1 - QUINTA-FEIRA 16 DE DEZEMBRO - SEXTA-FEIRA 17 DE DEZEMBRO


Lisbeth Salander puxou os óculos escuros sobre o nariz e olhou por baixo da aba do chapéu. Viu a mulher do quarto 32 vindo da entrada lateral do hotel e dirigir-se a uma das espreguiçadeiras de listras brancas e verdes à beira da piscina. Seu olhar estava firmemente voltado para o chão à sua frente e seu semblante, compenetrado. Dava a impressão de estar com as pernas meio bambas.

Salander, até então, só a tinha visto de longe. Dava-lhe uns trinta e cinco anos, mas sua aparência neutra e indefinida situava-a num ponto qualquer na faixa dos vinte e cinco aos cinquenta. Tinha cabelos castanhos semilongos, rosto oval e um corpo maduro que poderia ter saído diretamente das páginas de roupa íntima de um catálogo de vendas por correspondência. A mulher usava sandalinhas, biquíni preto e óculos escuros de tartaruga com lentes roxas. Era americana e falava com sotaque do Sul. Seu chapéu de sol era amarelo e ela o deixou cair ao lado da espreguiçadeira antes de fazer um sinal ao garçom do bar de Ella Carmichael.

Lisbeth Salander pôs o livro no colo, pegou seu copo e bebericou um gole de café antes de se inclinar para apanhar o maço de cigarros. Sem virar a cabeça, deslocou o olhar para o horizonte. Do seu lugar na área da piscina, avistava uma nesga do mar do Caribe em meio a um conjunto de palmeiras e rododendros em frente ao muro do hotel. Um veleiro singrava ao largo rumo ao norte, na direção de Santa-Luzia ou Dominica. Mais adiante, distinguia o vulto de um cargueiro cinzento a caminho das Guianas ou de algum país vizinho. Uma brisa ligeira lutava contra o calor da tarde, mas ela sentiu uma gota de suor escorrer devagar para a sobrancelha. Lisbeth Salander não era do tipo que gostava de se deixar fritar ao sol. Na medida do possível, passava o dia todo na sombra, de modo que se colocara decididamente sob a proteção do toldo. No entanto, estava bronzeada como uma avelã, pelo menos nas partes do corpo que expunha. Usava um short cáqui e uma regata preta.

Escutava os sons estranhos dos steel drums difundidos pelos alto-falantes do bar. Embora a música não fosse especialmente a sua praia - era incapaz de distinguir Nick Cave de uma orquestra de baile popular -, os steel drums a fascinavam. Achava incrível que alguém conseguisse afinar um barril de petróleo, e mais incrível ainda que o barril produzisse sons controláveis que não se pareciam com nenhum outro som e que, para ela, tinham diretamente a ver com magia.

Súbito, sentiu-se irritada e desviou o olhar para a mulher, a quem acabavam de entregar um copo com um drinque alaranjado.

Lisbeth Salander não queria nada com aquela morena. Mas simplesmente não conseguia entender por que a mulher continuava ali. Por quatro noites, desde a chegada do casal, Lisbeth Salander escutara vindo do quarto vizinho, uma voz masculina vigorosa e violenta usando o registro da intimidação. Escutara choros, sussurros duros e, em várias oportunidades, sons de bofetadas. O homem que estava na origem dos tabefes - Lisbeth supunha que era o marido - tinha cerca de quarenta anos. Cabelos castanhos lisos repartidos no meio, um penteado meio careta, e parecia estar na Ilha de Granada por motivos profissionais. Lisbeth Salander não fazia idéia de qual poderia ser a profissão do fulano, mas toda manhã ele aparecia bem vestido, de gravata e paletó, para tomar um café no bar do hotel, e depois pegar seu porta-documentos e ir até o táxi que o esperava.

Em geral, voltava ao hotel no final da tarde, tomava banho e ficava com mulher à beira da piscina. Jantavam juntos, e qualquer observador podia perceber a harmonia cheia de intimidade e amor que emanava deles. A mulher talvez tomasse um ou dois copos além do que deveria, mas sua embriaguez não era aflitiva nem espalhafatosa.

As brigas no quarto vizinho começavam ritualmente entre dez e onze da noite, mais ou menos a hora em que Lisbeth ia para a cama com um livro sobre mistérios matemáticos. Nunca eram maus-tratos sérios. Até onde Lisbeth conseguia perceber, tratava-se de uma discussão azeda e exaustiva, com o homem não tolerando nenhum protesto, embora provocasse a mulher, incitando-a às recriminações. Na noite anterior, Lisbeth fora para a sacada e escutara a discussão. Durante mais de uma hora, o homem ficara andando de um lado para o outro do quarto, reconhecendo que era um traste que não a merecia. Diversas vezes, como que em plena crise emocional de inferioridade, dissera que ela devia achá-lo um hipócrita. Todas às vezes ela respondera que não pensava isso e procurava acalmá-lo. Ele foi ficando mais e mais exaltado, chegando a ponto de sacudi-la. Por fim, ela disse o que ele esperava... sim, você é um hipócrita. E ele imediatamente usou aquela confissão forçada como pretexto para atacá-la, atacar seu comportamento e seu caráter. Chamou-a de puta, palavra que arrepiou Lisbeth Salander. Ela própria não teria hesitado em partir para a desforra se lhe dirigissem uma acusação daquelas. Mas não era esse o caso e, concretamente, o problema não era seu. Assim, era difícil para ela decidir se deveria ou não intervir de alguma maneira.

Perplexa, Lisbeth escutara o homem repetir suas acusações e, de repente, mandar ver as bofetadas. Acabava de decidir ir até o corredor e abrir a porta do 32 com um superpontapé, quando o silêncio voltou a se instalar no quarto.

Observando a mulher perto da piscina, notou um leve hematoma no ombro e um arranhão no quadril, mas nenhum ferimento óbvio.

Nove meses antes, tinha lido um artigo numa Popular Science esquecida por um passageiro no aeroporto Leonardo da Vinci, em Roma, e no mesmo instante tomara-se de um fascínio absoluto por astronomia esférica, um assunto absolutamente espinhoso. Num impulso, fora até a livraria universitária de Roma e comprara algumas das teses mais importantes sobre a matéria. Para entender astronomia esférica, porém, tinha sido obrigada a mergulhar nos mistérios relativamente complicados da matemática. Nos últimos meses, dera a volta ao mundo e visitara regularmente livrarias especializadas à procura de outros livros sobre o tema.

De modo geral, os livros tinham ficado enfiados nas malas, e seus estudos haviam sido pouco sistemáticos e um tanto hesitantes, até que passou por acaso na livraria universitária de Miami e saiu de lá com Dimensíons in Mathematics do Dr. L. C. Parnault (Harvard University, 1999). Encontrara o livro poucas horas antes de iniciar um périplo pelas Antilhas.

