22. SEGUNDA-FEIRA 6 DE JUNHO


Erika Berger acordou às seis da manhã na segunda-feira. Embora não tivesse dormido mais que uma hora, sentia-se maravilhosamente repousada. Imaginou que fosse uma espécie de reação física. Pela primeira vez desde vários meses, pôs o tênis de corrida e foi até o pontão da barca a vapor num ritmo puxado. Quer dizer, correu com energia durante uns cem metros, até o seu calcanhar machucado começar a doer e obrigá-la a reduzir o passo e a continuar num ritmo mais calmo. A cada passo, experimentava prazer na dor do calcanhar.

Sentia-se literalmente renascer. Era como se a Foice tivesse passado em frente à sua porta, mudado de idéia no último minuto e entrado na casa vizinha. Não conseguia sequer entender que sorte incrível tinha sido Peter Fredriksson ficar com as fotos durante quatro dias sem fazer nada. Se ele as escaneara, era sinal de que sua mente de fato planejava algo, só que ele ainda não tomara nenhuma atitude.

Seja como for, daria um presente de Natal bem caro e surpreendente para Susanne Linder no fim do ano. Iria procurar alguma coisa realmente original para ela.

As sete e meia, deixou Lars dormindo, entrou na sua BMW e foi para a redação do SMP em Norrtull. Deixou o carro na garagem, pegou o elevador até a redação e se instalou no seu aquário. Sua primeira providência foi chamar um faxineiro.

— O Peter Fredriksson se demitiu do SMP — disse ela. — Encontre uma caixa, recolha todos os objetos pessoais da sala dele e cuide para que sejam levados à casa dele agora de manhã.

Contemplou o pólo Atualidades. Lukas Holm acabava de chegar. Ele cruzou o olhar com o dela e dirigiu-lhe um aceno de cabeça.

Ela retribuiu.

Holm era um babaca nojento, mas depois da briga de poucas semanas antes ele tinha parado de criar caso. Se continuasse com a mesma atitude positiva, talvez sobrevivesse como chefe de Atualidades. Talvez.

Sentiu que ia conseguir dar uma guinada.

Às 8h45, viu Borgsjo saindo do elevador e desaparecendo na escada interna em direção à sua sala, no andar de cima. Preciso falar com ele ainda hoje.

Foi buscar café e então dedicou algum tempo à pauta da manhã. Era uma manhã pobre em notícias. O único texto interessante era uma notinha bem neutra informando que Lisbeth Salander tinha sido transferida para a casa de detenção de Gõteborg no domingo. Deu sinal verde para a matéria e enviou para Lucas Holm por e-mail.

Às 8h59, Borgsjo ligou.

— Berger. Venha imediatamente à minha sala. E desligou.

Magnus Borgsjo estava lívido quando Erika Berger abriu a porta da sala. Estava de pé, virou-se para ela e então jogou uma pilha de papéis em cima da mesa.

— Que porcaria é essa? — berrou.

O coração de Erika Berger se desmanchou dentro do peito. Uma rápida olhada na primeira página foi suficiente para ela entender o que Borgsjo tinha encontrado na correspondência da manhã.

Fredriksson não tivera tempo de cuidar das fotos. Mas tivera tempo de mandar o artigo de Henry Cortez para Borgsjo.

Ela se sentou calmamente diante dele.

— É um texto escrito pelo jornalista Henry Cortez que a revista Millen-nium planejava publicar na edição da semana passada.

Borgsjõ parecia desesperado.

— Mas que porra de jeito de agir é esse? Eu te trouxe para o SMP e a primeira coisa que você faz é manobrar pelas minhas costas. Quem é você alguma puta de merda da mídia?

Os olhos de Erika Berger se estreitaram e ela ficou gelada. Estava saturada da palavra "puta".

— Você acha mesmo que alguém vai dar importância a isso? Acha que pode me derrubar inventando besteiras? E por que me mandar isso anonimamente, puta que pariu?

— Não foi assim que as coisas aconteceram, Borgsjõ.

— Então como foi?

— Quem te mandou esse texto anonimamente foi o Peter Fredriksson. Eu o despedi ontem do SMP.

