* * *

O celular de Lisbeth Salander tocou quando ela estava na E20, à altura de Glanshammar, perto de Orebro. Ela freou imediatamente o carro e parou no acostamento de emergência. Apanhou o Palm no bolso e ligou-o ao celular.

Há quinze segundos, alguém tinha aberto a porta de seu apartamento. O alarme não estava conectado a uma empresa de segurança. Servia para avisá-la diretamente sobre qualquer intrusão ou tentativa de arrombamento. Passados trinta segundos, o alarme disparava e o intruso tinha a desagradável surpresa de ser aspergido com o conteúdo de uma lata de tinta instalada sobre o que parecia ser uma tomada de derivação atrás da porta. Ela sorriu, excitada, e contou os segundos.

Mikael contemplou frustrado, o painel de alarme ao lado da porta. Francamente, não lhe passara pela cabeça que o apartamento pudesse ter alarme. Viu um contador digital marcando os segundos. Na Millennium, o alarme disparava quando o código de quatro algarismos não era digitado em trinta segundos; em seguida apareciam os grandalhões de uma empresa de segurança.

Seu primeiro impulso foi fechar a porta e deixar rapidamente o local. Mas ficou como paralisado.

Quatro algarismos. Digitar o código certo ao acaso era totalmente impossível. 25,24,23,22... Caraca, sua Píppi Meia... 19, 18...Que código você foi escolher? 15, 14, 13...Sentiu-se tomado pelo pânico.10, 9, 8... Então ergueu a mão e digitou o único número que lhe vinha à mente. 9277. Os algarismos correspondentes às letras WASP nas teclas do celular.

Para grande surpresa de Mikael, a contagem regressiva parou seis segundos antes do fim. Então a sirene piou uma última vez, o contador voltou ao zero e uma luz verde se acendeu.

Lisbeth arregalou os olhos. Achou que não tinha enxergado direito e até sacudiu o computador de mão, num gesto que ela sabia ser totalmente irracional. A contagem regressiva tinha parado seis segundos antes de a bomba de tinta ser acionada. E um instante depois o contador voltou ao zero.

Impossível.

Ninguém conhecia aquele código. E não havia nenhuma empresa de segurança conectada ao alarme, que pudesse desativá-lo. Como?

Não conseguia entender. A polícia? Não. Zala? Negativo.

Discou um número no celular e esperou que a câmera de segurança se conectasse e enviasse imagens de baixa resolução para o celular. A câmera estava escondida dentro do que parecia ser um detector de fumaça no teto, e captava uma imagem por segundo. Ela repassou toda a seqüência desde o começo - o instante zero em que a porta tinha sido aberta e o alarme ativado. Então um sorriso enviesado se abriu lentamente em seu rosto quando viu Mikael Blomkvist executando, por quase trinta segundos, uma pantomima nervosa, até digitar o código e em seguida se apoiar no vão da porta como quem acaba de escapar de um ataque cardíaco.

Esse danado do Super-Blomkvist tinha achado!

Ele estava com as chaves que ela tinha perdido na Lundagatan. Era esperto o bastante para lembrar que Wasp era o seu pseudônimo na internet. E se ele tinha achado o apartamento, talvez também tivesse descoberto que era propriedade da Wasp Enterprises. Então ela viu que ele se deslocava, nervoso, pelo hall e desaparecia rapidamente do campo da objetiva.

Droga. Como é que eu posso ter sido tão previsível? E por que deixei... agora todos os meus segredos estão bem diante dos olhos futriqueiros do Super-Blomkvist.

Depois de um breve instante de reflexão, concluiu que aquilo não tinha mais importância. Ela apagara o disco rígido. Isso é que importava. Talvez até fosse uma vantagem ter sido justamente Mikael Blomkvist a encontrar seu esconderijo. Ele já sabia mais sobre seus segredos do que qualquer outro ser humano. O primeiro aluno da classe faria o que precisava ser feito. Não ia entregá-la, ela pensou. Engatou a primeira e continuou pensativa, seu trajeto para Göteborg.

Malu Eriksson topou com Paolo Roberto na escada da redação da Millennium quando chegou ao trabalho às oito e meia da manhã. Reconheceu-o imediatamente, apresentou-se e o convidou a entrar na redação. Ele estava mancando para valer. Ela sentiu cheiro de café e concluiu que Erika Berger já tinha chegado.

—Olá, Berger. Obrigado por me receber assim de improviso - disse Paolo.

Impressionada, Erika examinou sua coleção de hematomas e gaios no rosto antes de se inclinar e lhe dar um beijo no rosto.

—Você está mesmo com uma cara péssima - disse ela.

—Não é a primeira vez que eu quebro o nariz. O que você fez com o Blomkvist?

—Ele foi para algum lugar brincar de detetive. Como sempre, está incomunicável. A não ser por um e-mail estranho que ele me mandou ontem à noite, estou sem notícias dele desde ontem de manhã. Obrigada por ter... enfim, obrigada.

Ela apontou para o rosto dele. Paolo Roberto riu.

—Quer um café? Você disse que tinha uma coisa para me contar. Malu, você vem com a gente?

Sentaram-se nas confortáveis poltronas da sala de Erika.

—É o idiota do grandalhão loiro com quem eu briguei. Eu disse ao Mikael que o boxe dele não vale nada. Mas o estranho é que ele ficava o tempo todo com os punhos na posição de defesa e se movia em círculos como se fosse um boxeador. Deu-me a impressão de que ele já tinha tido algum tipo de treinamento.

—O Mikael me disse isso ontem ao telefone - observou Malu.

