários anos. O relatório constatava que era praticamente impossível mover um processo e condenar alguém por incitação ao ódio racial.

A segunda instituição era o departamento da Sapo para a Proteção à Constituição, e o delegado Torsten Edklinth levava muito a sério a sua missão. Julgava que era o mais belo cargo, e o mais importante, que um policia sueco poderia ocupar, e não o teria trocado por nenhum outro em toda a Suécia judicial ou policial. Ele era simplesmente o único policial do país que tinha por missão cumprir o papel de policial político. Era uma função delicada que exigia grande sabedoria e um senso de justiça extremamente acurado já que a experiência de vim número excessivo de países mostrava que uma polícia política podia com facilidade se transformar na maior ameaça contra a democracia.

A mídia e a população pensavam que o principal objetivo da Proteção à Constituição era administrar nazistas e militantes vegetarianos. Esse tipo de manifestante decerto interessava muitíssimo à Proteção à Constituição, mas existia, além disso, toda uma série de instituições e acontecimentos que também faziam parte das atribuições do departamento. Se, por exemplo, o rei ou do comandante em chefe do Exército pusesse na cabeça que o sistema parlamentar estava superado e que o Parlamento deveria ser substituído por uma ditadura militar, a Proteção à Constituição ficaria imediatamente de olho no rei ou no comandante em chefe. E se um grupo de policiais resolvesse interpretar livremente a lei a tal ponto que os direitos constitucionais de um indivíduo ficassem prejudicados, cabia também à Proteção à Constituição reagir. Além disso, em casos graves, a investigação ficava sob as ordens do procurador-geral da nação.

O problema, evidentemente, era que a Proteção à Constituição tinha a tarefa quase que apenas de análise e averiguação, e nenhuma ação de intervenção. Por isso, em geral, era a polícia comum ou outras divisões da Sapo que intervinham quando da prisão de nazistas.

Torsten Edklinth julgava essa realidade profundamente insatisfatória. Quase todos os países normais mantêm, de uma forma ou de outra, um tribunal constitucional independente com o objetivo específico de zelar para que as autoridades não lesem a democracia. Na Suécia, essa função era confiada ao procurador-geral da Coroa, ou o justitieombudsman, um indivíduo designado pelo Parlamento para cuidar que os funcionários do Estado respeitassem a lei no exercício de suas funções, tendo, porém, de se conformar às decisões de outros indivíduos. Se a Suécia tivesse um tribunal constitucional, a advogada de Lisbeth Salander poderia ter movido imediatamente um processo contra o Estado sueco por violação de direitos constitucionais. O tribunal poderia, assim, ter exigido a apresentação de todos os documentos ter intimado qualquer pessoa, inclusive o primeiro-ministro, até que o caso fosse solucionado. Na atual situação, a advogada poderia, a rigor, alertar o institieombudsman, o qual, contudo, não tinha autoridade para ir até a Sapo e exigir examinar os documentos.

Torsten Edklinth fora durante vários anos um caloroso defensor da implantação de um tribunal constitucional. Se fosse assim, ele poderia lidar de uma forma muito simples com a informação repassada por Dragan Armanskij, dando um depoimento à polícia e comunicando os fatos ao tribunal. Desse modo, um processo inexorável seria posto em andamento.

No atual estado de coisas, Torsten Edklinth não possuía competência jurídica para abrir um inquérito preliminar.

Ele suspirou e serviu-se de uma pitada de rape.

Caso as informações de Dragan Armanskij procedessem, isso significava que alguns ocupantes de cargos superiores da Sapo haviam fechado os olhos para uma série de delitos graves contra uma mulher sueca, e mais tarde tinham mandado internar sua filha, com bases falsas, num hospital psiquiátrico e, por fim, tinham deixado livre um ex-espião da elite russa, para que ele se dedicasse ao tráfico de armas, de drogas e de mulheres. Torsten Edklinth fez uma careta. Nem queria começar a contar quantas infrações à lei não teriam ocorrido ao longo do caminho. Para não falar no roubo ao domicílio de Mikael Blomkvist, na agressão à advogada de Lisbeth Salander e talvez até — o que Edklinth se negava a acreditar — em cumplicidade no assassinato de Alexander Zalachenko.