— O que você está dizendo?

— É uma longa história. Mas faz mais de duas semanas que estou enrolando com esse texto, sem saber como tocar no assunto com você.

— Você é que está por trás desse texto.

— Não, não sou. O Henry Cortez investigou e escreveu isso. Eu não sabia de nada.

— E quer que eu acredite nisso?

— Quando meus colegas da Millennium perceberam que você era mencionado no texto, o Mikael Blomkvist freou a publicação. Ele me chamou e me deu uma cópia. Para me poupar. Essa cópia foi roubada e agora apareceu aqui. A Millennium fazia questão que eu pudesse conversar com você antes que eles publicassem. Isso vai acontecer na edição de agosto.

— Nunca conheci um jornalista tão sem escrúpulos. Essa você ganhou disparado.

— Bem. Já que você leu a reportagem, talvez também tenha dado uma olhada no índice de referências. A versão do Cortez faz sentido para ser publicada. E você sabe disso.

— Isso significa o quê, exatamente?

— Se você ainda estiver no cargo de presidente do conselho administrativo quando a Millennium for para a impressão, vai prejudicar o SMP. Eu já quebrei a cabeça tentando achar uma solução, mas não achei.

— O que você quer dizer com isso?

— Você precisa se demitir.

— Está brincando? Não cometi rigorosamente nenhuma infração à lei

— Magnus, você não está percebendo o alcance dessa revelação. Não me obrigue a convocar o conselho administrativo. Seria doloroso demais.

— Você não vai convocar coisa nenhuma. Seu tempo no SMP acabou.

— Sinto muito. Só o conselho administrativo é que pode me mandar embora. Acho que você vai ter que convocar uma reunião extraordinária. Sugiro que seja hoje à tarde.

Borgsjõ deu a volta na mesa e se colocou tão próximo de Erika que ela sentiu seu hálito.

— Berger... você ainda tem uma chance de sobrevida por aqui. Você vai falar com os seus malditos colegas da Millennium e dar um jeito para esse artigo nunca ser publicado. Se você agir direito, posso considerar a hipótese de esquecer o que você fez.

Erika Berger suspirou.

— Magnus, você não está percebendo que a coisa é séria. Não tenho nenhuma influência no que a Millennium publica ou deixa de publicar. Eu posso falar o quanto quiser, essa história vai vir a público. A única coisa que me interessa é saber que conseqüências isso vai ter para o SMP. Por isso é que você precisa se demitir.

Borgsjõ pôs as mãos no encosto da cadeira e se inclinou na direção de Erika.

— Os seus amiguinhos da Millennium talvez pensem duas vezes se souberem que você vai ser despedida assim que eles tornarem públicas essas asneiras.

Ele se reergueu.

— Estou indo hoje para uma reunião em Norrkõping. — Olhou para ela e acrescentou uma palavra, com ênfase: — Svea-Bygg.

— Ah, é?

— Até a minha volta, amanhã, você vai me deixar um relatório contando que o caso está encerrado. Entendido?

Ele vestiu o paletó. Erika Berger ficou observando-o, olhos semicerrados.

— Conduza esse caso direitinho e talvez você sobreviva no SMP. E agora saia da minha sala.

Ela se levantou, voltou para o aquário e permaneceu uns vinte minutos totalmente imóvel em sua cadeira. Então pegou o telefone e pediu a Lukas Holm que viesse até sua sala. Ele aprendera a lição de seus erros passados e chegou um minuto depois.

— Sente-se.

Lukas Holm ergueu uma sobrancelha e se sentou.

— Bem, o que foi que eu fiz desta vez? — perguntou, irônico.

— Lukas, hoje é o meu último dia de trabalho no SMP. Estou me demitindo neste momento. Vou chamar o vice-presidente e os demais membros do conselho para uma reunião na hora do almoço.

Ele a fitou com genuína surpresa.

— Pretendo indicar você para redator-chefe interino.

— O quê?

— Tudo bem para você?

Lukas Holm se recostou na poltrona e observou Erika Berger.

— Puta merda, mas eu nunca quis ser redator-chefe — disse ele.