—Eu não conseguia tirar essa imagem da cabeça e, ontem à tarde, quando voltei para casa, sentei no computador e mandei uns e-mails para vários clubes de boxe da Europa. Contei o que tinha acontecido e passei uma descrição detalhada do cara.

—Certo.

—Acho que funcionou.

Pôs diante de Erika e Malu uma foto transmitida por fax. Parecia ter sido tirada durante um treino numa sala de boxe. Dois boxeadores escutavam as instruções de um homem gordo, já não tão jovem, que usava um abrigo de moletom e um chapéu de couro de aba estreita. Em volta do ringue, havia umas seis pessoas escutando. Ao fundo, um homem alto, segurando uma caixa de papelão. Lembrava um skinhead, com a cabeça raspada. Alguém circulara sua imagem com caneta.

—A foto é de dezessete anos atrás. O cara ali no fundo se chama Ronald Niedermann. Tinha dezoito anos nesta foto, de modo que hoje deve estar beirando os trinta e cinco. Bate com o gigante que sequestrou a Miriam Wu. Não posso afirmar que é ele com cem por cento de certeza. A foto é meio antiga e a qualidade está bem ruim. Mas posso dizer que a semelhança é impressionante.

—De onde saiu essa foto?

—Recebi uma resposta do Dynamic, de Hamburgo. De um velho treinador chamado Hans Münster.

—Sim?

—Ronald Niedermann lutou boxe durante um ano nesse clube, no fim da década de 1980. Ou melhor, tentou lutar. Recebi o e-mail hoje de manhã e liguei para o Münster antes de vir para cá. Resumindo o que diz o Münster: Ronald Niedermann é natural de Hamburgo, andava com uma turma de skins nos anos 1980. Tinha um irmão um pouco mais velho, um boxeador realmente talentoso, e foi através desse irmão que ele entrou no clube. O Niedermann tinha uma força colossal e um físico único. Diz o Münster que nunca, nem entre os melhores, tinha visto alguém bater com tanta força. Um dia, mediram o golpe dele e, por assim dizer, ele rebentou o dinamômetro.

—Ao que parece, ele podia ter feito carreira no boxe - disse Erika. Paolo Roberto balançou a cabeça.

—De acordo com o Münster, era impossível mantê-lo dentro de um ringue. Por vários motivos. Primeiro, ele não conseguia aprender a lutar boxe. Ficava parado no lugar, mandando ver swings de amador. Era incrivelmente desajeitado, o que bate com o cara de Nykvarn. Mas o pior é que ele não controlava a própria força. De vez em quando, conseguia acertar um golpe que causava o maior estrago nos coitados dos sparring-partners. Resultado: narizes quebrados e maxilares detonados, ferimentos desnecessários o tempo todo. Eles simplesmente não podiam mantê-lo.

—Ele sabia lutar, sem saber - disse Malu.

—Isso mesmo. Mas o verdadeiro motivo de ele parar de lutar boxe foi um motivo médico.

—Como assim?

—O cara parecia praticamente invulnerável. Podiam chover golpes em cima dele, ele só se sacudia e continuava lutando. Descobriram que ele tinha uma doença extremamente rara, chamada analgesia congênita.

—O quê? Repita...

—Analgesia congênita. Procurei na internet. É uma falha genética que faz com que a transmissão no que eles chamam de fibras C não funcione como deveria. Resumindo, ele não sente dor.

—Nossa! Mas não é esse o sonho de todo boxeador?... Paolo Roberto balançou a cabeça.

—Pelo contrário. É uma doença que põe a vida da pessoa em risco. A maioria dos pacientes morre bastante jovem, lá pelos vinte, vinte e cinco anos. A dor é um sistema de alarme que avisa o cérebro de que algo não vai bem. Se você põe a mão numa chapa incandescente, dói e você tira a mão rapidinho. Quem tem essa doença não se dá conta de nada até sentir cheiro de carne queimada.

Malu e Erika trocaram um olhar.

—Você está falando sério? - perguntou Erika.

—Seriíssimo. O Ronald Niedermann não pode sentir nada, é como se ele estivesse sob poderosa anestesia local vinte e quatro horas por dia. Ele se safou porque tem sorte de ter outra particularidade genética para compensar. É dono de uma constituição física extraordinária, com uma ossatura extremamente forte, que o torna quase invulnerável. A força natural dele é, a bem dizer, única. E ele também deve cicatrizar com facilidade.

—Estou começando a perceber como essa luta que você travou com ele deve ter sido interessante.

—Foi sim. Mas não gostaria de repetir a dose. A única coisa que causou um esboço de reação nele foi quando a Miriam Wu lhe enfiou um pontapé no saco. Ele caiu de joelhos por um segundo... deve haver algum tipo de motricidade ligado a esse tipo de golpe, já que dor ele não deve ter sentido. E pode acreditar, eu, pessoalmente, morria se levasse um golpe desses.

—Mas então como se explica você ter vencido a luta?

—As pessoas que têm essa doença ficam feridas, claro, do mesmíssimo jeito que as pessoas comuns. Tudo bem o Niedermann ter um esqueleto de aço. Mas quando eu bati com a tábua, ele desabou. Concussão cerebral, provavelmente.

Erika olhou para Malu.

—Vou ligar para o Mikael agora mesmo - disse Malu.

Mikael escutou o toque do celular, mas estava tão abalado que só respondeu no quinto sinal.

—É a Malu. O Paolo Roberto acha que identificou o gigante loiro.

—Ótimo - disse Mikael distraidamente.

—Onde você está?

—Difícil de explicar.

—Você está esquisito.