Torsten Edklinth não tinha a menor vontade de se envolver numa confusão daquelas. Infelizmente, porém, já fora envolvido desde o instante em que Dragan Armanskij o convidara para jantar.

A questão agora era descobrir uma maneira de administrar a situação. Formalmente, a resposta era simples. Se o relato de Armanskij fosse verídico, as liberdades e os direitos constitucionais de Lisbeth Salander tinham sido completamente desrespeitados. O mais provável era topar com um autêntico ninho de cobras, considerando-se que órgãos políticos ou autoridades com poder de decisão podiam ter sido influenciados em suas sentenças, o que punha o dedo no cerne das funções da Proteção à Constituição. Torsten Edklinth era um policial com conhecimento de um crime, e seu dever, portanto, seria alertar um procurador. De modo mais informal, a resposta não era tão simples. Era, por sinal, bastante complicada.

A inspetora Rosa Figuerola, apesar de seu nome incomum, nascera na Dalecarlia, numa família estabelecida na Suécia desde os tempos de Gustavo Vasa. Era uma dessas mulheres em que as pessoas reparam, e por diversos motivos. Tinha trinta e seis anos, olhos azuis, e não media menos de um metro e oitenta e quatro. Era bonita, e seu jeito de se vestir a tornava ainda mais atraente.

E tinha o corpo excepcionalmente bem definido.

Na adolescência, praticara atletismo de alto nível e, aos dezessete anos, por pouco não se classificara pela equipe sueca para os Jogos Olímpicos. De lá para cá, abandonara o atletismo, mas malhava cinco vezes por semana feito uma condenada numa academia. Malhava com tanta freqüência que as endorfinas funcionavam como droga, o que a deixava em abstinência quando interrompia as atividades físicas. Praticava corrida e musculação, jogava tênis, lutava caratê e, além disso, já se dedicara ao bodybuilding por dez anos. Contudo, reduzira consideravelmente essa variante extrema do culto ao corpo dois anos antes, numa época em que ficava duas horas por dia puxando ferro. Atualmente, cumpria apenas uma meia horinha diária, mas sua forma física era tal, e seu corpo tão musculoso, que alguns colegas pouco simpáticos a chamavam de Sr. Figuerola. Quando vestia regatas ou vestidos de verão, ninguém conseguia não reparar em seus bíceps e deltóides.

Sua constituição física, portanto, incomodava vários de seus colegas homens, e também o fato de seu papel não ser meramente decorativo. Concluíra o secundário com as melhores notas e aos vinte anos ingressara na Escola de Polícia, trabalhando depois por nove anos na polícia de Uppsala, enquanto em seu tempo livre estudava direito. Só por brincadeira, prestara exame para Ciências Políticas, e também passara. Não tinha o menor problema em memorizar e analisar dados. Raramente lia romances policiais ou qualquer literatura de lazer. Em compensação, mergulhava com o maior interesse nos assuntos mais variados, do direito internacional à história da Antigüidade.

Na polícia, deixara de ser agente — o que representara uma perda imensa para a segurança das ruas de Uppsala — para assumir o cargo de inspetora criminal, primeiro na Brigada Criminal, depois na brigada especializada em crimes financeiros. Em 2000, solicitara um posto na Polícia de Segurança de Uppsala e, em 2001, fora transferida para Estocolmo. Começara trabalhando na contra-espionagem, mas fora quase imediatamente chamada para a Proteção à Constituição por Torsten Edklinth, que conhecia o pai de Rosa Figuerola e acompanhara a carreira dela ao longo dos anos.