— Eu sei. Mas você tem a fibra necessária. E é capaz de passar por cima de muitos cadáveres para conseguir publicar uma boa matéria. Eu só queria que tivesse um pouco mais de bom-senso nessa sua cabeça.

— O que aconteceu?

— Tenho um estilo diferente do seu. Nós dois brigamos o tempo todo sobre a maneira de orientar as matérias e nunca vamos nos entender.

— É, é verdade que a gente nunca vai se entender — disse ele. — Pode ser que o meu estilo é que seja meio ultrapassado.

— Não sei se "ultrapassado" é a palavra certa. Você é fera em Atualidades, mas age como um idiota. Não precisava. O que mais nos dividiu é você ter sustentado o tempo todo que, como editor de Atualidades, não pode deixar que considerações de ordem pessoal influenciem a avaliação das notícias.

De repente, Erika Berger sorriu maldosamente para Lukas Holm. Abriu sua bolsa e pegou o original do artigo sobre Borgsjõ.

— Vamos fazer um teste sobre a sua capacidade de avaliar uma notícia. Estou aqui com um artigo que o Henry Cortez me passou, ele é colaborador da revista Millennium. Decidi, agora de manhã, que vamos pegar esse texto como a matéria principal do dia.

Jogou a pasta no colo de Holm.

— Você é o chefe de Atualidades. Vai ser interessante ver se você partilha a minha opinião.

Lukas Holm abriu a pasta e começou a ler. Já na introdução, seus olhos se arregalaram. Aprumou-se na cadeira e fitou Erika Berger. Em seguida baixou os olhos e leu o texto inteiro, do começo ao fim. Abriu a parte das "referências" e leu atentamente. Levou uns dez minutos. Então foi largando devagar a pasta na mesa.

— Vai ser um puta de um escândalo.

— Eu sei. Por isso é que hoje é o meu último dia de trabalho aqui. A Mülennium pretendia publicar a matéria na edição de junho, mas o Mikael Blomkvist deu uma segurada. Ele me passou o texto para que eu pudesse conversar com o Borgsjõ antes de ser publicado.

— E?

— O Borgsjõ me mandou abafar o caso.

— Entendo. Aí você pensou em publicar no SMP por puro despeito.

— Não. Por despeito, não. É a única solução. Se o SMP publicar a matéria, temos uma chance de escapar dessa confusão com a dignidade intacta. O Borgsjõ precisa sair. Mas isso também significa que eu não posso ficar.

Holm se manteve calado por cerca de dois minutos.

— Puta merda, Berger... Eu não imaginava que você tivesse tanta coragem. Nunca pensei que um dia eu ainda fosse dizer isto, mas se você tem essa audácia toda, francamente, vou lamentar sua saída.

— Você também poderia impedir a publicação do texto, mas se nós dois aprovarmos... Você pretende ir em frente?

— Sim, é claro que vamos publicar. Cedo ou tarde isso vai vir a público.

— Exato.

Lukas Holm se levantou e parou, hesitante, diante da mesa de Erika.

— Vá trabalhar — disse Erika.

Depois que Holm saiu, ela esperou cinco minutos e pegou o telefone para ligar para Malu Eriksson, da Milennium.

— Oi, Malu. O Henry Cortez está por aí?

— Está na sala dele.


— Você pode pedir a ele que venha até sua sala e depois ligar o viva-voz? Precisamos conversar.

Henry Cortez apareceu em quinze segundos.

— O que houve?

— Henry, hoje eu fiz uma coisa amoral.

— Ah, é?

— Dei o seu artigo sobre a Vitavara para o Lukas Holm, o editor de Atualidades aqui do SMP.

— Sim...

— Mandei ele publicar o artigo no SMP de amanhã. Assinado por você. E você vai receber por isso, claro. É só dar o preço.

— Erika... que confusão é essa?

Ela resumiu os acontecimentos das últimas semanas e contou como Peter Fredriksson por pouco não acabara com ela.

— Puta merda! — disse Henry Cortez.

— Eu sei que a matéria é sua, Henry. Mas eu simplesmente não tenho escolha. Você pode nos dar essa força?

Henry Cortez permaneceu calado por alguns segundos.