—Desculpe. O que você estava dizendo? Malu resumiu a história de Paolo.

—Está bem - disse Mikael. —Continuem vendo isso e descubra se ele está fichado em algum lugar. Acho que é urgente. Me ligue no celular.

Para espanto de Malu, Mikael encerrou a conversa sem nem se despedir.

Naquele momento, Mikael estava diante de uma janela e admirava a vista magnífica que se estendia da cidade velha até bem longe sobre o Saltsjön. Sentia-se entorpecido, quase chocado. Dera uma volta no apartamento de Lisbeth Salander. Havia uma cozinha à direita, no hall de entrada. Depois uma sala, um escritório, um quarto e, por fim, um quartinho de hóspedes que parecia nunca ter sido usado. O colchão continuava embalado no plástico e não tinha lençóis. Todos os móveis eram novos e impecáveis, vindos diretamente da Ikea.

O problema não era esse.

O que perturbava Mikael era Lisbeth Salander ter comprado um dos ex-apartamentos do bilionário Percy Barnevik, avaliado em vinte e cinco milhões de coroas. Ele devia ter, tranqüilamente, uns trezentos e cinquenta metros quadrados.

Mikael passou pelos corredores desertos e fantasmagóricos e por peças imensas com parquete em marchetaria de diferentes madeiras e papéis de parede decorados de Tricia Guild, do tipo que Erika Berger mencionava com um respeitoso deslumbramento. O apartamento se organizava em torno de uma sala magnífica, com uma lareira que Lisbeth parecia não ter utilizado. Havia uma sacada imensa com uma vista fantástica, lavanderia, sauna, sala de ginástica, despensas e um banheiro com banheira king size. Havia até uma adega de vinhos, vazia, a não ser por uma garrafa de porto Quinta do Noval - Nacional! - de 1976. Mikael custava a imaginar Lisbeth Salander com uma taça de vinho do porto na mão. Um cartão de visitas indicava que se tratava de um presente de boas-vindas da imobiliária.

A cozinha era equipada com tudo que se podia imaginar, em torno de um cintilante fogão francês a gás, um Corradi Château 120 de que Mikael nunca tinha ouvido falar e no qual Lisbeth só fervera água para o chá.

Em compensação, sentiu enorme respeito pela máquina de café expresso que tronava à parte, uma Jura Impressa modelo X7 com resfriador de leite incorporado. A máquina tampouco parecia ter sido usada, já devia estar no apartamento quando Lisbeth o comprara. Mikael sabia que uma Jura era a Rolls-Royce do mundo dos espressos - um aparelho profissional para uso doméstico que custava em torno de setenta mil coroas. Ele próprio possuía uma máquina bem mais modesta, comprada na John Wall, que já custava quase três mil e quinhentas coroas - uma das raras extravagâncias com que se permitira equipar sua cozinha.

Dentro da geladeira havia uma caixa aberta de leite, queijo, manteiga, pasta de peixe e um vidro de pepinos em conserva pela metade. No armário, achou quatro frascos semiconsumidos de vitaminas, saquinhos de chá, café para uma cafeteira absolutamente comum que estava na bancada, dois pães e um pacote de torradas. Na mesa da cozinha, um cesto com maçãs. O congelador abrigava um gratinado de peixe e três tortas de bacon. No lixo, sob a bancada, ao lado do fogão de luxo, encontrou várias caixas vazias de Billys Pan Pizza.

Era tudo absolutamente fora de proporção. Lisbeth tinha surrupiado alguns bilhões e comprara um apartamento onde poderia hospedar a corte real inteirinha. Mas só usava os quatro cômodos que havia mobiliado. Os outros dezoito estavam totalmente vazios.

Mikael encerrou sua turnê pelo escritório. Não havia, em todo o apartamento, uma única planta. Nenhum quadro nas paredes, nem mesmo pôsteres. Não havia tapetes ou guardanapos. Em lugar nenhum viu alguma saladeira decorativa, um castiçal ou um bibelô tipo suvenir que acrescentasse algum calor humano ao ambiente ou que ela pudesse ter guardado por razões sentimentais.

Mikael sentiu seu coração se apertar. Queria a todo custo encontrar Lisbeth Salander e abraçá-la.

No mínimo, ela iria mordê-lo, se ele tentasse. Canalha do Zalachenko!

Depois se sentou à mesa de trabalho e abriu a pasta com o relatório de Björck de 1991. Não leu tudo, só percorreu as páginas tentando resumir.

Abriu o Powerbook com tela de dezessete polegadas, disco rígido de 200 GB e 1000 MB de memória RAM. Vazio. Ela tinha feito uma limpeza. Não era um bom presságio.

Abriu as gavetas e deparou imediatamente com um Colt 1911 Government single action de nove milímetros e um carregador cheio com sete cartuchos. Era o revólver que Lisbeth Salander pegara do jornalista Per-Âke Sandström, mas isso Mikael ignorava. Ainda não tinha chegado na letra S da sua lista de clientes sexuais.

Depois, achou o CD marcado “Bjurman”.

Enfiou-o no iBook e, horrorizado, descobriu o conteúdo do filme. Ficou parado, chocado ao ver Lisbeth Salander sendo maltratada, estuprada e quase assassinada. O filme fora obviamente rodado com uma câmera oculta. Não o assistiu inteiro, mas foi passando, de uma para outra, as seqüências que iam se superando num horror crescente.

Bjurman.

O tutor de Lisbeth Salander a tinha estuprado e ela possuía um testemunho do fato nos mínimos detalhes. Uma data digital revelava que o filme datava de dois anos. Antes de eles se conhecerem. Várias peças do quebra-cabeça se encaixaram no lugar.