Estivera em Guadalupe (dois dias num fim de mundo inacreditável); Dominica (simpática e descontraída; cinco dias); Barbados (uma noite num hotel americano onde sentiu que sua presença era particularmente indesejada); e Santa-Luzia (nove dias). Poderia ter cogitado ficar algum tempo em Santa-Luzia, não fosse ter se indisposto com um jovem delinquente nativo de mente obtusa que insistia em se apossar do bar do seu hotel de segunda categoria. Certa noite, ela pusera fim às hostilidades esmagando-lhe um tijolo na cabeça, pagara a conta e tomara uma balsa com destino a São Jorge, capital de Granada. Até o momento de embarcar, nunca tinha ouvido falar naquele país.

Desembarcara em Granada debaixo de uma chuva tropical por volta das dez horas de uma manhã de novembro. A leitura do Caribbean Traveller lhe informara que Granada era conhecida como Spice Island, a ilha das especiarias, e era um dos maiores produtores mundiais de noz-moscada. A capital se chamava São Jorge. A ilha contava cento e vinte mil habitantes, mas cerca de outros duzentos mil granadinos estavam expatriados nos Estados Unidos, Canadá e Inglaterra, o que dava uma boa idéia do mercado de trabalho na ilha. A paisagem era montanhosa, em volta de um vulcão extinto, a Lagoa Grande.

Granada, historicamente falando, era uma das inúmeras e insignificantes antigas colônias britânicas, onde o capitão Barba Negra talvez tivesse, ou não, desembarcado e enterrado um tesouro. Esta imagem tinha o mérito de atiçar as fantasias. Em 1795, Granada atraiu a atenção política depois que um exescravo alforriado chamado Julian Fedon, inspirando-se na Revolução Francesa, fomentou uma revolta, obrigando a Coroa a enviar tropas para fazer picadinho, enforcar, encher de bala e mutilar um grande número de rebeldes. O problema do regime colonial era que uma boa quantidade de brancos pobres tinha aderido à revolta de Fedon sem a menor consideração pelas hierarquias ou fronteiras raciais. A revolta foi esmagada, mas Fedon nunca foi capturado; refugiado no maciço do Lago Grande tornou-se uma lenda local ao estilo Robin Hood.

Cerca de dois séculos depois, em 1979, o advogado Maurice Bishop deu início a outra revolução inspirada, segundo o guia, na communist dictatorship in Cuba and Nicarágua, mas da qual Lisbeth Salander tivera rapidamente uma visão bem diferente depois de conversar com Philip Campbell, professor, bibliotecário e pregador batista, em cuja guesthouse se hospedara em seus primeiros dias na ilha. A história podia ser resumida assim: Bishop foi um líder extremamente popular que derrubara um ditador maluco, e ainda por cima fanático por óvnis, que dilapidava parte do magro orçamento do Estado perseguindo discos voadores. Bishop defendia uma democracia econômica e introduziu no país as primeiras leis sobre igualdade dos sexos, antes de ser assassinado em 1983 por uma horda de stalinistas desmiolados, que desde então permaneciam encarcerados na ilha.

Depois do assassinato, incluído no massacre de cerca de cento e vinte pessoas, entre as quais o ministro das Relações Exteriores, o ministro da Condição Feminina e importantes líderes sindicais, os Estados Unidos intervieram, desembarcando na ilha a fim de restabelecer a democracia. Conseqüência direta para Granada: o desemprego passou de seis para quase cinquenta por cento e o tráfico de cocaína voltou a constituir a maior fonte de renda em todas as categorias. Philip Cambell assentira com a cabeça ao ler a descrição do guia de Lisbeth e dera-lhe bons conselhos sobre as pessoas e os bairros que ela deveria evitar depois do anoitecer.

Com Lisbeth Salander, bons conselhos eram relativamente inúteis. Em compensação, ela escapara do perigo de conhecer a criminalidade de Granada ao se apaixonar pela praia de Angra Grande, logo ao sul de São Jorge, praia de uns dez quilômetros de extensão de areia, pouquíssimo frequentada e onde podia, se lhe desse vontade, passear durante horas sem ser obrigada a conversar ou encontrar com ninguém. Hospedara-se no Keys, um dos raros hotéis americanos de Angra Grande, e lá ficara por sete semanas sem fazer muito mais que passear na praia e comer chinups, fruta nativa cujo gosto lhe lembrava o da groselha e com a qual se entusiasmara totalmente.

Era baixa estação e apenas um terço do hotel estava ocupado. O problema é que tanto a tranqüilidade de Lisbeth como suas veleidades de estudos matemáticos foram bruscamente perturbadas pelo barulho das discussões no quarto ao lado.

Mikael Blomkvist pressionou o indicador na campainha do apartamento de Lisbeth Salander na Lundagatan. Não esperava que ela atendesse, mas criara o hábito de passa por ali uma ou duas vezes por mês, só para dar uma conferida. Espiando pela abertura da porta destinada à correspondência, viu a pilha de prospectos acumulados. Passava das dez da noite e, com a pouca luminosidade, era difícil avaliar se a pilha aumentara desde a última vez.

Por um momento, permaneceu indeciso no vão da escada, até que, frustrado, deu meia-volta e deixou o prédio. Voltou para o seu apartamento na Bellmansgatan caminhando sem pressa. Ao chegar em casa, ligou a cafeteira e abriu os jornais da tarde, enquanto assistia à edição noturna de Rapport com olhar distraído. Estava deprimido e se perguntava aonde andaria Lisbeth Salander. Sentia uma vaga preocupação, mas não tinha nenhum motivo para achar que ela estava morta ou em maus lençóis. No entanto, perguntou-se pela milésima vez o que teria acontecido.

No ano anterior, convidara Lisbeth Salander para passar os feriados de Natal em sua cabana de Sandhamn. Tinham dado longos passeios juntos, conversando com calma sobre a repercussão dos acontecimentos dramáticos em que ambos haviam se envolvido recentemente, numa época em que Mikael vivia o que considerava uma crise existencial. Condenado por difamação passara alguns meses preso, sua carreira de jornalista atolara na lama e, com o rabo entre as pernas, abandonara seu cargo de editor responsável da revista Millennium. Em poucos meses, porém, tudo mudara. Convidado a escrever a biografia do industrial Henrik Vanger, o que ele vivenciou como uma terapia escandalosamente bem remunerada deixou de lado sua depressão para se lançar à caça desenfreada de um assassino em série ardiloso e muito bem escondido.

O acaso pusera Lisbeth Salander em seu caminho. Mikael tocou distraidamente, debaixo da orelha esquerda, na cicatriz deixada pelo nó corrediço. Lisbeth não salvara apenas sua carreira - simplesmente salvara-lhe a vida.