Quando Edklinth finalmente concluiu que precisava agir com rapidez a respeito da informação fornecida por Dragan Armanskij, refletiu um momento, e então pegou o telefone e convocou Rosa Figuerola para sua sala. Como ainda não fazia três anos que ela trabalhava na Proteção à Constituição, Figuerola ainda estava mais próxima de uma autêntica policial que de uma burocrata escaldada.

Naquele dia, usava uma calça jeans justa, sandálias de saltinho turquesa e uma jaqueta azul-marinho.

— No momento, você está trabalhando em quê? — perguntou Edklinth cumprimentando-a, para então convidá-la a sentar-se.

— Estamos investigando o assalto àquela mercearia de Sunne, sabe, que aconteceu há duas semanas.

Certamente não era papel da Sapo se encarregar de assaltos a mercearias. Esse tipo de trabalho de base cabia exclusivamente à polícia comum. Rosa Figuerola coordenava, na Proteção à Constituição, uma área com cinco colaboradores que lidava com análise de criminalidade política. Sua ferramenta mais importante era um certo número de computadores em rede com o arquivo dos incidentes relatados pela polícia comum. Praticamente todos os depoimentos dados à polícia, em qualquer ponto da Suécia, passavam pelos computadores chefiados por Rosa Figuerola. Esses computadores continham um software que rastreava automaticamente todos os relatórios policiais e era programado para reagir a trezentas e dez palavras específicas, tais como turco, skinhead, suástica, imigrante, anarquista, saudação hitleriana, nazista, nacional-democrata, traidor da pátria, puta judia ou muçulmano. Assim que uma palavra desse tipo aparecia num relatório policial, o computador dava o alerta e o relatório em questão era baixado e examinado de perto. Caso o contexto justificasse, era possível pedir acesso ao inquérito preliminar e aprofundar as investigações.

Uma das tarefas da Proteção à Constituição era publicar anualmente um relatório intitulado Ameaças à segurança de Estado, que constituía no único levantamento estatístico confiável sobre criminalidade política. Essa estatística baseava-se exclusivamente nos depoimentos colhidos nas delegacias locais. No caso do assalto à mercearia de Sunne, o software reagira a três palavras-chave — imigrante, dragona e turco. Dois jovens, usando máscaras e armados com uma pistola, tinham limpado a mercearia, de propriedade de um imigrante. Levaram a quantia de 2780 coroas e um pacote de cigarros. Um dos delinqüentes usava uma jaqueta de couro com dragonas representando a bandeira sueca. O outro bandido tinha gritado várias vezes "seu turco de merda" para o proprietário da loja e o obrigara a se deitar no chão.

Era o que bastava para a equipe de Figuerola acessar o inquérito preliminar com o objetivo de descobrir se os ladrões estavam mancomunados com as gangues nazistas do Vármland, e nesse caso, se o assalto poderia ser considerado crime racial, já que um dos ladrões se expressara nesse sentido. Conforme o caso, o assalto poderia constar em estatísticas futuras, que mais tarde seriam analisadas e lançadas na estatística européia que os escritórios da União Européia de Viena preparavam todos os anos. Poderia também acontecer de os ladrões serem escoteiros que tinham comprado uma jaqueta com a bandeira sueca e que não passasse de mero acaso o proprietário da loja ser um imigrante e a palavra "turco" ter sido pronunciada. Se assim fosse, a área de Figuerola apagaria aquele assalto das estatísticas.

— Tenho uma missão arriscada para você — disse Torsten Edklinth.

— Ah, é? — fez Rosa Figuerola.

— Um serviço que pode te jogar no mais profundo descrédito ou até afundar sua carreira.

— Entendo.

— Mas se você for bem-sucedida e as coisas acontecerem do jeito certo, pode significar um passo enorme na sua carreira. Pretendo transferir você para a unidade de intervenção da Proteção à Constituição.

— Lamento informar, mas a Proteção à Constituição não tem unidade de intervenção.

— Tem, sim — disse Torsten Edklinth. — Agora tem. Eu criei essa unidade hoje de manhã. Por enquanto, conta com uma só pessoa. Você.

Rosa Figuerola pareceu hesitar.