Björck e Bjurman com Zalachenko nos anos 1970.

Zalachenko e Lisbeth Salander e um coquetel Molotov artesanal numa caixa de leite no início dos anos 1990.

Então, Bjurman novamente, agora seu tutor depois de Holger Palmgren. O círculo se fechava. O sujeito tinha violentado a sua tutelada. Vira nela uma doente mental indefesa, mas Lisbeth Salander não era indefesa. Era a menina que aos doze anos comprara uma briga com um matador profissional aposentado do GRO e o transformara num inválido.

Lisbeth Salander era a mulher que odiava os homens que não gostavam de mulheres.

Recordou a época em que aprendera a conhecê-la, em Hedestad. Devia ter sido poucos meses depois do estupro. Não lembrava de ela ter dito uma palavra sequer sugerindo o fato. No total, não revelara muita coisa sobre si mesma. Mikael não conseguia nem imaginar o que ela tinha feito com Bjurman - mas, estranhamente, não o tinha matado. Pois nesse caso Bjurman teria morrido dois anos mais cedo. Ela provavelmente tinha bolado um jeito de mantê-lo sob controle, com um objetivo que ele nem imaginava. Então Mikael se deu conta de que estava com o instrumento de controle bem diante de si, sobre a mesa. O CD. Enquanto ela estivesse de posse do CD, Bjurman seria seu escravo impotente. E Bjurman tinha se voltado para o homem que ele julgava ser um aliado. Zalachenko. O pior inimigo de Lisbeth. Seu pai.

Depois disso, um encadeamento de fatos. Bjurman assassinado, e também Dag e Mia.

Mas como...? O que poderia ter transformado Dag Svensson numa ameaça?

E, súbito, Mikael compreendeu o que com toda a certeza tinha acontecido em Enskede.

Logo em seguida, Mikael viu o pedaço de papel, no chão, junto à janela. Lisbeth imprimira uma página, amassara e jogara no chão. Desamassou o papel. Era uma edição on-line do Aftonbladet sobre o sequestro de Miriam Wu.

Mikael não sabia qual o papel de Miriam Wu naquele drama - se é que ela tinha algum papel -, mas ela fora uma das raras amigas de Lisbeth. Talvez a única. Lisbeth lhe dera seu antigo apartamento. E agora ela estava gravemente ferida no hospital. Niedermann e Zalachenko.

Primeiro sua mãe. Depois Miriam Wu. Lisbeth devia estar louca de ódio. Aqueles caras tinham esticado a sua corda. E agora ela estava atrás deles.

Por volta do meio-dia, Dragan Armanskij recebeu uma ligação do centro de reeducação de Ersta. Vinha esperando um telefonema de Holger Palmgren fazia algum tempo, e até evitara entrar em contato com ele. Temia ser obrigado a admitir que Lisbeth Salander era culpada. Agora pelo menos tinha a possibilidade de dizer que existiam dúvidas pertinentes quanto a essa culpa.

—Como andam as coisas? - perguntou Palmgren, pulando as palavras de cortesia.

—Que coisas? - disse Armanskij.

—Sua investigação sobre a Salander.

—E o que o leva a crer que estou fazendo uma investigação desse tipo?

—Não desperdice o meu tempo. Armanskij suspirou.

—Tem razão - disse.

—Quero que venha me ver - disse Palmgren.

—Está bem. Posso passar aí neste fim de semana.

—Não serve. Quero que você venha hoje no final do dia. Temos muito que conversar.

Mikael tinha feito café e preparado sanduíches na cozinha de Lisbeth. Uma parte dele esperava ouvir, de repente, o barulho das chaves dela na fechadura. Mas, claro, era uma esperança vã. O disco rígido vazio do Power-Book mostrava que ela tinha saído da toca de vez. Descobrira seu endereço tarde demais.

Às duas e meia, ainda estava sentado à mesa de trabalho de Lisbeth.

Tinha lido três vezes o relatório do simulacro de investigação de Björck, redigido em forma de memorando para um superior anônimo. A recomendação era simples: que encontrassem um psiquiatra cooperativo que conseguisse internar Salander na psiquiatria infantil por alguns anos. De qualquer modo, a menina era mesmo perturbada, seu comportamento o indicava claramente.

Mikael pretendia debruçar-se mais detidamente sobre Björck e Teleborian num futuro próximo. Essa idéia o deixou satisfeito. Seu celular pôs-se a tocar e atrapalhou o rumo de seus pensamentos.

—Oi de novo. Ê a Malu. Tenho impressão que achei alguma coisa.

—O quê?

—Não existe nenhum Ronald Niedermann no registro civil sueco. Ele não consta na lista telefônica nem no cadastro de contribuintes, de placas de automóveis, em lugar nenhum.

—Percebo.

—Mas escute esta. Em 1998, foi criada uma sociedade anônima, para cujo nome foi feito um registro de marca. Chama-se KAB Import S. A. e o endereço é uma caixa postal em Göteborg. A empresa atua em importação de material eletrônico. O presidente se chama Karl Axel Bodin, ou seja, KAB, e nasceu em 1941.

—Isso não me diz absolutamente nada.

—Nem para mim. O restante da diretoria é composto de um auditor fiscal que atua em algumas dezenas de empresas, para as quais ele faz a contabilidade. Parece ser um desses contadores que trabalham para várias empresas pequenas ao mesmo tempo. Essa, porém, permaneceu inativa praticamente desde o começo.

—Percebo.