Em mais de uma oportunidade ela o surpreendera com seus talentos extraordinários - memória fotográfica e fabulosos conhecimentos em computação. Mikael Blomkvist considerava-se relativamente competente no assunto, mas Lisbeth Salander manejava computadores como se tivesse feito uma aliança com o diabo. Aos poucos, ele fora compreendendo que ela era uma hacker de padrão internacional e que, dentro do clube exclusivo que se dedicava, no mundo inteiro, a uma atividade ilegal em computação de altíssimo nível, ela era uma lenda, mesmo que anônima e só conhecida pelo codinome Wasp.

A capacidade de Lisbeth para passear pelos computadores alheios é que fornecera a Mikael o material necessário para transformar seu fracasso jornalístico no caso Wennerström - um furo que, um ano depois, ainda era fonte de investigações policiais sobre crimes financeiros e levava Mikael regularmente aos sofás dos estúdios de televisão.

Um ano antes, ele vivera esse furo com uma satisfação colossal - enquanto vingança e brilhante reabilitação após sua estada na sarjeta do jornalismo. A satisfação, porém, o abandonara rapidamente. Passadas algumas semanas, já estava saturado de responder às mesmas e eternas perguntas dos jornalistas e dos tiras da divisão financeira. Sinto muito, mas não posso revelar minhas fontes. E no dia em que um jornalista do Azerbahdzian Times se dera ao trabalho de ir até Estocolmo para fazer apenas as mesmas perguntas idiotas, ele se cansara. Reduzira as entrevistas ao mínimo necessário, e nos últimos meses só se dispunha a aceitá-las quando quem ligava era a Moça da TV4, e isso depois que a investigação já estava em outra fase bem específica.

A colaboração de Mikael com a Moça da TV4 tinha, além disso, outra dimensão. Ela fora a primeira jornalista a dar importância à revelação e, sem sua ajuda já na primeira noite em que a Millennium soltara o furo, nada garante que a história tivesse tido aquele impacto. Só mais tarde Mikael ficou sabendo que ela tivera de brigar com unhas e dentes para convencer sua redação a deixá-la contar a história. Ninguém estava disposto a dar espaço àquele tratante da Millennium e até o momento de ela entrar ao vivo ninguém podia garantir que a bateria de advogados da redação a deixaria falar. Vários de seus colegas mais velhos tinham baixado o polegar, alertando que se ela estivesse enganada sua carreira estaria enterrada. A Moça aguentara firme e acabara desencadeando a história do ano.

Na primeira semana, ela naturalmente continuou acompanhando o caso - já que era, a bem dizer, a única repórter que tinha se aprofundado no assunto - mas, às vésperas do Natal, Mikael se deu conta de que todos os comentários e novos pontos de vista tinham sido transferidos para seus colegas homens. Por volta do ano-novo, Mikael descobriu por vias indiretas que haviam simplesmente afastado a moça sob o argumento de que o maior acontecimento midiático do ano tinha de ser tratado por jornalistas de economia sérios, e não por uma menina originária da Ilha de Gotland, ou sabe-se lá de onde. Isso irritou Mikael, e quando, mais tarde, a TV4 lhe pediu uma declaração, ele retrucou de cara que só falaria com a Moça, o que resultou em alguns dias de silêncio carrancudo antes de os sujeitos capitularem e ela reassumir seu lugar.

O interesse decrescente de Mikael pelo caso Wennerström coincidia também com o desaparecimento de Lisbeth Salander. Ele continuava sem entender o que havia acontecido.

Haviam se despedido um dia depois do Natal, e nos dias seguintes não tinham se visto. Na véspera do réveillon, Mikael ligou para ela bem tarde da noite. Ela não atendera. No dia do réveillon, passara duas vezes na casa dela e tocara a campainha. Na primeira, viu luz no apartamento, mas ela não abrira a porta. Na segunda, estava tudo escuro. No dia do ano-novo, tentara ligar mais uma vez, porém a única resposta que obteve foi a mensagem gravada dizendo que o número estava indisponível no momento.

Nos dias que se seguiram, encontrou-a duas vezes. Preocupado, ainda sem conseguir falar com Lisbeth, foi até seu apartamento no início de janeiro e sentou-se num degrau da escada em frente à porta. Tinha levado um livro e esperou persistentemente por quatro horas até ela chegar, pouco antes das onze da noite. Carregava uma caixa de papelão e parou de repente quando o avistou.

—Oi, Lisbeth - disse ele, fechando o livro.

Lisbeth contemplou-o sem a menor expressão no olhar, sem calor nem amizade. Depois passou por ele e enfiou a chave na fechadura.

—Me oferece um café? -perguntou Mikael. Ela virou-se para ele e falou em voz baixa.

—Vá embora. Não quero mais te ver.

Então fechou a porta na cara de um perplexo Mikael Blomkvist, que ficou escutando ela girar a chave na fechadura.

Três dias depois, encontrou-a uma segunda vez. Ele pegara o metrô de Slussen na Centralen, e quando o trem parou na Gamla Stan, ao olhar pela janela, avistou-a na plataforma, a menos de dois metros de distância. Avistou-a no exato momento em que as portas se fechavam. Por cinco segundos, ela olhou bem dentro de seus olhos, mas como se ele fosse transparente, antes de dar meia-volta e se afastar de seu campo de visão enquanto o trem se punha em marcha.

A mensagem era clara. Lisbeth Salander não queria nada com Mikael Blomkvist. Riscara-o de sua vida com a mesma eficiência com que apagava um arquivo do seu computador, sem explicação ou negociação. Mudara o número do celular e não respondia aos e-mails.

Mikael suspirou, desligou a tevê, aproximou-se da janela e contemplou o prédio da prefeitura.

Perguntou-se se não estaria errado, insistindo em passar assim regularmente em frente ao apartamento de Lisbeth. Até então, a atitude de Mikael, se uma mulher sinalizasse de forma tão clara que não queria mais ouvir falar nele, era ir embora. Para ele, não respeitar uma mensagem dessas equivalia a não respeitar a mulher em questão.

Na época do caso, tinham estado juntos na cama. Acontecera por iniciativa de Lisbeth, e a relação havia durado seis meses. Se era decisão dela terminar aquela história do mesmo modo surpreendente como começara, a Mikael só restava aceitar. Cabia a ela romper. Mikael não via dificuldades no papel de ex-namorado - se era assim que ele agora tinha de se considerar -, mas estava perplexo com a forma como Lisbeth Salander o deixara.

O único problema é que Mikael gostava imensamente de Lisbeth Salander. Não estava nem um pouco apaixonado por ela - combinavam tão pouco quanto duas pessoas podem combinar -, mas gostava dela e sentia mesmo falta daquela mulherzinha danada de complicada. Imaginara que a amizade deles fosse recíproca. Em suma, sentia-se um idiota.

Depois de passar um longo tempo diante da janela, sua decisão estava tomada.