—A tarefa da Proteção à Constituição é proteger a Constituição de ameaças internas, o que, grosso modo, quer dizer nazistas e anarquistas. Mas o que a gente faz se a ameaça à Constituição vier da nossa própria organização?

Torsten Edklinth passou a meia hora seguinte contando em detalhe a história que Dragan Armanskij lhe relatara na noite anterior.

— Quem é a fonte dessas informações? — perguntou Rosa Figuerola.

— Por enquanto não tem a menor importância. Concentre-se na informação que temos.

— O que eu quero saber é se você confia nessa fonte.

— Conheço essa fonte há muitos anos e considero-a extremamente confiável.

— Isso tudo é simplesmente... bem, não sei. Se eu chamar de "inverossímil", vai ser pouco.

Edklinth meneou a cabeça.

— Como um romance de espionagem — disse ele.

— Bem, e o que você quer de mim?

— A partir de agora, está desligada de todas as suas demais missões. Agora você só tem uma: descobrir até que ponto essa história é verdadeira. Ou você confirma, ou rejeita essas afirmações. Preste contas diretamente para mim, e para mais ninguém.

— Meu Deus — disse Rosa Figuerola. —Agora entendo o que você quis dizer quando avisou que eu poderia me queimar.

— E. Mas se for verdade... se uma parte mínima dessas informações for verdade, estaremos diante de uma crise constitucional que vamos ter de administrar.

— Por onde eu começo? E como?

— Comece pelo mais simples. Leia o tal relatório que o Gunnar Bjõrck escreveu em 1991. Em seguida, identifique o pessoal que estaria vigiando o Mikael Blomkvist. De acordo com a minha fonte, o proprietário do carro é um tal de Gõran Mârtensson, um policial de quarenta anos que mora na Vittangi-gatan, em Vàllingby. Depois disso, identifique o outro cara que aparece nas fotos tiradas pelo fotógrafo do Mikael Blomkvist. O mais jovem, este loiro aqui.

— Certo.

— Depois, levante o passado do Evert Gullberg. Nunca ouvi falar nesse sujeito, mas, pelo que diz minha fonte, ele necessariamente tem uma ligação com a Polícia de Segurança.

— O que significaria que alguém daqui teria encomendado o assassinato de um espião a um velho de setenta e oito anos. Não acredito.

— Mesmo assim, verifique. E sua investigação deve ser sigilosa. Antes de tomar qualquer atitude, quero ser informado. Não quero nenhum furo.

— Você está me pedindo uma investigação gigantesca. Como é que vou fazer tudo isso sozinha?

— Você não vai fazer sozinha. Só vai cuidar dessa primeira investigação. Se me disser que não descobriu nada, fica por isso mesmo. Se descobrir qualquer coisa suspeita, aí a gente vê.

Rosa Figuerola passou o intervalo do almoço puxando ferro na academia do Palácio da Polícia. Seu almoço propriamente dito consistia num café preto e num sanduíche de almôndegas com salada de beterraba, que ela foi comer em sua sala. Fechou a porta, abriu espaço na mesa e começou a ler o relatório de Gunnar Bjôrck enquanto comia o sanduíche.

Leu também o anexo com a correspondência entre Bjõrck e o Dr. Peter Teleborian. Anotou todos os nomes e fatos do relatório que seriam objeto de investigação. Ao fim de duas horas, levantou-se e foi até a máquina buscar mais um café. Ao sair da sala, trancou a porta, seguindo um dos procedimentos rotineiros da Sapo.

Primeiro, conferiu o número do cadastro. Ligou para o arquivista, que confirmou não existir nenhum relatório com aquele número. Segundo, consultou os arquivos da imprensa, o que foi mais proveitoso. Os dois jornais vespertinos e um matutino mencionavam uma pessoa gravemente ferida no incêndio de um carro na Lundagatan naquele dia de 1991. A vítima era um homem de meia-idade cujo nome não era citado. Um dos vespertinos publicava o relato de uma testemunha dizendo que o incêndio fora provocado por uma garota. Seria, portanto, o famoso coquetel Molotov que Lisbeth Salan-der teria jogado num agente russo chamado Zalachenko. Em todo caso, o incidente parecia ter ocorrido de fato.