—O terceiro membro da diretoria é um tal de R. Niedermann. Consta uma data de nascimento, mas nenhum número de identidade. O que significa que ele não tem registro na Suécia. Nasceu em 18 de janeiro de 1970, e é citado como representante da empresa no mercado alemão.

—Legal, Malu. Legal. Tem algum outro endereço além da caixa postal?

—Não, mas descobri o Karl Axel Bodin. Ele mora no Oeste da Suécia e seu endereço é a caixa postal n- 612 de Gosseberga. Eu verifiquei, parece ser uma fazenda perto de Nossebro, a nordeste de Göteborg.

—O que se sabe sobre ele?

—Há dois anos, ele declarou uma renda de duzentas e sessenta mil coroas. Não tem ficha criminal, segundo aquele nosso amigo da polícia. Possui porte de armas para uma carabina de caça ao alce e uma espingarda de chumbo. Tem dois carros, um Ford e um Saab, ambos modelo antigo. Nada consta na Receita. É solteiro e se declara agricultor.

—Um anônimo sem nenhum caso na Justiça.

Mikael refletiu alguns segundos. Precisava fazer uma escolha.

—Outra coisa. O Dragan Armanskij, da Milton Security, ligou várias vezes para você durante o dia.

—Está bem. Obrigado, Malu. Vou ligar para ele.

—Mikael... Está tudo bem?

—Não, não está tudo bem. Te ligo depois.

Sabia que não estava se comportando como deveria. Como bom cidadão, deveria pegar o telefone e ligar imediatamente para Bublanski. Se fizesse isso, porém, seria obrigado a contar a verdade sobre Lisbeth Salander, ou ficaria numa situação enrolada entre meias-mentiras e partes omitidas. Mas o problema ainda não era esse.

Lisbeth Salander tinha ido atrás de Niedermann e Zalachenko. Mikael não sabia onde ela estava, mas se Malu tinha conseguido achar a caixa postal 612 em Gosseberga, Lisbeth Salander também podia ter conseguido. Era grande, portanto, a possibilidade de ela estar a caminho de Gosseberga. Seria a próxima etapa natural.

Se Mikael ligasse para a polícia e revelasse onde Niedermann estava entocado, seria obrigado a contar que Lisbeth Salander estava provavelmente indo para lá naquele momento. Ela estava sendo procurada por três assassinatos e uso de arma em Stallarholmen. Isso significava que a força de intervenção nacional, ou sabe Deus lá que comando do gênero, seria despachada para prendê-la.

E era provável que Lisbeth Salander resistisse violentamente. Mikael pegou um papel e uma caneta, e fez uma lista do que ele não podia ou não queria contar à polícia. Para começar, escreveu o endereço.

Lisbeth tivera o maior cuidado em constituir um endereço secreto. Ah estavam sua vida e seus segredos. Ele não tinha a intenção de traí-la. Depois, escreveu Bjurman, seguido de um ponto de interrogação.

De relance, olhou para o CD em cima da mesa à sua frente. Bjurman tinha estuprado Lisbeth. Por pouco não a matara, e se aproveitara vergonhosamente de sua condição de tutor. Não havia a menor dúvida sobre isso. Ele tinha de ser denunciado como o canalha que era. Só que nesse ponto surgia um problema ético. Lisbeth não prestara queixa contra ele. Será que iria querer ser jogada à mídia através de uma investigação policial cujos detalhes mais íntimos vazariam em poucas horas? Ela jamais o perdoaria. O CD constituía uma prova, e alguns trechos causariam um belo impacto nos tabloides.

Ponderou alguns instantes e concluiu que, afinal, cabia a Lisbeth decidir como queria agir. Mas, se ele tinha encontrado o apartamento, mais cedo ou mais tarde a polícia conseguiria fazer o mesmo. Guardou o CD num envelope e o enfiou em sua sacola.

Escreveu, em seguida, O relatório de Björck. O relatório de 1991 era considerado segredo de Estado. Esclarecia tudo o que se passara. Citava o nome de Zalachenko, explicava o papel de Björck e, com a lista dos clientes sexuais do computador de Dag Svensson, Björck iria passar momentos difíceis com Bublanski. Graças à correspondência, Peter Teleborian também se veria em maus lençóis.

O arquivo iria direcionar a polícia para Gosseberga... mas pelo menos Mikael teria algumas horas de vantagem.

Por fim, abriu o Word e escreveu, item por item, todos os fatos importantes que havia descoberto nas últimas vinte e quatro horas graças às conversas com Björck e Palmgren e aos documentos encontrados na casa de Lisbeth. A tarefa tomou-lhe uma hora. Gravou o documento num CD, junto com sua própria investigação.

Perguntou-se se deveria dar notícias a Dragan Armanskij, mas resolveu deixar para lá. Já tinha coisas demais para cuidar.

Mikael passou na redação da Millennium e se trancou na sala com Erika Berger.

—Ele se chama Zalachenko - disse Mikael sem nem cumprimentá-la. —É um antigo assassino soviético do serviço de informações. Desertou em 1976 e ganhou um visto de permanência na Suécia, além de um salário pago pela Säpo. Depois do fim da União Soviética, virou gângster em tempo integral, como tantos outros, e opera com tráfico de mulheres, armas e drogas. Erika Berger largou a caneta.

—Certo. Por que é que eu não estou surpresa de ver a KGB metida nessa história?

—Não é a KGB. É o GRO. O serviço de informações militares.

—Então é coisa séria. Mikael meneou a cabeça.

—Você está dizendo que foi ele quem matou o Dag e a Mia?

- Não pessoalmente. Mandou alguém matar. Esse Ronald Niedermann que a Malu descobriu.

—Você tem como provar?