Se Lisbeth Salander o detestava a ponto de não conseguir sequer cumprimentá-lo quando se encontravam no metrô, a amizade entre eles provavelmente acabara e o dano era irreversível. A partir de agora, não passaria mais pelo seu apartamento nem faria o menor gesto para retomar o contato com ela.

Lisbeth Salander consultou seu relógio e constatou que, mesmo ficando comportadamente à sombra, estava encharcada de suor. Eram dez e meia. Memorizou uma fórmula matemática de três linhas e fechou o Dimensíons in Mathematics, depois pegou a chave do quarto e seu maço de cigarros em cima da mesa.

Seu quarto era no primeiro andar, o último andar do hotel. Tirou a roupa e entrou no chuveiro.

Um lagarto verde de uns vinte centímetros a espreitava da parede, logo abaixo do teto. Lisbeth, por sua vez, olhou-o de soslaio, mas não fez nenhum gesto para expulsá-lo. Concluíra que o lagarto era hóspede ali havia muito mais tempo que ela e provavelmente ainda seria muito tempo depois de ela ter ido embora de Granada. Havia lagartos por toda a ilha, eles se esgueiravam no quarto pelas persianas das janelas abertas, por baixo da porta ou pela ventilação do banheiro. Gostava da companhia deles, de modo geral não a perturbavam e pareciam mais inteligentes que certos humanos que ela conhecia. A água estava fria, mas não gelada, e ela ficou debaixo do chuveiro uns cinco minutos para se refrescar.

Ao voltar para o quarto, deteve-se nua diante do espelho do armário e examinou seu corpo, maravilhada. Ainda pesava quarenta e dois quilos e media quase um metro e cinquenta. Não havia muito que fazer. Tinha membros finos como os de uma boneca, mãos pequenas e quadris acanhados.

Mas tinha seios.

A vida inteira ela fora ridiculamente reta, como se ainda não tivesse entrado na puberdade. Seus mamilos eram pequenos, mas muito normais. O problema é que estavam situados sobre o que poderia ser descrito, quando muito, como esboços de saliência. Tinham um aspecto absolutamente ridículo e ela sempre achara desagradável se mostrar nua.

E então, de repente, lá estava ela com seios. Não se tratava de melões (o que ela não desejava, e teria ficado ainda mais ridículo no seu corpo miúdo), mas de dois seios redondos e firmes do tamanho de, pelo menos, uma tangerina. A mudança acontecera gradualmente e as proporções eram plausíveis. Uma diferença radical, tanto para o seu aspecto físico como para o seu bem-estar pessoal.

Lisbeth passara cinco semanas numa clínica próxima a Gênova, na Itália, para fazer os implantes que constituíam a base dos seus seios novinhos. Escolhera a clínica e os médicos de melhor reputação na Europa, que normalmente praticavam intervenções por razões clínicas mais do que estéticas. Sua médica, uma mulher de fibra encantadora chamada Alessandra Perrini, concluíra que seus seios eram subdesenvolvidos e que havia justificativas médicas para aceitá-la como paciente.

A cirurgia não tinha sido indolor, mas os seios pareciam naturais, ao olhar e ao toque. Os mamilos estavam tão sensíveis como antes da intervenção, e as cicatrizes, quase invisíveis. Em momento algum se arrependera de sua decisão. Estava satisfeita. Seis meses depois, ainda não conseguia passar nua na frente de um espelho sem se sobressaltar e começar a apalpar os seios. Sentia-os como um aporte à sua qualidade de vida.

Aproveitando sua estada na clínica de Gênova, mandara remover uma de suas nove tatuagens - um marimbondo de dois centímetros no lado direito do pescoço. Gostava de suas tatuagens, principalmente do enorme dragão que se estendia da escápula até a nádega, mas ainda assim decidira livrar-se do marimbondo, ponderando que uma marca tão visível e ostensiva a tornava fácil de identificar e lembrar. Lisbeth Salander não queria ser nem identificada nem lembrada. A tatuagem fora removida a laser e, quando passava o dedo indicador pelo pescoço, podia sentir uma leve cicatriz. Uma inspeção mais aprofundada mostraria que sua pele bronzeada era um tantinho mais clara no local da tatuagem, mas uma olhada rápida nada revelava. Ao todo, sua estada em Gênova lhe custara o equivalente a cento e noventa mil coroas. Era algo que ela podia se permitir.

Parou de sonhar na frente do espelho e vestiu uma calcinha e um sutiã. Dois dias depois de deixar a clínica de Gênova entrara, pela primeira vez nos seus vinte e cinco anos de vida, numa loja de lingerie e comprara o objeto de que até então nunca tinha precisado. De lá para cá, completara vinte e seis anos e ainda usava aquela peça com certa fascinação.

Enfiou um jeans e uma camiseta preta com os dizeres Consider this a fair warning. Pegou as sandálias e o chapéu de palha e pendurou uma sacola de náilon preto no ombro.

Ao dirigir-se para a saída, notou um pequeno grupo de clientes discutindo na recepção. Diminuiu o passo e apurou o ouvido.

—Just how dangerous is she? - gritou uma mulher negra com sotaque british.

Lisbeth a reconheceu fazia parte de um grupo de veranistas que tinham chegado de Londres dez dias antes.

Freddie McBain, o recepcionista grisalho que invariavelmente brindava Lisbeth Salander com um sorriso simpático, parecia chateado. Explicou que todos os clientes do hotel receberiam instruções e que não havia motivo para se preocupar se todo mundo seguisse essas instruções à risca. Sua resposta foi recebida com uma torrente de perguntas.

Lisbeth Salander franziu o cenho e foi ter com Ella Carmichael atrás do balcão do bar.

—O que está acontecendo? - perguntou, indicando o ajuntamento na recepção.

—Mathilda está ameaçando nos fazer uma visita.

—Mathilda?

—Mathilda é um ciclone que se formou há quinze dias ao largo da costa brasileira e hoje de manhã passou reto por Paramaribo. É a capital do Suriname. Não se sabe muito bem que direção ele vai tomar - provavelmente mais ao norte, rumo aos Estados Unidos. Mas se continuar seguindo a costa no sentido oeste vai topar com Trinidad e Granada no caminho. Ou seja, é possível que a gente pegue vento.

—Pensei que a temporada dos ciclones tivesse acabado.

—E tinha. Em geral, os alertas de ciclone nos chegam em setembro e outubro. Mas o clima anda tão desregulado com essas histórias de efeito estufa que não dá para prever mais nada.

—Entendi. E o Mathilda está previsto para quando?

—Para logo.

—E eu devo estar preparada para quê?

—Lisbeth, com ciclone não se brinca. Tivemos um ciclone nos anos 1970 que causou estragos imensos aqui em Granada. Eu tinha onze anos e morava numa aldeia, lá em cima, para os lados da Lagoa Grande, na estrada de Grenville. Nunca vou esquecer aquela noite.