Gunnar Bjòrck, autor do relatório, era um indivíduo de carne e osso conhecido, com poder de decisão e um alto cargo na Brigada dos Estrangeiros. Ele estava de licença médica, quando, infelizmente, se suicidara.

O departamento pessoal, contudo, não podia dizer nada sobre as atividades de Gunnar Bjòrck em 1991. Eram informações sigilosas até para os colaboradores da Sapo. Tudo muito normal.

Foi fácil verificar que Lisbeth Salander morava na Lundagatan em 1991 e que passara os dois anos seguintes na ala de psiquiatria infantil da clínica Sankt Stefan. Pelo menos até aí, a realidade não parecia contradizer o relatório.

Peter Teleborian era um psiquiatra conhecido, com freqüentes aparições na tevê. Trabalhara na Sankt Stefan em 1991, sendo hoje em dia seu médico-chefe.

Rosa Figuerola refletiu demoradamente no significado daquele relatório. Depois, ligou para o chefe-adjunto do departamento pessoal.

— Tenho uma pergunta cabeluda para lhe fazer — ela disse.

— Qual?

— Estamos com um caso de análise aqui na Proteção à Constituição. Trata-se de avaliar a credibilidade de uma pessoa e sua saúde psíquica. Eu precisaria consultar um psiquiatra, ou algum outro especialista habilitado em lidar com informações consideradas sigilosas. Me falaram no doutor Peter Teleborian e eu queria saber se posso recorrer a ele.

A resposta custou um pouco a chegar.

— O doutor Peter Teleborian atuou como consultor externo da Sapo em algumas ocasiões. Ele está autorizado e, em termos gerais, você pode conversar com ele sobre informações sigilosas. Mas antes de entrar em contato com ele, você vai precisar seguir alguns procedimentos administrativos. O seu chefe tem que dar o aval e entrar com um pedido formal para você poder consultar o Teleborian.

O coração de Rosa Figuerola pôs-se a bater mais depressa. Ela acabava de obter a confirmação de algo que pouquíssima gente devia saber. Peter Teleborian já fora ligado à Sapo. O que reforçava a credibilidade do relatório.

Ela abandonou um pouco aquele ponto e passou para outros aspectos do dossiê que Torsten Edklinth lhe passara. Examinou as duas pessoas das fotos tiradas por Christer Malm, que teriam seguido Mikael Blomkvist depois de ele sair do Café Copacabana em 1º. de maio.


Consultou o cadastro de emplacamentos e constatou que Gõran Mârtensson existia de fato e era proprietário de um Volvo cinza com a placa mencionada. Em seguida, o departamento pessoal da Sapo confirmou que ele era um de seus funcionários. Aquele era o controle mais elementar que ela poderia fazer, e essa informação também parecia correta. Seu coração bateu um pouco mais rápido.

Gõran Mártensson trabalhava no serviço de Proteção à Pessoa. Era guarda-costas. Fazia parte do grupo de colaboradores que em diversas ocasiões respondera pela segurança do primeiro-ministro. Havia algumas semanas, porém, estava temporariamente locado na contra-espionagem. Sua licença tivera início em 10 de abril, poucos dias depois de Alexander Zalachenko e Lisbeth Salander terem dado entrada no Hospital Sahlgrenska, mas transferências desse tipo eram bastante comuns, caso faltasse pessoal para um caso urgente.

Rosa Figuerola ligou em seguida para o chefe-adjunto da contra-espionagem, um homem que ela conhecia pessoalmente e para quem trabalhara durante sua breve passagem pelo departamento. Perguntou se Gõran Mártensson estava trabalhando num caso importante ou se poderia ficar à disposição da Proteção à Constituição para uma investigação.