—Grosso modo. Ainda restam umas zonas obscuras. Mas o Bjurman foi morto porque pediu ajuda ao Zalachenko para cuidar da Lisbeth.

Mikael contou o que ele tinha visto no filme que Lisbeth guardava na gaveta da escrivaninha.

—Zalachenko é o pai dela. Bjurman trabalhou oficialmente para a Säpo em meados dos anos 1970, foi um dos que acolheram Zalachenko quando ele abandonou o barco. Depois, tornou-se advogado e virador em tempo integral, e prestava serviços para um grupo restrito dentro da Säpo. Aparentemente, existe uma panelinha que se reúne de vez em quando numa sauna para controlar o mundo e manter segredo sobre Zalachenko. Acho que o restante da Säpo nunca ouviu falar nesse canalha. A Lisbeth ameaçava revelar o segredo. Conclusão: foi internada num hospital psiquiátrico infantil.

—Não pode ser.

—Pode - disse Mikael. —Tudo bem, é um caso bastante especial, Lisbeth não era muito fácil de se lidar na época, como também não é hoje em dia... mas desde os doze anos ela representa uma ameaça para a segurança da nação.

Ele fez um apanhado sucinto da história toda.

—É muita coisa para digerir - disse Erika. —E o Dag e a Mia...

—Foram mortos porque o Dag descobriu o elo entre o Bjurman e o Zalachenko.

—E o que vai acontecer agora? A gente não devia contar tudo isso à polícia?

—Algumas partes, sim, mas não tudo. Reuni toda a informação essencial neste CD, por segurança, nunca se sabe. A Lisbeth foi atrás do Zalachenko. Vou tentar encontrada. Nada do que está neste CD pode vazar.

—Mikael... eu não estou gostando nada disso. Agente não pode ocultar informações numa investigação de homicídio.

—Não vamos ocultar nada. Eu pretendo ligar para o Bublanski. Mas acho que a Lisbeth está a caminho de Gosseberga. Ela está sendo procurada por triplo assassinato e, se chamarmos a polícia, eles vão enviar forças de intervenção com armas de alto calibre, e a chance de ela resistir é enorme. Aí, tudo pode acontecer.

Ele parou e sorriu, sem alegria.

—Temos que manter a polícia fora disso, para evitar as forças de intervenção que podem acabar causando mortos e feridos. Tenho que pôr as mãos na Lisbeth antes disso.

Erika Berger estava cética.

—Não pretendo revelar os segredos da Lisbeth. O Bublanski que descubra por si próprio. Quero que você faça um favor para mim. Nessa pasta, está o relatório do Björck de 1991 e uma correspondência entre o Björck e o Teleborian. Queria que você tirasse uma cópia e mandasse, por portador, para o Bublanski ou a Modig. Quanto a mim, estou pegando o trem para Göteborg daqui a vinte minutos.

—Mikael...

—Eu sei. Mas pretendo estar do lado da Lisbeth durante a batalha. Erika Berger apertou os lábios e não disse nada. Depois, meneou a cabeça. Mikael foi em direção à porta.

—Tenha cuidado - disse Erika, mas ele já tinha saído.

Ela achou que deveria ter ido com ele. Era a única coisa decente a ser feita. Mas ainda não tinha contado que ia pedir demissão da Millennium e que estava tudo acabado, o que quer que acontecesse. Pegou a pasta e foi tirar uma cópia dos documentos.

A caixa postal ficava na agência de correios de um centro comercial. Lisbeth não conhecia Göteborg e não sabia muito bem onde estava, mas localizara a agência e sentara-se numa cafeteria de onde podia avistar a caixa postal por uma fresta estreita entre os banners publicitários dos Novos Correios Suecos pendurados por alguns fios.

Irene Nesser estava maquiada com mais discrição do que Lisbeth Slander. Usava um colar ridículo e lia Crime e castigo, encontrado num sebo algumas ruas mais ao norte. Não tinha pressa e virava regularmente as páginas. Começara sua vigilância lá pelo meio-dia e ignorava por completo a que horas a caixa costumava ser aberta, se todos os dias ou se a cada duas semanas, se já tinha sido aberta naquele dia ou se alguém ainda viria. Mas era sua única pista, e ela tomou vários caffè latte enquanto esperava.

Estava quase cochilando, de olhos bem abertos, quando viu de repente que estavam abrindo a caixa. Olhou a hora: 13h45. Uma baita de uma sorte.

Lisbeth se levantou rapidamente, aproximou-se da vidraça e viu do outro lado um homem de jaqueta de couro preta saindo do setor de caixas postais. Alcançou-o já na rua. Era um rapaz magro de uns vinte anos. Virou a esquina e abriu a porta de um Renault estacionado ali. Lisbeth Salander memorizou o número da placa e correu para o Corolla que ela tinha deixado na mesma rua, cem metros adiante. Já estava atrás dele quando ele virou na Linnegatan. Seguiu-o até a Avenyn e depois, quando ele subiu em direção a Nordstan.

Mikael Blomkvist mal teve tempo de pegar o X2000 das 17hl0. Comprou o bilhete dentro do trem com o cartão de crédito, foi sentar-se no vagão-restaurante vazio e pediu o jantar.

Uma angústia lancinante lhe retorcia as entranhas. Temia chegar tarde demais, mas alimentava a esperança de que Lisbeth Salander ligaria para ele, mesmo sabendo que não o faria.

Ela tinha tentado matar Zalachenko em 1991. E agora, anos depois, ele acabava de dar o troco.

Holger Palmgren fizera uma análise acertada de Lisbeth Salander. Ela adquirira uma sólida experiência prática sobre o quão inútil era recorrer às autoridades.