— Obrigado por ligar, Erika. Tudo bem vocês publicarem a matéria, assinada por mim. Quero dizer, se estiver tudo bem para a Malu.

— Por mim tudo bem — disse Malu.

— Certo — disse Erika. —Vocês poderiam informar o Mikael? Imagino que ele ainda não esteja aí.

— Eu falo com o Mikael — disse Malu Eriksson. — Mas, Erika, isso não significa que a partir de hoje você está desempregada?

Erika começou a rir.

— Resolvi tirar umas férias até o final do ano. Acredite, essas poucas semanas no SMP foram mais que suficientes.

— Não é uma boa idéia começar a fazer planos para as férias — disse Malu.

— Por que não?

— Você poderia dar um pulo aqui na Millenníum hoje à tarde?

— Por quê?

— Preciso de ajuda. Se você quiser ser redatora-chefe, pode começar amanhã de manhã.

-— Malu, a redatora-chefe da Millennium é você. Nem pensar em mudar isso.

— Tudo bem. Então você poderia começar como assistente de redação disse Malu, rindo.

— Você está falando sério?

— Porra, Erika, você me faz tanta falta que eu estou desabando. Aceitei esse emprego na Millennium, entre outras coisas, para ter a oportunidade de trabalhar com você. E aí você pega e vai para outro veículo.

Erika Berger ficou calada durante um minuto. Nem tinha tido tempo de pensar na possibilidade de voltar para a Millennium.

— E eu seria bem-vinda? — ela perguntou, devagar.

— O que você acha? Imagino que para começar a gente faria uma megafesta, organizada por você. E você voltaria exatamente na hora de a gente publicar você sabe o quê.

Erika olhou para o relógio da sua sala. 9h55. Em uma hora, o seu mundo tinha desabado. De repente, sentiu o quanto tinha vontade de voltar a subir a escada da Millennium.

— Tenho umas duas, três coisas a fazer aqui no SMP nas próximas horas. Tudo bem se eu passar aí lá pelas quatro?

Susanne Linder encarou Dragan Armanskij olho no olho enquanto lhe contava detalhadamente o que acontecera à noite. A única coisa que ela omitiu foi sua súbita convicção de que a invasão do computador de Peter Fredriksson era obra de Lisbeth Salander. Absteve-se por dois motivos. Por um lado, achava muito irreal. Por outro, sabia que Dragan Armanskij estava intimamente ligado ao caso Salander junto com Mikael Blomkvist.

Armanskij escutou atentamente. Uma vez concluído o seu relato, Susanne Linder aguardou em silêncio a reação dele.

— O Lars Beckman ligou uma hora atrás — disse ele.

— Ah, é?

— Ele e a Erika Berger vão passar por aqui durante a semana para assinar alguns contratos. Fazem questão de agradecer a Milton Security pela intervenção, e principalmente a sua.

— Entendo. É legal quando os clientes ficam satisfeitos.

— Ele também quer encomendar um armário de segurança para a casa dele. Vamos fechar o kit de alarmes e instalar durante a semana.

— Que bom.

— Ele insiste que a gente cobre pela sua intervenção desse fim de semana.

— Humm.

— Em outras palavras, vai ser uma conta salgada para eles.

— Ahã. Armanskij suspirou.

— Susanne, você está ciente de que o Fredriksson pode ir à polícia dar queixa contra você por uma série de coisas.

Ela fez que sim com a cabeça.

— É claro que ele também seria preso, em grande estilo, mas ele pode achar que vale a pena.

— Não acho que ele tenha colhões para ir à polícia.

— Que seja, mas você agiu contra todas as instruções que eu lhe dei.

— Eu sei — disse Susanne Linder.

— E na sua opinião, como eu deveria reagir?

— Isso só você pode decidir.

— Mas como é que você acha que deveria ser a minha reação?

— O que eu acho não interessa. Você pode me mandar embora.

— É difícil. Não posso me permitir perder um colaborador do seu calibre.

— Obrigada.

— Mas se você me aprontar outra dessas de novo, eu vou ficar muito, muito zangado.

Susanne Linder assentiu com a cabeça.

— O que você fez com o disco rígido?