O chefe-adjunto da contra-espionagem ficou perplexo. Ela devia ter sido mal informada. Gõran Mártensson, da Proteção à Pessoa, nunca trabalhara na contraespionagem. Sinto muito.

Rosa Figuerola colocou o fone no gancho e ficou dois minutos contemplando o aparelho. Na Proteção à Pessoa, achavam que Mártensson estava locado na contra-espionagem. Na contra-espionagem, ninguém solicitara seus serviços. Transferências desse tipo eram concedidas e administradas pelo secretário-geral. Estendeu a mão para telefonar para o secretário-geral, mas mudou de idéia. Se a Proteção à Pessoa cedera Mártensson, o secretário-geral necessariamente dera o aval. Mártensson, porém, não se encontrava na contra-espionagem. O que devia ser do conhecimento do secretário-geral. E se Mártensson estava à disposição de um departamento que vinha seguindo Mikael Blomkvist, o secretário-geral também devia saber disso.

Torsten Edklinth lhe pedira para não deixar furos. Fazer essa pergunta ao secretário-geral seria como jogar um enorme paralelepípedo numa poça d'água.


Erika Berger sentou-se à sua mesa no aquário, pouco depois das dez e meia da manhã de segunda-feira, e suspirou profundamente. Estava bem precisada da xícara de café que acabava de trazer da sala dos funcionários. Passara as primeiras horas do seu dia de trabalho em duas reuniões. A primeira, uma reunião de quinze minutos em que o assistente de redação Peter Fredriksson apresentara as principais linhas de trabalho do dia. Considerando-se sua falta de confiança em Lukas Holm, vinha sendo cada vez mais obrigada a se fiar no julgamento de Fredriksson.

A segunda reunião, que se estendera por mais de uma hora, fora com o presidente do conselho administrativo, Magnus Borgsjõ, o diretor financeiro do SMP, Christer Sellberg, e o responsável pelo orçamento, Ulf Flodin. Tinham passado em revista a baixa do mercado de anúncios e a queda das vendas por exemplar. O chefe de orçamento e o diretor financeiro se uniam para pedir medidas que reduzissem o déficit do jornal.

— Este ano, só fechamos o primeiro trimestre graças a uma pequena alta do mercado de anúncios e à aposentadoria de dois funcionários no Ano--Novo. Os dois cargos tinham ficado vagos, dissera Ulf Flodin. Vamos, sem dúvida, conseguir fechar o atual trimestre com um déficit insignificante. Mas, ao que tudo indica, os jornais gratuitos Metro e Stockholm City continuam beliscando o mercado de anúncios de Estocolmo. Nosso prognóstico é que o terceiro trimestre do ano vai registrar um déficit acentuado.

— E qual será nossa resposta? — perguntara Borgsjõ.

— A única solução lógica seria realizar cortes radicais. Não tivemos nenhuma demissão desde 2002. Calculo que, antes do final do ano, pelo menos dez cargos precisem ser eliminados.

— Quais? — perguntara Erika Berger.

— Vamos ter que cortar a gordura e escolher um cargo aqui, outro ali. Esportes dispõe no momento de seis cargos e meio. A idéia é conseguir reduzir para cinco cargos de período integral.

— Se entendi direito, o pessoal de Esportes já está sobrecarregado. Isso significaria então uma redução na cobertura dos eventos esportivos.

Flodin dera de ombros.

— Se tiver alguma idéia melhor, sou todo ouvidos.

— Não tenho nenhuma idéia melhor, mas o princípio é que, se reduzirmos o pessoa, vamos ter que fazer um jornal mais fino, e se fizermos um jornal mais fino o número de leitores vai diminuir e, conseqüentemente, o número de anunciantes também.

— O eterno círculo vicioso — dissera o diretor financeiro, Sellberg.

— Fui contratada para inverter essa tendência, e isso significa apostar todas as minhas fichas na ofensiva com o objetivo de introduzir mudanças no jornal e torná-lo mais atraente para os leitores. Mas não posso fazer isso cortando pessoal.