Mikael deu uma olhada na bolsa de seu computador. Pegara o Colt encontrado na gaveta de Lisbeth. Não sabia ao certo por que tinha pegado a arma, mas seu instinto lhe disse para não deixá-la no apartamento. Admitia que não era um raciocínio muito lógico.

O trem passava pela ponte de Ársta quando ele pegou o celular e ligou para Bublanski.

—O que você quer? - perguntou Bublanski, irritado.

—Acabar - disse Mikael.

—Acabar o quê?

—Com essa confusão toda. Você quer saber quem matou o Dag, a Mia e o Bjurman?

—Se você tem alguma informação, eu gostaria de saber.

—O assassino se chama Ronald Niedermann. É o gigante loiro que lutou com o Paolo Roberto. É cidadão alemão, tem trinta e cinco anos e trabalha para um canalha chamado Alexander Zalachenko, também conhecido como Zala.

Bublanski ficou um tempo sem dizer nada. Depois suspirou ruidosamente. Mikael ouviu um ruído de papel e o clique de uma esferográfica.

—Você tem certeza?

—Tenho.

—Muito bem. E onde estão o Niedermann e esse tal Zalachenko?

—Ainda não sei. Mas assim que descobrir eu te falo. Daqui a pouco a Erika Berger vai mandar te entregar um relatório policial com data de 1991. Ela só está tirando uma cópia. Ali você vai achar todo tipo de informação sobre o Zalachenko e a Lisbeth Salander.

—Como assim?

—O Zalachenko é o pai da Lisbeth. É um espião russo dissidente da guerra fria, um assassino.

—Um espião russo! - repetiu Bublanski com a voz cheia de dúvida.

—Foi coberto por uma turminha da Säpo, que ocultou todos os crimes dele.

Mikael ouviu Bublanski pegando uma cadeira para se sentar.

—Acho melhor você passar por aqui e prestar um depoimento formal.

—Lamento, estou sem tempo.

—Como?

—Não estou em Estocolmo. Mas assim que eu encontrar o Zalachenko te dou um toque.

—Blomkvist... Você não precisa provar nada. Eu também tenho dúvidas quanto à culpa da Salander.

—Posso te lembrar que sou um simples investigador particular que não entende nada do trabalho da polícia?

Sabia que estava sendo pueril, mas cortou a conversa sem mais formalidades. Em seguida, ligou para Annika Giannini.

—Oi, mana.

—Oi. Alguma novidade?

—Dá para dizer que sim. Provavelmente vou precisar de um bom advogado amanhã.

Ela suspirou.

—O que você aprontou?

—Por enquanto, nada sério, mas pode ser que eu seja detido por obstrução de investigação policial, ou algo assim. Mas não é por isso que estou ligando. Você não vai poder me representar.

—E por que não?

—Porque quero que você se encarregue da defesa da Lisbeth Salander, e você não pode defender os dois.

Mikael contou resumidamente do que se tratava. Annika Giannini permaneceu num silêncio fúnebre.

—E você tem documentos para se basear... - disse finalmente.

—Tenho.

—Vou ter que pensar. A Lisbeth precisa de um advogado criminalístico...

—Você será perfeita.

—Mikael...

—Escuta mana, não é você que estava sentida porque eu não pedi ajuda quando precisei?

Finda a conversa, Mikael ficou um tempo refletindo. Então pegou o telefone e ligou para Holger Palmgren. Não tinha nenhum motivo especial para isso, mas achava que afinal o senhor idoso, lá no seu centro de reabilitação, tinha de ser informado sobre as pistas que Mikael estava seguindo e sobre sua esperança de que o caso se encerrasse nas próximas horas.

O problema, evidentemente, era que Lisbeth Salander também estava seguindo suas pistas.

Lisbeth Salander se abaixou para pegar uma maçã na mochila, sem tirar os olhos da granja. Estava deitada na orla de um matinho, em cima do tapete do Corolla como proteção. Tinha trocado de roupa e usava uma calça verde de algodão pesado com bolsos nas pernas, um pulôver grosso e uma jaqueta curta forrada e bem quente.

O lugarejo de Gosseberga situava-se a cerca de quatrocentos metros da estrada departamental e compunha-se de dois grupos de edifícios. O principal estava a uns cento e vinte metros à sua frente. Era um sobrado de madeira comum, pintado de branco. Havia um galpão e um estábulo setenta metros adiante. O portão do estábulo emoldurava a frente de um carro branco. Ela podia apostar que era um Volvo, mas estava longe demais para ter certeza.

À direita, entre ela e a casa, um campo de pouco mais de duzentos metros se estendia até um açude. A trilha de acesso cortava o campo ao meio e desaparecia numa área arborizada em direção à estrada.

Na entrada da propriedade havia outra construção, com todo o jeito de sítio abandonado; as janelas estavam tapadas com tecidos claros. Ao norte dessa construção, uma área arborizada servia de cortina para o lado do vizinho mais próximo, um grupo de casas a cerca de seiscentos metros dali. O sítio à sua frente era, portanto, relativamente isolado.

Estava nas proximidades do lago Anten, numa paisagem de vales com campos cortados por pequenas aldeias e áreas de mata densa. O mapa rodoviário não dava nenhuma informação detalhada da região, mas ela seguira o Renault preto de Göteborg pela E20, dobrando para oeste em Alingsâs, na direção de Sollebrun. Mais ou menos quarenta e cinco minutos depois, o carro entrara de repente num caminho florestal, onde uma placa indicava Gosseberga. Ela estacionara atrás de uma granja, num matinho a uns cem metros ao norte da bifurcação e refizera o caminho a pé.