— Destruí. Prendi o disco num torno hoje de manhã. Ficou reduzido a farelos,

— Certo. E^ntão vamos virar a página.

Erika Berger passou a manhã ligando para os membros do conselho administrativo do SMP. Localizou o vice-presidente na sua casa de campo em l Vaxholm e conseguiu que ele concordasse em pegar o carro e ir o quanto \ antes para a redação. Depois do almoço, reuniu-se um conselho bastante f reduzido. Erika Berger passou uma hora relatando a origem do dossiê Cortez e suas conseqüências.

Como era previsto, assim que ela acabou de falar surgiram propostas de que eles encontrassem uma solução alternativa. Erika explicou que pretendia publicar a matéria no jornal do dia seguinte. Explicou também que aquele era o seu último dia de trabalho e que sua decisão era irrevogável.

Erika fez com que o conselho administrativo aprovasse e registrasse em ata duas decisões. Primeiro, Magnus Borgsjõ seria convidado a deixar vago, imediatamente, seu cargo no conselho e, segundo, Lukas Holm seria nomeado redator-chefe interino. Em seguida, pediu licença para sair da sala e deixou os membros do conselho discutirem a situação entre si.

Às duas da tarde, desceu ao departamento pessoal para firmar um contrato. Depois subiu até a editoria de Cultura e pediu para falar com o chefe, Sebastian Strandlund, e com a jornalista Eva Carlsson.

— Pelo que percebi, a Eva Carlsson é vista como uma jornalista talentosa e competente aqui no Cultura.

— É verdade — disse Strandlund.

— E nas solicitações de verba desses dois últimos anos vocês pediram que a área fosse reforçada com pelo menos mais duas pessoas.

— Sim.

— Eva, levando em conta os e-mails que você recebeu, talvez surjam uns boatos desagradáveis se eu lhe oferecer um cargo fixo. Você está interessada assim mesmo?

— Mas é claro.

— Nesse caso, a minha última decisão aqui no SMP vai ser assinar essa contratação.

— Última?

— E uma longa história. Vou embora hoje. Pediria para vocês guardarem sigilo' por mais uma horinha.

— O que...

— Tenho uma reunião daqui a um minuto.

Erika Berger assinou o contrato e o passou para Eva Carlsson, do outro lado da mesa.

— Boa sorte — disse ela, sorrindo.

— O homem desconhecido e já de uma certa idade que no sábado participou da reunião na sala do Ekstrõm se chama Georg Nystrõm. Ele é delegado — disse Rosa Figuerola, dispondo as fotos sobre a mesa diante de Torsten Edklinth.

— Delegado — resmungou Edklinth.

— O Stefan o identificou ontem à noite. Ele chegou de carro ao apartamento da Artillerigatan.

— O que se sabe sobre ele?

— Ele era da polícia comum e trabalha na Sapo desde 1983. Desde 1996, tem um cargo de confiança como investigador. Ele cuida dos controles internos e da avaliação dos casos arquivados da Sapo.

— Muito bem.

— De sábado para cá, um total de seis pessoas com algum interesse passou por aquela porta. Além de Jonas Sandberg e Georg Nystrõm, Fredrik Clinton está no prédio. De manhã, ele foi para a diálise de ambulância.

— Quem são os outros?

— Um tal de Otto Hallberg. Ele trabalhou na Sapo nos anos 1980, mas na verdade pertence ao estado-maior da Defesa. Atua na Marinha e com informações militares.

— Ahã. Por que será que eu não estou surpreso? Rosa Figuerola mostrou mais uma foto.

— Este aqui ainda não foi identificado. Ele almoçou com o Hallberg. Vamos tentar identificá-lo quando ele voltar para casa hoje à noite.

— Certo.

— Mas o mais interessante é este cara aqui. Colocou outra foto sobre a mesa.

— Esse eu reconheço — disse Edklinth.

— Ele se chama Wadensjõõ.

— Isso. Há uns quinze anos, ele trabalhava para a Brigada Antiterrorista. Um general de escritório. Era um dos candidatos ao cargo de chefe supremo aqui da Casa. Não sei que fim levou.