—Ahã.

—Mas não se preocupe. Fique perto do hotel no sábado. Prepare uma sacola com o que lhe parece indispensável - estou pensando no computador em que vejo você brincando - e esteja pronta para levá-la se vier o aviso de ir para um abrigo. Só isso.

—Está bem, não vou esquecer.

—Quer tomar alguma coisa?

—Não, obrigada.

Lisbeth Salander saiu sem se despedir. Ella Carmichael sorriu resignada. Levara algumas semanas para se acostumar com os modos daquela moça estranha e acabara entendendo que Lisbeth Salander não era arrogante - era simplesmente de outro planeta. Mas pagava o que consumia sem reclamar, mantinha-se mais ou menos sóbria, cuidava da própria vida e nunca causava nenhum problema.

Os transportes coletivos de Granada constituíam-se basicamente de micro-ônibus com uma decoração extravagante que circulavam sem preocupação com horário ou outras formalidades. Ainda assim, asseguravam trajetos regulares durante o dia. Em compensação, depois que anoitecia era praticamente impossível se deslocar quando não se dispunha de um carro.

Lisbeth Salander não esperou mais que um minuto na estrada para São Jorge até um ônibus parar. O motorista era rastafári e as caixas de som tocavam “No Woman, no Cry” a todo volume. Ela tapou os ouvidos, pagou o seu dólar e se meteu no ônibus entre uma senhora robusta de cabelos grisalhos e dois meninos de uniforme escolar.

São Jorge situava-se numa baía em forma de U que constituía the Carenage. Ao redor do porto erguiam-se colinas escarpadas com edifícios, antigas construções coloniais e uma fortaleza, o Forte Rupert, na ponta do promontório à beira de uma falésia.

São Jorge era uma cidade extremamente compacta e densa, com ruas estreitas e inúmeras vielas. As casas iam subindo pelas colinas e quase não existiam superfícies planas, com exceção de um campo de críquete que também fazia às vezes de hipódromo, na orla norte da cidade.

Ela desceu do ônibus no meio do porto e foi a pé até a MacIntyre’s Electronics, no alto de uma pequena ladeira de matar. Quase todos os produtos vendidos em Granada eram importados dos Estados Unidos ou da Inglaterra e, consequentemente, custavam duas vezes mais que em qualquer outro lugar, mas em compensação a loja dispunha de ar-condicionado.

Chegara, finalmente, a bateria que ela tinha encomendado para o seu Apple PowerBook G4 titanium com tela de dezessete polegadas. Ela comprara em Miami um computador de mão Palm, fácil de carregar na sacola, com o qual podia consultar seu correio eletrônico; ele a dispensava de andar com o Powerbook, mas era um substituto medíocre para a tela de dezessete polegadas. A bateria original estava começando a enfraquecer e só aguentava meia hora, o que era realmente um saco quando ela queria ficar à beira da piscina, e também considerando-se que o fornecimento de energia de Granada deixava um pouco a desejar. Nas semanas em que estivera ali, faltara luz duas vezes e por um período bastante longo. Pagou com um cartão de crédito da Wasp Enterprises, pôs a bateria na sacola e tornou a sair ao sol do meio-dia.

Passou no Barclays Bank e sacou trezentos dólares, depois foi ao mercado comprar cenouras, seis mangas e um litro e meio de água mineral. A sacola começou a pesar e, quando voltou ao porto, estava com fome e sede. De início, pensou no Nutmeg, mas o restaurante parecia ter sofrido uma invasão. Seguiu até o Turtleback, mais tranquilo, na extremidade do porto, acomodou-se na esplanada e pediu um prato de lula com batatas sautées e uma garrafa de Carib, a cerveja local. Pegou um exemplar abandonado do Grenadian Voice e percorreu-o por uns dois minutos. O único artigo mais interessante exagerava a possível passagem do Mathilda. O texto era ilustrado com a foto de uma casa destruída, recordação dos prejuízos causados pelo último grande ciclone que devastara o país.

Dobrou o jornal, tomou um gole de Carib no gargalo, recostou-se na cadeira e viu o homem do quarto 32 vindo do bar em direção à esplanada. Trazia a pasta de couro marrom numa mão e um copo grande de Coca-Cola na outra. Seus olhos passaram por ela sem reconhecê-la, e ele foi sentar-se na extremidade oposta do terraço, de onde ficou contemplando a água em frente ao restaurante.

Lisbeth Salander ergueu uma sobrancelha e pôs-se a examinar o homem, que ela via de perfil. Ele parecia totalmente alheio, e permaneceu imóvel durante sete minutos. Então de repente ergueu o copo e tomou três goles grandes. Descansou o copo sobre a mesa e voltou a contemplar a água. Instantes depois, Lisbeth abriu a sacola e pegou o Dimensions in Mathemathics.

Ela sempre tinha adorado quebra-cabeças e enigmas. Aos nove anos, ganhara um cubo mágico da mãe. O objeto desafiara seu senso de lógica por quarenta minutos, até ela entender seu funcionamento. Depois disso, não fora difícil solucioná-lo. Nunca tinha errado uma resposta nos testes de inteligência dos jornais; por exemplo, cinco figuras com formas esquisitas, faltando assinalar que forma teria a sexta figura. Para ela a resposta era sempre óbvia.

Na escola primária, aprendera a somar e subtrair. Multiplicação, divisão e geometria eram um prolongamento natural. Sabia somar de cabeça a conta de um restaurante, preencher uma fatura e calcular a trajetória de um obus de artilharia lançado de um determinado ângulo a uma determinada velocidade. Eram coisas óbvias. Antes de ler o artigo na Popular Science, nunca fora fascinada por matemática, nem sequer considerava a tabuada de multiplicação como matemática. Era algo que ela havia decorado certa tarde na escola, e não conseguia entender por que o professor ficava reprisando aquilo o ano inteiro.

De repente, percebera a lógica implacável que necessariamente existia por trás dos raciocínios e fórmulas apresentadas, o que a conduzira às prateleiras de matemática das livrarias. Mas quando abriu o Dimensions in Mathematics, um mundo totalmente novo descortinou-se diante dela. A matemática, na verdade, era um quebra-cabeça lógico com variações ao infinito - enigmas possíveis de solucionar. O interessante não era resolver contas. Cinco vezes cinco sempre dava vinte e cinco. O interessante era tentar compreender a composição das regras que possibilitavam resolver qualquer problema matemático.

Dimensions in Mathematics não era estritamente um manual de matemática, e sim a versão de bolso de um tijolão de mil e duzentas páginas sobre a história da matemática desde a Antiguidade grega até as tentativas contemporâneas de dominar a astronomia esférica. Era considerado uma bíblia, comparável ao que um dia representara, e ainda representava para os matemáticos sérios, o Aritmética de Diofante. A primeira vez que abrira o Dimensions fora na esplanada do hotel da praia de Angra Grande, e se vira de repente num mundo encantado dos números, num livro escrito por um autor que não só era um bom pedagogo como sabia surpreender o leitor com anedotas e problemas desconcertantes. Conseguira acompanhar a evolução da matemática de Arquimedes até os contemporâneos Jet Propulsion Laboratories da Califórnia. Compreendia seus métodos para solucionar os problemas.