Nunca tinha ouvido falar em Gosseberga, mas, até onde podia perceber, o nome se aplicava a casa e ao estábulo diante dela. Passara na frente da caixa de correspondência colocada na beira da estrada. A placa indicava 612 - K. A. Bodin. O nome não lhe dizia nada.

Descrevera um semicírculo em volta da construção a fim de escolher com cuidado seu ponto de observação. Estava com o sol da tarde nas costas. Desde que chegara, por volta das três e meia, praticamente só uma coisa acontecera: as quatro, o motorista do Renault tinha saído da casa. Na soleira da porta, trocara algumas palavras com uma pessoa que ela não conseguiu ver. Depois, fora embora dirigindo o carro e não tinha voltado. No mais, nenhum movimento na granja. Esperou pacientemente e observou a construção com um pequeno binóculo Minolta com grau oito de aumento.

Irritado, Mikael Blomkvist tamborilou com os dedos na mesa do vagão-restaurante. O X2000 estava preso em Katrineholm. O trem já estava parado havia quase uma hora em função de um misterioso problema técnico que precisava ser solucionado - era o que diziam os alto-falantes. A companhia se desculpava pelo atraso.

Ele deu um suspiro frustrado e foi buscar mais um café. Só quinze minutos depois o trem partiu, com uma sacudidela. Olhou o relógio. Oito da noite.

Deveria ter ido de avião ou alugado um carro.

A sensação de que estava chegando tarde demais só fez aumentar.

Por volta das seis horas, acenderam a luz no térreo e, pouco depois, uma lâmpada externa foi acesa acima dos degraus da porta. Lisbeth vislumbrou algumas sombras no que ela imaginou ser a cozinha, à direita da porta de entrada, mas não conseguiu distinguir nenhum rosto.

De repente, a porta se abriu e o gigante loiro chamado Ronald Niedermann saiu. Usava uma calça escura e uma blusa de gola alta colante que destacava seus músculos. Lisbeth meneou a cabeça consigo mesma. Enfim uma confirmação de que estava no lugar certo. Constatou mais uma vez que Niedermann era de fato corpulento. Mas era feito de carne e osso como qualquer ser humano, o que quer que Paolo Roberto e Miriam Wu tivessem passado com ele. Niedermann deu a volta na casa e sumiu alguns minutos na direção do carro no estábulo. Voltou com uma sacola pequena na mão e tornou a entrar na casa.

Minutos depois, saiu de novo, desta vez acompanhado de um homem de certa idade, baixo e magro, que mancava e se apoiava numa bengala. Estava escuro demais para que Lisbeth conseguisse distinguir as feições de seu rosto, mas sentiu um frio glacial na nuca.

Daaaddyy, I am heeeeree...

Observou Zalachenko e Niedermann caminharem pela trilha de acesso. Eles pararam um pouco no galpão, onde Niedermann pegou algumas toras de lenha. Depois voltaram para a casa e fecharam a porta.

Lisbeth Salander permaneceu imóvel vários minutos depois que eles entraram. Então baixou o binóculo e recuou cerca de dez metros, até ficar totalmente dissimulada pelas árvores. Abriu a mochila, pegou uma garrafa térmica, serviu-se de café preto e pôs na boca um torrão de açúcar, que começou a chupar. Comeu um sanduíche de queijo embalado em plástico que havia comprado num posto de gasolina da estrada de Göteborg. E refletiu.

Terminado o lanche, tirou da mochila a P-83 Wanad de Benny Nieminen. Tirou o carregador e conferiu que não havia nada bloqueando o orifício ou o cano. Fez de conta que atirava. No carregador havia seis balas Makarov calibre nove milímetros. Devia ser suficiente. Reposicionou o carregador e engatou uma bala. Acionou a trava de segurança e guardou a arma no bolso direito da jaqueta.

Lisbeth começou a ofensiva em direção à construção com um movimento circular através da mata. Tinha percorrido cerca de trezentos metros quando estacou de repente, no meio de uma passada.

Na margem de seu exemplar do Aritmética, Pierre de Fermat havia rabiscado: Descobri uma demonstração maravilhosa. Não cabe na estreiteza desta margem.

O quadrado tinha se transformado em cubo (x3 + y3 = z3), e os matemáticos haviam passado séculos tentando resolver o enigma de Fermat. Para enfim solucioná-lo, no final do século xx, Andrew Wiles tinha batalhado dez anos, usando os programas mais avançados do mundo.

E, súbito, ela entendeu. A resposta era de uma simplicidade absolutamente desarmante. Um jogo com algarismos se alinhando e de repente se encaixando no lugar, numa fórmula simples que tinha de ser vista, antes de mais nada, como uma charada.

Fermat não dispunha de um computador, e a solução de Andrew Wiles fundamentava-se numa matemática que ainda não tinha sido inventada quando Fermat formulou seu teorema. Fermat não poderia ter produzido a prova que Andrew Wiles tinha apresentado. A solução de Fermat era, evidentemente, bem distinta.

Ela ficou tão surpresa que precisou se sentar sobre um cepo. Ficou olhando fixamente à frente enquanto repassava a equação.

Era isso que ele queria dizer. Não é de surpreender que os matemáticos tenham arrancado os cabelos.

Então ela caiu na gargalhada.

Um filósofo teria tido mais chances de resolver o enigma. Gostaria de ter conhecido Fermat. Era um baita de um garganta.

Pouco depois, levantou-se e continuou sua ofensiva através da mata. Ao chegar mais perto, o estábulo ergueu-se entre ela e a casa.

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