— Ele se demitiu em 1991. Adivinhe com quem ele almoçou uma hora atrás?

Colocou a última foto sobre a mesa.

— O secretário-geral Albert Shenke e o chefe do orçamento, Gustav Atterbom. Quero esses sujeitos vigiados dia e noite. Quero saber exatamente com quem eles se encontram.

— Impossível. Só tenho quatro homens. E alguém precisa trabalhar na documentação.

Edklinth meneou a cabeça e beliscou, pensativo, o lábio inferior. Passados alguns instantes, voltou a olhar para Rosa Figuerola.

— Precisamos de mais gente — disse ele. — Você acha que poderia contatar discretamente o inspetor Jan Bublanski e perguntar se ele aceitaria jantar comigo hoje, depois do expediente? Lá pelas sete horas, digamos.

Edklinth pegou o telefone e discou um número de cabeça.

— Oi, Armanskij. É o Edklinth. Queria retribuir aquele jantar simpático que você me ofereceu outro dia... Não, eu insisto. Lá pelas sete horas está bem para você?

Lisbeth Salander passou a noite na casa de detenção de Kronoberg, numa cela de mais ou menos quatro metros por quatro. A mobília era bastante modesta. Adormeceu cinco minutos depois de trancarem sua porta e, obedecendo ao fisioterapeuta do Sahlgrenska, acordou cedo na segunda--feira para fazer os exercícios de alongamento recomendados. Depois disso, tomou o café da manhã e ficou sentada em silêncio em seu catre, fitando um ponto à frente.

Às nove e meia, foi levada para uma sala de interrogatório na outra extremidade do corredor. O guarda era um homem idoso, baixinho e careca, de rosto redondo e óculos com armação de tartaruga. Tratou-a com correção e complacência.

Annika Giannini cumprimentou-a gentilmente. Lisbeth ignorou Hans Faste. Depois, encontrou-se pela primeira vez com o procurador Richard Ekstrõm, e passou a meia hora seguinte sentada numa cadeira fitando teimosamente um ponto na parede, pouco acima da cabeça de Ekstrõm. Ng0 pronunciou uma palavra sequer e não moveu nenhum músculo.

Às dez horas, Ekstrõm interrompeu o interrogatório fracassado. Estava irritado por não ter conseguido arrancar dela uma resposta sequer. Pela primeira vez, teve alguma dúvida ao observar Lisbeth Salander. Como é que aquela jovem miudinha, com jeito de boneca, tinha sido capaz de derrubar Magm Lundin e Benny Nieminen em Stallarholmen? O tribunal estaria preparado para aceitar essa versão, mesmo que ele apresentasse provas convincentes?

Ao meio-dia, serviram a Lisbeth um almoço leve, e ela gastou a hora seguinte resolvendo umas equações de cabeça. Concentrou-se no capítulo "Astronomia esférica" de um livro que tinha lido dois anos antes.

Às duas e meia, foi novamente levada para a sala de interrogatório. Dessa vez, o guarda era uma mulher bastante jovem. A sala estava vazia. Ela se sentou numa cadeira e continuou matutando sobre uma equação particularmente árdua.

Passados dez minutos, a porta se abriu.

— Bom dia, Lisbeth — cumprimentou-a cordialmente Peter Teleborian. Ele sorriu. Lisbeth Salander ficou gelada. Os componentes da equação, que ela edificara no ar à sua frente, desabaram no chão. Ela ouviu os números e os signos quicarem e tilintarem como se fossem de fato caquinhos reais.

Peter Teleborian ficou parado, observando-a, por um minuto e então se sentou diante dela. Ela continuou olhando para a parede.

Passado algum tempo, ela moveu os olhos e o encarou.

— Lamento que você esteja passando por essa situação — disse Peter Teleborian. — Vou fazer o possível para tentar te ajudar. Espero que a gente consiga estabelecer uma relação de confiança.

Lisbeth examinava cada centímetro do sujeito sentado diante dela. O cabelo desalinhado. A barba. O pequeno espaço entre os dentes da frente. Os lábios finos. O paletó marrom. A camisa de gola aberta. Escutava sua voz doce e traiçoeiramente amigável.