Vivenciara o encontro com o teorema de Pitágoras (x2 + y2 - z2), formulado cerca de quinhentos anos a. C, como uma espécie de revelação. De repente, compreendera o significado do que havia decorado na escola, numa das raras aulas a que havia assistido. Num triângulo retângulo, o quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos lados do ângulo reto. Estava fascinada pela descoberta de Euclides por volta de 300 a. C, enunciando que um número perfeito é sempre múltiplo de dois números, sendo um deles uma potência de 2 e o outro o mesmo número na potência seguinte de 2 menos 1. Era um aperfeiçoamento do teorema de Pitágoras e ela compreendia a infinidade de combinações possíveis.

6 = 21 x (22- 1) 28 = 22 x (23- 1) 496 = 24 x (25 - 1) 8.128 = 26 x (27 - 1)

Ela podia continuar indefinidamente sem achar um só número que atentasse contra a regra. Havia nisso uma lógica que agradava ao senso de absoluto de Lisbeth Salander. Rapidamente, e com um prazer manifesto, ela assimilara Arquimedes, Newton, Martin Gardner e mais uma dúzia de matemáticos clássicos.

Então chegara ao capítulo de Pierre de Fermat, cujo enigma matemático, o teorema de Fermat, a desconcertara por sete semanas. Um prazo até razoável, considerando-se que Fermat levara alguns matemáticos à loucura por quase quatro séculos, até que um inglês chamado Andrew Wiles conseguisse, e isso apenas em 1993, resolver o quebra-cabeça.

O teorema de Fermat era um postulado de uma simplicidade enganosa.

Pierre de Fermat nasceu em 1601 em Beaumont-de-Lomagne no sudoeste da França. Por ironia da história, ele não era sequer matemático, e sim um magistrado que se dedicava à matemática como uma espécie de excêntrico passatempo. Ainda assim, era considerado um dos mais talentosos matemáticos autodidatas de todos os tempos. Tal como Lisbeth Salander, gostava de resolver quebra-cabeças e enigmas. O que parecia diverti-lo mais que tudo era debochar de outros matemáticos elaborando problemas sem se dar ao trabalho de oferecer a solução. O filósofo René Descartes qualificou Fermat com uma série de epítetos degradantes, ao passo que seu colega inglês John Wallis o chamava de “esse maldito francês”.

Nos anos 1630, foi publicada uma tradução francesa do Aritmética de Diofante, que reunia todas as teorias formuladas por Pitágoras, Euclides e outros matemáticos da Antiguidade. Foi trabalhando no teorema de Pitágoras que Fermat, num insight genial, propôs seu problema imortal. Formulou uma variante do teorema de Pitágoras. Em vez de (x2 + y2 = z2), Fermat transformou o quadrado em cubo (x3 + y3 = z3).

O problema era que a nova equação não parecia ter solução com números inteiros. Assim, mediante uma pequena modificação teórica, Fermat tinha transformado uma fórmula que propunha um número infinito de soluções perfeitas num impasse sem solução nenhuma. Seu teorema era exatamente isto - Fermat afirmava que em lugar nenhum do universo infinito dos números existia um número inteiro em que o cubo pudesse se expressar como sendo a soma de dois cubos, e que essa era a regra para todos os números com potência superior a 2, ou seja, justamente, o teorema de Pitágoras.

Os demais matemáticos logo concordaram. Recorrendo ao método da tentativa e erro, constataram que não encontravam nenhum número que refutasse a afirmação de Fermat. O único problema era que, mesmo que ficassem fazendo cálculos até o final dos tempos, não conseguiriam verificar todos os números existentes, de modo que os matemáticos não podiam afirmar que o próximo número não iria invalidar o teorema de Fermat. Em matemática, com efeito, as afirmações precisam ser matematicamente demonstráveis e se expressar por uma fórmula genérica e cientificamente correta. O matemático deve ser capaz de subir numa tribuna e pronunciar as palavras “é assim porque...”.

Fermat, como era de seu feitio, zombou dos colegas. Nas margens do seu exemplar de Aritmética, o gênio rabiscou algumas hipóteses, concluindo com as seguintes linhas: Cuius rei demonstrationem mirabilem sane detexihanc marginis exiquitas non caperet. Ou seja: Descobri uma demonstração maravilhosa. Não cabe na estreiteza desta margem.

Se sua intenção era enlouquecer seus colegas, conseguiu. Desde 1637, praticamente todos os matemáticos que se respeitam dedicaram tempo, e às vezes muito tempo, tentando demonstrar a conjectura de Fermat. Gerações de pensadores quebraram a cara até que em 1993 Andrew Wiles realizasse a demonstração que todos esperavam. Fazia vinte e cinco anos que ele vinha refletindo sobre o enigma, e nos últimos dez, quase que em tempo integral. Lisbeth Salander estava absolutamente perplexa.

Na verdade, a resposta não a interessava nem um pouco. A busca da solução é que a mantinha em suspense. Quando lhe propunham um enigma, ela o resolvia. Levava um tempo elucidando os mistérios matemáticos até compreender o princípio dos raciocínios, mas sempre chegava à solução certa antes de conferir a resposta.

Assim é que, depois de ler o teorema de Fermat, pegara um papel e se pusera a rabiscar uns números. Com certa surpresa, não conseguira decifrar o enigma.

Proibindo a si mesma de olhar a resposta, pulou o trecho que oferecia a solução de Andrew Wiles. Ao invés, terminou a leitura de Dimensions e constatou que nenhum dos demais problemas formulados no livro oferecia alguma dificuldade especial. Depois disso, dia após dia, debruçou-se sobre o enigma de Fermat com uma irritação crescente, perguntando-se que “demonstração maravilhosa” Fermat teria encontrado. Atolava o tempo todo em novos impasses.

Ergueu os olhos quando, de súbito, o homem do quarto 32 se levantou e dirigiu-se para a saída. Consultou o relógio e reparou que o homem ficara sentado sem se mexer por duas horas e dez minutos. Franziu o cenho e, pensativa, ficou olhando enquanto ele se afastava.

Ella Carmichael pôs o copo sobre o balcão diante de Lisbeth Salander, concluindo que os drinques cor-de-rosa com sombrinhas ridículas definitivamente não eram a praia daquela garota. Lisbeth Salander sempre pedia a mesma coisa - uma cuba-libre. Certa noite, Salander exagerara um pouco na cerveja e Ella precisou pedir a um funcionário que a levasse para o quarto. Afora esta única vez, seu consumo normal se resumia a caffè latte, algumas cubas-libres e a Carib local. Como de costume, ela se sentou sozinha na ponta direita do bar e abriu um livro cheio de estranhas fórmulas matemáticas, o que, na opinião de Ella Carmichael, era uma curiosa escolha literária para uma moça solteira da idade dela.