Ela se voltara para Borgsjõ.

— O jornal pode sangrar durante quanto tempo? Que déficit podemos agüentar antes de chegarmos a um ponto sem volta?

Borgsjõ fizera um muxoxo.

— Desde o início dos anos 1990, o SMP vem mordendo boa parte dos seus fundos. Nossa carteira de ações perdeu quase trinta por cento do valor nos últimos dez anos. Muitos desses fundos foram usados para investimentos na área de informática. Ou seja, realmente despesas vultosas.

— Reparei que o SMP desenvolveu seu próprio programa de textos, essa coisa chamada AXT. Quanto custou?

— Em torno de cinco milhões de coroas.

— Para mim, é uma lógica difícil de entender. Existem programas baratos no mercado. Por que o SMP fez questão de desenvolver seu próprio software?

— Erika... eu bem que gostaria que alguém me explicasse. Mas foi o ex--diretor de tecnologia que nos convenceu a fazer isso. Ele dizia que, a longo prazo, acabaríamos ganhando e que, além disso, o SMP poderia vender a licença do software para outros jornais.

— E houve quem comprasse?

— Sim, de fato, um jornal da Noruega.

— Uau, que maravilha! — dissera Erika secamente. — Próxima pergunta: estamos hoje com computadores de cinco, seis anos...

— Está fora de cogitação investir em computadores novos este ano — dissera Flodin.

A discussão prosseguira. Erika percebera muito bem que Flodin e Sellberg ignoravam suas observações. Para eles, o único argumento válido eram os cortes, o que era compreensível para um chefe de orçamento e um diretor financeiro, mas inaceitável para uma nova redatora-chefe. O que a irritara era eles rejeitarem sistematicamente seus argumentos com sorrisos amáveis que faziam com que ela se sentisse uma colegial sendo sabatinada na frente da turma. Sem que uma só palavra inconveniente fosse pronunciada, a atitude deles em relação a ela era tão clássica que chegava a ser cômica. Não canse sua cabecinha com esses assuntos complicados, minha criança.

Borgsjõ não fora de grande auxílio. Mantivera-se na expectativa e deixara os demais participantes dizerem tudo o que tinham para dizer, embora ela não sentisse a mesma atitude aviltante da parte dele.

Suspirou, abriu o celular e verificou seu correio eletrônico. Recebera dezenove e-mails. Quatro eram spams de alguém que queria: 1) que ela comprasse Viagra, 2) propor-lhe um cibersexo com The sexiest Lolitas on the net por apenas quatro dólares por minuto, 3) fazer uma oferta um pouco mais explícita de Animal sex, the juiciest horse fuck in the universe, além de 4) propor uma assinatura da newsletter Mode.nu, editada por uma empresa pirata que inundava o mercado com ofertas promocionais e não parava de lhe mandar aquele lixo, ignorando seus reiterados pedidos. Sete e-mails eram pretensas cartas da Nigéria, enviadas pela viúva do antigo diretor do Banco Nacional de Abu Dhabi, que prometia lhe remeter somas fantásticas desde que ela pudesse investir um pequeno capital no intuito de estabelecer uma confiança recíproca, e outras excentricidades do gênero.

Os demais e-mails eram a pauta da manhã, a pauta do meio-dia, três e-mails de Peter Fredriksson, o assistente de redação, indicando as correções do editorial, um e-mail do seu contador pessoal marcando uma reunião para fazerem os acertos decorrentes da alteração do seu salário com a mudança da Millennium para o SMP, e um e-mail de seu dentista confirmando sua consulta trimestral. Anotou a consulta na agenda eletrônica e percebeu imediatamente que teria de transferi-la, pois já tinha na mesma data uma importante reunião de redação.

Por fim, abriu o último e-mail, enviado por centralred@smpost.se, com o assunto [aos cuidados da redatora-chefe]. Largou, devagar, a xícara de café.