— Também espero poder ajudar mais do que na última vez que nos encontramos.

Ele colocou um bloco de anotações e uma caneta na mesa à sua frente. Lisbeth baixou os olhos e contemplou a caneta. Um comprido cilindro prateado e pontudo.

Análise das conseqüências.

Refreou o impulso de estender a mão e se apoderar da caneta.

Seu olhar se voltou para o dedo mínimo da mão esquerda de Teleborian percebeu um risco fino e branco no lugar em que, quinze anos antes, ela cravara os dentes e cerrara o maxilar com tanta força que quase cortara o dedo fora. Tinha sido necessário que três enfermeiros se juntassem para segurá-la e abrir à força seu maxilar.

Naquela época, eu era uma menininha apavorada que mal entrara na adolescência. Hoje sou adulta. Posso matar você quando quiser.

Fixou os olhos num ponto da parede atrás de Teleborian, recolheu do chão os números e os símbolos matemáticos que haviam caído e, lentamente, recomeçou a equacioná-los.

O Dr. Peter Teleborian contemplou Lisbeth Salander com uma expressão imperturbável. Não teria se tornado um psiquiatra internacionalmente respeitado se lhe faltassem conhecimentos sobre o ser humano. Possuía uma boa capacidade para ler os sentimentos e os estados de ânimo. Sentiu que uma sombra gelada percorria a sala, mas interpretou-a como um sinal de medo e vergonha da paciente por trás daquela fachada impassível. Entendeu-a como uma indicação positiva de que, apesar de tudo, ela reagia à presença dele. Também estava satisfeito de o comportamento dela não haver mudado. Ela vai sabotar a si mesma no tribunal.

A última medida tomada por Erika Berger no SMP foi sentar-se no aquário e escrever um comunicado dirigido a todos os colaboradores. Estava razoavelmente irritada quando começou e, sem querer, a irritação se transformou em três mil caracteres, através dos quais ela explicava por que se demitira do SMP e emitia sua opinião sobre algumas pessoas. Depois, apagou tudo e recomeçou em tom mais neutro.

Não mencionou Peter Fredriksson. Isso poderia atrair muita atenção sobre ele e fazer com que os verdadeiros motivos de Erika desaparecessem debaixo de manchetes sobre um assédio sexual.

Ela apresentou dois motivos. O mais sério deles era que sua proposta de os dirigentes e proprietários do jornal baixarem seus salários e dividendos havia enfrentado uma sólida resistência da direção. Em vista disso, seria obrigada a começar seu trabalho no SMP fazendo cortes radicais na equipe, o que para ela não só contrariava as perspectivas com que haviam lhe acenado quando aceitara o emprego, mas também constituía uma medida que inviabilizava quaisquer tentativas de mudança a longo prazo e de fortalecimento do jornal

O segundo motivo era a revelação a respeito de Borgsjõ. Ela explicou que recebera a ordem de abafar a matéria, o que era incompatível com a sua posição. Portanto, ela não tinha escolha e precisava deixar a redação. Concluiu dizendo que o problema do SMP não estava na sua equipe, e sim na sua direção.

Releu o comunicado, corrigiu um erro de ortografia e o enviou por e-mail a todos os funcionários do grupo. Mandou com cópia para a Pressenstidning e para o órgão sindical Journalisten. Em seguida, guardou o laptop na mochila e foi falar com Lukas Holm.

— Bom, então tchau — disse ela.

— Tchau, Berger. Foi dureza trabalhar com você. Trocaram um sorriso.

— Tenho um último pedido — disse ela.

— Qual?

— O Johannes Frisk estava trabalhando numa matéria para mim.

— Sim, aliás, ninguém sabe o que ele anda fazendo.

— Dê uma força para ele. O Frisk já avançou bastante e eu vou me manter em contato com ele. Deixe ele terminar essa matéria. Prometo que você vai sair ganhando.

Lukas Holm pareceu hesitar. Então concordou com a cabeça.

Apertaram-se as mãos. Ela deixou a chave da redação na mesa de Holm e desceu até a garagem para pegar sua BMW. Pouco depois das quatro da tarde, estacionou nas proximidades da redação da Millennium.


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