Constatou também que Lisbeth Salander não parecia nem um pouco interessada em paquerar. Os poucos caras que tinham feito uma tentativa foram gentil, mas firmemente repelidos, um deles sofrendo algumas perdas e danos. O tal Chris MacAllen que Lisbeth mandara às favas com aspereza era, diga-se, um vagabundo da região que merecia se dar mal. Ella Carmichael não ficara muito surpresa ao vê-lo tropeçar inexplicavelmente e cair na piscina depois de ter tentado cantar Lisbeth Salander a noite inteira. Em favor de MacAllen, era preciso dizer que ele não era rancoroso. Voltara na noite seguinte, sóbrio, e oferecera a Salander uma cerveja que ela aceitara depois de uma breve hesitação. Desde então, cumprimentavam-se educadamente quando se cruzavam no bar.

—Está tudo bem? - perguntou Ella.

Lisbeth Salander assentiu com a cabeça e pegou o copo.

—Novidades sobre o Mathilda? - ela perguntou.

—Continua vindo em nossa direção. Pode ser que a gente tenha um fim de semana movimentado.

—Quando vamos saber?

—Na verdade, só depois que ele passar. Pode vir direto sobre Granada e resolver bifurcar para o norte na última hora. Os ciclones são assim, vão e vêm. No mais das vezes, passam ao largo - felizmente, senão não haveria mais ilha. Mas não se preocupe.

—Não estou preocupada.

Súbito, ouviram uma risada meio forçada e voltaram-se para a mulher do quarto 32, aparentemente encantada com alguma coisa que o marido lhe contava.

—Quem é?

—O doutor Forbes? São uns americanos de Austin, no Texas.

Ella Carmichael pronunciou a palavra “americanos” com evidente desgosto.

—Eu sei que eles são americanos. O que estão fazendo aqui? Ele é médico?

—Não, não esse tipo de doutor. Está aqui por causa da Fundação Santa Maria.

—O que é isso?

—Eles financiam os estudos de crianças superdotadas. Um homem bacana, esse doutor. Está em negociações com o Ministério da Educação para a construção de um novo colégio em São Jorge.

—Um homem bacana, mas que bate na mulher - disse Lisbeth Salander.

Ella Carmichael não respondeu e lançou um olhar atento a Lisbeth. Depois meneou a cabeça e foi até o outro lado do bar servir umas Carib a alguns clientes locais.

Lisbeth ficou cerca de dez minutos no bar, o nariz enfiado no Dimensions. Antes mesmo de chegar à adolescência, compreendera que era dotada de memória fotográfica e era consequentemente, diferente de seus colegas de sala. Nunca revelara essa singularidade a ninguém - a não ser a Mikael Blomkvist, num momento de fraqueza. Já sabia de cor o texto do Dimensions e continuava levando o livro a toda parte principalmente porque constituía um vínculo visual com Fermat, como se o livro tivesse virado um talismã.

Mas naquela noite não conseguia focar os pensamentos nem em Fermat nem em seu teorema. Vinha-lhe o tempo todo à cabeça a imagem do Dr. Forbes imóvel, o olhar fixo num ponto da baía de Carenage.

Não sabia explicar por que aquilo a incomodava tanto.

Por fim, fechou o livro, subiu até seu quarto e ligou o Powerbook. Nem pensar em navegar na internet. O hotel não dispunha de ADSL, mas Lisbeth tinha um modem interno que podia ser ligado ao celular, o que lhe permitia mandar e receber e-mails. Redigiu uma mensagem breve endereçada a praga_xyz_666@hotmail.com:

[Sem ADSL. Preciso informações sobre um tal dr. Forbes da Fundação Santa Maria, e a mulher dele, domiciliados em Austin, Texas. 500 dólares a quem fizer a research pra mim. Wasp.]

Anexou sua chave PGP oficial, criptografou o e-mail com a chave PGP de Praga e clicou em Enviar. Então viu as horas e constatou que passava um pouco das sete e meia.

Desligou o computador, trancou a porta do quarto a chave, percorreu quatrocentos metros até a praia, atravessou a estrada de São Jorge e foi bater na porta do galpão atrás do Coconut. George Bland tinha dezesseis anos, estudava em São Jorge. Queria ser médico ou advogado, ou quem sabe astronauta, e era mais ou menos tão magrela quanto Lisbeth Salander e não muito mais alto que ela.

Lisbeth conhecera George Bland na praia, na sua primeira semana em Granada e um dia depois de chegar a Angra Grande. Dera um longo passeio na praia e estava sentada à sombra de umas palmeiras, olhando as crianças que jogavam futebol à beira d’água. Abrira o Dimensions e estava mergulhada na leitura, quando ele viera sentar-se poucos metros à sua frente, aparentemente sem reparar em sua presença. Ela o observou em silêncio. Um jovem negro de sandálias, calça preta e camisa branca.

Como ela, estava com um livro aberto, mergulhado na leitura. Como ela, estudava um livro de matemática - Basics 4. Aparentemente concentrado no assunto, começou a rabiscar as páginas de um caderno. Só ao cabo de cinco minutos, quando ela deu uma tossidinha, ele reparou na sua presença e sobressaltou-se, assustado. Desculpou-se por estar incomodando e estava para ir embora quando ela perguntou se ele achava matemática difícil.

Algebra. Em poucos segundos, ela sublinhou um erro fundamental no cálculo dele. Meia hora depois, eles tinham terminado a tarefa. Uma hora depois, tinham percorrido o capítulo seguinte e ela lhe explicara com muita pedagogia as artimanhas das operações. Ele a contemplara com veneração. Duas horas depois, ele contara que sua mãe morava no Canadá, em Toronto, que seu pai morava em Grenville, do outro lado da ilha, e que ele próprio vivia num galpão atrás do Coconut, mais adiante na praia. Era o caçula da família, com três irmãs mais velhas.

Lisbeth Salander achou a companhia dele surpreendentemente relaxante. A situação era inusitada. Ela raras vezes, para não dizer nunca, entabulava conversa com outras pessoas para um simples bate-papo. Não se tratava de timidez. Para ela, as conversas tinham uma função prática: onde é que eu posso encontrar uma farmácia ou quanto custa o quarto? A função de uma conversa também tinha a ver com trabalho. Quando trabalhava para Dragan Armanskij como investigadora na Milton Security, não tivera o menor problema em manter conversas delirantes a fim de obter informações.

Em contrapartida, detestava conversas pessoais que sempre desandavam numa averiguação em regra do que ela julgava pertencer ao âmbito do privado.