[PUTA NOJENTA! QUEM VOCÊ ACHA QUE É, SUA CRETINA, NÃO PENSE QUE PODE IR CHEGANDO ASSIM COM SEU NARIZ EMPINADO. VAI TOMAR UMA CHAVE DE FENDA NA BUNDA, SUA PUTA NOJENTA! MELHOR VOCÊ SE MANDAR BEM RAPIDINHO.]


Erika Berger ergueu os olhos e procurou o chefe de Atualidades, Lukas Holm. Ele não estava à sua mesa e ela não conseguia avistá-lo em nenhum lugar da redação. Conferiu o remetente, pegou o telefone e ligou para Peter Fleming, o diretor de tecnologia do SMP.

— Oi. Quem é o usuário do endereço centralred@smpost.se?

— Ninguém. Não temos esse endereço aqui.

— Pois acabo de receber um e-mail desse endereço.

— Foi forjado. Veio com algum vírus?

— Não. Pelo menos o antivírus não detectou nada.

— Certo. Esse endereço não existe. Mas é muito fácil criar um endereço com jeito de autêntico. Existem sites na rede que transmitem esse tipo de e-mail.

— Há como descobrir a origem dele?

— É quase impossível, mesmo que a pessoa seja idiota o bastante para ter mandado do seu computador pessoal. Pode-se eventualmente seguir a pista do número do IP até um servidor, mas se ele usou uma conta aberta no hotmail, por exemplo, a pista acaba aí.

Erika agradeceu a informação e em seguida refletiu por alguns instantes. Não era a primeira vez que recebia uma mensagem com ameaças ou com o recado de algum maluco. Esse e-mail se referia claramente a seu novo cargo de redatora-chefe no SMP. Ficou imaginando se seria um doido que a identificara no funeral de Morander ou se o remetente trabalhava na empresa.

Rosa Figuerola refletia exaustivamente sobre a forma de agir a respeito de Evert Gullberg. Uma das vantagens de trabalhar na Proteção à Constituição era ela ter legitimidade para consultar praticamente toda investigação policial sueca ligada a um crime racial ou político. Constatou que Alexander Zalachenko era um imigrante, sendo a missão dela, entre outras coisas, examinar a violência exercida contra pessoas nascidas no exterior e determinar possíveis motivações racistas. Estava, portanto, autorizada a ler a investigação sobre o assassinato de Zalachenko para definir se Evert Gullberg estava ligado a alguma organização racista ou expressara opiniões racistas no momento do assassinato. Solicitou a investigação e leu-a atentamente. Deparou com cartas enviadas ao ministro da Justiça e constatou que, além de alguns ataques pessoais degradantes e de caráter revanchista, havia nelas também as expressões "capacho dos turcos" e "traidor da pátria".

A essa altura, já eram cinco da tarde. Rosa Figuerola trancou todo o material no cofre-forte de sua sala, pegou a caneca de café, desligou o computador e bateu o ponto para sair. Andou a passos rápidos até uma academia na Praça de Sankt Erik e dedicou a hora seguinte a um treino soft.

Em seguida, voltou a pé para o seu quarto e sala na Pontonjârgatan, tomou um banho e ingeriu um jantar tardio mas dieteticamente correto. Considerou a possibilidade de ligar para Daniel Mogren, que morava a três prédios dali, na mesma rua. Daniel era marceneiro e bodybuilder e, de três anos para cá, seu colega de treino regular. Nos últimos meses tinham também se encontrado para alguns momentos eróticos entre amigos.

Fazer amor era quase tão satisfatório quanto uma sessão intensa na academia, mas agora que já tinha passado bastante dos trinta e se aproximava dos quarenta, Rosa Figuerola começava a pensar que deveria se interessar por um homem de forma mais permanente e por uma situação mais estável. Quem sabe até ter filhos. Mas não com Daniel Mogren.

Depois de hesitar um pouco, concluiu que, na verdade, não estava querendo ver ninguém. Foi se deitar com um livro sobre história da Antigüidade. Adormeceu pouco antes da meia-noite.


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