Que idade você tem?

—Adivinha.

—Você acha a Britney Spears legal?

—Quem é essa?

—Você gosta dos desenhos de Carl Larsson?

—Nunca parei para pensar no assunto

—Você é lésbica?

—Vá se catar!

George Bland era desajeitado e ao mesmo tempo seguro de si, e como era também educado tentou manter uma conversa inteligente sem entrar em competição com ela nem investigar sua vida privada. Como ela, parecia sozinho. Dava a impressão de simplesmente aceitar o fato de uma deusa da matemática ter surgido na praia de Angra Grande, e parecia satisfeito que ela se dignasse a fazer-lhe companhia. Depois de muitas horas na praia, quando o sol se aproximava do horizonte, levantaram-se para ir embora. Ele a acompanhou até o hotel, e no caminho mostrou o barraco que lhe fazia às vezes de quarto de estudante, perguntando se podia lhe oferecer um chá. Ela aceitou o que pareceu surpreendê-lo.

Sua habitação era das mais simples: um galpão com uma mesa em mau estado, dois caixotes, uma cama e um guarda-roupa. A iluminação consistia numa pequena luminária de mesa ligada a um fio puxado do Coconut. O fogão era um fogareiro de camping. Ele ofereceu arroz com legumes, que serviu em pratos plásticos de camping. Também a convidou a fumar uma substância ilegal da região, e ela aceitou.

Não era nada difícil para Lisbeth perceber que sua presença o perturbava e que ele não sabia como se comportar. Num impulso, decidiu deixar que ele a seduzisse, o que se revelou um processo penoso e complicado. Ele captara os sinais, mas não tinha a mais vaga idéia de que atitude devia tomar. Ficou enrolando, com uma frustração evidente, até que ela perdeu a paciência, derrubou-o na cama com determinação e tirou a regata.

Era a primeira vez que ela se mostrava nua para alguém desde a cirurgia. Quando saíra da clínica com seus seios novos, a sensação tinha a ver com pânico, e precisara de algum tempo até perceber que ninguém estava olhando para ela. A Lisbeth Salander que normalmente não estava nem aí para o que os outros pensavam a seu respeito parecia um tanto acanhada naquele dia.

Consciente de que cedo ou tarde teria de dar aquele passo, acolhera George Bland como uma estreia perfeita, mesmo sendo ele de uma timidez alarmante. Depois de conseguir tirar seu sutiã (não sem uma certa dose de incentivo), apagara a lâmpada junto da cama antes de tirar a roupa. Lisbeth tornou a acendê-la. Observara atentamente as suas reações enquanto ele a tocava sem jeito. Só muito depois conseguiu relaxar e constatar que ele considerava seus seios absolutamente naturais. Embora ele talvez não tivesse visto muitos seios de mulher.

Ela não tivera nenhuma intenção de encontrar um amante adolescente em Granada. Acontecera num impulso e, quando ela o deixou, tarde da noite, não cogitava revê-lo. Mas já no dia seguinte cruzou novamente com ele na praia e se deu conta de que aquele jovem noviço era uma companhia agradável. Nessas sete semanas que passara em Granada, George Bland se tornara se não um elemento estável, pelo menos um elemento da sua existência. Constatou que, quando passeavam juntos, deviam parecer dois adolescentes. Sweet sixteen.

Ele provavelmente devia achar que a vida se tornara mais interessante. Tinha encontrado uma mulher que lhe dava aulas de matemática e erotismo. Ele abriu a porta e dirigiu-lhe um sorriso maravilhado. —Quer companhia? - ela perguntou.

Lisbeth Salander deixou um George Bland bobo de satisfação pouco depois das duas da manhã. Ela própria experimentava uma sensação de calor no corpo e preferiu seguir pela praia, em vez de pela estrada, para voltar ao Keys Hotel. Caminhava sozinha no escuro, sabendo muito bem que George Bland a seguia uns cem metros mais atrás.

Ele sempre fazia isso. Ela nunca ficara para dormir na casa dele. George protestava com veemência à mera idéia de uma mulher andar sozinha à noite para voltar ao hotel. Ele insistia que seu dever era acompanhá-la até lá. Principalmente porque, muitas vezes, já era tarde da noite. Lisbeth Salander escutava com atenção seus argumentos antes de interromper a conversa com um simples não. Vou aonde eu quiser e quando eu quiser. End of discussion. E não, não quero ser escoltada. Na primeira vez que percebeu que ele a seguia, ficou tremendamente irritada, até compreender que aquilo fazia parte do caráter de George Bland. Agora até via um certo charme nesse instinto protetor e fingia ignorar sua presença logo atrás dela, sabendo que ele só voltaria para casa depois de vê-la entrar no hotel.

Perguntava-se o que ele faria se ela fosse atacada de repente.

Quanto a ela, pretendia usar o martelo que comprara no departamento de ferragens da MacIntyre e que carregava no bolso externo da sacola. Segundo Lisbeth Salander, eram poucas as situações de perigo que um bom e velho martelo não pudesse resolver.

Apesar de uma lua crescente muito brilhante, o céu resplandecia de estrelas. Ela ergueu os olhos e reconheceu Régulus, da constelação de Leão. Estava quase chegando ao hotel quando estacou de súbito. Acabava de avistar um vulto na praia, à beira d’água, pertinho do hotel. Era a primeira vez que via alguém na praia depois do anoitecer. Uns cem metros os separavam, mas Lisbeth reconheceu facilmente o indivíduo.

Era o distinto Dr. Forbes, do quarto 32.

Recuou rapidamente alguns passos e se escondeu entre algumas árvores. Quando se virou para conferir, percebeu que George Bland também se escondera. O homem à beira d’água andava para lá e para cá devagarinho. Fumava um cigarro. Detinha-se regularmente e se inclinava à frente como que examinando a areia. Aquela pantomima prosseguiu durante uns vinte minutos, quando de repente ele deu meia-volta, retornou à porta do hotel que dava para a praia, e entrou.

Lisbeth esperou um minuto, cenho franzido, antes de ir até o local onde o homem do quarto 32 estivera. Devagar, descreveu um semicírculo e observou o solo. Só o que viu foi areia, alguns pedregulhos e conchas. Ao fim de dois minutos, interrompeu sua inspeção, perplexa, e subiu em direção ao hotel.

Saiu para a sacada de seu quarto, debruçou-se na balaustrada e observou a sacada dos vizinhos. Tudo calmo e tranqüilo. Aparentemente, a briga daquela noite já terminara. Instantes depois foi buscar sua sacola, pegou papel e enrolou um baseado com a provisão que George Bland lhe fornecera. Sentou-se numa cadeira da sacada e contemplou a água escura do mar do Caribe, fumando e refletindo.

E de repente teve a impressão de abrigar dentro de si um sistema de alerta cujas luzes vermelhas estavam piscando.

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